Introdução
O Brasil é o maior produtor mundial de cana-de-açúcar, o qual gerou na safra 2019/2020, segundo a União da Indústria de Cana-de-Açúcar [Unica] (2020), 642,6 milhões de toneladas, com destaque para o estado de São Paulo, como sendo o maior produtor nacional. Desta forma o país se destaca na produção de etanol e açúcar, porém após a obtenção destes sobram os resíduos, especialmente o bagaço da cana, que representa aproximadamente 30% da massa do vegetal (Paoliello, 2006).
De acordo com Assad (2017) grande parte dos resíduos gerados no processo produtivo da cana-de-açúcar é reutilizada, com destaque para o bagaço que é destinado à cogeração de energia, sendo queimado em caldeiras. Porém segundo Bonassa et al. (2015), mesmo que os resíduos do bagaço apresentem alto poder calorífico, e sejam interessantes para produção de energia, estes são muito volumosos, o que dificulta sua estocagem, e que sua deposição ao ar livre favorece a fermentação natural, e consequente apodrecimento, com redução do rendimento energético. Desta forma a autora sugere a realização de transformações nestes resíduos, como a briquetagem, que reduz seu volume e umidade, tornando-os um combustível limpo e de fácil manutenção.
Além do uso energético, conforme Paoliello (2006), o bagaço pode ser utilizado para fabricação de: painéis de fibra para construções, pasta de alto rendimento para papel, matéria plástica, vários solventes na indústria e até para ração animal.
Para o melhor aproveitamento dos resíduos do bagaço da cana é fundamental o conhecimento das suas propriedades físicas, químicas e anatômicas, que possibili-tarão avaliar suas potencialidades e principais aptidões, seja para geração direta de energia ou através de transformações na biomassa, ou para produção de polpa celulósica e papel. Com base nestes resultados é possível realizar comparações com materiais tradicionalmente já utilizados para estas finalidades, como a madeira de forma geral, a fim de comprovar que o bagaço pode ser uma alternativa viável.
Objetivos
O objetivo do presente estudo foi avaliar as propriedades físicas, químicas e anatômicas do bagaço da cana-de-açúcar, bem como seu potencial para geração de energia e produção de polpa celulósica.
Materiais e métodos
Coleta e caracterização do material
Para condução do estudo utilizou-se bagaço de cana-de-açúcar proveniente de uma usina localizada no município de Piracicaba/SP, voltada a produção de açúcar e etanol. O material foi coletado diretamente na pilha de armazenamento do processo industrial da empresa, sendo posteriormente encaminhado para o Laboratório de Química, Celulose e Energia, da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, da Universidade de São Paulo - LQCE/ ESALQ/USP.
Para caracterização do bagaço determinaram-se os parâmetros físicos (densidade aparente), químicos (composição) e anatômicos (morfologia das fibras). Para obtenção da densidade aparente utilizou-se o procedimento descrito por Vivian e Silva Júnior (2017). Para composição química, seguiram-se as metodologias descritas pelas normas da Technical Association of the Pulp and Paper Industry [TAPPI]: extrativos totais, TAPPI T 204 cm-97 (TAPPI, 1997); cinzas, TAPPI T 211 om-02 (TAPPI, 2002a), lignina, TAPPI T 222 om-02 (TAPPI, 2002b). A holocelulose (celulose+hemiceluloses) foi obtida por diferença (100-(lignina+extrativos)). Já para avaliação da morfologia das fibras o bagaço foi submetido ao processo de maceração com peróxido de hidrogênio e ácido acético (proporção 1:1), mantido em estufa a 60 ºC por 48 horas, até individualização destas. A partir do material macerado foram montadas lâminas temporárias e obtidas imagens para mensuração de 100 fibras, seguindo as recomendações da International Association of Wood Anatomists [IAWA]. Determinou-se o comprimento, largura, diâmetro do lúmen, espessura da parede celular, fração parede, coeficiente de flexibilidade, índice de Runkel e índice de enfeltramento, conforme as equações a seguir.
onde:
E = espessura da parede celular (µm)
L = largura da fibra (µm)
DL = diâmetro do lúmen (µm)
C = comprimento da fibra (mm)
FP = fração parede (%)
CF = coeficiente de flexibilidade (%)
IR = índice de Runkel
IE = índice de enfeltramento
Geração direta de energia e tratamento térmico do bagaço de cana-de-açúcar
Para avaliação do potencial energético do bagaço de cana-de-açúcar realizaram-se as análises no material in natura (sem tratamento) e no material submetido a tratamento térmico de torrefação, conforme a Figura 1.
O processo de torrefação foi realizado em estufa dotada de sistema de aquecimento por resistência elétrica e circulação forçada de ar, com volume nominal de 450 litros, sendo que antes da torrefação o bagaço foi seco em estufa a 103 °C ± 2 °C. Para realização dos tratamentos em atmosfera inerte, foi injetado fluxo de nitrogênio de 30 mL/min, para evitar a combustão do material.
Para avaliar o efeito do tratamento térmico e o potencial energético foram avaliados os seguintes parâmetros: rendimento, perda de massa, materiais voláteis, carbono fixo, poder calorífico superior e ganho energético, seguindo as metodologias descritas por Santos (2012) e pelas normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas [ABNT]: NBR 8633 (ABNT, 1984) e NBR 8112 (ABNT, 1986).
Processo de polpação kraft
Os cozimentos foram realizados em triplicata em digestor de circulação forçada de licor, com dois vasos de aço inoxidável com capacidade de 10 litros cada, visando obtenção de polpa com número kappa 18% ± 5%, pelo processo químico kraft. Para atingir o grau de deslignificação estipulado aplicaram-se os parâmetros descritos na Tabela 1, variando apenas a carga de álcali ativo (por tentativa e erro).
Parâmetros | Condições |
Álcali ativo, % (como NaOH) | * |
Sulfidez, % | 30 |
Massa seca de bagaço, g | 300 |
Relação licor/bagaço | 9:1 |
Temperatura máxima, ºC | 155 |
Tempo de aquecimento, minutos | 90 |
Tempo de cozimento, minutos | 20 |
Fator H | 126 |
*álcali ativo obtido por experimentação até atingir número kappa 18 ± 5%.
Após o cozimento a polpa obtida foi lavada com água até que todo o licor fosse visualmente removido. Na sequência a mesma foi desagregada em hidrapulper laboratorial, acondicionada em sacos de microfibras e centrifugada. Para avaliação do desempenho do bagaço de cana-de-açúcar submetido ao processo de polpação foram considerados os parâmetros apresentados na Tabela 2, entre os quais estão: rendimento bruto, rendimento depurado, teor de rejeitos, número kappa (nível de deslignificação), viscosidade e ácidos hexenurônicos da polpa.
Parâmetros | Normas/cálculos |
Rendimento bruto, % | Relação entre peso seco de polpa e peso seco de bagaço |
Rendimento depurado, % | Relação entre peso seco de polpa depurada e peso seco de bagaço |
Teor de rejeitos, % | Relação entre peso seco de rejeitos (material retido na peneira com fenda de 0,2 mm do depurador laboratorial) e peso seco de bagaço |
Número kappa | TAPPI T 236 om-99 (TAPPI, 1999) |
Viscosidade, cm³/g | TAPPI T 230 om-04 (TAPPI, 2004) |
Ácidos hexenurônicos, μmol/g | TAPPI T 282 pm-07 (TAPPI, 2007) |
TAPPI - Technical Association of Pulp and Paper Industry.
Resultados e discussão
Caracterização do bagaço de cana-de-açúcar
Nas Tabelas 3 e 4 podem ser observados os valores médios da caracterização dos resíduos de bagaço de cana-de-açúcar, bem como a comparação com outros estudos desenvolvidos com o mesmo material e com as madeiras de eucalipto e pinus.
Parâmetros | Médias | |
Densidade aparente, g/cm3 | 0,048 | |
Composição química | Holocelulose, % | 69,8 |
Lignina, % | 24,5 | |
Extrativos, % | 5,7 | |
Cinzas, % | 5,8 | |
Morfologia das fibras | Comprimento, mm | 1,60 |
Largura, µm | 17,40 | |
Diâmetro do lúmen, µm | 6,58 | |
Espessura da parede celular, µm | 5,41 | |
Fração parede, % | 62 | |
Coeficiente de flexibilidade, % | 38 | |
Índice de Runkel | 1,73 | |
Índice de enfeltramento | 91,77 |
Parâmetro | Bagaço 1 | Bagaço 2 | Bagaço 3 | Bagaço 4 | Eucalipto 5 | Pinus 6 |
DA, g/cm3 | 0,048 | - | - | - | 0,167 | - |
CZ, % | 5,8 | 0,79 | 4,9 | 1,75 | 0,21 | - |
EX, % | 5,7 | 12,81 | 5,1 | 4,69 | 2,63 | 2,83 |
LG, % | 24,5 | 25,34 | 21,7 | 21,38 | 27,12 | 26,71 |
HC, % | 69,8 | 61,06 | 68,2 | 65,95 | 70,25 | 70,46 |
C, mm | 1,60 | 2,22 | - | - | 1,01 | 3,50 |
L, µm | 17,40 | 19,10 | - | - | 16,57 | 40,55 |
DL, µm | 6,58 | 8,80 | - | - | 8,87 | 27,73 |
EP, µm | 5,41 | 5,10 | - | - | 3,85 | 6,41 |
FP, % | 62 | 53,81 | - | - | 46 | 32 |
CF, % | 38 | 46,19 | - | - | 54 | 68 |
IR | 1,73 | 1,16 | - | - | 0,90 | 0,46 |
IE | 91,77 | 116,49 | - | - | 62,39 | 86,00 |
DA - densidade aparente; CZ - cinzas; EX - extrativos; LG - lignina; HC - holocelulose; C - comprimento; L - largura; DL - diâmetro do lúmen; EP - espessura da parede; FP - fração parede; CF - coeficiente de flexibilidade; IR - índice de Runkel; IE - índice de enfeltramento. 1Presente estudo; 2Pego et al. (2019); 3Nascimento (2011); 4Carvalho (2018); 5Vivian e Silva Júnior (2017) e Vivian et al. (2017) - E. grandis x E. urophylla; 6Vivian et al. (2015) - Pinus taeda.
A densidade aparente dos resíduos de bagaço de cana-de-açúcar é baixa (0,048 g/cm3) quando comparada, por exemplo, com a densidade aparente de cavacos da madeira de Eucalyptus grandis x Eucalyptus urophylla (0,167 g/cm3) (Tabela 4), que é uma das principais matérias-primas para produção de polpa celulósica. Segura (2012) menciona que a densidade aparente, que também pode ser chamada de densidade a granel, é um parâmetro simple e direto utilizado por indústrias de polpa celulósica, e que se relaciona com a capacidade de produção das mesmas. Além disso, está diretamente relacionada a capacidade de estocagem e peneiramento dos cavacos, bem como da alimentação do digestor (Segura, 2015). O autor ainda cita valores de densidade aparente variando entre 0,154 g/cm3a 0,213 g/cm3, para a madeira de difirentes espécies e híbridos de eucalipto.
Os valores encontrados para cinzas (5,8%) e extrativos (5,7%) podem ser considerados altos, já o teor de lignina foi relativamente baixo (24,5%). O teor de holocelulose (celulose + hemiceluloses = 69,8%) é interessante, estando próximo aos valores relatados para espécies de eucalipto e pinus. Banerjee e Pandey (2002) mencionam que a composição química do bagaço de cana-de-açúcar varia geralmente entre os seguintes intervalos: 51,0% a 72,0% para holocelulose, 23,0% a 32,0% para lignina e 3,2% a 5,5% para cinzas. Os valores encontrados para holocelulose e lignina no presente estudo estão dentro da faixa citada pelos autores, com exceção para o teor de cinzas (5,8%) que foi um pouco superior.
Como é possível observar na Tabela 4, outros estudos com bagaço de cana-de-açúcar citam teores de cinzas variando em 0,79% e 4,9%, de extrativos entre 4,69% e 12,81%, de lignina entre 21,38% e 25,34%, e holocelulose entre 61,06% e 68,2%. É importante salientar que a variação do teor de cinzas e extrativos podem ter sido influenciados pela manipulação dos resíduos do bagaço, como presença de solo, areia ou outros contaminantes aderidos, ou pelo processo de extração durante a fabricação do açúcar ou etanol.
Comparando os resultados da composição química do bagaço com as madeiras de eucalipto e pinus, ele tende a apresentar maiores teores de cinzas e extrativos, porém menor teor de lignina, com similiaridade para o teor de holocelulose. Desta forma pode-se considerar os teores de lignina e holocelulose como pontos positivos, já os teores de cinzas e extrativos como negativos, especialmente se a ideia de utilização do bagaço seja para produção de polpa celulósica. Vivian et al. (2020) e Segura (2015) mencionam que o teor de holocelulose afeta positivamente o rendimento do processo, já que o objetivo final é a obtenção de polpa celulósica, porém elevados teores de lignina e extrativos são considerados indesejáveis no processo, podendo provocar incrustações (pitch) nos equipamentos, aumentando os custos de manutenção e o consumo de reagentes químicos. Em contrapartida, valores elevados de extrativos e lignina afetam positivamente o poder calorífico do material (Moutinho et al., 2016; Bufalino et al., 2012).
Com base no comprimento médio encontrado para as fibras do bagaço de cana-de-açúcar (1,60 mm) é possível enquadrá-las como moderadamente longas, de acordo com a classificação proposta por Metcalfe e Chalk (1983). O valor encontrado está um pouco abaixo do citado por Pego et al. (2019) para o bagaço, mas situa-se entre o tamanho das fibras de eucalipto (1,01 mm) e dos traqueídeos do pinus (3,50 mm), como observa-se na Tabela 4.
Em relação à largura e diâmetro do lúmen das fibras, os valores encontrados estão próximos aos citados em outros estudos para o bagaço e para o eucalipto, porém são muito inferiores quando comparados aos traqueídeos do pinus (Tabela 4). A espessura da parede celular se assemelha ao valor citado por Pego et al. (2019), porém é superior a espessura observada para o eucalipto e inferior quando comparada ao pinus (Tabela 4). De acordo com a classificação proposta por Manimekalai et al. (2002), a espessura da parede celular do bagaço pode ser considerada como muito espessa (>5 µm).
A fração parede obtida para o bagaço (62%) foi superior ao relatado em outros estudos com bagaço, eucalipto e pinus. Com base na classificação sugerida por Klock (2013), entre 50% e 70%, as fibras apresentarão alta rigidez, o que é prejudicial para fabricação de papel, por exemplo. Conforme Shimoyama e Wiecheteck (1993), o ideal é que a fração parede esteja abaixo de 40%, pois as fibras colapsarão com maior facilidade, proporcionando maior resistência ao papel (alta resistência à tração e estouro).
O coeficiente de flexibilidade observado para as fibras do bagaço de cana no presente estudo (38%) está abaixo do citado por outros pesquisadores para o mesmo material, bem como para o eucalipto e pinus (Tabela 4). Tal valor situa-se na faixa de 30% a 50%, que indica que as fibras apresentarão pouco colapso, com pouca união e superfície de contato entre as elas (Nisgoski, 2005). O coeficiente de flexibilidade está relacionado com a fração parede das fibras, sendo que esta última foi elevada no estudo, desta forma quanto maior esta for, menos flexíveis serão as fibras.
O índice de Runkel obtido para as fibras do bagaço (1,73) no presente estudo está acima do citado por outros autores para o bagaço, eucalipto e pinus, como pode ser observado na Tabela 4. De acordo com a classificação criada por Runkel, e citada por Tostes et al. (2013), o valor obtido neste estudo permite enquadrá-lo na categoria IV (entre 1,00 e 2,00), que indica que o bagaço seria regular para fabricação de papel.
O valor observado para o índice de enfeltramento (91,77) das fibras do bagaço está acima dos citados para o eucalipto e pinus (Tabela 4). De acordo com Nisgoski et al. (2012) valores acima de 50 são interessantes, pois conferem boas características ao papel em relação ao rasgo e arrebentamento.
Geração direta de energia e tratamento térmico do bagaço de cana-de-açúcar
A Tabela 5 apresenta os resultados dos tratamentos térmicos a que o bagaço de cana-de-açúcar foi submetido, bem como os resultados da caracterização energética do bagaço in natura e dos materiais tratados.
Material | RD | CZ | MV | CF | PCS | GE |
(%) | (%) | (%) | (%) | (kcal/kg) | (%) | |
In natura | - | 5,8 a | 81,8 a | 12,4 a | 4.444 a | - |
250 ºC - 0,5h | 87,8 a | 7,0 a | 73,6 b | 19,4 b | 4.464 ab | 0,4 |
250 ºC - 2h | 81,8 b | 7,7 a | 71,8 b | 20,4 b | 4.535 ab | 2,0 |
280 ºC - 0,5h | 76,4 c | 9,4 ab | 66,5 c | 24,0 c | 4.705 bc | 5,9 |
280 ºC - 2h | 70,6 d | 11,8 b | 58,8 d | 29,4 d | 4.899 c | 10,2 |
RD - rendimento; CZ - cinzas; MV - materiais voláteis; CF - carbono fixo; PCS - poder calorífico superior; GE - ganho energético.
Os resultados do bagaço in natura mostram que este material apresenta bom potencial energético. Em comparação a outros resíduos agrícolas, o bagaço de cana-de-açúcar avaliado neste trabalho apresentou menores teores de cinzas e carbono fixo, e maior teor de voláteis em comparação à casca de arroz (Demirbas, 2004); teor de cinzas similar, maior teor de voláteis e menor teor de carbono fixo que resíduos de soja (Werther et al., 2000); e maior teor de cinzas, menor teor de carbono fixo e teor de materiais voláteis similar em comparação ao sabugo de milho (Paula et al., 2011).
Já em comparação a cavacos de eucalipto, material convencional para a geração de energia, o bagaço apresentou maior teor de cinzas, teor de voláteis similar e menores teor de voláteis e poder calorífico em comparação a três amostras de cavacos de eucalipto analisados por Santos (2020).
A avaliação dos tratamentos térmicos mostra que existe uma influência decisiva da temperatura de tratamento no rendimento de produtos sólidos obtidos após as torrefações. Observou-se que quanto maior a temperatura de tratamento, menor o rendimento obtido. Os tratamentos mostraram-se estatisticamente diferentes para o resultado médio de rendimento em materiais sólidos da torrefação.
O tratamento com menor temperatura (250 °C) e menor tempo de residência (0,5 h) foi o que apresentou o maior rendimento (87,8%). Já o tratamento que apresentou menor rendimento foi de 280 °C com tempo de residência de 2 horas (70,6%). Além do efeito da temperatura, observou-se também o efeito do tempo de residência na temperatura final de torrefação. Constatou-se queda do rendimento à medida que o tempo de residência no patamar aumenta. Esses resultados de rendimento de material sólido da torrefação são similares aos encontrados por Arias et al. (2008), que estudaram o efeito da torrefação com temperaturas de 240 °C, 260 °C e 280 °C e tempos de residência de até 3 horas para o eucalipto.
A perda de massa do material devido à torrefação ocorre de acordo com o tipo de biomassa, temperatura e tempo de residência. Essa perda de massa é um indicador efetivo da severidade do tratamento térmico. Ela é causada pela degradação dos componentes químicos do material lignocelulósico, especialmente hemiceluloses, que são mais sensíveis a degradação térmica, e componentes voláteis. A baixa estabilidade térmica das hemiceluloses, quando comparadas a celulose, geralmente é explicada pela falta de cristalinidade da mesma (Yildiz et al., 2006).
Como esperado, para todos os tratamentos foi observado um aumento no teor de carbono fixo, e consequente diminuição no teor de materiais voláteis, de acordo com o aumento da temperatura e tempo no patamar final. Tal alteração possivelmente deve-se ao fato de que com o aumento da temperatura e do tempo de residência, os constituintes da madeira sofreram degradação e perda de massa, concentrando o carbono, aumentando assim, o teor de carbono fixo. Esses resultados estão de acordo com os encontrados por Almeida et al. (2009) que estudaram as alterações nas propriedades energéticas de três espécies de eucaliptos submetidos à torrefação em diferentes temperaturas.
Com o aumento da severidade dos tratamentos (maior temperatura e maior tempo de residência), observou-se aumento no teor de cinzas e de carbono fixo, e redução no teor de materiais voláteis. Essas tendências estão de acordo com o observado por Almeida et al. (2009) que, estudaram o tratamento térmico de E. grandis em condições similares às do presente estudo.
Com relação ao aumento do teor de cinzas em tratamentos com maior severidade, pode-se concluir que à medida do aumento da temperatura e do tempo de residência, ocorreu uma maior concentração proporcional desses materiais devido à degradação e volatilização dos compostos orgânicos dos materiais originais, uma vez que as cinzas são compostas, em sua maior parte, por substâncias minerais resistentes à degradação térmica.
O teor de cinzas de uma biomassa afeta tanto a manipulação quanto os custos de processamento da conversão global de energia da biomassa. A energia disponível do combustível é reduzida em proporção à magnitude do teor de cinzas (Mckendry, 2002).
Com relação aos resultados de carbono fixo e materiais voláteis, eles estão de acordo com o que é descrito em literatura. Mendes et al. (1982), que realizaram estudos com diferentes temperaturas, observaram que a temperatura final de tratamento é o parâmetro de maior influência sobre esses parâmetros.
É possível observar que o poder calorífico eleva-se gradativamente com o aumento da severidade do tratamento térmico (aumento de tempo e temperatura), atingindo 4.899 kcal/kg, o que equivale a um ganho energético de 10,2% em comparação ao material in natura.
Processo de polpação kraft
Na Tabela 6 são apresentados os resultados do processo de polpação kraft com bagaço de cana-de-açúcar, bem como a comparação com estudos desenvolvidos com as madeiras de eucalipto e pinus.
Parâmetros | Bagaço 1 | Eucalipto 2 | Eucalipto 3 | Pinus 4 |
Número Kappa | 18,7 | 18,0 | 17,7 | 17,3 |
Álcali ativo, % | 14,0 | 18,2 | 17,5 | 24,0 |
Rendimento bruto, % | 57,2 | 54,6 | 56,1 | 44,9 |
Rendimento depurado, % | 55,6 | 54,5 | 56,1 | 44,9 |
Teor de rejeitos, % | 1,6 | 0,1 | 0,0 | 0,0 |
Ácidos hexenurônicos, µmol/g | 2,2 | 57,0 | 45,8 | - |
Viscosidade, cm³/g | 544 | 1.099 | 1.317 | - |
Onde: 1Presente estudo; 2Segura (2012) - E. grandis x E. urophylla; 3Segura et al. (2016) - E. grandis x E. urophylla; 4Vivian et al. (2015) - P. taeda.
Os resultados dos cozimentos mostram que, para atingir um número kappa de 18% ± 5% na polpa proveniente do bagaço de cana pelo processo kraft, foi necessária a aplicação de uma carga alcalina de 14,0%. Em comparação a outros materiais, a demanda de álcali no cozimento do bagaço pode ser considerada baixa. Para um mesmo número kappa (18% ± 5%), Segura (2012) e Segura et al. (2016) relataram a aplicação de 18,2% e 17,5% de álcali ativo em processos de polpação convencional e modificado, respectivamente, para a madeira de E. grandis x E. urophylla. Já Vivian et al. (2015) observaram a necessidade de aplicação de 24,0% de álcali ativo em uma curva de cozimento convencional para a madeira de P. taeda para obter a mesma faixa de número kappa.
Apesar da baixa carga alcalina demandada pelo bagaço, o rendimento depurado do processo de cozimento deste material é similar aos rendimentos reportados para madeiras de eucalipto no mesmo nível de deslignificação, e superior ao apresentado para o pinus. Apesar dos bons rendimentos observados, o processo de polpação kraft do bagaço apresentou teor de rejeitos relativamente alto (1,6%). Para este nível de deslignificação, polpas de eucalipto e pinus costumam apresentar teores de rejeitos inferiores a 0,5% (Bassa et al., 2007; Segura, 2012; Segura, 2015, Vivian et al., 2015).
Em relação aos ácidos hexenurônicos, observou-se que a polpa obtida a partir do bagaço apresentou menor teor desses compostos, quando comparada com os valores citados na literatura para o eucalipto (Tabela 6). Isso pode indicar que a polpa obtida do bagaço de cana necessitará menor quantidade de reagentes para o branqueamento. Ventorim et al. (2006) citam que os ácidos hexenurônicos são indesejáveis nos processos de branqueamento, pois consomem reagentes químicos e causam maior reversão de alvura. Já Costa et al. (2001) mencionam que tais compostos protegem as xilanas contra a despolimerização terminal, desta forma preservando o rendimento do processo de polpação.
Já a viscosidade da polpa obtida a partir do bagaço apresentou-se muito inferior ao relatado para o eucalipto na literatura (Tabela 6). De acordo com Duarte (2007), a viscosidade é um parâmetro importante para avaliação da qualidade da polpa celulósica, pois está associada ao grau médio de polimerização das cadeias de celulose, indicando indiretamente o nível de degradação dos carboidratos após a polpação. A mesma autora ainda salienta que quanto maior o valor de viscosidade, maior a preservação dos carboidratos e, consequentemente, melhores serão as propriedades de resistência do papel, em especial àquelas relacionadas a ligação entre fibras. Desta forma essa questão merece atenção e deve ser melhor avaliada durante a fabricação do papel.
Conclusões
Os resultados obtidos neste estudo permitem concluir que o bagaço apresenta:
Baixa densidade aparente;
Alto teor de cinzas e extrativos, e baixo teor de lignina;
Fibras com comprimento moderadamente longo, e as demais dimensões compatíveis com a madeira de eucalipto; e indicadores anatômicos de qualidade regulares para produção de papel;
Bom potencial energético in natura, e que o tratamento térmico proporciona um ganho significativo neste quesito;
Bom potencial para produção de polpa celulósica, com rendimentos similares aos relatados para a madeira de eucalipto, porém com maior teor de rejeitos, e menor viscosidade e teor de ácidos hexenurônicos.