Introdução1
Os Relatórios Regionais do Desenvolvimento Humano referentes à América Latina (RRDH-AL) são documentos de acesso público editados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) desde a década de 1990. Sua produção é intermitente. Mas ainda assim, pelo volume de materiais publicados ao longo de três décadas, será necessário circunscrever a análise àquelas partes dos relatórios que lidam mais diretamente com a questão da democracia. Esclarecese, em tal caso, que farão parte deste estudo seis relatórios sobre a América Latina e Caribe2 (PNUD/RRDH-AL, 2003; 2009-2010; 2010; 2012; 2013-2014; 2016).3
Observe-se que não serão estudadas todas as séries de documentos sobre desenvolvimento humano do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Dar-se-á atenção, neste artigo, somente aos relatórios regionais correspondentes à América Latina. Elucida-se que são encomendados, encampados e divulgados, pelo PNUD, três grupos de documentos que possuem forte relação entre si: os Relatórios Globais do Desenvolvimento Humano,4 publicados anualmente desde 1990, os Relatórios Regionais (os quais podem abarcar continentes ou partes deles) e os relatórios por países5.
Como os documentos estudados, neste artigo, possuem muitos dados, temáticas, nuances, descrições de dados e indicações de procedimentos e práticas, urge circunscrever o objeto que se levará a cabo nesta investigação. No caso específico deste artigo, o objeto de estudo são as práticas e os procedimentos sugeridos, pelos elaboradores dos RRDH-AL, para a geração ou aprofundamento de avanços democráticos nos campos representativos e participativos na América Latina, bem como o grau de atenção dada, na produção das recomendações, às singularidades e particularidades dos impedimentos interpostos, no continente, ao processo de geração de novos equilíbrios de poder.
Pode-se indagar se as prescrições, quase otimistas em relação às expectativas de democratização dos âmbitos institucionais e participativos, feitas pelas equipes encarregadas da feitura dos documentos, consideram, ou não, os entraves historicamente sedimentados no continente. São as constatações dos problemas sociais e as indicações de caminhos para as suas soluções, presentes nos RRDH-AL, orientadas por alguns eventos e fatos que teriam uma suposta potencialidade de redefinir a vida política latino-americana independentemente das muitas adversidades entranhadas na vida social e política?
Demonstrar-se-á que os RRDHs-AL possuem uma arquitetura6 que prioriza fatos, eventos, narrativas e fenômenos indicadores de uma direcionalidade rumo ao processo democratização, conquanto conste, em suas páginas, que existam muitos e variados empecilhos derivados (PNUD/RRDH-AL, 2010, p. 99-100), principalmente, das desigualdades sociais e políticas. Não se está desconsiderando que suas equipes tenham assessores dotados de profundo conhecimento sobre o continente,7 mas a impressão que se tem é que o norte dos documentos é dado pela expectativa de que os avanços, democráticos, das décadas de 1990 e 2000, ainda que deficitários, poderiam levar à superação dos autoritarismos e das mentalidades autoritárias que obstam o desenvolvimento humano (PNUD/RRDH-AL, 2010).
Como uma diretriz hipotética8 indica-se que, na composição dos RRDH-AL, o maior desafio, referente aos impasses detectados e às proposições de encaminhamentos, ações e procedimentos para a constituição da democracia no continente, está na dificuldade de lidar com as heterogeneidades multitemporais (Canclini, 1997), que têm demonstrado que os passos no sentido da “democratização não suprimem [evolutivamente] os hábitos [e as mentalidades] autoritários” (Canclini, 1997, p. 109).
As estratégias argumentativas, encontradas nos relatórios, reiteram a admissibilidade de fazer avançar, no continente latino-americano, a articulação entre democracia representativa e democracia participativa dentro de um entendimento evolucionista e diretivo. As proposições prescritivas dos formuladores dos RRDHs serão lidas à luz de um estudioso latino-americano, Edelberto Torres-Rivas9 (1974; 1990; 1992; 1996; 1999; 2002; 2007; 2008; 2010), que se dedicou a compreender as muitas travas interpostas à democracia na América central, em particular.
Porém, muitos desses óbices, considerados por Torres-Rivas, existem em todo o continente. Sem sombra de dúvidas, em muitos aspectos, suas análises têm validade para a América Latina, como um todo, já que muitos obstáculos, demonstrados por ele, à realização da democracia são encontrados em várias partes do continente. “Dictadura y democracia son dos temas que calarían hondo muy temprano en la sensibilidad intelectual, social y política de Torres-Rivas” (Mas, 2008, p.8).
E. Torres-Rivas (1930-2018), conforme relata Jorge Mas (2008), esteve, desde muito cedo, investigando o desenvolvimento, a democracia e os regimes ditatoriais com seus efeitos perversos. Militou, desde moço, pela democracia e pela justiça social, travando lutas contra os autoritarismos e as ditaduras. Viveu décadas no exílio em razão de sua oposição aos regimes ditatoriais presentes, na Guatemala, entre as décadas de 1950 e 1980.
Por que a leitura dos documentos será feita à luz da obra desse cientista social? Uma das razões principais está ligada ao fato de que os RRDH-AL demonstram uma preocupação significativa com a América Central, região fartamente estudada por Torres-Rivas.10 O fato de ele ter atuado como assessor e consultor acadêmico, junto ao PNUD na Guatemala,11 na consecução dos Relatórios Nacionais do Desenvolvimento Humano, também é um fator relevante por revelar as distâncias entre as recomendações mais amplas contidas nos relatórios e os preceitos mais específicos, contidas na obra de Torres-Rivas, derivadas de um estudo mais minucioso de processos políticos singulares.
A escolha desse autor deve-se também ao fato de que seus estudos são feitos em diálogo constante com inúmeras reflexões desenvolvidas em outras partes da América Latina.12 Entre as muitas questões derivadas de sua abordagem sócio-histórica, há uma em particular que se aplica, indubitavelmente, a todo o continente: a que aponta a vigência de Estados oligárquicos -embora com diversas especificidades relacionadas a cada país, em toda região (América Central e América do Sul) - sustentados pelo poderio “militar (...) [e pelo] ethos señorial” (Torres-Rivas apud Tejada, 2012, p. 154) sustentador dos desequilíbrios de poder e das abissais desigualdades políticas. Podese dizer que está aí a ingente dificuldade de rumar o Estado em direção ao desenvolvimento social e humano.
Torres-Rivas (1996; 2008; 2010) deu destaque às muitas dificuldades de democratização da vida social e política na América Central e, ao fazer suas análises, ele trouxe à tona os muitos revezes que recaem também sobre outras partes da América Latina. Verifica-se, então, que é possível ler os RRDHs à luz das reflexões desse sociólogo guatemalteco.
Alcançar a democracia política é tido, pelos produtores dos relatórios, como imprescindível para a democratização social. As duas são âncoras do desenvolvimento humano, que é medido por três índices: longevidade, educação e renda (PNUD/RDH, 2010).
A democratização do continente, na segunda e terceira década do século XXI, enfrenta, no entanto, não somente as dificuldades e as (im)possibilidades destacadas nos escritos de Torres-Rivas e nos RRDH-AL. Novos desafios, que se somam aos antigos, têm sido potencializados pelo modo como os aparatos tecnológicos interferem, através de falseamento de dados e notícias, nos debates e nas agendas públicas. As manipulações (de tendências de votos, de opiniões e de leituras e interpretações da vida política) têm desmantelado, muitas vezes, alguns arranjos democráticos e institucionais que foram alcançados com muitas agruras. Alguns setores politicamente preponderantes e antidemocráticos lançam mão de tais tecnologias para frear ou destruir os avanços democráticos imaginados como possíveis no final do século XX e limiar do século XXI. Infelizmente, não será possível, no âmbito deste artigo, analisar tais processos e contrapô-los aos elementos discutidos neste estudo.
Avanços democráticos na América Latina: as viabilidades apontadas nos RRDH-AL. Como lê-las à luz das discussões de Torres-Rivas?
No campo acadêmico (Weffort, 1990; Quijano, 2002, 2005; Santos, 1996; Méndez, 2015, Torres-Rivas, 1996; 2008; 2010) 13 e em outros espaços de proposições técnicas e políticas, tais como os organizações intergovernamentais, governamentais e não-governamentais, passaram a ser recorrentes, nas décadas de 1990 e 2000, diversos embates sobre a presumível efetuação da democracia na América Latina. Tanto no campo intelectual, como fora dele, houve muitas posturas reforçadoras de perspectivas que apontavam para a efetivação, nos anos vindouros, de ações e de procedimentos construtores da democracia. No entanto, diversos estudiosos, como os que estão mencionados acima, entre outros (Gonzáles Casanova, 2009; Canclini, 2020; Faoro, 2000), chamavam a atenção para o caráter não-evolutivo, não-linear e não-diretivo da conjecturável democratização no continente.
Em alguns momentos, a democracia aparece definida nos RRDH-AL (2009-2010; 2010) como, preponderantemente, um conjunto de práticas delegativas. Tem-se a impressão de que, no RRDH-AL de 2010, a democracia por delegação é tomada como um caminho viável na América Latina. Pode-se perguntar: No que consiste uma democracia delegativa? Ela respalda-se “na constituição de uma maioria que autoriza alguém a se tornar, por um determinado número de anos, a encarnação e o intérprete dos (...) interesses da nação14” (O’Donnell, 1991, p.31). No RRDH-AL de 2010 constata-se a defesa da necessidade de uma democracia delegativa.
La democracia puede ser entendida como un acuerdo. (…) Como parte fundamental de este gran acuerdo, los votantes evalúan las propuestas de los candidatos que se postulan para actuar como sus representantes en los poderes y las instituciones del Estado, sopesan la información que reciben y deciden en las urnas en quién delegar su poder. Esta necesidad de delegación del poder se justifica por el alto grado de complejidad de los problemas que debe atender el Estado (PNUD/RRDH-AL, 2010, p. 100).
Ao longo dos diversos relatórios, notam-se algumas tentativas de junção dos tipos de democracia representativa, delegativa e participativa. Há nessa combinação de formatos a preponderância da delegação. Ao trazer à baila a imprescindibilidade de combinar estas três variedades de democracia como complementares, os elaboradores dos RRDH-AL estão tentando evitar uma peleja acadêmica que vê ora uma oposição rígida entre a democracia participativa e a representativa, ora uma não-consubstancialidade entre a democracia representativa e a delegativa. Guillermo O’Donnell15 (1991, p. 26) demonstrou que esta pode não conduzir àquela. E isso porque “as democracias delegativas não são democracias consolidadas ou institucionalizadas, mas podem ser duradouras”.
A aproximação da democracia delegativa à democracia representativa, que aparece no relatório de 2010, referente à América Latina, tem raízes no fato de que “a ideia de representação envolve um elemento de delegação” (O’Donnell, 1991, p. 32). Portanto, “representação e delegação não são polos opostos” (O’Donnell, 1991, p. 32). Todavia, no caso da América Latina, Guillermo O’Donnell considera que a condição de delegação prepondera sobre a condição de representação. Vigoraria, então, no continente, um tipo de “delegação representativa” (O’Donnell, 1991, p. 32). Por esse caminho, não se tem uma perspectiva evolutiva ou diretiva dos avanços democráticos. Há, na verdade, muitas tortuosidades que vão se interpondo à própria democracia representativa. Os impasses à democracia participativa parecem ainda maiores. Em oposição a uma visão evolucionista e diretiva da democracia que, de alguma maneira, parece orientar a feitura dos RRDH-AL, Torres-Rivas (2010, p. 54) alertava: “bajo [algunas] condiciones el Estado no puede ser plenamente democrático,16 o la democracia se vuelve frágil y da paso a situaciones de inestabilidad” crônica.17
Parece, aos elaboradores dos relatórios, que com o fim, nas décadas de 1980 e 1990, das ditaduras militares no continente, o processo de democratização poderia percorrer uma trilha diretiva em favor da institucionalização de procedimentos capazes não só de rechaçar tanto os retrocessos democráticos quanto as indisposições, nos âmbitos governamentais e da sociedade civil organizada,18 mas também de associar democracia, desenvolvimento humano e direitos humanos.
Além das instabilidades crônicas, Torres-Rivas, abraçando uma perspectiva sócio-histórica,19 destacava que não era adequado entender a democratização como algo linear, já que mesmo as liberalizações políticas havidas nos períodos pós-autoritários estavam sempre ameaçadas pelos conflitos e desrespeitos aos direitos fundamentais e humanos e pelo saudosismo, de alguns segmentos, enaltecedor do passado ditatorial que permanece à espreita.20 Todavia, os formuladores dos RRDH-AL insistiam que era possível, a partir de alguns arranjos políticos concretos, ir construindo, mais e mais, ações em favor da democracia e da equidade, o que corresponde ao que foi sistematizado nos princípios orientadores da Declaração Universal da Democracia da ONU, de 2007.21
A democracia é indissociável dos direitos (...) [os quais] devem (...) ser aplicados de forma eficaz, devendo seu correto exercício estar acompanhado de responsabilidades individuais e coletivas. A democracia se funda no primado do direito, bem como no exercício dos direitos humanos. Num estado democrático, ninguém está acima da lei e todos são iguais perante ela (Nações Unidas, 2012, p. 8).
Parece haver, nos argumentos dos RRDH-AL, um fio condutor que ganha um sentido ora linear ora multilinear ora diretivo. Isto fica evidenciado quando se busca definir os procedimentos que devem nortear um governo democrático.22
Es preciso discutir cuáles son los arreglos democráticos concretos que promueven el logro de mayor equidad, porque es precisamente la igualdad de derechos y deberes entre los ciudadanos el principio que fundamenta la universalidad de la democracia como elección social justa (PNUD/ RRDH, 2010, p. 106)
Esta ideia de universalização da democracia,23 vista frequentemente nos RRDH-AL, como uma meta viável e posta à frente das minúcias, detalhes, singularidades e particularidades que tenderam a inviabilizar, ao longo da história, o estabelecimento de um Estado de direito democrático na América Latina, é posta em questão nos escritos de Torres-Rivas.
Esclarece-se que o ideal de universalidade, mencionado anteriormente, tem correspondência com A Declaração Universal da Democracia, resolução A/62/7 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, a qual afirma:
A democracia é tanto um ideal a ser perseguido como um modo de governo que se deve utilizar de acordo com modalidades que reflitam a diversidade de experiências e particularidades culturais, mas sem desconsiderar os princípios, normas e padrões internacionalmente reconhecidos. Encontra-se, portanto, em estado de constante aperfeiçoamento, e seu progresso dependerá de uma variedade de fatores políticos, sociais, econômicos e culturais (Nações Unidas, 2012, p. 7).
As equipes que produzem os RRDH-AL pressupõem, no seu modo de exposição e de argumentação, a vigência de um desdobramento, a partir do fim dos regimes ditatoriais, quase linear das diversas fases da democratização. Buscando identificar, nos diversos países que constituem o continente, modos de institucionalização de procedimentos e práticas eleitorais, delegativas e participativas, os formuladores dos relatórios tendem a indicar que se geravam, de algum modo, processos favoráveis à democratização. Ao colocarem-se essas pressuposições à luz das análises do sociólogo Guatemalteco, ficavam evidenciadas tanto as tentativas de ampliação dos processos democratizadores quanto as reações indicadoras de que se estavam desencadeando diversos contra processos anuladores de todo e qualquer intento nesse sentido.
As instruções dos RRDH-AL, no que tangem aos avanços nos processos de democratização, não lidam a contento com os seguintes bloqueios fartamente destacados por Torres-Rivas (1996): a separação entre o Estado e a sociedade,24 o caos social e político, que caracterizou as ditaduras militares e deixou marcas profundas na sociedade, a vertiginosa violência social e política, as alianças entre setores oligárquicos e militares, a continuada e persistente revolução conservadora, que se faz sempre presente, a apropriação, pela direita, de uma retórica democrática, o difuso autoritarismo social, que se pereniza através da consciência prática e da consciência discursiva25 de alguns segmentos, a persistência de uma cultura racista26 (Torres-Rivas, 1999), os fracassos na luta contra a inobservância aos direitos fundamentais e humanos, os desequilíbrios de poder, o patrimonialismo e o modelo econômico ultraexplorador e concentrador de riqueza e renda, entre outros bloqueios (Torres-Rivas, 1996).
Por não se lidar, em profundidade, com esses obstáculos, as dificuldades de democratização parecem, nos documentos, superáveis. Assim, as indicações de ações para fazer avançar as políticas democratizadoras ganham um aspecto de viabilidade plausível e exequível. E, de todos os óbices, o autoritarismo social ganha prevalência, segundo Torres-Rivas. Este está tão arraigado que mesmo os que se dizem democratas parecem não ter força suficiente e meios políticos adequados para se opor, nas ações e nas práticas, ao patrimonialismo, à violência política, às discriminações, ao racismo, às exclusões múltiplas e aos privilégios advindos do colonialismo interno (Torres-Rivas, 1996).
Os formuladores do RRDH-AL de 2010 esclarecem que a viabilidade de ir vencendo o déficit democrático estaria ligada a inúmeros fatores. Seria tarefa ingente vencer tanto os vícios políticos expressos no clientelismo e no seu modo de captar o Estado, para a realização de interesses individuais e não coletivos, quanto as fragilidades institucionais “que debilitan el funcionamiento de la cadena de delegación de funciones del sistema democrático” (PNUD/RRDH-AL, 2010, p. 98). Tais vícios atuam como elos geradores de processos que reforçam procedimentos e ações impeditivas de uma democratização social e política.
La democracia es, en esencia, un régimen político mayoritario de delegación, y como tal implica la existencia de múltiples actores que disponen de información, influencias e intereses diversos y, en ocasiones, incluso contrapuestos (PNUD/RRDH-AL, 2010, p. 106).
Observa-se, nos RRDH-AL, a preocupação constante com o levantamento de dados quantitativos e qualitativos capazes de fornecer informações para um conhecimento mais preciso sobre condições que indicam, ou não, a existência, no continente, de dois processos simultâneos: a democratização política e a democratização social. Esta é entendida como o resultado de políticas públicas que possam barrar a perpetuação das desigualdades na América Latina. “Es preciso examinar cuáles son las debilidades de los regímenes democráticos de la región que impiden que estos puedan combatir eficazmente la persistente desigualdad que afecta a la región” (RRDH, 2010, p. 99).
Parafraseando Amartya Sen (2006), eles destacam que “el valor de la democracia está dado [tanto] por su valor intrínseco para la libertad humana” (PNUD/RRDH-AL, 2010, p. 98) quanto “por su valor instrumental como sistema generador de incentivos políticos que promueven la responsabilidad y la rendición de cuentas gubernamentales” (PNUD/RRDH-AL, 2010, p. 98).
Dizendo-se embasados em Amatya Sen27 (2006), os produtores e encampadores dos RRDHs-AL insistem que a democracia é um valor universal que viabiliza a implementação, em todas as partes do planeta, do desenvolvimento como um modo de expansão das habilidades e das capacidades sociais e políticas. Não há particularidades e/ou singularidades que podem ser tomadas como eliminadoras das chances de haver processos de avanços democráticos atrelados ao desenvolvimento humano. Sen
defende que os interesses públicos e os melhoramentos sociais dependem da formação de uma coesão social não autoritária, não subalternizadora e não imobilizadora. Tolerância, reconhecimento mútuo, combate à indiferença e a toda forma de desprezo e discriminação são, para Sen (2005; 2006), o cerne de uma coesão social democrática e voltada para a justiça social (Melo, Schilling, Rezende, 2022, p. 99).
Os formuladores dos RRDHs-AL não exploram, detidamente, o debate colocado pelo economista indiano acerca da necessidade de examinar, de maneira mais acurada, as complexidades da democracia nas sociedades com heranças coloniais seculares de discriminação e desprezo por grupos populacionais inteiros. Sen (2006) adverte ser necessário considerar as heranças plurais para construir democracias também plurais. Ele elogiava Nelson Mandela que defendia “la propria herencia africana en el debate pacífico, en su argumentación en defensa de las democracias pluralistas en el África contemporánea” (Sen, 2006, p. 26).
O que Torres-Rivas pensava disso? A pergunta é: Há, a seu ver, alguma herança social advinda das muitas populações alijadas de posições de poder na América Latina que poderia ser mobilizada, no presente, para fazer avançar e sedimentar uma democratização do continente? A resposta a essa pergunta pode ser extraída de suas reflexões sobre as relações sociais e as sociabilidades no mundo rural. Para ele, “el tejido social está compuesto por las relaciones interpersonales, que en la comunidad rural adoptan formas de reciprocidad, ayuda mutua, trabajo común” (Torres-Rivas, 1996, p. 12). Tais características são, sim, essenciais para um processo de democratização social e político. Porém, os longos períodos de guerras civis, de militarização, de violências, de aprofundamento da pobreza e das desigualdades, de esforços para desacreditar as instituições, o direito, a justiça foram, na verdade, destruindo os elementos assentados em empatia e em sentimentos de mutualidade e coletividade. Restaram o medo e a desconfiança (Torres-Rivas, 1996), os quais minam a crença nas instituições, na justiça e na democracia.
Observa-se que, nos escritos de Torres-Rivas, a democratização do continente esbarra em fatores objetivos e subjetivos, racionais (calculabilidade para fazer prevalecer alguns interesses e desqualificar diversos outros a qualquer custo) e irracionais (sentimentos de medo, de ódio e de desconfiança). As submissões de alguns poderes (Legislativo, Executivo, Judiciário) a outros, as políticas que oficializam a subalternização, as apostas nas instabilidades políticas e na crescente descrença das instituições, das eleições e do poder público são alguns dos elementos que dificultam e/ou impossibilitam, no seu entender, a democratização no continente.
Note-se que há um dado essencial: a democracia apresentada como um potencial para mudanças rumo à diminuição das desigualdades e ao combate à pobreza. O ponto de partida é a democracia que, segundo os produtores dos relatórios sobre a América Latina, estava em curso no continente. Análises como as de Torres-Rivas (1974; 1996; 1999; 2007; 2010) mapeiam os fatores que demonstram o quanto é difícil chegar à democracia.
A questão não é a potencialidade que a democracia possui, mas sim as adversidades para sua implantação como garantidora das liberdades (de expressão, organização e participação) e da mobilização política. Em última instância, Torres-Rivas, assim como muitos outros cientistas latinoamericanos (Gonzales Casanova, 2007; 2009; Fernandes, 1986; Faoro, 1998), está indagando se os grupos conservadores de modo geral e as burguesias de modo particular, na América Latina, com as suas “credenciales autoritárias” (Torres-Rivas, 1996, p. 9) suportariam, ou não, as disputas, os conflitos de interesses e de valores, que vêm à tona no duro processo tanto de pôr em prática a democracia política quanto de debelação do autoritarismo social.
Numa visão distinta das equipes dos RRDH-AL acerca do caráter, muitas vezes, linear ou multilinear das mudanças sociais na América Latina, no final da década de 1990 e limiar do século XXI, Torres-Rivas (1996), analisando os eventos e ocorrências, na América Central, dizia insistentemente que estavam em andamento muitos eventos e ações dos segmentos conservadores e que todos aqueles que subestimavam esse fato estavam cometendo erros enormes. E, como os setores autoritários e conservadores agiam? Ganhando as eleições para frear os processos de democratização política, de institucionalização de procedimentos assentados em direitos e de combate aos autoritarismos sociais. Mesmo em tais condições, os formuladores dos RRDH-AL insistiam a respeito disso - e não somente eles, pois inúmeros cientistas sociais também o afirmavam - dizendo que a democracia seguia um curso inquestionável no continente. Por isso, consta nos relatórios que ela, a democracia, era imprescindível, para a realização do desenvolvimento social e humano e, também, “por su valor constructivo en la formación de valores y en la promoción de las nociones de deberes, derechos y necesidades humanas entre los ciudadanos” (PNUD/RRDH-AL, 2010, p. 98). A. Sen ressalta:
(...) As capacidades que uma pessoa realmente possui (e não apenas desfruta em teoria) dependem da natureza das disposições sociais, as quais podem ser cruciais para as liberdades individuais. E dessa responsabilidade o Estado e a sociedade não podem escapar (Sen, 2005, p. 326-7).
É interessante mencionar que os formuladores do RRDH-AL, de 2016, dão a entender que é possível fazer uma aproximação entre algumas ideias de Amartya Sen e de Cornelius Castoriadis28 (1975; 1994), o qual “entiende los imaginarios como el conjunto de significaciones que mantiene unida a una sociedad y la instituye como tal” (PNUD/RRDH-AL, 2016, p. 294). As disposições sociais geradas pela sociedade para expansão das habilidades e capacidades sociais e políticas teriam parentesco com a ideia de imaginário efetivo (Castoriadis, 1975; 1994) organizador e viabilizador das instituições.
E por que é importante, no debate sobre a factibilidade da democracia na América Latina, esta correlação feita, no RRDH-AL, de 2016? Em primeiro lugar é porque as conquistas democráticas dependem de práticas e comportamentos internalizados individual e coletivamente (Castoriadis, 1975, p. 175). Em segundo, a democracia depende de normas, leis e instituições que só são efetivas se estiverem incorporadas no imaginário social. “Dichas prácticas sociales de comportamiento, leyes e instituciones sociales son parte del imaginario (tales como (…) la nación, la democracia, la modernidad (…)” (PNUD/RRDH-AL, 2016, p. 294). E, no entanto, “marcan una dirección de sentido que los sujetos viven como ‘normas, valores, lenguaje, herramientas, procedimientos y métodos de hacer frente a las cosas y de hacer cosas’ (Castoriadis, 1994, p. 5)” (PNUD/RRDH-AL, 2016, p. 294).
A democracia é tida como exequível, no RRDH-AL de 2016, se houver a predominância de um imaginário favorável a ela. Nos relatórios existem duas indicações ambivalentes: ora parece haver um imaginário favorável à democracia, ora parece que este tem de ser ainda construído. Porém, como assinala Torres-Rivas (2010), os grupos sociais distintos possuem imaginários também distintos. Enquanto uns nutrem um imaginário participativo e democrático, outros alimentam e perenizam um imaginário excludente e autoritário. Ao falar da destituição de Manuel Zelaya, em Honduras, em 2009, ele, de certa maneira, apontava para a existência de imaginários distintos que escancaravam “un profundo desencuentro de múltiples rostros” (Torres-Rivas, 2010, p. 8).
Alguns imaginários podem impulsionar ações e procedimentos profundamente antidemocráticos. O essencial é, então, compreender o quão difícil é a América Latina caminhar para quaisquer formas de democracia (representativa, participativa, delegativa), não só pelo fato de haver um confronto de imaginários diversos, mas também porque o imaginário antidemocrático é, constantemente, alimentado. Os formuladores do RRDH-AL, de 2016, passam muito rapidamente por essa questão do imaginário. Portanto, não discutem o caráter funcional dos imaginários que desejam conservar a vida social e política de modo excludente e antidemocrática (Carretero, 2009). Conforme alerta Francesca Randazzo (2013), os diversos imaginários, na América Latina, têm-se confrontado. “Aquello que un grupo considera como lo real y lo posible, desaparece del campo de visualización social de otro grupo” (Randazzo, 2013, p. 244).
No RRDH-AL de 2016, os imaginários são vistos como algo móvel e não sedimentado; por isso “las personas crean y modifican el entorno para cubrir sus necesidades y dibujar el arco de sus aspiraciones” (PNUD/RRDH-AL, 2016, p. 213). Gerar um imaginário democrático acerca das pessoas, das instituições e coletividades em geral e do Estado em particular é tido como o caminho mais seguro para ampliar a “Libertad das personas para desenvolverse em sociedad” (PNUD/RRDH-AL, 2016, p. 213).
Percebe-se que, para os formuladores dos RRDH-AL uma realidade democrática, do ponto de vista político e social, estava sendo construída na América Latina no limiar do século XX, mas a grande questão era se havia, ou não, constância nesse processo, já que a democratização dependia da criação de sujeitos sociais em busca constante de novos equilíbrios de poder. O desafio era obter “continuidad histórica, al mismo tiempo en que las personas construyen su identidad individual y colectiva” (PNUD/RRDH-AL, 2016, p. 213). Eles pareciam otimistas, pois diziam: “... [nos países] de la región se realizaron importantes avances en lo que respecta a la generación de espacios, mecanismos e instituciones de participación ciudadana” (PNUD/RRDH-AL, 2016, p. 204). Porém, eles não negavam que, no que tange à democratização, muita coisa tinha de ser feita, uma vez que diversos grupos sociais e étnico-raciais continuavam ainda excluídos de qualquer participação, tais como as pessoas autoidentificadas étnicamente (pueblos indígenas y afrodescendientes)” (PNUD/RRDH-AL, 2016, p. 207). Ou seja, “la distribución de las posibilidades de ejercer con éxito el derecho a ser elegida o elegido es claramente desigual debido a las desigualdades de género, étnicas y etarias” (PNUD/RRDH-AL, 2016, p. 208).
Edelberto Torres-Rivas (2010; 2007) levanta algumas questões essenciais que, de uma maneira ou de outra, podem-se considerar para se fazerem alguns contrapontos ao que consta nos RRDH-AL acerca do processo de transição democrática na América Latina. Ainda que ele dê maior destaque para a América Central, algumas de suas considerações servem para diversos países latino-americanos. Uma delas diz respeito ao modo como se deram as liberalizações políticas nos períodos pós-ditaduras militares.
Assim como Florestan Fernandes (1986; 1986ª.) e Raymundo Faoro (2008), entre outros, Torres-Rivas destacava que era necessário observar como as transições democráticas foram escapando das pressões populares e se aproximando dos interesses dos setores preponderantes em crise. Por outro lado, tais transições não significaram a derrota dos militares e de seus apoiadores.
Isso demonstra que os formuladores dos RRDH-AL transmitem uma visão evolutiva idealizada da passagem do autoritarismo para a democracia. Como assinala Canclini (1997), é ilusório imaginar que os hábitos e interesses autoritários seriam automaticamente suprimidos. Por essa razão, todos os avanços estavam mesclados de não-avanços. Os processos democratizadores e os processos autoritários seguiam juntos e, na visão de Torres-Rivas (1974; 2007), era fundamental orientar o olhar para os muitos detalhes29 perenizadores das lógicas políticas que, com a aparência de democratização reiteram as práticas, os procedimentos e as ações capazes de, mais dia menos dia, reforçar práticas e procedimentos autoritários.
Os formuladores dos RRDH-AL parecem mais interessados em destacar que os sistemas democráticos devem ser exaltados em razão, entre muitas outras, de suas capacidades para apontar resultados favoráveis ao desenvolvimento humano. As vantagens da democracia “pueden considerarse independientes de las particularidades regionales, lo cual convierte a la democracia en un valor universal” (PNUD/RRDH-AL, 2010, p. 98). Observa-se, então, que em vez de se fixar nos elementos singulares, nos detalhes, é melhor se ater, segundo a equipe produtora dos relatórios, naqueles aspectos universais que propiciam melhorias ligadas ao direito, à justiça e à liberdade. “Ninguna opción no democrática permite el desarrollo pleno de las libertades de las personas” (PNUD/RRDH-AL, 2010, p. 98).
Edelberto Torres-Rivas, bem como diversos outros estudiosos das singularidades do continente, põe em relevo a necessidade de se ater às particularidades que vão se interpondo no caminho da democratização. Tais singularidades vão revelando os processos que impulsionam alguns avanços democráticos e os contra-processos que revelam que as “democracias malas (...) defraudan las esperanzas o llenan de incertidumbre a la gente” (Torres-Rivas, 2010, p. 53).
As democracias deficitárias e muito inconsistentes, ainda que sejam infinitamente “melhores que as dictaduras” (Torres-Rivas, 2010, p. 53) no que concerne aos seus efeitos e consequências, podem não dar o resultado que se espera em relação ao desenvolvimento como liberdade de participação social e política capaz de gerar no seu bojo ações habilitadoras, ou seja, promotoras decapacidade social (Giddens, 2007), conforme assinalava Amartya Sen (2005). “A liberdade geral que a pessoa tem de buscar seu bem-estar [vai constituindo] o conjunto de capacidades” (Giddens, 2007, p. 255). As democracias ruins, frágeis e deficitárias não cumprem a promessa de garantir tais liberdades e tais capacidades. E, ainda pior, como assinala Pablo Gonzales Casanova (2007, p. 186), não conseguem fortalecer um “Estado anti- intervención y un Estado antigolpes”. Ele ressalta que este tem de ser o objetivo primordial de todo e qualquer processo de democratização.
Sendo assim, as ameaças constantes de retrocessos que impedem novos equilíbrios de poder, certamente, obstam a qualquer desenvolvimento e mesmo a liberdade de lutar por melhores condições sociais e políticas. Portanto, considerar a democracia como um valor universal, além das muitas singularidades da vida social, política e cultural, pode levar a enganos substanciais em relação às promessas do desenvolvimento humano no continente. Isso porquê, conforme consta no próprio relatório de 2010 “se espera que la democracia garantice el acceso justo de los ciudadanos a los recursos públicos y a los mecanismos que potencien sus capacidades” (PNUD/RRDH-AL, 2010, p. 106). Alguns diagnósticos e prognósticos, presentes nos RRDHs-AL, podem ser sistematizados da seguinte maneira:
Os formuladores dos documentos registravam entre 2003e 2016: |
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1- Que existiam inequidades, injustiças sociais, discriminaçao e desigualdades de oportunidades que afetavam grupos sociais inteiros e levavam ao nao cumprimento de seus direitos. As desigualdades eram empecilhos para a efetivaçao da democracia. |
2- Que persistía um processo político näo-inclusivo que impöe desafios ingentes para todos os países do continente. As dificuldades de alcançar, social e politicamente, todas as pessoas dos diversos gru pos étnicos, raciais e sociais eram gigantescas. |
3- Que eram desafiadoras, nas duas primeiras décadas do século XXI, as tentativas de formulaçôes de políticas que visassem, em vários países do continente, incluir diversos grupos nos processos parti- cipativos e representativos. |
4- Que algumas mudanças políticas e participativas, favoráveis ao processo de democratizaçao, foram implementadas no final do século XX e no limiar do século XXI no continente. Mudanças estas que poderiam levar a superaçao dos autoritarismos e das mentalidades autoritárias. |
5- Que o desrespeito aos direitos, de modo geral, e aos direitos humanos, em particular, eram detectá- veis. Desrespeitos que atingiam mais fortemente alguns grupos étnicos e raciais no continente e que desfavoreciam a sedimentaçao de práticas democráticas. |
6- Que havia um imaginário social favorável ao processo de democratizaçao na América Latina. No entanto, este imaginário estaria em construçao e nao era algo acabado. |
7- Que a realidade democrática estava em construçao no continente. Novos equilíbrios de poder esta- riam sendo gestados aos poucos. O desafio seria manter a continuidade de tal processo evolucionário democratizante. Os riscos autoritários estariam sempre espreitando. |
8- Que havia baixa representatividade das pessoas indígenas e negras nos processos político-decisórios. |
9- Que os ativismos de ONGs e outras organizaçôes da sociedade civil e associaçôes intergovernamen- tais interferiam positivamente no processo de democratizaçao em curso. |
10- Que havia um crescimento, no limiar do século XXI, de políticas de sensibilizaçao de pessoas e grupos em favor da democracia e da equidade. |
11- Que os vícios políticos (clientelismo e personalismo) estariam sendo, pouco a pouco, debelados. |
12- Que as fragilidades institucionais estariam sendo combatidas de alguma maneira. Mas a debilidade democrática estava ainda muito presente e isto seria um constante impedimento para combater as desigualdades fortemente arraigadas na América Latina. |
13- Que havia uma enorme dificuldade de acesso das pessoas pobres ao processo de participaçao política e de formulaçao de agendas de políticas públicas. |
14- Que ocorreram algumas melhoras na América Latina e Caribe no que tange à institucionalizaçâo de regras e normativas que contribuíam com a democratizaçao. |
15- Que muitas pessoas (as extremamente pobres e excluídas multidimensionalmente) seguiam tendo probabilidades mais acentuadas de nao terem voz nos processos políticos em curso no continente. |
16- Que era ineficaz considerar, de forma separada, democracia e desenvolvimento humano. |
17- Que existiam, no continente, várias açôes de apoios e de implementaçao de políticas democráticas, por parte de segmentos governamentais e nao-governamentais. |
18- Que existiam indicaçôes, na A. Latina e Caribe, da possibilidade de expansao de uma democratiza- çao mais integradora dos grupos secularmente excluídos da vida social, política. |
19- Que muitos países, no continente, fizeram esforços a fim de encontrar caminhos para a sedimentaçao da democracia institucional e social. |
20- Que a vigência de muitas situaçôes de desrespeito aos direitos humanos impactava negativamente a construçao de procedimentos democráticos que levassem ao alargamento do desenvolvimento hu mano. |
21- Que eram detectáveis formas de agir, de governantes e de agentes do Estado que eram perpetuadoras da inobservância dos direitos humanos e favoreciam a discriminaçâo e a estigmatizaçâo das pessoas mais vulneráveis. As possibilidades de democratizaçao eram, neste caso, subtraídas. |
22- Que as situaçôes de opressao social e política em razao do género, da condiçao étnico-racial e da situaçao de pobreza multidimensional vinham criando obstáculos e travas para avanços democráticos no limiar do século XXI. |
Fontes: Quadro elaborado com base nos diagnósticos e prescrições presentes nos RRDHs-AL (2003; 2009- 2010; 2010; 2012; 2013-2014; 2016).
Os elaboradores dos documentos, formulados entre 2003 e 2016, preconizavam: |
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1- O empoderamento das pessoas vulneráveis e a necessidade de expandir as políticas sociais que pos- sibilitassem expandir as suas participaçôes. |
2- A ampliaçao de procedimentos sociais e políticos, por parte de governantes e agentes da sociedade civil, fortalecedores dos direitos humanos. |
3- A implantaçao de políticas públicas e práticas administrativas que debelassem toda forma de discri- minaçao e estigmatizaçâo. Somente assim seria possível avançar rumo ao processo de democratizaçâo. |
4- Conscientizar, através de políticas diversas, os grupos mais vulneráveis acerca da importância de participaçao política no ámbito de suas comunidades e grupos. |
5- Que os governos locais e nacionais estabelecessem açôes para garantir os direitos humanos dos gru pos que viviam em situaçao de exclusao multidimensional. |
6- A geraçao de espaços políticos e sociais acolhedores de demandas e democratizadores dos espaços decisórios. |
7- A implantaçao de um processo de democratizaçao que fosse debelando as exclusses, sociais, políti cas, económicas e educacionais. |
8- Que todo processo social e político fosse organizado de maneira que os valores democráticos e po- tencializadores dos direitos humanos e do desenvolvimento humano fossem o fundamento de todas as açôes. |
9- Que as políticas públicas e sociais considerassem a necessidade de combater todos os procedimentos que nao contribuíssem para a institucionalizaçâo dos direitos humanos. |
10- A formulaçao de políticas e de procedimentos democráticos que combatessem tanto as desigualdades como as iniquidades. |
11- Mudanças de atitudes, de comportamento e de mentalidade através de uma política inclusiva e de- mocratizadora da vida social. |
12- O alargamento de práticas sociais e políticas que combatessem as atitudes e mentalidades que petri- ficavam as dificuldades de garantir direitos de todas as pessoas. |
13- Expandir as açôes relacionadas à observáncia dos direitos de todos os grupos sociais. |
14- A premência de envolver a sociedade civil organizada na fiscalizaçao de açôes governamentais. Isto é apontado como uma maneira de ampliar as chances da democracia. |
15- O desenvolvimento de açôes que levassem a dissuasao da violência e a sedimentaçao de uma socie dade mais empática como os diversos grupos sociais. A democratizaçao exigiría um processo de apa- ziguamento social. |
16- O desenvolvimento de açôes, por parte de agentes governamentais e nao-governamentais, que pro- movam as participaçôes das comunidades e dos grupos excluídos nos processos democratizadores da vida social. |
17- Que as agências governamentais sejam capazes de desenvolver políticas que incentivem melhorias sociais possibilitadoras da democratizaçao inclusiva. Somente assim, a defesa da democracia fará sentido para os segmentos excluídos de forma multidimensional. |
18- A cooperaçao de agentes governamentais e nao-governamentais. As ONGs sao vistas como dotadas de grande releváncia na identificaçao dos problemas e desafios de inclusao democrática. |
19- A necessidade de melhorar a disposiçao das pessoas e grupos para uma maior participaçao social e política na definiçao da agenda pública. |
20- A valorizaçao da diversidade étnica, racial, social e política nos processos de desenvolvimento de instituiçôes democráticas. |
Fontes: Quadro elaborado com base nos diagnósticos e prescrições presentes nos RRDHs-AL (2003; 2009-2010; 2010; 2012; 2013-2014; 2016).
As desigualdades sociais e políticas como barreiras postas à democratização
Verifica-se, em muitos momentos, o empenho dos produtores do RRDH-AL, de 2010, em verificar, na América Latina, a existência de uma delegação representativa, a qual, segundo eles, existia, mas era fragilíssima em razão das profundas desigualdades30 existentes no continente.31
“A su vez, el efecto de largo plazo de la democracia en la reducción de la desigualdad también parece estar condicionado por la capacidad de acción del Estado, la cual se refleja, por ejemplo, en el monto de impuestos que el gobierno recauda” (PNUD/RRDH-AL, 2010, p. 99).
Não há dúvida que se “el proceso de transición a la democracia avanza y la capacidad estatal aumenta, se observa un efecto positivo en la distribución del ingreso” (PNUD/RRDH-AL, 2010, p. 99).
As equipes produtoras, encampadoras e divulgadoras dos relatórios constroem estratégias argumentativas que levam tanto a identificação de algumas causas daquelas desigualdades propensas a emperrar a democratização quanto a recomendações acerca da primordialidade da atuação do Estado no combate às desigualdades, à pobreza e aos procedimentos autoritários. O Estado na América Latina é mostrado como agente essencial para a impulsão da democracia e do desenvolvimento humano. Edelberto Torres-Rivas, se bem que tenha sido assessor no Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas para a América Central, dúvida da conveniência dessa crença no Estado como agente capaz de fazer ampliar as condições para avanços da democracia e do desenvolvimento humano. Ele destaca que há barreiras quase intransponíveis pelo fato de o “Estado ser débil (sin recursos, ineficaz, colonizado por intereses corporativos, corrupto y con baja legitimidad) junto a una enorme población en situación de pobreza y afectada por desigualdades múltiples32” (Torres-Rivas, 2010, p. 54).
Tais condições antepõem-se à democratização do Estado e a todo e qualquer processo para conduzir suas ações no sentido de combate às desigualdades e em prol dos interesses coletivos. Nota-se que o Estado ganha um papel primordial em suas reflexões. A esse respeito Sáenz de Tejada (2012, p. 152) diz que Torres-Rivas “parte de una definición amplia de Estado que incluye los problemas de dominación y la estructura política y administrativa que permite cierta dirección de los asuntos públicos”. Faz-se míster considerar que “es en el interior del Estado donde se constituyen las clases sociales, y en torno de este los actores políticos - que tienen una relación problemática con las clases - interactúan, se posicionan y se enfrentan” (Sáenz de Tejada, 2012, p. 152).
Merece destaque o fato de serem as desigualdades e a pobreza fatores ressaltados, tanto pelos produtores dos RRDHs-AL quanto por Torres-Rivas (1974; 1996), como inviabilizadores da democracia e do desenvolvimento social e humano. Os elaboradores dos relatórios insistem que há uma indissociabilidade entre o não “funcionamento do sistema político y [as] desigualdades” (PNUD/RRDH-AL, 2010, p. 98). Os arranjos democráticos pós-ditaduras estavam, sim, em risco em razão dos muitos abismos sociais óbvios e dissimulados, os quais impactam todo e qualquer intento de democratização imprescindível para os avanços rumo ao desenvolvimento humano. “La redistribución del ingreso requiere dos elementos: la institucionalización de mecanismos eficaces de rendición de cuentas y el ejercicio efectivo de la competencia política (PNUD/RRDH-AL, 2010, p. 99). Todavía, debe-se ter em conta que “Si la capacidad del Estado no está acompañada de un proceso de consolidación democrática que implique rendición de cuentas, pesos y contrapesos, y competencia política, la democracia no logrará incidir positivamente en la disminución de los niveles de desigualdad” (PNUD/RRDH-AL, 2010, p. 99).
As análises de Thomas Piketty aparecem como uma referência para os debates sobre desigualdades no RRDH-AL, 2009-2010. Recentemente, em uma entrevista, Piketty (2020) levanta diversas questões que coincidem, significativamente, com as proposições de ações e as constatações contidas nos Relatórios globais, regionais e nacionais do desenvolvimento humano. Por exemplo, os elaboradores dos relatórios insistem, há algum tempo, afirmando que o Brasil é desigual demais para alcançar o desenvolvimento humano tomado como melhoria nos índices de acesso à educação, à renda e à saúde. Assim, como parte da solução, os elaboradores dessas recomendações e detecções das causas do emperramento do desenvolvimento humano, postas nos documentos, sugerem ampliar, o máximo possível, o número de pessoas que possam alcançar a educação fundamental, os serviços de saúde e trabalho não-precarizado.
Essas questões aparecem insistentemente numa entrevista recente de Thomas Piketty. Todavia, deve-se registrar que ele enfatiza a necessidade de uma tributação “mais igualitária, com mais justiça fiscal [e que aumente] os impostos dos bilionários, dos milionários” (Piketty, 2020, p. 6). Isso os relatórios não fazem porque seguem o preceito de A. Sen (2001, p. 6) segundo o qual as desigualdades devem ser combatidas “não pelo lado negativo, ou seja, diminuindo[-se] a riqueza dos ricos”, mas pelo lado positivo, ampliando-se a renda e a capacidade recursiva de poder dos pobres. Desde a década de 1970, Torres-Rivas (1974) dá muitas indicações de que não comungava com essa posição, qual seja, a possibilidade de aumentar a renda dos mais pobres sem, necessariamente, diminuir a riqueza dos mais ricos. Ele entende, como Furtado (2002), que as condições estruturais de concentração de rendas, riquezas, terras e poder gera condições nas quais “el Estado [e a sociedade] no puede[m] ser plenamente democrático[s]” (Torres-Rivas, 2010, p. 54). Furtado destacava que os parâmetros estruturais geram bloqueios ao processo de habilitação política que poderia levar à participação democrática dos setores mais empobrecidos.
Em sociedades como as latino-americanas com grande parte da população mergulhada na pobreza, na exclusão, na miserabilidade e cujas mudanças econômicas têm debilitado, na atualidade, sobremaneira o mercado de trabalho e expandido o trabalho informal, qualquer avanço democrático, dizia Torres-Rivas, pressupõe a existência de uma configuração de Estado capaz de expandir o bem-estar social e de proteger os direitos fundamentais, sociais e humanos. O Estado teria de dar proteção a muitas pessoas que estão sempre mais ameaçadas por uma economia de mercado globalizada. Note-se que os formuladores do RRDH-AL defendem a necessidade de a sociedade civil organizada e as comunidades atuarem junto ao Estado para “instrumentar políticas públicas para fortalecer espacios de interacción y las redes de protección social” (PNUD/RRDH-AL, 2013-2014, p. 37).
Os formuladores do RRDH-AL (2009-2010) referente à América Central evitavam, algumas vezes, ao discutir a globalização, fazer generalizações acerca do papel do Estado no contexto atual. Como se detectam, em suas estratégias argumentativas, que estão sendo levadas em conta algumas singularidades latino-americanas? Visto considerarem que os Estados recém-saídos de guerras civis e/ou de ditaduras militares tiveram histórias diferentes que deveriam ser consideradas ao problematizar as suas fragilidades e debilidades no que diz respeito aos investimentos em políticas impulsionadoras do desenvolvimento humano.
Os produtores do RRDH-AL (2009-2010, p. 160) lançam mão de um texto de Carlos Sojo que diz: “la reforma del Estado en Centroamérica no ha tenido mucho que desmantelar, pero ha impedido claramente el fortalecimiento integral de las capacidades estatales” (Sojo, 2007, p. 173-188). Não havia muito a desmanchar porque estava quase tudo por construir. Segundo os produtores dos RRDH-AL, havia nesse momento, o anseio por uma globalização assentada na ampliação de um mercado unificado que levaria à fragilização do Estado no respeitante à sua capacidade de operar políticas em favor de um “mejor servicio de seguridad ciudadana” (PNUD/RRDH, 2009-2010, p. 160). Note-se que, em alguns momentos, os produtores dos documentos analisados estão se referindo de modo geral a um Estado que se relaciona com uma economia global. As dificuldades específicas de operacionalizar políticas em favor do bem-estar social, na maioria dos países na América Latina, podem, assim, ficar em segundo plano.
Assim, em muitos momentos, as equipes elaboradoras dos RRDH-AL deixam de mencionar as singularidades de um Estado oligárquico que tem rechaçado, por séculos, qualquer ação em favor de um projeto coletivo de nação. Sabe-se que, quando é trazido à baila essa questão, o argumento indicador das chances de levar a cabo políticas de desenvolvimento humano, na América Latina, fica enredado em um labirinto político sem fim. Os desafios tortuosos, no concernente à associação da democracia ao desenvolvimento humano, aparecem fortemente no RRDH-AL de 2013-2014 que trata dos muitos tipos de violências existentes na América Latina. Neste documento, seus produtores insistem que “la inseguridad inhibe la consolidación de la democracia en la región y obliga a reflexionar sobre sus efectos en la relación de la ciudadanía y el Estado” (PNUD/RRDH, 2013-2014, p. 99). Todavia, não se deve desconsiderar que “la escasa legitimidad de las instituciones estatales (…) limitan la democracia y el desarrollo humano” (RRDH, 2013-2014, p. 112).
A construção dos RRDH-AL é bastante complexa, uma vez que, de uma maneira ou de outra, os seus formuladores tocam em diversas dessas questões, mas alinhavam os argumentos e as narrativas de modo a fazer parecer que é mais plausível e exequível do que de fato é a implementação de avanços democráticos e sua capacidade de alcançar todos os setores sociais de modo a aumentar a participação política condutora do combate às desigualdades e à pobreza. A transição consolidada do autoritarismo para a democracia parecia algo incerto, em 2016. Todavia, o alto grau de incerteza estava relacionado à não-solução, ainda que parcial, dos níveis elevados de pobreza e desigualdades. O continente havia caminhado, ao menos um pouco, para a instauração de processos participativos e de negociação, mas não havia dado sinais robustos de diminuição das desigualdades. Isso se constituía um grande problema para os avanços democráticos.
Que a democracia, uma vez em curso, tem potencialidades promissoras, conforme dizem os elaboradores do relatório de 2010, é fato. O problema é como chegar a ela em sociedades onde prevalecem truculências diversas, subalternizações de tipos variados sedimentados nas relações sociais, violências de todas as ordens e tipos, do autoritarismo social e institucional alimentado pelas condições de pobreza extrema e de desigualdades abissais.
Conclusões
Em vista dos diversos elementos levantados ao longo deste artigo, pode-se dizer que os produtores dos RRDH-AL constroem as narrativas e os argumentos atestando que a democracia foi, nas décadas de 1990 e 2000, uma construção em curso, que se tornou irrevogável. Daí o processo de idealização de estratégicas construtoras e fortalecedoras dos avanços democráticos. Deve-se destacar que isto ocorreu também com uma parte expressiva dos estudos sociológicos que enalteciam todas as iniciativas que contivessem algumas indicações de democratização social e/ou institucional33. Não há dúvida de que, nestes dois casos (o dos RRDH-AL e o dos cientistas sociais), o ideal se confunde com o realizável, gerando, então, uma ideologização da capacidade democratizadora da sociedade latino-americana. Tanto Enrique Leff (2010) quanto Norbert Elias (2001) fazem apontamentos acerca dos modelos prospectivos que simulam e idealizam processos de mudanças diversos. É plausível lançar mão de suas reflexões para entender os modelos prospectivos construídos nos RRDH-AL e que dizem respeito às proposições desses documentos acerca dos processos de democratização e de distribuição de poder no continente.
Enquanto Leff (2010) analisa como as prospecções - vindas seja de governantes, seja de organizações intergovernamentais e não-governamentais - podem ir se transformando em modelos que simulam probabilidades de mudanças, Norbert Elias (2010) afirma que é necessário desvendar, nas abordagens prospectivas, como o ideal vai se convertendo em uma crença que confunde o ideal e o realizável. As proposições prescritivas para efetivar os avanços democráticos vão se distanciando mais e mais da realidade, o que pode ser demonstrado quando comparamos as narrativas postas nos RRDH-AL e os profundos graus de dificuldades apontados por Edelberto Torres-Rivas. Inviabilidades que se inscrevem no modo de processamento da própria vida política que, por meio de alianças, acordos, acertos, vão desfigurando e eternizando as ações pautadas no conservadorismo autoritário (Torres-Rivas, 2007), na colonização do Estado por alguns segmentos sociais (Torres-Rivas, 2010), na reprodução das desigualdades sociais e políticas (1996), na despolitização de amplos setores sociais e na consolidação, ano após ano, de condições favoráveis à possível volta dos muitos fantasmas do passado recente, tais como as ditaduras militares.
Tendo-se por inspiração os escritos de Enrique Leff (2010) pode-se dizer que as recomendações para garantir avanços democráticos elencados nos relatórios simulam uma realização possível da democracia, pelo fato de simularem também outro mundo possível. No entanto, levandose em conta o que afirma Torres-Rivas, pode-se dizer que a análise sócio-histórica traz muitas evidências de que as relações de poder, de dominação, de subordinação, de subalternização, sedimentadas no continente, desmantelam a visão de mundo que os relatórios tentam difundir.
Não se trata, porém, de desvalorizar as visões prospectivas, vindas seja dos cientistas sociais seja das equipes responsáveis pelos RRDH-AL, já que são elas, conforme assinala Celso Furtado (1992, p. 1) , “que nos habilitam a pensar o futuro”. Examinando-se, detidamente, os argumentos contidos nos relatórios, bem como os dados quantitativos e qualitativos apresentados, é possível constatar que as ambiguidades (ora as probabilidades da democracia parecem advir de vários processos em curso) e ambivalências (ora as inviabilidades dos avanços democráticos parecem estar relacionados a condições que se repelem, tais como violência e democracia, pobreza extrema e democracia, desigualdades abissais e democracia), no que diz respeito à viabilidade da democracia, devem ser analisadas em dois movimentos simultâneos: um oriundo da própria realidade do continente e o outro advindo dos esforços prospectivos que apontam para um futuro com menos sofrimentos individuais e coletivos.
Trata-se, sim, de indagar como as proposições prescritivas vão, às vezes, sendo lançadas às alturas. Isto ocorre nos casos em que se tenta fazer crer que a democracia é viável e está em andamento, na América Latina, nos períodos pós-ditatoriais. Nota-se, então, uma motivação, a de propiciar o surgimento da crença de que a institucionalização de práticas e procedimentos democráticos não só é possível como é também o único caminho para alcançar o desenvolvimento humano. Visa-se, assim, a consecução de uma sinergia direcionada a mudanças sociais que combatam a pobreza e a desigualdade. Tal sinergia deveria criar, pelo que se percebe nos documentos, motivações, disposições, expectativas e perspectivas positivas em favor da democratização. Os elementos subjetivos ganham, assim, terreno.
Conforme destaca Torres-Rivas (1996, p. 8), os Relatórios do Desenvolvimento Humano (globais, regionais ou nacionais) visam gerar uma consciência, vinda de fora, do desenvolvimento humano, o qual necessita da expansão de uma visão de mundo democrática. Isso seria, segundo ele, uma estratégia de mudança que objetiva envolver alguns segmentos sociais (setores médios, empresários, por exemplo) pouco afeitos a preocupações democratizantes e voltadas para o combate à pobreza e às desigualdades.
Não obstante, um desafio que não tem sido problematizado a contento nos RRDH-AL, para a construção de políticas de desenvolvimento humano, está situado na impossibilidade de o Estado34 oligárquico predominante na América Latina “ordenar la vida política por medio de las maneras [supostamente] democráticas” (Torres-Rivas, 2011, p.15). Sem questionar de modo profundo tal ordenamento oligárquico travestido de intenções democráticas, as instruções de procedimentos contidas nos relatórios tornam-se promessas distantes que se vão esmaecendo e fragilizando. Por isso e por outras questões postas neste estudo, Torres-Rivas, no final da década de 1990, parecia muito desconfiado das estratégias das Nações Unidas em relação ao desenvolvimento humano.