Introdução
O aumentO da utilizaçãO das tecnologias de reprodução assistida (TRA) no Brasil pode ser atestado, dentre outros indicadores, pelos números apresentados no 13° Relatório do Sistema Nacional de Produção de Embriões (SisEmbrio), publicado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em janeiro de 2021 (Anvisa 2021). Nele, constata-se que o país possui 183 Bancos de Tecidos e Células Germinativos (BCTG), denominação técnica para as clínicas de reprodução assistida ou, conforme a mesma agência, Centros de Reprodução Humana Assistida. Os 161 centros (88%) que enviaram informações referentes a 2019, realizaram 44705 ciclos de fertilização in vitro.1 Comparativamente, o mesmo relatório aponta que em 2012 foram realizados 21074 ciclos no país. Portanto, no intervalo de sete anos, a quantidade desses procedimentos foi mais que duplicada, apresentando um verdadeiro crescimento exponencial no período.2
Este artigo baseia-se em pesquisa sobre as TRA no Brasil entre 2016 e 2018 (Machin, Oliva-Augusto e Mendosa 2018) e apresenta um conjunto de informações não exploradas em outras publicações que comunicavam os seus resultados (Machin, Oliva-Augusto e Mendosa 2018; Machin, Mendosa, Oliva-Augusto e Monteleone 2020). Seu principal objetivo é analisar e discutir criticamente as mudanças mais recentes deste campo, como o aumento da maternidade solo, por exemplo, e o processo de regulação dessas práticas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Na primeira seção, apontamos como uma definição mais ampla de tecnologia deve sustentar a compreensão da relação entre sociedade e tecnologias de reprodução assistida. Na seção seguinte, expõe-se o modo como o CFM lida com as demandas para a ampliação do acesso às TRA por meio de reformulações con tínuas de suas resoluções. Por fim, na última seção, será apresentada uma discussão a respeito do aumento da monoparentalidade feminina propiciada por essas tecnologias e de sua conexão às formas contemporâneas de desenvolvimento da individualidade e do individualismo.
Tecnologia, tecnologia em saúde, tecnologias reprodutivas
O termo tecnologia é frequentemente mencionado apenas como referência ao conjunto de conhecimentos aplicados, traduzido em produtos e/ou processos, reduzindo, portanto, o alcance tecnológico à função mais estritamente instrumental. Sua acepção mais ampla, entretanto, diz respeito a um conjunto de conhecimentos aplicados que expressam relações presentes na sociedade. Isso significa que essa atividade específica traduz as formas existentes de domínio, no marco de um conjunto de práticas delimitadas. Não somente a utilização, mas a própria existência do instrumental tecnológico - ou seja, a cristalização nesse, e não em qualquer outro conjunto de equipamentos e instrumentos, do conhecimento produzido socialmente - está comprometida com a forma pela qual a sociedade se organiza. É nessa perspectiva que o termo está sendo utilizado aqui (Augusto 1986; Gonçalves 1986).
Por conseguinte, tecnologias não podem ser pensadas simplesmente como instrumentos neutros usados pelas pessoas, em aplicações que podem ser boas ou más, ou que carreguem uma mistura de ambos os traços. Ou seja, aqui se está recusando a compreensão que sugere serem as técnicas neutras, sua qualificação, positiva ou negativa, dependendo de quem as utilize ou da finalidade que lhes for atribuída. Também se quer afirmar que a tecnologia se caracteriza pela abrangência e pela proximidade, sendo capaz de profunda influência modeladora, tanto sobre aqueles que a produzem quanto sobre aqueles que a utilizam.3 “Da mesma maneira que muda o ambiente tecnológico, altera-se o usuário de tecnologia” (Williams 1991 apudTester 1993, 87); no mesmo sentido e com a mesma força. Se a tecnologia auxiliou o mundo moderno a configurar-se de uma certa forma, à medida que se tor nou uma das fontes, senão a principal, de sua legitimação, a razão para continuar existindo com essa configuração desempenha, também, um papel absolutamente fundamental para que o mundo contemporâneo seja o que é. (Tester 1993, 90).
Considerando que os artefatos tecnológicos se referem a meios produzidos a fim de responder a alguma necessidade colocada socialmente, cujo caráter e alcance dependem das questões envolvidas no seu aparecimento, pode-se daí, deduzir que o desenvolvimento de uma tecnologia especial não se dá por acaso ou de forma neutra: responde a carências colocadas por um meio social específico, num momento histórico determinado. Assim, quando se fala em tecnologia, a referência não é apenas a artefatos fabricados com intuito de alterar de alguma maneira o meio ambiente; trata-se de um modo de fazer as coisas determinado por um modo específico de viver.
Por sua vez, também a tecnologia em saúde constituída pelo saber e seus desdobramentos materiais e não materiais na produção de serviços médicos (Gonçalves 1986, 10), carrega as mesmas características. Expressa a rede de relações sociais em que seus agentes articulam sua prática na totalidade social (Gonçalves 1986, 32; Castoriadis 1987, 231). Da mesma forma que quaisquer outras conquistas tecnológicas, não se pode pensá-la em abstrato, enquanto conjunto de “coisas”, de “aparelhos”, de “utilidades”, mas deve-se considerá-la enquanto elemento da prática social, partícipe de sua dinâmica e conformada pelas orientações dominantes na sociedade, constituindo-as e expressando-as no mesmo processo. Mesmo que esses dados não devam - e não possam - ser considerados isoladamente, a crescente presença do setor tecnológico nas práticas de saúde acaba incidindo sobre os significados e as necessidades a ela relativos.
Essa forma de conceber a questão impõe o estabelecimento de articulação entre os elementos materiais que compõem a tecnologia em saúde - procedimentos médicos, fármacos e equipamentos - e os processos sociais mais amplos nos quais se inserem. Nesse sentido, é possível perceber os vínculos entre a incorporação desse instrumental às práticas de saúde4 e a dinâmica social e política subjacente a essas práticas. A introdução da tecnologia médica revolucionou a organização dos serviços de saúde: novos patamares de concentração econômica, nova divisão social do trabalho médico e uma profunda modificação no próprio campo da técnica médica, o que contribuiu bastante para que o atendimento à saúde passasse a ter um custo cada vez mais elevado.
Certamente podem ser consideradas do mesmo modo as tecnologias de reprodução assistida (TRA), conjunto - de técnicas, tecnologias, equipamentos, procedimentos médicos e biomédicos - apresentado como opção de tratamento da in fertilidade. Como qualquer outra tecnologia presente no âmbito da saúde (e em outras esferas), esse instrumental expressa relações vigentes na vida social brasileira - ou em quaisquer outros países. Como é dito por Stolke:5
Tanto a ciência como a tecnologia são inspiradas no ambiente sociopolítico em que se desenvolvem e, por sua vez, contribuem para reforçar os valores e as relações de dominação que os engendram. Desde o século passado, assistimos a uma verdadeira convergência entre ciência e tecnologia. (Stolke 2018, 11)
Ainda no mesmo texto, há referência de que “as novas tecnologias reprodutivas” são “uma tecnologia para a reprodução industrial de seres humanos” (Mies 1985, 6 apud Stolke 2018, 12).6
No caso brasileiro, os custos do tratamento são altos e não cobertos pelos planos de saúde. Como consequência, o modo como se estabeleceram os procedimentos a ele relativos acabou por erguer uma barreira econômica que define quem pode e quem não pode dispor dessa alternativa para procriar, uma vez que não há disponibilidade de técnicas de alta complexidade, nem sua priorização no setor público de saúde (SUS). Em consequência, sua difusão é altamente concentrada no sistema médico privado.7 Para ter condições de utilizar os seus procedimentos, são necessários rendimentos econômicos que facultem o acesso ao tratamento. Portanto, é preciso contar com um perfil alto de renda para fazer uso dessa alternativa, já que o custo do conjunto de procedimentos envolvidos os torna inacessíveis para uma enorme parcela da população interessada. Percebe-se, então, neste caso, a mesma desigualdade presente em outras dimensões da vida social.
Apesar de todas as dificuldades e do alto preço dessa intervenção, a procura pelas tecnologias reprodutivas continua alta. Pode-se perguntar o que explica esse aumento da demanda e as respostas são várias. Devem ser consideradas: a diminuição das taxas de fertilidade, devida às mudanças nas condições de vida e de saúde (dieta, hábitos urbanos, estresse); o adiamento da maternidade (“mater nidade tardia”), como reflexo da entrada muito numerosa das mulheres no mercado e na crescente instabilidade do mundo do trabalho; a permanência do desejo pela maternidade, o desejo por filhos como norma de reprodução social, independentemente da diversidade de configurações familiares; a viabilidade técnica vendida pela ideia da “revolução da vida”.
Outra circunstância a considerar é que fica perceptível a expansão do processo de medicalização, pelo qual a visão médica afeta, gradualmente, todas as dimensões da vida, pessoal e social, política e econômica, interferindo na construção de conceitos, costumes, comportamentos sociais, visões de mundo e “redefinindo experiências e comportamentos humanos como se fossem problemas médicos”. (Tesser 2006; Carvalho et al. 2015; Zorzanelli e Cruz 2018; Lemos et al. 2020; Foucault 1979; Donnangelo e Pereira 1976).8
Tecnologia acelerada, regulação em marcha lenta
A expansão acelerada das TRA no Brasil ocorre na ausência de legislação específica sobre tais práticas, o que conforma um ambiente de insegurança jurídica para todos os envolvidos no setor. Em seu lugar, os profissionais e interessados contam com resoluções publicadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) desde 1992. Por se configurarem como normas éticas, as resoluções indicam quais condutas médicas são passíveis de serem classificadas como antiéticas, o que não necessariamente implica a sua responsabilização nas esferas criminal ou civil por conduta lesiva. No entanto, não é incomum encontrar profissionais que prefiram a atual situação. De seu ponto de vista, a presença de grupos religiosos no Congresso Nacional e sua reiterada defesa de princípios conservadores em assuntos relativos à reprodução humana, podem resultar na aprovação de uma legislação limitadora da utilização das TRA no país, criando obstáculos para o seu desenvolvimento e avanços continuados.
Ao todo foram publicadas sete resoluções entre 1992 e 2021. Nelas foram determinados princípios gerais de utilização das TRA bem como outros elementos importantes para a definição do seu público-alvo e da prática de reprodução humana no país, como caracterização das clínicas, doação e criopreservação de gametas e embriões, diagnóstico genético prévio à implantação de embriões, à gestação de substituição e à reprodução assistida post mortem.
Nesta seção trataremos de alguns aspectos dessas resoluções que apontam para a contínua ampliação do público-alvo das TRA, geralmente expressos em seus princípios gerais e na definição de quem são os seus usuários. Além disso, analisaremos o processo de produção das resoluções do CFM a partir de algumas entrevistas9 com médicos que nele participaram. Deu-se especial atenção à resolução de 2013 (CFM nº 2013/2013) que é considerada um marco naquela ampliação ao permitir “o uso de técnicas de RA para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras”.
A resolução de 1992 (CFM nº 1358/1992) surgiu oito (8) anos após o nascimento do primeiro bebê brasileiro concebido com o auxílio de TRAs e já em seu primeiro princípio geral anunciava uma característica definidora de quem poderia utilizar essas técnicas. Isto porque ao afirmar que as TRAs “tem o papel de auxiliar nos problemas de infertilidade humana”, seu acesso era restringido aos casais diagnosticados como “inférteis”. Somente após dezoito (18) anos o CFM mudaria esse princípio, com a publicação da resolução nº 1957/2010, quando as TRA passaram a ser entendidas como técnicas que auxiliam na “resolução de problemas de reprodução humana”, embora afirmasse logo em seguida, como na resolução anterior, que elas facilitam o “processo de procriação quando outras terapêuticas tenham se revelado ineficazes ou consideradas inapropriadas”. Este complemento, e mesmo a utilização do termo resolução de problemas, não deixa dúvidas de que, mesmo voltadas à reprodução humana, as técnicas empregadas se destinavam antes de tudo aos casais inférteis, que já haviam tentado, sem sucesso, “outras terapêuticas”.
A resolução seguinte (CFM nº 2013/2013) deu mais um passo na direção da superação do caráter limitador do entendimento de que as TRA estariam circunscritas aos problemas da infertilidade. A partir de então, elas passaram a ter “o papel de auxiliar a resolução dos problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação”. A mesma redação ampla estará presente nas resoluções seguintes de 2015 (CFM nº 2121/2015) e 2017 (CFM nº 2168/2017). Embora não se falasse mais em “terapêuticas ineficazes”, permaneceu a perspectiva de que tais técnicas estariam voltadas para a “resolução de problemas”, o que não deixa de recolocar a velha marca de que elas se destinavam antes de tudo aos “casais inférteis”, ou com “problemas de procriação”, e não para todos aqueles que desejam ter filhos, independentemente de sua (in)fertilidade. De fato, em 2021, portanto, quase 30 anos após a publicação da primeira resolução, o CFM abandonou de vez a perspectiva da infertilidade como doença a ser tratada para afirmar que as TRA “têm o papel de auxiliar no processo de procriação” (CFM nº 2294/2021).
Em relação a quem pode ser considerado seu usuário, as resoluções eviden ciam de modo bastante claro a direção de crescente incorporação do público-alvo assumida pelo CFM ao longo do tempo. Em 1992, afirmava-se que “toda mulher, capaz nos termos da lei, pode ser receptora das técnicas de RA” (cf. CFM nº 1358/1992). Ainda que essa redação deixasse subentendido que mulheres solteiras (toda mulher) pudessem acessar os procedimentos, o item seguinte dava margem à interpretação de que somente mulheres em relacionamentos heterossexuais estáveis poderiam fazê-lo quando determinava que seria necessária a aprovação do cônjuge ou companheiro para que mulheres casadas ou em união estável fossem submetidas aos procedimentos (Idem, ibidem).
A resolução de 2010 (CFM nº 1957/2010) modificou a redação desses itens assumindo que “todas as pessoas capazes podem ser receptoras das técnicas de RA” e excluindo a menção explícita à aprovação do parceiro. Em seu lugar colocou-se a necessidade de que “todos os participantes estivessem de inteiro acordo e devidamente esclarecidos” sobre os procedimentos (cf. CFM nº 1957/2010). Finalmente, a partir de 2013 (CFM nº 2013/2013), um item específico tornou explícito que relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras também poderiam fazer uso das técnicas, ainda que essa afirmação fosse imediatamente delimitada pelo “direito de objeção de consciência do médico” (cf. CFM nº 2013/2013). A mesma redação seria mantida na resolução nº 2121 de 2015, sendo adicionado mais um passo na direção da ampliação do atendimento do público-alvo. Na mesma seção que define quem são os “pacientes” das TRA, incluiu-se um item específico permitindo a “gestão compartilhada em união homoafetiva feminina em que não exista infertilidade” (cf. CFM nº 2121/2015). Com essa permissão, casais homoafetivos femininos puderam realizar a gestação com o gameta de uma delas ou de ambas, sendo suspensa, neste caso, a norma que determina o anonimato entre doador e receptor de ovócitos ou espermatozoides.
As mesmas condições estabelecidas até 2015 foram mantidas pela resolução nº 2168 de 2017. Entretanto, uma pequena alteração realizada pela resolução de 2020 (CFM nº 2283/2020), publicada somente para modificar o item que estamos tratando, ampliou ainda mais os possíveis usuários de TRA com a inclusão de transgêneros. Chama a atenção o fato de que a nova redação excluiu os termos “casais” e “solteiros”, provavelmente por estar subentendido que “todas as pessoas capazes”, independentemente de estarem em um relacionamento afetivo, poderiam fazer uso das técnicas. Assim, na forma sintética então adotada e que permaneceu na resolução de 2021: “É permitido o uso de técnicas de RA para heterossexuais, homoafetivos e transgêneros” (CFM nº 2294/2021).
Ainda na resolução de 2020, na exposição de motivos, esclareceu-se também não ser necessário a explicitação do respeito à objeção de consciência dos médicos em relação ao atendimento de usuários específicos, uma vez que o Código de Ética Médica já garante a “plena autonomia” dos profissionais no exercício de sua profissão, “inexistindo obrigação de o médico atuar em procedimentos que contrariem seus posicionamentos pessoais, à exceção de hipóteses emergenciais” (cf. CFM nº 2283/2020).
Outro critério que produz impacto na delimitação dos usuários diz respeito principalmente à idade de quem pode submeter-se aos procedimentos de reprodução assistida, o que alcança principalmente as mulheres que desejam viver a experiência da gestação. As resoluções de 1992 e 2010 não colocavam limites para esses casos. Contudo, a partir de 2013, foi determinado que a mulher que se submetesse aos procedimentos visando sua própria gestação poderia fazê-lo somente até os 50 anos. Em 2015, acrescentou-se que exceções a esse limite poderiam ser “determinadas, com fundamentos técnicos e científicos, pelo médico responsável e após esclarecimento quanto aos riscos envolvidos” (cf. CFM nº 2121/2015). O sentido principal desse princípio foi mantido nas resoluções de 2017 e 2021, ainda que a redação tenha sido modificada par melhorar sua compreensão.
Por fim, na resolução de 2013 também foram postos limites para a idade dos doadores de gametas: 35 anos para mulheres e 50 anos para homens (CFM nº 2013/2013). Este critério permanece inalterado até a resolução vigente (CFM nº 2294/2021).
A construção das resoluções
O modus operandi da construção do documento norteador das práticas no campo de reprodução assistida no Brasil assenta-se na discussão inicial entre pares, a respeito das principais questões a serem contempladas para, em seguida, ser submetido à aprovação de sessão plenária do Conselho. Esse procedimento foi estabelecido a partir de 2009, na revisão da primeira resolução, de 1992. Segundo médico especialista em TRA entrevistado na pesquisa Tecnologias reprodutivas e (in)fertilidade: regulação, mercado e direitos, foi a Sociedade Brasileira de Reprodução Humana (SBRH) que solicitou ao CFM uma atualização da resolução, “uma vez que as tecnologias de reprodução humana tinham avançado muito e as demandas sociais ficaram realmente com dificuldades” (Machin, Oliva-Augusto e Mendosa 2018).
Por sugestão do mesmo médico, foi criada uma comissão com um representante da SBRH, um da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA), um da Federação das Associações Brasileiras de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) e três conselheiros federais. A comissão apresentou para a plenária uma nova resolução com várias mudanças, embora parte delas fosse rejeitada, como a relativa aos casais homoafetivos. Na mesma resolução (2010) houve alterações em relação ao número de embriões transferíveis de acordo com cada faixa etária das pacientes submetidas aos procedimentos de RA.
Contudo, o maior ganho desse processo foi o fato de que a comissão de re produção assistida se tornou permanente na Câmara Técnica de Ginecologia e Obstetrícia. A partir de então, as modificações passaram a ocorrer periodicamente,10 o que tem permitido que os maiores ganhos que poderiam ter sido obtidos em 2010 passassem a ser alcançados nas revisões seguintes como, por exemplo, em 2013, com a incorporação dos casais homoafetivos e a possibilidade de utilização de material biológico pós-morte.
De acordo com os entrevistados, o que impulsiona as modificações das resoluções são as “demandas” ou “pressões” da própria sociedade, ou seja, dos casais ou indivíduos que procuram os consultórios e clínicas de reprodução assistida. Isso porque, muitas vezes, essas demandas apontam para dimensões ou possibilidades de uso das TRA que confrontam ou ainda não foram incorporadas pela resolução vigente. Por outro lado, muitas vezes o que está escrito na norma é suscetível de interpretações diferentes pelos conselhos regionais, abrindo-se espaço para decisões distintas em relação a demandas semelhantes. Nessas situações, a revisão periódica da resolução pelo CFM tem por objetivo “regularizar” uma determinada interpretação a respeito dos próprios elementos presentes em versões anteriores do documento.
A possibilidade de que casais homoafetivos e solteiros tenham acesso às TRA, embora não apresentem problemas de infertilidade, é um exemplo de como as resoluções acabam por ratificar mudanças originadas por pressão da sociedade e que foram tratadas de modo distinto pelos especialistas até a sua incorporação no documento regulador. Não é senão outra a expressão disso o fato de que, nas resoluções do CFM, a partir de 2010, os “problemas de infertilidade” passassem a ser substituídos por “auxiliar na reprodução humana” e, do mesmo modo, que, a partir de 2013, a possibilidade de utilização das TRA por casais homoafetivos e pessoas solteiras passassem a figurar explicitamente no texto. Na verdade, aquilo que resulta no texto da resolução depende em graus variados das interações entre médicos e pacientes, demonstrando que as tecnologias desenvolvidas a partir da identificação de determinadas doenças vão sendo ressignificadas pelas concepções dos sujeitos acerca da família, de filiação, de paternidade e maternidade. São essas concepções que reconfiguram a compreensão dos limites e potencialidades das técnicas disponíveis, e das doenças que estão na sua origem, de tal modo que aquelas vão sendo dirigidas para a “correção de falhas nos projetos reprodutivos de pessoas e não exatamente no combate de doenças ou a problemas de um casal infértil” (Correa e Loyola 2015, 755).
Característica marcante dos processos que unem ciência e tecnologia desde os primórdios da Revolução Industrial, a ampliação do acesso ou a difusão de técnicas antes restritas a um público específico reproduz, também nas tecnologias biomédicas, aquilo que parece ser o padrão de desenvolvimento tecnológico nas sociedades contemporâneas, ou seja, a gradual incorporação daqueles que podem ser alcançados por um conjunto de instrumentos e procedimentos inicialmente circunscritos a casos bem delimitados.
Entretanto, se parte das modificações das resoluções pode ser creditada às pressões, concepções e desejos de quem “ainda não foi alcançado pela técnica”, a outra parte refere-se às alterações ocorridas no próprio desenvolvimento das tecnologias, neste caso, especialmente no setor das tecnologias biomédicas. O surgimento de novos instrumentos, de novas técnicas, de novos fármacos e de novos procedimentos aparece cada vez mais como determinante do aumento das taxas de sucesso ou de eficácia das TRAs. Assim, à medida que a introdução de inovações produz alterações nos resultados da prática clínica, abre-se espaço para a constituição de algumas certezas, mesmo que de duração temporária, quanto à permanência de limites de idade para o acesso, para a doação, para as possibilidades de utilização de material genético próprio e de terceiros (criopreservação) e quanto à eficácia e eficiência de um procedimento quando comparado a outro.11 São essas “certezas provisórias” que conformam as resoluções e impõem a necessidade periódica de suas revisões de acordo com os especialistas do campo.
As mudanças provocadas nas tecnologias biomédicas não dizem respeito somente àquelas que ocorrem exclusivamente no interior das TRA. As possibilidades atuais de que pessoas submetidas a tratamento de combate ao câncer preservem sua fertilidade por meio da criopreservação de gametas têm implicado no aumento do limite da idade para alguém se submeter aos procedimentos de RA, uma vez que debelada a doença, estão abertas as chances de reprodução em idade mais avançada. Entretanto, especialmente no caso das mulheres, o aumento da idade no momento da procura pela RA também é impulsionado por uma postergação da maternidade que se prende a modificações sociais em relação ao trabalho e a decisões pessoais de adiamento da constituição de família que são cada vez mais comuns. Nesses casos, aumenta a pressão para que os limites de idade sugeridos para o acesso ao tratamento também sejam modificados. Por seu turno, essas modificações vão produzir impacto direto na regulação sobre a doação de gametas, uma vez que, para mulheres com idade mais avançada e que não recorreram à criopreservação oportunamente, são muito baixas as chances de que o processo seja realizado com material próprio segundo os próprios especialistas.
Não se pode afirmar que tanto as inovações tecnológicas, quanto as mudanças socioculturais e as pressões dos candidatos ao uso das TRA sejam avaliadas de modo idêntico por todos aqueles que participam de suas revisões na comissão técnica e na sessão plenária. Como relatado no exemplo da revisão de 2009, podem ocorrer divergências em relação às questões a serem tratadas pela resolução, o que implicará, em alguns casos, sua omissão ou o tratamento bastante genérico. Isso não significa, porém, que na prática clínica tais questões inexistam. Pelo contrário.
Assim, se é verdade que somente na resolução de 2013 se explicitou que “é permitido uso das técnicas de RA para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras”, alguns entrevistados para a pesquisa acima referida afirmaram que já atendiam casais com essas características antes disso e que, neste sentido, não perceberam alterações quanto ao público atendido a partir daquela data. Por outro lado, mais da metade dos entrevistados (57%) afirmou que houve alteração no perfil da população atendida a partir de 2013, quando mais pessoas do referido grupo passaram a procurar os serviços (Machin, Oliva-Augusto e Mendosa, 2018). Aparentemente, o fato de que as clínicas atendessem casais homoafetivos mesmo antes da resolução em questão se relaciona diretamente com o reconhecimento da união estável para casais do mesmo sexo, pelo Superior Tribunal Federal (STF), em 201.
A ausência de uma lei específica sobre reprodução assistida e a fragilidade da resolução como instrumento regulador das práticas no campo podem ser constituídas tanto como um trunfo quanto como um estorvo nas mãos dos especialistas. É verdade que, para a maioria deles, a ausência de lei amplia os conflitos em torno do que é possível ou não fazer nas clínicas, dando margem para a atuação antiética de “alguns” profissionais. Por outro lado, conforme expressão utilizada por um dos entrevistados ao referir-se ao fato de que os serviços já atendiam casais homoafetivos antes de 2013, “o que não está legislado, pode”, permitindo que o profissional estenda sua atuação e, de certo modo, amplie o acesso às técnicas de RA mesmo antes de sua regulamentação.
Para a maioria dos profissionais da área, portanto, a inexistência de legislação específica traz vantagens para a prática clínica, na medida em que a velocidade das mudanças científicas, tecnológicas e sociais faz morrer a letra da lei em um ritmo muito acelerado, tornando inviável sua continuidade como marco regulatório de uma prática que já é completamente diferente. Além disso, como salientado no início desta seção, dadas as características do Congresso Nacional, conformado por grupos religiosos com posições políticas e ideológicas bem marcadas e contrárias a inúmeros aspectos das TRAs, uma lei “ruim” poderia ser facilmente aprovada, inviabilizando as práticas e restringindo o campo de atuação dos especialistas. Por outro lado, vários deles reconhecem que a situação atual traz “insegurança jurídica” para sua atuação, uma vez que a resolução constitui apenas um conjunto de diretivas de caráter ético e, portanto, extremamente frágeis do ponto de vista legal.
A fragilidade ocasionada pela ausência de uma lei pode ser observada em casos exemplares, como o provimento número 52 da Corregedoria Nacional de Justiça, de 14 de março de 2016, obrigando as clínicas a enviarem aos Cartórios de Registro Civil o nome dos doadores de material genético de crianças nascidas com o auxílio de técnicas de RA, bem como o de seus beneficiários. O provimento confrontava um dos pilares do campo no país que é justamente a garantia do anonimato dos doadores. Presente em todas as resoluções, o princípio de proibir que se descubra a identidade civil do doador de espermatozoides ou doadora de óvulos tem algumas justificativas bastante relevantes. A primeira é a de que o anonimato aparece como um estímulo à doação, uma vez que as pessoas podem fazê-la sem se preocupar com eventuais alegações de responsabilidade por aqueles nascidos com o seu auxílio. Decorre desta a segunda justificativa, que é a de impedir futuras demandas ou alegações em torno de reconhecimento da paternidade ou maternidade que pudessem implicar a criação de um vínculo que permitisse acesso à herança ou a exigência de cuidados por parte de quem se dispôs a colaborar no processo de modo voluntário e sem qualquer comprometimento atual ou futuro. De fato, países que quebraram esse princípio tiveram queda expressiva do número de doadores (Cooper e Waldby 2014, 70).
Por outro lado, uma recente modificação de um aspecto do anonimato também reforçou a ideia de que a dinâmica de “autorregulação” do campo efetuada pelos especialistas em TRA tende para uma contínua “acomodação” entre a prática clínica e as “demandas da sociedade”. Isto porque a resolução de 2021 (CFM nº 2294/2021), acrescentou uma exceção ao princípio do anonimato: a partir desse ano, admite-se a doação de gametas entre pessoas com parentesco até o quarto grau, sendo pais e filhos considerados de primeiro, avós e irmãos de segundo, tios e sobrinhos de terceiro e primos de quarto, “desde que não incorra em consanguinidade” (cf. Idem, ibidem).
É interessante notar como essa exceção responde a uma demanda que foi dirigida aos especialistas várias vezes ao longo dos últimos anos. Em análise dos pareceres emitidos pelos conselhos regionais e federal de medicina realizados durante a pesquisa,12 foram encontradas solicitações para que parentes ou pessoas conhecidas do casal em tratamento pudessem ser os doadores de gametas, tendo em vista alegações de dificuldades específicas de selecionar um doador com características fenotípicas semelhantes ou, ainda, pela simples razão de que havia um desejo de vinculação genética ao doador, especialmente quando este era da família de algum dos membros do casal. Em sua quase totalidade, os pareceristas negaram o pedido, reafirmando o princípio do anonimato dos doadores e alertando que a sua quebra poderia trazer prejuízos e conflitos futuros na criação e desenvolvimento das relações familiares e pessoais. Aparentemente, com a resolução de 2021, esse entendimento foi superado, ainda que os possíveis efeitos ou consequências da conduta agora permitida possam evidenciar, a longo prazo, o surgimento de “prejuízos e conflitos” que aconselhavam aquela proibição até este momento.
A mesma mudança de entendimento ocorreu em relação à possibilidade de que o casal de mulheres homoafetivas realizasse a “gestação compartilhada”, isto é, quando o óvulo fecundado de uma mulher é transferido para o útero de sua parceira. Este também era outro pedido recorrentemente direcionado aos conselhos regionais e ao CFM. Do mesmo modo que as solicitações de doação de gametas entre parentes, essa questão recolocava o conflito entre a admissão dessa prática e a preservação do anonimato da doadora. Finalmente, a partir da resolução de 2015, foi admitida tal possibilidade, eliminando-se mais uma área de atrito entre os desejos e demandas da “sociedade” e aquilo que figura como aceito pela comunidade dos especialistas.
Certamente, a vigência de uma lei nacional de reprodução assistida que acolhesse o princípio do anonimato das doações evitaria que se desencadeasse o conflito entre o provimento do CNJ, as clínicas e entidades médicas que imediatamente se posicionaram contra a medida, anulando seus efeitos. Ademais, evitaria também que demandas semelhantes à da doação entre familiares e à gestação compartilhada por casais de lésbicas tivessem sua “entrada forçada” no campo por meio de demandas individuais que se apresentaram nas clínicas privadas e não no espaço público do Congresso Nacional durante a discussão de uma lei abrangente sobre o tema. Por fim, poderiam evitar que casais ou indivíduos que não conseguiram submeter-se aos procedimentos de RA, especialmente em função da faixa etária estabelecida para o acesso, recorressem ao judiciário para que este garantisse o acesso aos procedimentos. Segundo informações dos próprios profissionais, os juízes têm tomado decisões favoráveis aos usuários, desprezando a resolução do CFM e invocando direitos constitucionais como planejamento familiar.
No cenário atual, se o debate no Legislativo pode ser um campo de batalha hostil e fatal para a continuidade do desenvolvimento das tecnologias de reprodução assistida no país, os conselhos regionais e o Conselho Federal de Medicina aparecem como locais de proteção dos interesses da “sociedade” e de garantia de manutenção de um padrão de desenvolvimento tecnológico assentado na “evolução” da ciência, “exclusivamente”. Isto, pelo menos, nas justificativas que os próprios médicos dão para as vantagens de atuarem apenas sob as diretivas da resolução do conselho.
De fato, se, por um lado, a inexistência de lei põe continuamente em questão vários elementos e dimensões da reprodução assistida no país, por outro, permite aos profissionais da área, especialmente aos médicos, o controle total sobre sua própria prática. Por meio do papel que possuem e exercem na revisão periódica da resolução criada por eles mesmos, mantém-se no país um campo de atuação autorregulado em seus pontos centrais, tornando a atividade das clínicas e consultórios bastante distante de ações externas de controle e verificação de práticas e condutas. Não há qualquer iniciativa de controle e fiscalização dos serviços pelos conselhos regionais de medicina e pelo CFM. Uma ação, neste sentido, somente é desencadeada após recebimento de denúncia e recai exclusivamente sobre aspectos éticos.
Por outro lado, desde 2006, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tem estabelecido padrões sanitários e técnicos para os centros de reprodução assistida ou Bancos de Células e Tecidos Germinativos (BCGT). A ação da agência nacional e de vigilâncias locais visa o controle sanitário e o monitoramento desses estabelecimentos, tendo por objetivo principal o cumprimento de protocolos de organização e manutenção de aspectos instrumentais e procedimentais. Os eventuais atos ilícitos ou antiéticos que possam ser identificados no interior dos serviços são levados ao conhecimento da Câmara Técnica de Reprodução Assistida do CFM, a quem cabe apurar os fatos e determinar eventuais punições.
Destaca-se ainda o papel da Anvisa na regulação e controle de material genético importado. Em função do aumento exponencial de autorizações de importação de óvulos e sêmen, a Agência tem ocupado um papel central na expansão das técnicas de RA, especialmente no sentido apontado neste estudo, isto é, facilitando e garantindo que os projetos reprodutivos sejam cada vez mais o resultado de escolhas individuais que põem em relevo a autonomia e a realização de desejos únicos daquele ou daquela que tomou essa decisão. Conforme Machin (neste número de INTER DISCIPLINA), o aumento da importação de gametas e a inclusão do Brasil nas cadeias globais de produção e circulação de biovalores tem trazido uma série de desafios para o cumprimento do papel técnico da Anvisa enquanto regulador e fiscalizador das condições sanitárias de material genético destinado às práticas reprodutivas.
Famílias monoparentais femininas
O número das famílias monoparentais13 chefiadas por mulheres, já bastante grande no Brasil,14 tende ainda a aumentar, com a procura das tecnologias reprodutivas por mulheres solteiras, visando a conquista da maternidade solo. Como indicado por Frasquet Aira (2018) “Aquelas que planejam a maternidade como um projeto individual, isto é, assumindo desde o início que estarão sozinhas, aumentam os números da monoparentalidade feminina de um lugar diferente do tradicional, ou seja, das que decidem separar-se dos pais de seus filhos, ou das que foram abandonadas por eles”15 (Frasquet Aira 2018, 6) e das que perderam os parceiros para a doença ou a morte, poderíamos acrescentar. De fato, a expansão desse tipo de família é um fenômeno - quase se pode dizer - em expansão internacional; são muitos os países em que ele ocorre e está em crescimento.
A escolha da maternidade sem parceria, em que a mulher se propõe ter filho/a/s, sem um/a companheiro/a ou cônjuge, para a geração, sustento e educação de crianças, também chamada de “produção independente” ou “projeto individual e autônomo” (Giallorenzi 2018, 2) deriva, de um lado, da dificuldade de encontrar um parceiro que encare o desafio da paternidade em termos igualitários e, de outro, da percepção feminina de que essa presença é dispensável, na medida em que as mulheres, mesmo reconhecendo as dificuldades envolvidas nessa decisão, são capazes de, sozinhas, parir, educar e sustentar uma criança. O importante motivo apresentado para essa busca, o sentimento presente na decisão pelo caminho da maternidade solo, foi o apelo da maternidade, a motivação para tornar-se mãe, o desejo de ter seu/sua(s) próprio/a/s filho/a/s. Trata-se, portanto, da reivindicação de “uma nova maternidade, desvinculada da conjugalidade” (Frasquet Aira 2018, 2),16 que altera o processo de reprodução, na medida em que possibilita a ocorrência da gravidez sem relação sexual, com a utilização do material genético de terceiros (Ramírez Gálvez 2009; Watari 2021).
A evolução das tecnologias não tornou os tratamentos menos dolorosos para as mulheres, incluindo aquelas de maior renda; os procedimentos presentes na busca da fertilidade envolvem altas exigências físicas e emocionais, aplicação expressiva de doses hormonais, muita dor e mudanças corporais, entre outras. Aliás, quando se trata da reprodução biológica, não existem dúvidas sobre quem é mais atingido pelas manipulações médico-cirúrgicas; são os corpos femininos os mais atingidos e de várias maneiras (Corrêa e Loyola 2015, 758).17 Isso, entretanto, não tem impedido a busca da concepção por mulheres solteiras.
Ao mesmo tempo, é reconhecido o alto valor monetário que está presente na decisão da fecundação pelas tecnologias de reprodução, pois “(...)estudos em diversas localidades demonstram que as mães solo por escolha, de modo geral, estão financeiramente bem preparadas para os custos requeridos pela maternidade, possuem educação formal e forte rede social de apoio (...)” (cf. Watari 2021, 32).
São muitos os questionamentos feitos sobre essa decisão. Apresentam as mulheres que seguem esse percurso como egoístas, negadoras de um pai para seu filho ou da paternidade para um possível companheiro, ou, ainda,
como símbolo das transformações familiares, como sinal da autonomia das mulheres nas sociedades ocidentais, mas também como síntese dos processos de individualização e encolhimento da família nas sociedades ocidentais contemporâneas. (...) de forma implícita, é assumido que as mães solteiras o são porque preferem não se relacionar (tornaram-se egoístas, pois já não procuram marido ou deixam de esperar que um parceiro apareça para serem mães), reeditando o argumento de que é a autonomia feminina que está dissolvendo a família. (Frasquet Aira 2018, 5)18
Não há atualmente, no Brasil, uma legislação que incida especialmente sobre o tema, regulamentando o uso das técnicas de reprodução humana assistida (situação já mencionada); há, porém, vários Projetos de Lei a respeito (ainda não aprovados).19 Esse fato tem gerado diversos questionamentos quanto ao uso das técnicas de Reprodução Assistida, principalmente com relação a quem as utiliza. É posta em dúvida a legitimidade de uma pessoa solteira recorrer a esses procedimentos para levar a cabo um projeto parental individual, de “produção independente”, ainda que este seja um direito que lhe é possibilitado legalmente, no Brasil, mesmo que, como atesta a passagem abaixo, a Lei em questão não seja específica (cf. Silva Netto, Dantas e Ferraz 2018):
quando se verificam as disposições da Lei n. 9.263/1996, conhecida como a Lei de Planejamento Familiar, percebe-se que o art. 2º da referida norma atribui a titularidade desse direito também às pessoas individualmente consideradas: “Para fins desta Lei, entendese planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal. (Brasil 1996, grifo nosso, apudSilva Netto et al. 2018, 1118)
Nem sempre as ideias de liberdade e autodeterminação envolvidas na escolha pela maternidade solo têm sua realização na prática, como no caso abaixo:
Às vezes eu trabalho 24 horas seguidas e eu chego em casa e eu não tenho pique para dar atenção [ao filho], porque às vezes eu estou com ele mas não estou, porque eu estou tão cansada, tão lesada que, eu fico ali do lado dele mas, eu não estou dando atenção para ele (Dafne, 35 anos, médica, reside com a mãe e o/a filho/a). (Watari 2021, 105)
É possível admirar a coragem, a determinação e autoconfiança das mulheres que decidiram por esse caminho. Entretanto, às vezes, parece que talvez seja necessária reflexão a respeito, pelo menos em alguns pontos. É possível afirmar que a opção pela “maternidade solo” sempre deriva de decisões maduras? As mulheres sozinhas que decidem ter filho e dizem que buscam tomar “decisões livres e autônomas” estão sempre praticando isso?
Essas perguntas ocorreram depois da leitura, em uma dissertação de mestrado, das respostas dadas, pelas entrevistadas, à autora do trabalho. (cf. Watari 2021). Abaixo duas respostas que despertam curiosidade:
“Eu acho que ser mãe solo por produção independente é mostrar que você é um mulherão (...), sabe? Que você banca e pega as rédeas da vida. E você se sente muito poderosa de não precisar esperar por ninguém ou depender de uma outra pessoa para realizar um sonho. Né, bancar tudo sozinha, criar um filho sozinha, dar conta de tudo e educar. Então eu acho que ser mãe solo me dá uma sensação de fortaleza, de poder” (Judith, 43 anos, 1 filho, jornalista). (Watari 2021, 103, grifos nossos)20
Mas eu decidi que eu vou escolher o bebê e ele é meu bebê, então... Não tem essa coisa de ficar dividindo. [...] Se algum dia eu precisar de alguma coisa, tem amigos que poderiam me ajudar, mas não buscar a responsabilidade com a pessoa que me doou e tudo mais. Até porque eu sou muito... eu acho que eu sou um pouco individualista. (Caterine, 40 anos, secretária executiva, foi adotada, vive sozinha). (Idem, ibidem, 79)
Sem dúvida, a ideia de “fortaleza” e de “poder” é relativa ao auto centramento, e vincula-se às noções de autonomia e liberdade; referem-se ao processo de individualização, cujas antinomias já foram visualizadas pelos autores clássicos, entre os quais Émile Durkheim, ao realçar, de várias formas, os tipos de indivíduos que derivaram da emergência da sociedade dividida pelo trabalho (Durkheim 1967, 1969 e 1974) e Georg Simmel, que constatou as diferenças de tipos humanos característicos da modernidade (Simmel 1977 e 1986), chamada, por Beck (1992) e Beck-Gernsheim (1995 e 2001), de “primeira modernidade”. Entretanto, comentando o que ocorre nos últimos trinta anos, no que entende por “segunda modernidade”, Beck diz: “há um grande mal-entendido relacionado com a palavra ‘individualização’, que deriva de igualá-la com [consciência, identidade: subjetividade]. Muitas pessoas associam “individualização” com individuação (= personalização = singularidade = emancipação). Isso pode ser verdade. Mas talvez o oposto também seja verdadeiro” (Beck 1992, 128, grifos nossos).21 Quando se pensa nesse “oposto”, a palavra que emerge imediatamente é individualismo. Colocando uma imagem que traduz o seu pensamento a respeito, esse autor apresenta a individualização atual como sendo a “a existência coletiva estandardizada de uma massa de eremitas isolados”. (cf. Beck 1992, 131-132).
Essa percepção faz retornar a reflexão feita quando da discussão sobre as tecnologias: também aqui sempre é realçado que são as condições sociais de vida que fazem aflorar os termos em que o processo de individualização se configura em cada situação. É possível que, em circunstâncias específicas, emerjam as condições para uma verdadeira individuação, mas, com grande frequência são as facetas individualistas que afloram. Pensando no tema em destaque - a decisão de mulheres solteiras pela maternidade, com a utilização de tecnologias de reprodução -, é possível questionar se em todas as resoluções desse tipo estão presentes a autonomia, a força e a reflexão responsável ou são outros os elementos definidores dessa decisão. É bem verdade que questionamento semelhante pode ser invocado em relação a outros contextos de parentalidade, mas neste momento foi a monoparentalidade feminina que o fez emergir. Em outras palavras, se a extensão às mulheres solteiras da possibilidade da utilização das TRA aumentou sua possibilidade de escolha e autodeterminação, não é possível dar por suposto que isso sempre ocorra.
Conclusão
A expansão das TRA nas primeiras décadas do século XXI foi marcada por modificações significativas em relação ao seu público-alvo. Inicialmente voltadas para casais com problemas de infertilidade, tornaram-se rapidamente instrumentos de realização de distintos projetos de parentalidade, abrangendo pessoas solteiras e casais homossexuais. De acordo com as evidências exploradas neste artigo, tais modificações decorreram das “demandas da sociedade”, isto é, da pressão para que as tecnologias disponíveis fossem acessíveis a todos que assim desejassem, o que ficou também evidente nas constantes alterações das resoluções que dispõem sobre o assunto no país.
Do ponto de vista da relação entre ciência, tecnologia e sociedade, é possível afirmar que o desenvolvimento científico e tecnológico não é movido unicamente pela lógica interna de um progresso contínuo e autorreferenciado em que os agentes sociais são objetos passivos de novas descobertas ou invenções. Como atesta o aumento da monoparentalidade feminina ou das parentalidades LGBTQI+, tecnologias não são neutras e podem ser postas a serviço da configuração de diferentes famílias, histórias e visões de mundo. Neste caso, desafiam concepções, valores e práticas sedimentadas na sociedade e em seus grupos específicos, dando outra finalidade àqueles instrumentos forjados segundo o princípio da neutralidade axiomática da ciência.
Interessante notar que ao permitir o surgimento de outras configurações familiares, as TRA puderam ser entendidas como meio de afirmação da autonomia, da individualidade, da independência e da diversidade. Entretanto, ainda que tais características estejam associadas ao ideal da “primeira modernidade” (Beck 1992; Beck-Gernsheim 1995 e 2001), revelam-se outras ainda mais marcantes de nossa “modernidade tardia” ou “segunda modernidade” (cf. Beck 1992).
Não se deve desprezar ou tomar como residual o fato de que a monoparentalidade, caso aqui explorado, assim como várias dimensões das parentalidades constituídas com o auxílio das TRA, apresentem constantemente, como vantagens para seus sujeitos, a possibilidade de “escolha”, isto é, a independência de constrangimentos ou vínculos limitantes para a consecução da família e prole idealizadas. Do mesmo modo, é preciso considerar como à “liberdade de escolha” está associada a “outra face da moeda”, isto é, o individualismo, a concorrência, o isolamento e o egoísmo. É neste sentido que são reafirmadas as tendências de uma “modernidade tardia” em que o abandono de categorias como “classe social”, por exemplo, que remetem à localização e ao pertencimento dos indivíduos no universo social, dão lugar a noção de risco. Este, ainda que possa ser assumido coletivamente, é majoritariamente experimentado como individual, isto é, como realidade acima de tudo individualizada, e que permite operar tanto o isolamento do indivíduo como a imediata responsabilização pelas escolhas, boas ou más, que efetuou (cf. Beck, idem, ibidem; Dardot e Laval 2016).
Neste ponto, tecnologias, aparatos tecnológicos, aparelhos e aplicativos misturam-se cada vez mais às escolhas individuais, de tal modo que a crítica à sociedade de consumo, aos algoritmos, ao neoliberalismo ou às redes sociais, às novas configurações familiares etc., aparece indistintamente como crítica à tecnologia per se. Para evitar essa armadilha, talvez seja prudente recorrer ao modo como às TRA foram apropriadas e direcionadas por seus especialistas e usuários para usos cada vez mais ampliados. É na compreensão da ambivalência desses usos que devemos localizar também a ambivalência dos valores e concepções que são postos em marcha a partir do desenvolvimento científico e tecnológico.