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Investigación bibliotecológica

versión On-line ISSN 2448-8321versión impresa ISSN 0187-358X

Investig. bibl vol.37 no.97 Ciudad de México oct./dic. 2023  Epub 02-Ago-2024

https://doi.org/10.22201/iibi.24488321xe.2023.97.58795 

Artigos

Uso da Tecnologia Digital pelos povos indígenas no Brasil: um estudo na Aldeia Kaingang

Uso de la tecnología digital por los pueblos indígenas de Brasil: un estudio en la Aldea de Kaingang

Use of Digital Technology by indigenous peoples in Brazil: a study in Kaingang Village

Claudia Carmem Baggio* 

Edgar Bisset-Alvarez* 

Edna Karina da Silva Lira* 

Paola Carvalho da Silveira* 

* Programa de Pós-graduação em Ciência da Informaçã, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil ccbaggio2021@gmail.com edgar.bisset@ufsc.br Liraa.karina@gmail.com paolascsilveira@gmail.com


RESUMO

Ao pesquisar sobre a tecnologia digital e os povos indígenas Kaingang, pôde-se compreender a importância de fomentar mecanismos para dar acesso e visibilidade à documentação (técnica e científica) dos povos originários. Nesta pesquisa, tem-se como objetivo geral investigar sobre o uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) pelos membros da Aldeia Kaingang Três Soitas, para o acesso à informação. A Aldeia está localizada na cidade de Santa Maria-RS. A metodologia adotada foi a pesquisa descritiva e exploratória, desenvolvida a partir da pesquisa bibliográfica e documental, que visa um maior conhecimento sobre a temática dos povos indígenas e os desafios do acesso às TIC. A análise dos resultados permitiu identificar as diferentes formas de uso das tecnologias digitais, nas quais foram apontadas como o avanço da tecnologia afeta o cotidiano do povo indígena Kaingang. A conclusão constatou que as tecnologias digitais são utilizadas como prática pedagógica muito presentes no cotidiano da escola, e como instrumento de luta pela efetivação dos direitos indígenas e de divulgação da sua cultura, pois, por meio das TIC, as próprias comunidades indígenas podem se expressar e contar a sua história, além de preservar sua memória e identidade, respeitando sua diversidade.

Palavras-chave: Tecnologias Digitais; Povos Indígenas; Aldeia Kaingang Três Soitas; Inclusão Digital

RESUMEN

Al investigar la tecnología digital y los pueblos indígenas Kaingang, se pudo comprender la importancia de promover mecanismos para dar acceso y visibilidad a la documentación (técnica y científica) de los pueblos originarios. En esta investigación, el objetivo general es investigar el uso de las Tecnologías de la Información y la Comunicación (TIC) por parte de los integrantes de Aldeia Kaingang Três Soitas, para el acceso a la información. La Villa está ubicada en la ciudad de Santa Maria-RS. La metodología adoptada fue una investigación descriptiva y exploratoria, desarrollada a partir de una investigación bibliográfica y documental que apunta a un mayor conocimiento sobre la temática de los pueblos indígenas y los desafíos del acceso a las TIC. El análisis de los resultados permitió identificar las diferentes formas de uso de las tecnologías digitales, en las que se señaló cómo el avance de la tecnología afecta la vida cotidiana del pueblo indígena Kaingang. La conclusión encontró que las tecnologías digitales son utilizadas como una práctica pedagógica muy presente en el día a día de la escuela, y también como un instrumento de lucha por la realización de los derechos indígenas y la difusión de su cultura, porque a través de las TIC, las propias comunidades indígenas puedan expresarse y contar su historia, además de preservar su memoria e identidad, respetando su diversidad.

Palabras clave: Tecnologías Digitales; Pueblos Indígenas; Aldea Kaingang Três Soitas; Inclusión Digital

ABSTRACT

When researching digital technology and the Kaingang indigenous peoples, it was possible to understand the importance of promoting mechanisms to provide access and visibility to the documentation (technical and scientific) of the original peoples. In this research, the general objective is to investigate the use of Information and Communication Technologies (ICT) by members of Aldeia Kaingang Três Soitas, to access information. The Village is located in the city of Santa Maria-RS. The methodology adopted was descriptive and exploratory research, developed from bibliographic and documentary research, which aims to gain greater knowledge on the topic of indigenous peoples and the challenges of access to TICs. The analysis of the results made it possible to identify the different ways of using digital technologies, which highlighted how the advancement of technology affects the daily lives of the Kaingang indigenous people. The conclusion found that digital technologies are used as a pedagogical practice that is very present in the daily life of the school, and also as an instrument to fight for the realization of indigenous rights and the dissemination of their culture, as through TICs the indigenous communities themselves can express themselves and tell its history, in addition to preserving its memory and identity, respecting its diversity.

Keywords: Digital Technologies; Indigenous Peoples; Kaingang Village Três Soitas; Digital Inclusion

INTRODUÇÃO

A constituição do povo indígena como uma minoria no Brasil deve-se às políticas de extermínio e, posteriormente, de integracionismo dos povos indígenas pelo estado brasileiro, desde a chegada dos portugueses no Brasil até o período da Constituição de 1988. As consequências dessas ações resultaram na dizimação física (genocídio) e na violência cultural (etnocídio), dos povos originários, ocasionando o extermínio desses povos e de suas línguas (Silva 2018).

Após quatrocentos anos do uso dessa política de extermínio, que reduziu drasticamente a população indígena, segundo Belfort (2005), o Estado brasileiro deu início a uma política integracionista, que visava a incorporação dos indígenas na sociedade nacional, e para isso utilizou-se da educação formal para atingir este objetivo. Nesse período, a escola era reconhecida e utilizada para a «civilização» dos indígenas, buscando a sua capacitação como «trabalhadores nacionais», sendo o foco principal o ensino da língua portuguesa e de noções de matemática para o comércio e as técnicas de agropecuária.

As tecnologias digitais impulsionam a educação para uma perspectiva mais diversificada (Bonilla y Pretto 2011). Ao pensar no contexto escolar, o uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) pode contribuir significativamente na aprendizagem dos alunos (Silva 2018), o que provoca a necessidade de refletir sobre a importância da inclusão das TIC no processo educacional dos povos indígenas, que em todo o tempo estiveram para além do acesso ao conhecimento.

Nesse sentido, o presente estudo busca dar respostas à seguinte pergunta da pesquisa: como o uso das Tecnologias da Informação e Comunicação podem ajudar os membros da Comunidade Indígena Kaingang Três Soitas, na região de Santa Maria/Rio Grande do Sul, Brasil, no acesso à informação?

Para dar resposta à pergunta acima declarada desenha-se o seguinte objetivo central do estudo: Investigar sobre o uso das Tecnologias da Informação e Comunicação pelos membros da Aldeia Kaingang Três Soitas para o acesso à informação. Nesse sentido, indaga-se sobre as diferentes formas de uso das tecnologias digitais no cotidiano dos moradores da Aldeia, assim como as repercussões do incentivo dos professores, que atuam na escola da Aldeia, para o uso dessas ferramentas em sala de aula.

Os povos indígenas os Brasil

A mobilização dos povos indígenas, desde a década de 1970, deriva nas políticas e ações que tiveram o seu propósito alcançado com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988 (Almeida 2012). Esta reconheceu a identificação da sociedade brasileira como pluriétnica e multicultural.

Nesse período foi assegurado o direito à terra como base para a conquista de todos os outros direitos dos povos indígenas. Dá-se início à consolidação de uma escola indígena específica e diferenciada. A Constituição Federal de 1988, reconheceu aos indígenas o direito à «utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem» (Brasil 1988, art. 210.º, § 2.º). Esse novo formato de escola se compromete a romper com o modelo anterior, que tinha o objetivo de assimilá-los em favor de uma educação integral. A partir desse momento, é utilizada uma metodologia, materiais e recursos específicos para formar a pessoa enquanto pertencente a uma comunidade, diferenciando-se do projeto colonizador (Bergamaschi, Zen y Xavier 2007).

Os povos indígenas assumiram a escola como uma instituição importante tanto para o desenvolvimento (denominado por eles como «formadora de guerreiros») quanto para justificar a resistência apoiada em suas lutas (Bonin 2012). A autora considera que a escola indígena passa a ser vista e considerada como comunitária, bilíngue/multilíngue, intercultural, territorializada, específica e diferenciada, intencionando o reconhecimento e a preservação da diversidade cultural e linguística de cada comunidade.

Desde a Constituição Brasileira de 1988 (Brasil 1988), as comunidades indígenas contam com o amparo legal que lhes assegura um tratamento diferenciado. Todavia, a falta de políticas públicas concretas acarreta impasses quanto à efetividade dos direitos das comunidades indígenas, pois a maioria delas se apresenta em situação de vulnerabilidade social, pela ausência ou precariedade no atendimento de infraestrutura, saúde, educação, segurança, entre outros direitos básicos (Freitas 2012).

Atualmente, quando se discute direitos - e principalmente direitos humanos -, é importante citar o acesso à tecnologia e a inclusão digital, como ferramenta de acesso à informação ou como direito à comunicação, como apontado no Art. 19.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU 1948, 4).

O povo Kaingang representa um dos maiores povos indígenas do Brasil. De acordo com último censo de 2010, são 37 470 indivíduos no total, estando localizados nos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Sua língua dá nome à etnia que integra o tronco linguístico Macro-Jê. Utilizou-se o censo de 2010 pois até a data desta pesquisa os dados ainda não estavam atualizados no site do IBGE (IBGE 2010).

O grupo mantém um convênio com o governo federal, este é firmado por meio do Instituto Kaingang (INKA) e o Ministério da Cultura, em apoio ao Ponto de Cultura Centro Cultural Kaingáng Jãre. O Instituto alicerçou suas atividades em manter, fortalecer e recriar a identidade da cultura Kaingang (Kaingáng 2020).

Susana Fakój Kaingang considera que os primeiros povos Kaingang eram formados por Tope (como é denominado Deus, na língua Kaingang), cuidavam da terra e repassavam seus costumes à frente. Esses povos passaram por uma política de inserção na sociedade com a instituição da escola nas Aldeias. Em 1960, a língua kaingang ganha uma ortografia oficial e, no mesmo ano, em parceria com o Instituto Kaingang, inicia-se um curso de capacitação para monitores, surgindo assim o primeiro programa de educação Kaingang (UFSC 2018).

As tecnologias e a inclusão digital dos povos indígenas

A inclusão dos povos indígenas no mundo digital pode oferecer diversos instrumentos para que eles possam transformar a realidade de suas Aldeias, assim como realizar possíveis desenvolvimentos do seu território (Arruda 2022). De acordo com o último Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população indígena brasileira é formada por aproximadamente 1 108 970 pessoas, de 305 povos, falantes de 274 línguas (IBGE 2010).

A precariedade do acesso às Aldeias pelas estradas, por exemplo, repete-se na dificuldade de acesso à tecnologia digital para esses povos. A falta de estrutura e equipamentos - tais como redes de comunicação, computadores, celulares, câmeras, internet para o uso diário dos habitantes dessas comunidades - afeta de forma considerável o processo educativo das crianças, jovens e adultos das Aldeias, pois muitas sequer têm sinal de wi-fi ou acesso à internet e às redes sociais.

Apesar das dificuldades de acesso, quando as novas tecnologias chegam nas terras indígenas, desencadeiam muitas mudanças nestas comunidades e no modo de socialização com a cultura não indígena. De acordo com Lana (2021), a dinâmica das comunidades indígenas e suas tradições foram afetadas com a expansão da informação. O acesso à internet, as redes sociais e os celulares despertaram nos jovens usuários «a vontade e a criatividade de levar a valorização da cultura indígena para os meios digitais» (Lana 2021, 1).

A tecnologia digital revolucionou todos os parâmetros da sociedade a partir de seu surgimento. Vilches (2002) considera que a tecnologia digital trouxe o benefício do acesso, mas também intensificou a desigualdade. Cabral Filho (2006) discute que é inviável que se apliquem tecnologias digitais na sociedade sem que exista um planejamento mais amplo, de forma que envolva todos os setores, e que implementar o cenário tecnológico deve estar acompanhado de ações governamentais para que se relacionem empresas e a sociedade civil para o bom resultado. Nesse contexto, as novas tecnologias nas comunidades indígenas trouxeram muitos desafios, seja pela rapidez das informações ou pela falta de esclarecimentos sobre seus usos, benefícios e malefícios.

Para Costa, Duqueviz e Pedrosa (2015), as tecnologias digitais são instrumentos e mediadores da interação humana e, como tais, têm colaborado para mudanças em algumas práticas sociais, tais como a comunicação, a socialização, a organização, a mobilização e a aprendizagem. Lalueza, Crespo e Campos (2010, 51) afirmam que a tecnologia contribui para orientar o desenvolvimento humano, pois opera na zona de desenvolvimento proximal de cada indivíduo por meio da internalização das habilidades cognitivas requeridas pelos sistemas de ferramentas correspondentes a cada momento histórico. Assim, cada cultura se caracteriza por gerar contextos de atividades mediados por sistemas de ferramentas, os quais promovem práticas que supõem maneiras particulares de pensar e de organizar a mente.

Conforme a fala de Diakara, pagé, antropólogo e escritor indígena entrevistado por Lana (2021, 1), «o fato de as novas tecnologias terem chegado aos povos originários não faz deles menos indígenas [...] a cultura sempre evolui e se movimenta conforme o tempo e o espaço». As novas tecnologias são utilizadas, por algumas comunidades, como instrumentos para educação, pesquisa e divulgação de sua cultura.

Benedetti (2020) chama a atenção para o interesse que os povos indígenas têm no uso de tecnologias da sociedade ocidental contemporânea, principalmente a telefonia móvel e a internet, potencializando o fluxo de informações e a comunicação entre os indígenas, constituindo importantes redes interculturais.

De um lado, o uso das TIC por indígenas desperta curiosidade, como pode ser observado na matéria sobre a «Oca Digital» montada durante os Jogos Mundiais Indígenas, realizados na capital do estado de Tocantins, no ano de 2015 (Tenório 2015). Por outro lado, o uso de dispositivos de telefonia móvel e da internet tem sido problematizado no senso comum, sob a alegação de aculturação, pois os indígenas atuais teriam perdido sua identidade por usarem roupas e telefone celular.

De acordo com Lana (2021), a percepção dos jovens indígenas é de que as novas tecnologias impactam o seu cotidiano, tornando a juventude mais ociosa, dificultando também a transmissão da língua e da oralidade, porém, aos poucos, está havendo uma conscientização maior no uso da internet nas Aldeias. Por outro lado, defendem que a inclusão digital tem uma importância fundamental para o ativismo dos indígenas, facilitando denúncias de invasão das terras, barcos pesqueiros, hidrelétricas, entre outras explorações ilegais em terras indígenas.

Fausto, Franchetto e Heckenberger (2008, 76) comentam que, em alguns contextos indígenas, foi apenas recentemente - «ao mesmo tempo que aprenderam a ler e escrever» - que os indígenas começaram a tomar a tecnologia em suas mãos. As tecnologias digitais configuram-se, então, como cenários de trocas interculturais que revelam a contradição entre tradição e modernidade.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Os pressupostos teórico-metodológicos da pesquisa foram pautados em uma abordagem qualitativa. Realizou-se a análise de registros textuais em busca dos fenômenos estudados, que neste estudo compreendem as tecnologias digitais e as narrativas da comunidade indígena da etnia Kaingang, da cidade de Santa Maria, RS.

Esta pesquisa configura-se como exploratória, apresentando um estudo de caso, pois envolve o estudo mais aprofundado de um objeto, de maneira a permitir seu amplo detalhamento (Yin 2004).

A pesquisa bibliográfica e documental também foi utilizada na coleta de dados primários e secundários. A partir da revisão de literatura sobre as tecnologias digitais e sobre a cultura Kaingang, foram descritos os aspectos necessários para contextualizar o tema.

Como instrumento de coleta de dados, foi realizada uma entrevista estruturada que, segundo Virgillito (2018, 10), «combina perguntas de forma a permitir que os participantes discorram e verbalizem sobre seus pensamentos, tendências e reflexões acerca do fenômeno estudado». Buscou-se aplicar as mesmas perguntas aos diferentes atores dentro da comunidade Kaingang, as respostas foram comparadas e analisadas posteriormente à luz do referencial teórico.

Para identificar as iniciativas de acesso e uso das tecnologias digitais pelos indígenas, foi elaborado uma lista de checagem no formato de amostra (roteiro de entrevista contendo 10 perguntas) e foi realizado um estudo piloto, aplicando a entrevista a um professor da Aldeia, com o objetivo de testar a compreensão das perguntas e adequar a linguagem ao público. Após esse passo, foram realizadas as entrevistas definitivas.

As entrevistas foram realizadas com a gestora da escola, com o cacique da Aldeia, com um estudante, com três professores e com três moradores da Aldeia de diferentes profissões, totalizando nove entrevistados. Foi uma amostra intencional que representa os diferentes perfis que compõem a população que faz parte deste estudo, buscando contemplar um público que pudesse narrar sobre a inclusão das tecnologias digitais na educação escolar e no cotidiano da Aldeia.

Tendo em vista a utilização de entrevista estruturada para um grupo específico, nos caminhos metodológicos da presente pesquisa, teve-se como base a determinação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), quanto aos estudos que envolvam seres humanos (direta ou indiretamente), de submeter à apreciação de um Comitê de Ética em Pesquisa (CEPSH).

A partir da aprovação (Apêndice A), seguiu-se para as próximas etapas da pesquisa. A entrevista foi realizada seguindo um roteiro pré-estabelecido (Apêndice B), a fim de buscar respostas aos objetivos deste estudo.

As respostas foram coletadas individualmente, no mês de agosto de 2022, em um encontro entre uma das pesquisadoras e os participantes da pesquisa, no interior da Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Augusto Ope da Silva, localizada na Aldeia Três Soitas, em Santa Maria, RS, com prévio agendamento, autorizado pelo cacique e pela direção da escola.

Após a coleta de dados, os áudios foram repassados ao aplicativo denominado Transkriptor para serem convertidos em texto e, posteriormente, realizar a análise das falas.

ANÁLISE DOS RESULTADOS

Para apresentar os dados coletados neste trabalho, os entrevistados foram nomeados por meio de algarismos arábicos.

Durante a análise, os dados foram organizados por categorias, de acordo com os temas mencionados pelos participantes da pesquisa. O eixo central do trabalho relaciona-se entre a tecnologia e a cultura indígena, porém, como a cultura indígena permeia várias nuances, dividiu-se a apresentação dos dados em cinco categorias:

  1. A tecnologia e o contexto social indígena;

  2. A tecnologia e o cotidiano indígena;

  3. A tecnologia e a educação escolar indígena;

  4. A tecnologia e a cultura/memória/identidade indígenas;

  5. A tecnologia e a luta pelos direitos indígenas.

Para a análise inicial, fez-se o diálogo sobre gênero, idade e profissão dos entrevistados, buscando a identificação dos mesmos. Constatou-se que 1,56 % dos respondentes identificaram-se como mulheres e 44 % como homens. Quanto à idade, os participantes foram assim identificados: um com 18 anos, um com 22 anos, dois com 29 anos, dois com 33 anos, um com 39 anos, um com 40 anos e um com 56 anos. Entre os entrevistados, foi possível visualizar a atribuição de cada participante, sendo uma gestora de escola, um cacique, dois artesãos, um auxiliar de limpeza, dois estudantes e um agente indígena de saneamento, sendo que alguns são trabalhadores e estudantes.

A tecnologia e o contexto social indígena

É importante compreender de que modo os indígenas percebem a tecnologia no seu contexto comunitário. Um ponto importante para entender a compreensão do mundo para os indígenas é o entendimento da sua organização social, onde o coletivo se sobrepõe ao individual. Como referido pelo entrevistado três, as lideranças abordam as questões indígenas de forma coletiva, como a luta pelos direitos dos Kaingang, onde buscam tais direitos, inicialmente, por meio dos governantes. Para o entrevistado quatro, a união dos moradores da Aldeia e das lideranças também é importante para discussões sociais, como a luta para ter acesso à luz na localidade, além de questões culturais apontadas pelo entrevistado cinco, como o artesanato, as armadilhas e as comidas típicas.

Como se observa nas respostas dos entrevistados, e como nos diz Luciano (2006), toda a organização social, cultural e econômica de um povo indígena tem conexão com uma cosmologia organizada e expressa por meio de mitos e de ritos. A organização social do povo Kaingang sobrevém de duas metades exogâmicas, Kamé e Kanhru, que ao mesmo tempo se opõem e se complementam. Como afirma Guisso (2017, 18): «No meu povo, as metades Kamé e Kanhru, pertencentes a lados opostos, distintos, com características bem definidas, desempenham papéis ideais de amizade, ajuda mútua, cooperação e complementaridade». Neste sentido, a coletividade e a reciprocidade são valores fortes na cultura Kaingang.

Um aspecto interessante a ser considerado é a compreensão do importante papel da resistência cultural indígena, quase como se fosse uma condição de estar presente na sociedade hoje, resistindo.

Segundo o entrevistado dois, a luta indígena, principalmente a Kaingang, é uma luta diária, e embora os direitos estejam presentes no «papel», não são realizados na prática. Para o entrevistado sete, o indígena, desde criança, conhece a luta dos povos indígenas, na qual vai se inserindo aos poucos e na sua própria realidade, sendo ela realizada de forma espontânea, principalmente na luta cultural e no processo pelo reconhecimento do povo Kaingang. O entrevistado três vê a luta Kaingang como uma forma de garantir seus direitos, seja da comunidade ou de modo individual, ou seja, de cada morador. Para ele, é necessário ter ajuda dos governantes para o atendimento dessa reivindicação. Na visão do entrevistado nove, a Universidade atua como agente para os movimentos e palestras dos estudantes e lideranças indígenas, principalmente para debater sobre o avanço das lutas com os caciques e com a maioria do povo.

Autores como Pinto e Santos (2022) afirmam que a resistência atual indígena está ligada à luta pelo direito ao território demarcado, juntamente com a proteção da biodiversidade, e é nos coletivos indígenas que eles encontram força para lutar contra a violação de seus direitos, nas esferas física e simbólica. Também «reconhece-se a potência da resistência, de luta constante, e a persistência pelo direito de viverem em consonância com seus modelos econômico, educacional, cultural e cosmológico fundamentados na tradição» (Pinto; Santos 2022, 4).

A dificuldade de acesso às tecnologias está denunciada na fala dos participantes da entrevista. Para o entrevistado dois, embora o acesso esteja mais disponível por estar perto da cidade, ainda existem implicações sobre o uso das tecnologias. Ele considera que a parte financeira se torna um empecilho para o acesso à internet. A escola, por sua vez, permite o acesso à internet, ajudando a comunidade, embora, na sua visão, o acesso seja ainda de grande dificuldade nas Aldeias indígenas.

O entrevistado oito, assim como os entrevistados cinco e nove, comentam a disponibilidade da internet apenas na escola, principalmente quando acabam os dados móveis do telefone celular, o que também é confirmado pelo entrevistado quatro. O entrevistado um aborda que, embora a internet, por muitos, seja considerada «simples», a realidade dos indígenas é outra, pois nem todos têm acesso à internet ou à televisão, mas, se tivessem, seria um ganho para a população, principalmente no aspecto cultural, valorizando e preservando sua cultura.

Pode-se observar pelas respostas que o acesso à internet na Aldeia está condicionado aos recursos financeiros individuais, à compra dos serviços de internet, com exceção do sinal wi-fi, disponível da escola. O único lugar que oferece o acesso às tecnologias por meio de políticas públicas é a escola. Este é um elemento importante para a reflexão, mas se percebe que é um problema que atinge não somente as populações indígenas, pois todo cidadão brasileiro que não consegue pagar a internet fica excluído, em uma sociedade que a cada dia se torna mais dependente das tecnologias digitais. Neste sentido, Mattos aponta que:

O modo como tem sucedido a introdução das TICs nas sociedades contemporâneas tem acentuado o caráter assimétrico e socialmente excludente demonstrado pelo atual processo de globalização econômica. (2013, 1)

E no Brasil, conforme o autor, devido às desigualdades sociais, essas assimetrias se manifestam de modo ainda mais enfático.

A Tecnologia e o cotidiano indígena

Os indígenas apontam as mudanças que vêm ocorrendo na rotina após a chegada das tecnologias digitais.

Para o entrevistado sete, o acesso está chegando aos poucos na comunidade, principalmente por meio da escola, e ele vê a instituição como uma porta de entrada às novas informações. As tecnologias são utilizadas, entre muitas formas, como meio para que diferentes povos indígenas se comuniquem entre si. Este fato também foi exposto pelo entrevistado quatro, que ainda pontua a comunicação entre parentes, na qual as tecnologias permitem esse modelo de «encontros virtuais».

Ao abordar o dia a dia dos Kaingangs, com o uso das tecnologias, a melhora na Aldeia é visível pelos entrevistados. Para os entrevistados nove e seis, o uso das tecnologias digitais facilitou a comunicação, assim como permitiu a resolução de problemas que antes tinham a necessidade de serem resolvidos no formato presencial - como o pagamento de contas, também abordado pelo entrevistado oito -, além da comunicação entre Aldeias, como já exposto por outros entrevistados.

Na visão do entrevistado um, a internet possibilita também que os Kaingang utilizem sites que os auxiliem na busca de benefícios sociais, como o acesso ao Portal Gov.br, que disponibiliza serviços governamentais para a população, desburocratizando serviços que antes eram difíceis de serem acessados, principalmente para quem mora longe dos centros urbanos.

A viabilização da comunicação e de alguns serviços públicos digitais é um fator positivo para a unanimidade dos entrevistados. Aqui, a escola aparece como uma mediadora desse conhecimento digital, ensinando os indígenas que ainda não sabem como acessar esses serviços. Porém há sempre o alerta e a lembrança daqueles que não têm acesso aos equipamentos ou ao sinal de internet.

A maioria dos entrevistados acredita que há pouca influência das tecnologias na cultura indígena. Para o entrevistado sete, a influência é baixa, argumentando que o seu uso é para busca de notícias e comunicação. Para os entrevistados nove e quatro não há interferência da tecnologia na cultura, mas utiliza-se da internet para difusão da mesma, não considerando a tecnologia um empecilho para o uso da língua materna, falada pela comunidade.

O entrevistado cinco aborda que a língua Kaingang continua sendo utilizada, mas que «os povos estão menos índios» com a influência das tecnologias digitais. Para o entrevistado um, as tecnologias interferem no acesso às outras formas de visão de mundo, embora sua cultura ainda seja bastante forte. O entrevistado ainda refuta os outros participantes acima sobre a língua falada, permitindo a compreensão de que, na Aldeia, 100 % da comunidade é falante da língua kaingang. O entrevistado seis também vê influência das tecnologias na Aldeia, mas principalmente no modo de ver o que está acontecendo no restante da sociedade, principalmente para auxiliar no seu cotidiano.

Para a maioria dos entrevistados, a internet não interfere muito na cultura, concordando com Guisso (2017, 03) que diz: «nessa história entre passado e presente, é essencial a conservação da identidade étnica e cultural do povo Kaingang; por isso, defendo que transitar em outras culturas não nos faz deixar de sermos índios».

Neste sentido, Benedetti (2020) também enfatiza que, no senso comum, o uso das TIC vem sendo problematizado como aculturação, desconsiderando que na contemporaneidade os indígenas não necessariamente vivem em isolamento, e estabelecem trocas com os não indígenas.

A tecnologia e a educação escolar indígena

A educação indígena é um aspecto muito importante para preservar a sua cultura. E juntamente com a educação indígena, a educação escolar indígena deve contribuir para este processo de formação do indivíduo dentro da coletividade. Em relação ao uso da tecnologia na educação escolar, os entrevistados dizem que o seu uso é bastante positivo. Para o entrevistado sete, a tecnologia vai auxiliar os estudantes nas pesquisas e em atualizações para os moradores da Aldeia, permitindo que chegue mais informações na localidade. Além de sair um pouco da rotina do dia a dia dos indígenas, a tecnologia permite que eles possam observar o que está sendo feito fora da Aldeia e ter acesso à memória, aos relatos dos antepassados. Para o entrevistado, mesmo com os benefícios da tecnologia, é importante ter cuidado com informações erradas e sempre pesquisar antes de repassá-las.

Os entrevistados oito e nove concordam que a tecnologia auxilia na educação, como forma de pesquisa, preparação de aulas, jogos educativos, além de auxiliar também o professor para que seja transmitido o conteúdo mais adequado para os estudantes. Para o entrevistado um, sempre é pensado em um modelo de planejamento conjunto com os professores, estimulando o uso das tecnologias da melhor maneira. Além disso, há disponibilização por parte do governo de chromebooks, de uso individual para cada professor, assim permitindo que os docentes se utilizem de tecnologias para auxiliar na didática da sala de aula.

Os professores entrevistados citaram alguns exemplos do uso das TIC nas metodologias de ensino da Escola. Para os entrevistados oito e nove, os resultados foram bons para os alunos, pois puderam ver vídeos indígenas, além de músicas e documentários, e também foi possível utilizar o Datashow para apresentação dos costumes locais e as divisões tribais.

Em relação ao uso de inovação tecnológica para a valorização da divulgação da cultura, os professores relataram suas experiências. Para o entrevistado sete, a própria utilização dos telefones celulares já possibilitou que alguns trabalhos fossem realizados, e atualmente permitiu a execução de atividades inovadoras com os alunos e a própria comunidade. Um exemplo foi a ideia da criação de um aplicativo no qual se trabalha as marcas Kaingang, trazendo a realidade da comunidade em formato de jogo, o que só se tornou possível com o uso das TIC.

Essa experiência relatada pelo professor demonstra como, por meio do uso das TIC, surgem experiências inovadoras, criativas e multidisciplinares e que, sobretudo, deixam registrada e auxiliam a revitalizar a cultura.

Por outro lado, na educação, alguns entrevistados abordam uma certa exclusão quando não se tem acesso às TIC, e os prejuízos para os excluídos são muito grandes, como falam os entrevistados.

Segundo o entrevistado nove, durante a pandemia do COVID-19, alguns alunos de Universidades tinham acesso à internet e outros não, como o caso que ocorreu na Aldeia Kaingang, sendo necessário que os alunos utilizassem seus próprios aparelhos celulares para acompanhar as aulas, ou então era necessário ir até a cidade para ter acesso à internet. Já para o entrevistado cinco, na pandemia, o auxílio de internet foi importante para resoluções de questões dos trabalhos escolares.

O uso das TIC na educação, conforme relatado pelos entrevistados, vem estimulando e enriquecendo o aprendizado, a criatividade e o pensamento crítico, tanto dos alunos quanto dos professores e servindo também para aumentar o conhecimento sobre a cultura Kaingang, divulgando-a nas atividades escolares.

A tecnologia e a cultura/memória/identidade indígenas

Os entrevistados apontam que o uso das tecnologias na preservação e disseminação da cultura indígena se tornou um fator importante para cumprir este objetivo.

Para o entrevistado dois, a tecnologia é uma ferramenta importante para que a história e luta dos indígenas sejam disseminadas, principalmente a educação indígena Kaingang, que antigamente era realizada somente de forma oral. Com as ferramentas disponibilizadas pelas tecnologias digitais, permitiu-se que esse material fosse preservado e não venha a ser esquecido, principalmente para que as crianças tenham conhecimento de sua origem e cultura e que o mesmo permaneça acessível para as futuras gerações.

Na visão do entrevistado cinco, as tecnologias são utilizadas também para que seja possível rever memórias e visualizar relatos de seus antepassados. Para o entrevistado um, além da questão da oralidade da língua materna, as TIC permitem a facilidade de comunicação dos povos indígenas, visto sua base ser a coletividade, podendo ser utilizadas como instrumento importante na revitalização e preservação da cultura indígena.

Um ponto forte que foi salientado é a possibilidade de verem os seus modos de ser e viver preservados para a posteridade, com a viabilidade de acesso ao longo do tempo, por meio do uso das tecnologias digitais.

Em relação ao uso da língua materna, todos os entrevistados acreditam que o uso da tecnologia e das mídias não interfere na diminuição do seu uso. Para os entrevistados dois, três e sete não há interferência entre as tecnologias e a língua materna dos Kaingang. O entrevistado dois aborda que existe um cuidado para que não se perca essa realidade na Aldeia, sendo a língua kaingang falada por todos os nativos da comunidade

Alguns indígenas compreendem a internet e as mídias como uma tecnologia dos não indígenas, mas necessária para a preservação da sua cultura. Como afirma Renesse (2010), a tecnologia vem conquistando o interesse das comunidades indígenas em razão dos recursos trazidos pelo ambiente da Web. Muitas comunidades já utilizam equipamentos tecnológicos no seu cotidiano e aproveitam dessas novas formas de interação na difusão de seus costumes e conhecimentos, além de comunicação entre os povos.

A tecnologia e a luta pelos direitos indígenas

Na visão de Bicalho (2022), a luta social indígena por reconhecimento dos seus direitos se caracteriza por diferentes aspectos que se articulam na luta por direitos iguais, diferenciados e coletivos. As lideranças indígenas se organizam regional e nacionalmente na busca de conseguir resistir culturalmente, assegurar e reivindicar políticas públicas específicas às suas necessidades.

Na visão do entrevistado um, é importante que a Constituição Brasileira de 1988 seja conhecida pelos indígenas, para que os seus direitos sejam reivindicados e garantidos. Afirma que os indígenas consideram que os representantes do Ministério Público Federal cumprem o papel de seus advogados. Para o entrevistado dois, o contato com outras Aldeias facilitou a luta indígena. Por meio da internet, é possível que os moradores das Aldeias troquem informações e combinem programas e projetos comuns entre si, com o apoio de associações e cooperativas. A internet também possibilitou o acesso aos programas governamentais, permitindo que os indígenas tenham os seus direitos atendidos, como o restante da sociedade.

O entrevistado três relata que dessa forma é possível a comunicação entre «eles», além das lideranças indígenas, é possível a realização de reuniões, mesmo as Aldeias não estando perto fisicamente. Para o entrevistado um, é necessária a luta diária dos Kaingang para que seja possível a preservação e garantia de seus direitos conquistados, pois embora esteja presente na Constituição Brasileira de 1988, sem a defesa contínua destes direitos, eles não são assegurados.

Os entrevistados afirmam que as tecnologias facilitam bastante o acesso aos benefícios relativos à seguridade social. Para os entrevistados cinco e oito, a internet auxiliou, por exemplo, na questão de saber se tinham direito ao auxílio emergencial, e busca de informações sobre o auxílio maternidade, sem precisar sair de casa.

O entrevistado um traz para a entrevista um fato que ocorreu na Aldeia indígena. Na época da pandemia, período em que havia algumas dificuldades na Aldeia, a internet proporcionou a realização de uma reunião com o Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual, SESAI, FUNAI, escolas indígenas, caciques e representantes da prefeitura, para que fosse estabelecido um diálogo sobre as necessidades da população, como o abastecimento de água na região e a construção de um poço artesiano na Aldeia. Para o entrevistado, isso só foi possível por meio do encontro virtual ocorrido, sendo a tecnologia utilizada para a conquista das demandas dos moradores, além da participação da Aldeia.

Em relação ao processo eleitoral, os entrevistados afirmam que tiveram mais esclarecimentos sobre as eleições e sobre os candidatos. Para o entrevistado três, por meio da internet foi possível ter acesso às informações sobre os processos eleitorais. Para ele, houve uma democratização da luta e o próprio conhecimento sobre informações de cunho político, e o entrevistado ainda diz que antes eles «iam pelos outros», mas que agora é possível observarem e fazerem suas próprias escolhas. Para o entrevistado seis, além do auxílio que a tecnologia trouxe para o processo eleitoral, foi possível ter conhecimento dos indígenas que estão como candidatos nas eleições, podendo auxiliá-los nas suas lutas.

O entrevistado dois vê as tecnologias como uma forma de permitir analisar os candidatos que defendem suas pautas e reivindicam as lutas indígenas nas redes sociais. Além disso, é possível ter acesso ao conhecimento e obter maiores informações sobre as políticas públicas para os indígenas, realizando, assim, as suas escolhas com mais consciência.

Por meio das respostas, pode-se perceber que o uso das tecnologias digitais vem ajudando na resistência cultural indígena, tanto para facilitar o contato entre as lideranças indígenas, quanto na busca de esclarecimentos do processo eleitoral, onde procuram ter informações dos candidatos que os representem e defendam as suas pautas.

Entre as potencialidades do uso das tecnologias digitais entre os Kaingangs da Aldeia Três Soitas, constatou-se que estas se tornaram um instrumento muito importante na luta pelos direitos indígenas. Como o povo indígena se organiza de modo coletivo, as tecnologias da comunicação facilitam as estratégias de organização e mobilização para a efetivação de seus direitos.

Estas mobilizações dizem respeito tanto às lutas e organizações dentro dos movimentos indígenas à nível municipal, regional e nacional, quando no trato com as autoridades locais na busca de seus direitos, na afirmação da territorialidade, da resistência e na busca pela autonomia das Aldeias.

Outro ponto importante a ser considerado foi a transformação da rotina, apontada como fator positivo na facilitação da comunicação interpessoal na comunidade, entre os parentes de outras Aldeias e com os não indígenas.

A agilidade e facilidade para acessar os serviços públicos disponibilizados pelo governo nas questões de seguridade social, nos serviços bancários, enfim, tudo que a internet possibilita no sentido de encurtar distâncias e diminuir o tempo e o esforço na execução de determinados serviços foi ressaltado como muito importante.

Em relação à educação escolar, o uso das TIC foi reconhecido como importantíssimo no processo de ensino e aprendizagem, como um fator motivador para os alunos. Atualmente, é uma ferramenta imprescindível para a produção do conhecimento, pesquisa, troca de informações e para a formação dos professores.

Entre as fragilidades apontadas, foi bastante recorrente a consideração de que a falta de acesso às tecnologias de informação acaba excluindo os indígenas, ou afastando-os da cidadania plena. Nesse período de intenso desenvolvimento tecnológico, onde a cada dia surge uma inovação e muitos serviços são oferecidos por meio da tecnologia, a privação do acesso às TIC gera uma maior exclusão social.

A escola se coloca como mediadora de alguns processos de busca de informações, enquanto alguns indígenas não têm acesso ou ainda não se apropriaram das TIC.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo central do trabalho - e investigar sobre o uso das Tecnologias da Informação e Comunicação pelos membros da Aldeia Kaingang Três Soitas para o acesso à informação - foi cumprido. Após a análise dos dados, constatou-se que o uso das TIC é uma realidade presente na Aldeia Três Soitas, RS.

Em relação ao contexto social e o cotidiano dos indígenas, os moradores da Aldeia reconhecem as potencialidades e benefícios do uso das Tecnologias digitais no seu dia a dia e na rotina da escola, e comentam que a privação do acesso, principalmente por falta de recursos financeiros, acaba dificultando muito o usufruto de seus direitos sociais.

É urgente a democratização do acesso à tecnologia digital por meio de políticas públicas para toda a população brasileira, mas também como parte de uma política afirmativa e reparatória da tentativa de extermínio dos povos originários, pois a inclusão digital está simetricamente alinhada com a inclusão social.

Na questão da educação escolar indígena, foi constatado que, atualmente, a escola é um espaço importante de informação e de mediação entre a comunidade indígena e a sociedade em geral. As TIC são utilizadas como prática pedagógica muito presentes no cotidiano da escola, principalmente em pesquisas e como instrumento de divulgação da cultura indígena, pois, por meio delas, as próprias comunidades indígenas podem se expressar e contar a sua história, além de preservar sua memória e identidade, visto que há uma preocupação e uma mobilização muito grande para que a história de resistência dos povos indígenas não seja esquecida.

A educação da criança indígena acontece na vivência e inserção nas atividades cotidianas da comunidade e de modo globalizado. As abordagens metodológicas, na educação escolar, que buscam o desenvolvimento de formas de aprender por meio da imersão do estudante em experiências da realidade concreta, através da tecnologia digital, têm uma grande aceitação por parte dos estudantes, além de qualificar o processo de ensino e aprendizagem.

O desafio presente é provocar os professores indígenas a se qualificarem e produzirem material didático em suas línguas e bilíngue para uma transformação pautada na garantia da educação de qualidade e interculturalidade, que deve estar associada aos projetos e currículos de manutenção e fortalecimento da identidade dos povos indígenas, pois na era da informação, os indígenas brasileiros encontram nas tecnologias novas relações com a sociedade, acessam conteúdos digitais, profissionalizam-se no uso das tecnologias e devem usá-las como registro de memória e disseminação de seus conhecimentos.

Em relação às questões da cultura, memória, identidades dos povos indígenas e sua luta por direitos, constatou-se claramente o grande salto de qualidade que o uso das tecnologias digitais provocaram no modo de preservar e divulgar a cultura indígena, mantendo viva a sua identidade. O uso das TIC foi considerado de fundamental importância na atualidade, tanto para buscar um maior conhecimento da história e das atividades culturais realizadas em outras Aldeias, tendo uma maior interação com as outras comunidades indígenas, como para revitalizar e propagar a cultura indígena a partir das atividades realizadas na escola e na Aldeia.

Nesse sentido constatou-se a importância de criar e fomentar mecanismos para dar acesso e visibilidade à documentação (técnica e científica) dos povos originários, considerando e respeitando as suas tradições e o seu modo de resguardar as suas memórias, contribuindo, assim, com a preservação e valorização da cultura Kaingang. A partir das narrativas dos indígenas e da constatação dos diversos elementos culturais que expressam a sua identidade, como a língua materna, organização social, seus ritos e sua arte, pode-se concluir que quaisquer plataformas digitais que busquem a expressão da cultura indígena devem ser construídas pelos próprios indígenas ou em um trabalho conjunto com eles, buscando sempre um diálogo profundo, dentro de uma abordagem multidisciplinar, a fim de que a sua diversidade seja respeitada.

Este estudo procura contribuir para um maior conhecimento sobre a realidade da comunidade Kaingang em relação ao uso das TIC e seu potencial na inserção social, enquanto sujeitos, dando voz a este povo, por meio das suas narrativas, principalmente nas questões relacionadas à sua resistência cultural e sua busca de inclusão social e de direitos como cidadãos brasileiros.

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Para citar este texto:

Baggio, Claudia Carmem, Edgar Bisset-Alvarez, Edna Karina da Silva Lira e Paola Carvalho da Silveira 2023. “Uso da Tecnologia Digital pelos povos indígenas no Brasil: um estudo na Aldeia Kaingang”. Investigación Bibliotecológica: archivonomía, bibliotecología e información 37 (97): 175-194. http://dx.doi.org/10.22201/iibi.24488321xe.2023.97.58795

Recebido: 31 de Maio de 2023; Aceito: 10 de Outubro de 2023

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