1. INTRODUÇÃO
A arte expressa em azulejos, tradicionalmente presente em ambientes interiores passam, em meados do século XIX, a serem utilizadas nos exteriores de edificações de cidades brasileiras e portuguesas. Muito além da função de proteção contra a ação de agentes de degradação, os azulejos em fachada embelezam e engradecem a paisagem urbana pela riqueza de sua composição geométrica, formas e cores. Visando a preservação desse importante patrimônio de valor histórico, artístico e cultural, faz-se necessário estabelecer medidas de manutenção, reabilitação e restauração desse revestimento. Para avaliar o estado de conservação bem como para propor soluções compatíveis com o material histórico é essencial o conhecimento de suas características físicas, químicas e mecânicas (Magalhães e Veiga, 2009).
Muitas pesquisas têm sido desevolvidas visando à caracterização de argamassas históricas, mas poucas se propuseram a estudar as argamassas antigas de assentamento de azulejos à base de cal; uma quantidade ainda menor de pesquisas é encontrada estudando a interface argamassa-azulejo. Em algumas pesquisas recentes, foi realizado o estudo de amostras de revestimento azulejar de fachada de edificações de cidades portuguesas, como Ovar e Porto (Teixeira, 2008; Valente, 2008; Ferreira, 2009; Andrejkovičová et al., 2012). Nessas pesquisas, várias análises foram realizadas visando à caracterização das argamassas de assentamento, tais como: difração de raios X (DRX); análise termogravimétrica (ATG); determinação do módulo de elasticidade; resistência à compressão; absorção de água por capilaridade e secagem; permeabilidade ao vapor de água, observação à lupa binocular; análise de fluorescência (FRX); reconstituição de traço e determinação da curva granulométrica dos agregados. Veiga (2012) destaca que, por mais sofisiticadas e completas que sejam as técnicas utilizadas na caracterização de uma argamassa antiga, obtém-se apenas a aproximação da composição da amostra, sendo impreciso definir as proporções originais dos materiais, o processo de mistura e as condições que levaram às transformações que sofreram ao longo do tempo.
Os estudos voltados à caracterização dos azulejos (biscoito e esmalte) também têm utilizado técnicas variadas e sofisticadas, destrutivas e não destrutivas, como as empregadas nas pesquisas de Ramos et al. (2002); Colomban (2004); Veiga e Figueiredo (2008a, 2008b); Vaz et al. (2008); e Guilherme et al. (2009). Alguns exemplos de técnicas utilizadas nessas pesquisas são: difração de raios X, microscopia eletrônica de varredura (SEM-EDS), análises térmicas, análise em estereo microscópio óptico, fluorescência de raios X (XRF), espectroscopia de absorção de raios X (XAS e XANES), microfluorescência de raios X por dispersão em energia(μ-EDXRF), espectrometria de fluorescência de raios X dispersiva por comprimento de onda(WDXRF); fluorescência de raios X com luz Síncrotron (SRXRF) e espectroscopia Raman.
Ao realizar a inspeção visual de fachadas de azulejos históricos, é notório e recorrente o problema de destacamento do azulejo nesse tipo de revestimento, como pode ser observado na Figura 1. Além do risco de comprometimento da integridade da placa cerâmica, essa manifestação patológica permite a exposição da camada da argamassa aos agentes de degradação externos, intensificando e acelerando, assim, sua deterioração. Apesar da importância da efetivação da aderência entre o azulejo e argamassa de assentamento para a preservação da integridade do revestimento, poucas pesquisas desenvolveram estudos nesse campo quando se trata de revestimentos históricos de alta absorção de água e assentados com argamassa à base de cal (Japiassú, 2011).
Nesse contexto, o presente trabalho visa estudar e bem caracterizar tanto as argamassas de assentamento, quanto os azulejos de fachadas históricas de Portugal. Além da análise das características físicas, químicas, mineralógicas e microestruturais dos materiais individuais, a presente pesquisa propõe-se ao estudo, em nível mesoestrutural, da interface azulejo/argamassa, visando à compreenssão da influência das características desses distintos materiais na extensão de aderência entre a argamassa e o azulejo. 1
2. AMOSTRAS
As amostras estudadas são de azulejos e argamassas de assentamento de fachada da cidade de Ovar, em Portugal, datadas do final do século XIX e início do século XX. Foram analisadas amostras de três edificações as quais foram denominadas de Caso 1, Caso 2 e Caso 3, conforme ilustrado na Figura 2. Por se tratarem de edificações de valor histórico, buscou-se, durante a realização da pesquisa, a intervenção mínima no artefato arquitetônico visando preservar ao máximo suas características originais, o que justifica o número reduzido de amostras e casos.
3. METODOLOGIA
Várias análises e ensaios foram realizados visando à caracterização das amostras de argamassas e azulejos históricos, bem como a sua interface, conforme listado na Figura 3 e descrito a seguir.
3.1. Caracterização do azulejo
Para a análise de Difração de Raios X foi utilizado um difratômetro marca Siemens, modelo D5000. As amostras de azulejo (biscoito e esmalte) foram submetidas à moagem prévia em moinho orbital até a sua total moagem (100% passante na peneira 325 mesh - 0,043 mm). Concluída essa etapa, parte do material foi analisada no Difratômetro de Raios X, pelo Método do Pó Não-Orientado (Análise Integral). As interpretações foram realizadas em computador acoplado ao difratômetro, utilizando-se o software EVA, versão 2009, com banco de dados de 2009 do International Centre for Diffraction Data (ICDD).
Amostras de fragmentos de azulejos de 7 mm x 6 mm x 23 mm foram também submetidas a técnica de Porosimetria por Intrusão de Mercúrio. Para tanto, foi utilizado porosímetro modelo Pore Master da marca Quanta Chrome e para processamento dos dados utilizou-se o programa Quantachrome Poremaster para Windows(r) Data Report versão 5.10.
Por fim, foi obtida a absorção de água dos azulejos empregando a metodologia prescrita na norma EN ISO 10545-3 (1995).
3.2. Caracterização da argamassa de assentamento
Para a análise qualitativa por DRX, as amostras de argamassa foram inicialmente desagregadas por meio de moagem branda com pistilo de borracha e separadas por peneiramento em peneira de 100 mesh - granulometria de 0,15 mm, para liberar o agregado da pasta (fração de interesse para caracterização qualitativa). A seguir, o material passante foi moído manualmente até passar totalmente em peneira 325 mesh - granulometria de 0,043 mm. Concluída essa etapa, parte do material foi analisado no Difratômetro de Raios X, pelo Método do Pó Não-Orientado. A identificação dos compostos foi realizada com o auxílio computacional através de software da Panalytical High Score Plus (versão 3.0) e com base nos dados das fichas de padrões difratométricos fornecidas pelo ICCD, com atualização até 2003. Utilizou-se a base de dados de minerais e cimentos.
A análise termogravimétrica foi realizada seguindo as diretrizes gerais da ASTM E 794 (2001). Para tanto, utilizou-se o equipamento TA Instruments SDT 2960, empregando-se cadinho de alumina (volume de 110 μL) sem tampa, com fluxo de gás de 60 mL/min de argônio e taxa de aquecimento de 10ºC/min até 1000ºC. O ensaio foi realizado no material passante na peneira 200 mesh - granulometria de 0,075mm - após fracionamento e separação majoritária da fração agregado.
Para a realização da análise petrográfica, foi utilizado como referência o Procedimento Interno do IPT, CT-OBRAS-LMCC-P-PE-001, elaborado com base nas diretrizes gerais da norma ASTM C 856/04 (1995) e de Oliveira et al. (1999). Essa análise foi executada com o auxílio de microscópio estereoscópico, marca Wild-Leitz, e de um fotomicroscópio modelo Ortholux II POL-BK, marca Leitz. As análises foram ilustradas com fotomicrografias.
A análise química das argamassas históricas foi executada a partir das diretrizes gerais de Quarcioni (1998) e ABNT NBR-NM 20 (2009), tendo sido realizado o ataque das amostras trituradas com HCl. Os elementos principais (CaO, MgO, SiO2 and R2O3 - ferro e alumínio) foram analisados por espectroscopia por absorção atômica. A perda ao fogo, o resíduo insolúvel e o SO3 foram determinados pelo método gravimétrico e o CO2 foi determinado pelo método gasométrico.
Os dados obtidos nas diversas determinações foram referenciais para o cálculo da reconstituição de traço das argamassas, associando-se às informações complementares fornecidas pelas demais técnicas analíticas empregadas.
O método utilizado para avaliar a profundidade de carbonatação das argamassas foi o de pulverizar com fenolftaleína uma superfície imediatamente fraturada da argamassa. A fenolftaleína é um indicador com ponto de viragem para pH entre 8,3 e 10. Portanto, caso a argamassa apresente mancha vermelha carmim, isso indica que aquela região não está carbonatada, uma vez que a portlandita se caracteriza por ser alcalina.
Para a análise das amostras ao Microscópio Eletrônico de Varredura (MEV) foi utilizado o equipamento Jeol JSM-6610, o qual possui capacidade máxima de magnificação de 300.000 vezes. As imagens utilizadas para avaliação da morfologia do material foram obtidas através de sinais de elétrons secundários (SE). Essas imagens foram processadas no programa Jeol Scanning Electron Microscope, versão 2.2.4. Além da obtenção de imagens de microestrutura da argamassa, foram realizadas microanálises químicas com o detector de Raios X por espectrômetro de dispersão de energia (EDS). Para esta finalidade, utilizou-se o programa Nss 2.3 da Thermo Scientific.
3.3. Estudo da interface
A caracterização da interface azulejo/argamassa foi realizada pelo estudo da extensão de aderência, a qual relaciona a extensão da argamassa efetivamente aderida ao tardoz do azulejo com a extensão total do tardoz (possível de ser unida), utilizando-se a metodologia proposta por Carasek (1996). Para a obtenção dessas medições de comprimento linear, a interface azulejo/ argamassa foi analisada em lupa estereoscópica, marca Leica modelo MZ12.5, com capacidade de ampliação de até 640 vezes, escala micrométrica e câmera digital colorida Leica EC3.
Para esta análise, as amostras de azulejo com argamassa aderida foram previamente seccionadas na cortadeira de precisão modelo Minitom, da marca Struers, de modo a obter fatias com aproximadamente 7,5 cm de comprimento e 1,5 cm de largura. Para cada amostra reduzida, foram obtidas 2 seções planas e lisas da região da interface azulejo/argamassa (faces), conforme ilustrado na Figura 4. Um total de 18 faces (6 de cada caso) foi escolhido para análise de resultados. Posteriormente à redução dimensional das amostras, foram marcados riscos de cores alternadas e com espaçamento de 3 mm entre eles no biscoito do azulejo próximo a região de interface. O objetivo dessa marcação foi de facilitar e evitar equívocos no levantamento dimensional para a análise de extensão de aderência. Ao todo, uma extensão linear de 1128 mm de interface, composta de 396 trechos de 3 mm cada, foi sujeita à análise.
A cada intervalo de 3 mm da amostra, foi produzida uma imagem ampliada em 30 vezes. As imagens obtidas foram processadas no software Leica Application Suite, LAS-EZ, versão 1.8. Em cada imagem foram levantadas as medidas de comprimento linear total do tardoz, bem como foram levantadas também as medidas das regiões que não possuíam argamassa aderida (mesodefeitos de contato). Ao final, todos os valores parciais obtidos em cada imagem (tanto da extensão linear total quanto da extensão de mesodefeitos) foram somados. A partir dos dados levantados da face analisada, foi determinada a extensão de aderência de acordo com a equação (1) apresentada a seguir. Posteriormente, com o resultado de extensão de aderência de cada face, foi calculada a média para as 6 faces analisadas por caso.
Em que:
A é a extensão de aderência (em %);
Lt é o comprimento total da amostra (em mm); e
Lv é o comprimento dos locais sem aderência - vazios ou mesodefeitos, em (mm).
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES
4.1. Caracterização do azulejo
Ao observar o tardoz das amostras de azujelo foi possível identificar que os azulejos dos Casos 2 e 3 eram da mesma fábrica, Cerâmica da Devesas, da cidade de Porto - Portugal; já para os azulejos do Caso 1 não foi possível identificar a origem de sua fabricação. A Figura 5 mostra a configuração da muratura do tardoz das placas estudadas.
Os dados obtidos da constituição mineralógica dos azulejos históricos identificados na análise por Difração de Raios X estão apresentados na Tabela 1, onde é possível observar que os azulejos são constituídos predominantemente por quartzo e gehlenita, sendo que nos Casos 2 e 3 ainda há predominância do diopsídio. Todos apresentam em menor quantidade o plagiocásio e a calcita. Além desses, como minerais subordinados, no Caso 1 foi identificado diopsídio e no Caso 3 foi encontrado o espinélio. Foram ainda identificados resquícios de wollastonita no Caso 1, de grossular no Caso 2 e mulita e eitelita no Caso 3. Pode-se observar que a composição dos azulejos do Caso 2 e do Caso 3 é muito semelhante, como esperado, por serem do mesmo fabricante. A calcita, identificada na análise como composto subordinado em todos os casos, pode estar relacionada com a penetração da argamassa constituídade cal no tardoz do azulejo. É improvável que a calcita identificada seja originada da composição dos azulejos, uma vez que o processo de produção desses foi realizado a altas temperaturas, o que implicaria na transformação da calcita em óxido de cálcio.
As amostras de azulejos analisadas não apresentaram diferenças significativas entre os resultados de porosidade total, tendo sido obtidos valores de 48% no Caso 1, 46% no Caso 2 e 43% no Caso 3. Os resultados obtidos de distribuição do tamanho dos poros pelo volume de mercúrio intrudido nas amostras de azulejos estudadas estão agrupados na Tabela 2, onde é possível observar a semelhança da configuração dos poros das amostras analisadas.
Os resultados médios de absorção total dos azulejos históricos obtidos são próximos entre os casos analisados, a saber, 26,5% no Caso 1, 21,4% no Caso 2 e 23,7% no Caso 3. Pelos resultados de absorção ao longo do tempo, ilustrados graficamente na Figura 6, pode-se observar também a semelhança entre os resultados apresentados,que está relacionada diretamente com a similaridade da configuração dos poros dos azulejos estudados. Apesar de próximos, os valores dos azulejos do Caso 1 apresentam uma maior velocidade de sucção de água, bem como uma maior absorção total.
4.2. Caracterização das argamassas
A partir da análise petrográfica, foi possível identificar características mais detalhadas da pasta, dos agregados e dos vazios das argamassas históricas, que estão apresentadas, respectivamente, na Tabela 3, 4 e 5 . Esses aspectos também podem ser observados nas micrografias reunidas na Figura 7.
As argamassas apresentam pasta intensamente carbonatada, o que foi observado tanto pela análise petrográfica como pelo ensaio de profundidade carbonatada onde toda a amostra apresentou-se carbonatada. Foram identificados também traços de rochas carbonáticas (indícios de que a cal utilizada na produção das argamassas não foi tão bem calcinada) e de portlandita (resquícios de cal não carbonatada). A presença de silicato de cálcio hidratado nas amostras do Caso 1 e do Caso 3 pode ser explicada pela utilização de fragmentos cerâmicos utilizados junto com a cal aérea (Guimarães, 1997).
Os agregados das amostras analisadas são predominantemente quartzosos. Não foi observado agregado carbonático em nenhuma das amostras estudadas. Em todas as amostras ocorrem fragmentos de solo ou cerâmicos. O agregado utilizado nas argamassas do Caso 2, provavelmente, provém de saibro ou de solo, pois os grãos apresentam grande variação granulométrica, baixo a moderado arredondamento e esfericidade, bem como presença de torrões de argila e/ou de fragmentos constituídos por grãos de quartzo com matriz argilosa. Em todas as amostras analisadas, o agregado apresenta características que denotam pequeno transporte, sugerindo a utilização do próprio material disponível no entorno da obra.
As argamassas se caracterizam pela alta porcentagem de vazios entre 10% a 20%. As argamassas do Caso 2 e do Caso 3 exibem pasta com elevada porosidade, além de abundantes microfissuras, vazios irregulares e alongados. A argamassa do Caso 1 apresenta porosidade elevada, fornecida principalmente por bolhas de ar aprisionado e vazios alongados.
As curvas de TG e DTG obtidas pela análise termogravimétrica estão apresentadas nas Figuras 8 e 9 , respectivamente. Os valores de perda de massa correspondentes a determinadas faixas de temperatura obtidos durante essa análise estão reunidos na Tabela 6. A partir do comportamento das amostras de argamassa durante o processo de decomposição térmica, foi possível associá-lo a determinados eventos térmicos que estão apresentados na Tabela 7 e indicados com números na Figura 9.
As curvas termogravimétricas obtidas são típicas de argamassas carbonatadas de cal hidratada calcíticas com acentuada perda de massa entre 550°C e 1000°C, atribuída à descarbonatação do carbonato de cálcio (Guimarães, 1997). Entre 23°C e 200°C, verifica-se a desadsorção de água, essencialmente de metalossilicatos, enquanto que, entre 200°C e 550°C, ocorre a desidroxilação de diferentes tipos de minerais, em particular aluminossilicatos. No caso da argamassa do Caso 1, foi identificado um pico na faixa de 0ºC a 170ºC, indicador de presença da gipsita. A presença de gibbsita detectada nas amostras do Caso 3 aponta no sentido de fragmento de solo, uma vez que a gibbsita se decompõe a aproximadamente a 340ºC (Smykatz-Kloss, 1974), temperatura esta insuficiente para formar uma massa cerâmica. Esses fragmentos de solo também foram identificados na análise petrográfica.
Os compostos mineralógicos das argamassas identificados por DRX estão dispostos na Tabela 8, de acordo com sua predominância nos espécimes caracterizados. Já os resultados obtidos na análise química acham-se apresentados na Tabela 9, enquanto os resultados finais da reconstituição de traço estão reunidos na Tabela 10.
*Constituinte expresso como cal hidratada de natureza calcítica mesmo sendo possível ter sido empregada cal virgem, porém as análises laboratoriais efetuadas não permitem a identificação.
Pela análise química, foi possível determinar que as argamassas são constituídas por cal aérea cálcica, com adição de "material argiloso" e agregado silicoso, sendo que, no caso da argamassa Caso 1, ainda foi identificado o gesso de construção. Acredita-se, no entanto, que esse material, que também foi identificado na análise termogravimétrica e de DRX, não tenha sido utilizado na produção dessa argamassa, já que, no período histórico estudado, ele não era utilizado para tal fim em Portugal. É provavél que a gipsita identificada por meio dessas análises seja proveniente da poluição atmosférica ou de intervenções posteriores. Aadição de "material argiloso" (solo e/ou material cerâmico) confere hidraulicidade às argamassas e implica que o valor de resíduo insolúvel incorpora a fração insolúvel desse material e a fração solubilizada incorpora a fração solúvel, o que foi diagnosticado pelos significativos teores de SiO2 e R2O3 solubilizados pelo ataque ácido na análise química. Em função da dificuldade de determinar a quantidade de "material argiloso" presente nas argamassas, assumiu-se, no cálculo do traço, que esse material adicionado compõe, preponderantemente, o agregado.
A dificuldade de se determinar a origem da hidraulicidade da argamassa deve-se ao fato de que os constituintes mineralógicos iniciais das argamassas já estão em grande parte reagidos, sendo difícil reconhecê-los durante a análise; além disso, os produtos da reação da hidratação de cal-pozolana ou dos materiais cimentícios são muito semelhantes (Palomo et al., 2002). Cabe ressaltar-se que é possível que os teores calculados de cal hidratada estejam superestimados, uma vez que nas análises petrográficas, de DRX e termogravimétrica, foi constatada a presença de argilominerais e de solo que podem ter sofrido reação pozolânica com a cal.
Descartou-se a possibilidade de uso de cal hidráulica em Portugal porque não se verificaram evidências históricas para o uso de tal material entre o final do século XIX e início do século XX, sendo coerente a assertiva de uso de cal aérea e adição de "material argiloso" na produção das argamasas estudadas.
As relações aglomerante/agregado encontradas oscilaram entre 1 : 1,8 e 1 : 3,2, em massa.
Ao analisar a microestrutura das argamassas históricas no MEV foi possível identificar regiões com predominância de carbonato de cálcio. A Figura 10, referente à argamassa do Caso 1, por exemplo, mostra uma região com predominância de compostos constituídos por alto teor de cálcio, por quantidades menores de silício e alumínio, e ainda por resquícios de sódio, magnésio e ferro, como pode ser constatado no espectro de EDS. Os cristais presentes na região analisada são provavelmente de carbonatos identificados na análise por DRX, a saber, calcita, vaterita e magnesita (provenientes da pasta da argamassa); as presenças de silício, alumínio e ferro são explicadas pelos agregados que estão abaixo dessa pasta. Além da presença de carbonatos, na argamassa do Caso 1 foi identificada uma região com predominância de sulfato e cálcio como apresentado na Figura 11, o que vai de encontro com a identificação de gesso de construção nas análises química e de DRX.
Na argamassa do Caso 2 foi identificada uma região caracterizada pela presença de cristais de morfologia distinta, constituídos pela preponderância de silício e, em menores proporções, a presença de cálcio, alumínio e ferro, o que sugerem que os compostos analisados sejam silicoaluminatos de cálcio hidratados, possivelmente provenientes de reações pozolânicas, como pode ser observado na Figura 12. Já no caso da argamassa do Caso 3 foi identificada uma região cujos cristais eram constituídos fundamentalmente por ferro e alumínio, e, em quantidades menores, de silício e cálcio, como apresentado na Figura 13. A presença de altos teores de ferro confirma a observação na análise petrográfica de muitos grãos de agregados com borda de reação entre material argiloso e hidróxido de ferro na argamassa do Caso 3.
4.3. Estudo da interface
A partir das imagens obtidas na lupa estereoscópia, foi possível, tanto quantificar a extensão de aderência, quanto analisar alguns aspectos da interface azulejo/argamassa das amostras.
Os valores médios obtidos de extensão de aderência das amostras de revestimento cerâmico históricas, apresentados na Tabela 11, mostram que os Casos 1 e 3 não apresentam diferença significativa entre seus valores, já o Caso 2 apresentou valores inferiores aos outros casos, o qual está diretamente relacionado com um número maior de falhas de aderência na interface azulejo/ argamassa. Nas Figuras 14 e 15 estão ilustrados tanto regiões com falhas de aderência como regiões com boa extensão de aderência identificadas na interface do azulejo/argamassa das amostras de azulejo com argamassa estudadas.
Vários são os fatores que podem exercer influência na extensão de aderência entre o azulejo e a argamassa. Com base nas análises realizadas, buscou-se estabelecer algumas relações entre as características dos materiais constituintes do revestimento (argamassa e placa cerâmica) e a respectiva extensão de aderência, as quais estão apresentadas a seguir.
Quanto à composição das argamassas, poder-se-ia esperar que o aumento do teor de aglomerante, melhoraria a trabalhabilidade da argamassa e, consequentemente, resultaria em uma maior extensão de aderência. No entanto, nessa pesquisa observou-se que a relação aglomerante/agregado das argamassas de assentamento não exerceu influência na porcentagem de extensão de aderência, uma vez que as argamassas dos Casos 1 e 3 possuem relação aglomerante/agregado distintas e, no entanto, apresentaram extensão de aderência semelhantes, já o contrário ocorre entre as argamassas dos Casos 1 e 2 que apresentam relação aglomerante/agregado similares, porém porcentagens de extensão de aderência diferentes. O fator que parece ter influenciado a extensão de aderência argamassa/azulejo foi o tipo de areia empregado nas argamassas (dimensão e forma dos grãos). No presente estudo, a influência da granulometria da areia ficou notória. As amostras de argamassas do Caso 2 possuem grãos de agregados de dimensões maiores (entre 0,2 mm a 5,5 mm) do que as amostras dos demais casos (grãos entre 0,03 mm a 2,5 mm), como identificado na análise petrográfica. Observa-se que estes grãos maiores contribuíram para o aumento, tanto da quantidade, quanto da dimensão das falhas de aderência, como pode ser visualizado na Figura 13. Quando os grãos maiores se localizam próximo da superfície do tardoz do azulejo, eles tendem a impedir o contato da pasta com o tardoz, o qual é necessário para que haja o travamento mecânico entre o azulejo e a argamassa (Figura 16).Outra característica dos agregados, a esfericidade dos grãos, também pode ter exercido influência na extensão de aderência. Os Casos 1 e 3 possuem grãos de esfericidade moderada a alta, enquanto o Caso 2 possui grãos de esfericidade baixa a moderada. Assim, quanto maior a esfericidade dos grãos, maior a trabalhabilidade das argamassas e maior é a extensão de aderência entre a argamassa e o tardoz do azulejo. Segundo Kwan et al. (2010), apesar da granulometria e da forma das partículas da areia não afetarem diretamente a reologia das argamassas, elas afetam a densidade de empacotamentoe a área superficial dos sólidos, que, por sua vez, exercem forte influência no comportamento reológico. Assim, os grãos menores e mais arredondados propiciam uma reologia mais adequada para a penetração da argamassa nas ranhuras do tardoz. Ademais, relativo à composição das argamassas, não se pode descartar a influência da presença de fragmentos de solos ou cerâmicos existentes nas argamassas dos Casos 1 e 3, que são aqueles casos que resultaram em maior extensão de aderência. Os fragmentos de solos, identificados pela análise petrográfica em teores próximos a 10%, são partículas finas que alteram a reologia das argamassas, contribuindo com a trabalhabilidade e permitindo um melhor contato da argamassa com o tardoz dos azulejos.
Com realaçãoàs propriedades e características físicas dos azulejos, observou-se que estas não foram preponderantes no resultado da extensão de aderência. Os Casos 2 e 3 possuem azulejos do mesmo fabricante e com características muito semelhantes quanto à porosidade e à absorção de água; no entanto, a extensão de aderência foi bem diferente para esses dois casos. Já o Caso 1, que apresentava um azulejo diferente, resultou em uma média de extensão de aderência muito próxima à média do Caso 3.
A existência de relevos no tardoz dos azulejos visa aumentar a área de contato entre a argamassa e a superfície posterior da placa cerâmica e, assim, favorecer a aderência pelo aumento da área de superficial, bem como pelo travamento gerado pelo atrito dos materiais nas solicitações de cisalhamento (Weiss, 1995). Entretanto, observou-se que as regiões de baixo relevo no tardoz dos azulejos apresentaram mais falhas de aderência do que as regiões planas, o que mostra a dificuldade da argamassa, durante o processo de assentamento dos azulejos, de se acomodar nessas regiões de reentrâncias. As dimensões e o formato da muratura do tardoz dos azulejos analisados, associados à trabalhabilidade das argamassas empregadas, não favorecem à aderência; em todos os casos estudados, em maior ou menor proporção, foram identificados mais defeitos na interface nas regiões com reentrâncias do que nas regiões planas. Esse efeito negativo do relevo do tardoz das placas cerâmicas na aderência também foi observado para materiais atuais, placas cerâmicas de baixa absorção (porcelanato) e argamassa colante, por Wetzel et al. (2011) e Winnefeld et al. (2012).
Assim, o pior resultado de extensão de aderência, Caso 2, pode ser explicado pela associação do espaçamento das reentrâncias do tardoz das placas cerâmicas com o tamanho das partículas de areia da argamassa. As pequenas reentrâncias, com menores espaçamentos entre ranhuras de 4 mm a 6 mm (conforme Figura 5), não permitem a penetração da argamassa com partículas grandes (entre 0,2 mm a 5,5 mm). Isto porque, de acordo com o modelo do efeito de parede (Roy et al., 1993), para se minimizar a perturbação do empacotamento, que gera uma porosidade próxima às superfícies maior do que no restante da argamassa, o espaço a ser preenchido entre as ranhuras do tardoz deveria apresentar um quociente, pelo menos, 10 vezes maior do que o tamanho das partículas de areia. Ou seja, para areias com partículas de até 5,5 mm a reentrância compatível seria de 55 mm. No Caso 3, onde foi obtida a maior extensão de aderência, nota-se que a granulometria predominante da areia está entre 0,4 mm a 0,6 mm, compatível com os menores espaçamentos existentes entre ranhuras do tardoz do azulejo (4 mm a 6 mm).
5. CONCLUSÕES
Os azulejos históricos analisados possuem constituição mineralógica semelhantes, com predominância de quartzo, de gehlenita e, em alguns casos, de diopsídio. A identificação da presença de calcita nas amostras de todos os casos indica que a argamassa de assentamento penetrou nos poros do azulejo. Os azulejos produzidos no século XIX apresentam porosidade total entre 43% e 48% e absorção de água entre 21 e 27%.
De um modo geral, as argamassas de assentamento de azulejos analisadas são constituídas basicamente por cal e material pozolânico, agregado silicoso e fração de argilominerais. Foram identificados ainda traços de rochas carbonáticas, de portlandita e de silicatos ou aluminatos de cálcio hidratados em algumas amostras. As relações aglomerante/agregado encontradas variaram entre 1 : 1,8 e 1 : 3,2, em massa.
Vale ressaltar que a caracterização de argamassas históricas é complexa e envolve uma série de análises, tais como petrográfica, de DRX, química e termogravimétrica. A partir da análise em conjunto desses resultados foi possível determinar com maior precisão o traço e as características dos constituintes utilizados na produção dessas argamassas.
A existência de relevos no tardoz dos azulejos que, em princípio, visa aumentar a área de contato entre a argamassa e a placa cerâmica e favorecer a aderência, não promoveu este efeito. As regiões de relevo no tardoz dos azulejos apresentaram mais falhas de aderência do que as regiões planas, o que mostra a dificuldade da argamassa durante o processo de assentamento dos azulejos de se acomodar nas regiões de reentrâncias.
Pelo estudo da interface azulejo/ argamassa de assentamento, não foi identificada a influência da relação aglomerante/agregado das argamassas nos valores de extensão de aderência e tampouco das características (composição, porosidade e absorção de água) dos azulejos. No entanto, foi observada a influência das características da areia, granulometria e forma dos grãos, das argamassas nos resultados médios de extensão de aderência. As argamassas com grãos menores geram melhor contato e, consequentemente, maior extensão de aderência. Os grãos menores e mais esféricos levam a uma melhor trabalhabilidade da argamassa no estado fresco, o que permite um melhor contato entre a argamassa e o tardoz do azulejo.