I. Introdução
No prefácio de seu Capital Moral, o filósofo, acadêmico e político neerlandês Roel Kuiper (2019, 13) argumenta que “as utopias enganosas da prosperidade, as abstrações alienadoras do ‘conhecimento’ econômico, político e social superiores e, por fim, a ênfase no homem que organiza sua existência de forma totalmente autônoma e domina o mundo” são os padrões da Modernidade. Kuiper observa que cientistas sociais têm tratado do drama da desvinculação (Cohen, 2000), da desintegração social e da sociedade individualizada (Bauman, 2001) – temas que apontam para um contínuo desacoplamento dos domínios econômico, social e político (Dahrendorf, 1996). Tais práticas sempre estiveram ligadas entre si, ao menos no imaginário daqueles que creem que não existem apenas indivíduos, mas um ente real chamado sociedade (Kuiper, 2019).
Contudo, em razão dos mencionados dramas de desintegração social, a sociedade não deve ser entendida como uma estrutura total, um organismo autônomo ou um sistema abrangente, mas como uma equação de elementos, um acontecer dinâmico, um grupo cooperativo no qual os indivíduos aprendem a se doar a outros e a confiar uns nos outros (Kuiper, 2019). Assim, contempla-se o desafio interposto pela ascensão das chamadas políticas identitárias (identity politics) nas pautas públicas, o que tornou urgente a questão: Qual a razão de tais políticas converterem-se em variáveis condicionantes dos debates públicos atuais? De que forma e em que dimensão as categorias identitárias desempenham um papel de manutenção da comunidade política?
Motivado pela urgência e relevância dessas indagações, o presente estudo lança-se sobre a problemática do identitarismo, tendo como objetos principais (1) o contexto emotivista que gerou o individualismo e o identitarismo modernos; (2) o conceito de política identitária do reconhecimento e seus efeitos sobre o debate público contemporâneo; e (3) os conceitos de bem comum, razão prática e cidadania, na ética comunitarista – conceitos aptos para equacionar as políticas identitárias da diferença numa unidade cívica maior.
Para alcançar tal meta, o trabalho adota a metodologia de revisão bibliográfica, a partir de referências variadas da filosofia moral e política, sobretudo Alasdair MacIntyre (2007), Mark Lilla (2018), Charles Taylor (2000; 2011), John Finnis (2007; 2011) e Michael Sandel (2012). De fato, todos estes autores partilham uma preocupação com a neutralização do bem comum no pluralismo e atomismo modernos. Em vez de se adotar o conceito de comunitarismo, tal como empregado no debate das teorias liberais-igualitárias de justiça (Gargarella, 2008, 137-182; Abbey, 2000, 101-149), prefere-se aproximá-los pelo esforço teórico, de matriz aristotélico, de reabilitar o bem comum a partir de uma reflexão sobre a razão prática e as condições de um debate público frutuoso.
Por isso, a investigação estrutura-se em três partes. Primeiramente, (1) apresenta-se o diagnóstico da fragmentação moral moderna, feita por MacIntyre, com o foco em sua teorização sobre o éthos emotivista na condição de paradigma da Modernidade e a consequente insolubilidade das controvérsias morais como pano de fundo para a discussão seguinte. Então, (2) avalia-se os impactos das políticas identitárias na qualidade do debate político, tendo como base a leitura de Lilla (2018), esclarecendo a deturpação do conceito de “lugar de fala”, de Ribeiro (2019), e a dialética entre política da igualdade e do reconhecimento em Taylor (2000). Ao fim, (3) apresenta-se a ética comunitária da filosofia aristotélica de John Finnis, que articula o bem humano básico da sociabilidade com a razão prática e o bem comum, a fim de refletir sobre a amizade cívica que é a cidadania e a necessidade de fóruns compartilhados para alimentar o diálogo democrático.
II. O éthos emotivista da modernidade
A argumentação do filósofo escocês Alasdair MacIntyre acerca da descrição da moralidade moderna tem como pressuposto necessário um estreito contato entre filosofia, história e sociologia. MacIntyre (2007, 2-4) sustenta que a compreensão das incongruências e lacunas típicas da moral contemporânea podem ser percebidas como tal quando analisadas a partir de uma perspectiva narrativa. Tal compreensão mostra-se como um traço fundamental do pensamento de MacIntyre, uma vez que o autor entende que o entendimento da condição hodierna cruza, necessária e indissociavelmente, a compreensão dos processos que conduziram a história até aqui (Carvalho, 2011, 61). Assim – ao adotar a metodologia do filósofo britânico –, o presente estudo discorre, no primeiro momento, acerca da fragmentação moral da Modernidade como pano de fundo para a aparente insolubilidade das controvérsias morais.
A. A fragmentação moral e a insolubilidade das controvérsias morais
MacIntyre (2007, 6) elenca como ponto de partida o diagnóstico preliminar das condições que circundam as controvérsias morais modernas, que ele designa como “histéricas” e aparentemente insolúveis. O autor sustenta o argumento de que, na atualidade, a linguagem moral jaz num contexto pulverizado, desprovida de um construto conceitual que outrora lhe conferia maior significado, resultando em um estado de grave desordem.
Com o propósito de atribuir formas dramáticas ao desarranjo da moralidade contemporânea, MacIntyre (2007, 1-3) instrumentaliza uma metáfora ao elaborar uma narrativa hipotética de um mundo cataclísmico onde a precariedade das ciências naturais é o novo paradigma, composta de resquícios incoerentes do todo que outrora fora um esquema conceitual científico. Os remanescentes desse mundo pós-apocalíptico, ao reunir uma miríade de fragmentos desconexos, fórmulas químicas e teoremas matemáticos isolados do contexto original, empreendem a missão de restaurar a ciência em conjuntos de doutrinas chamadas biologia, física e química.
Assim, a “ciência” – que, como concebida por eles, pouco se assemelha com o que era antes do apocalipse – retorna ao cotidiano dessa sociedade, sendo referida e utilizada como se ainda mantivesse aquela coerência original. No entanto, a desfiguração (quase completa) do mencionado esquema conceitual faz com que as tentativas de reconstrução orgânica das teorias resultem em uma apresentação conflitante e arbitrária entre si, permeada de incoerências teóricas e incomensurabilidades argumentativas incapazes de solucionar problemáticas graves – outrora dirimidas quando da integridade da moldura conceitual.
Nessa linha, embora exista o uso trivial de diversas expressões morais, o contexto responsável por viabilizar a adequada compreensão desses conceitos perdeu-se. Com efeito, a moralidade contemporânea não seria mais que um acúmulo de fragmentos, todavia, sem seu marco de sentido, incapazes de recompor um todo compreensível. Ora, “o que se possui são simulacros de moral” e segue-se “utilizando expressões-chaves, mas se perdeu de maneira quase completa a compreensão teórica e prática dessa mesma moral” (Amaya e Sánchez-Migallón, 2011, 73). Desse modo, assim como as terminologias da ciência eram vagas e desafinadas no hipotético contexto cataclísmico, a linguagem moral moderna estaria fragmentada. Expressões como “dever”, “finalidade”, “virtude”, “honra” e inclusive “justiça” – ainda empregadas corriqueiramente na esfera da argumentação política – não estariam mais conectadas ao esquema conceitual em que teriam seu real significado, convertendo-se, assim, em meros artefatos vazios (Lutz, 2012, 89). Dessa forma, dada a ausência de critérios de racionalidade, este desacordo entre teorias morais rivais conduz inexoravelmente a uma ampla miríade de respostas, o que faz de um acordo a respeito de questões morais uma meta inatingível.
Ao desenhar uma espécie de genealogia do desacordo moral, MacIntyre sustenta que é a partir da rejeição da teleologia por parte do projeto iluminista – que pretendia estabelecer um conceito de racionalidade alheio a quaisquer compreensões finalísticas da natureza humana – que se tem como resultado a ascensão do emotivismo. Diante do questionamento acerca da essência da “justiça”, quem estaria correto no uso de sua expressão? Para Amaya e Sánchez-Migallón (2011, 74), não há ferramentas racionais capazes de contestar essa indagação de maneira satisfatória ou conclusiva, pelo que resta um quadro de incomensurabilidade entre as pretensões alternativas.
Ao se aprofundar no cerne da moralidade moderna e investigar no que consistem as características capitais dos discursos morais hodiernos, MacIntyre identifica nas controvérsias morais três atributos arquetípicos, sendo eles: (1) a incomensurabilidade conceitual dos argumentos adversários (a inexistência de ferramentas racionais capazes de dirimir questões de divergência moral); (2) a pretensão de racionalidade abstrata com as quais usualmente são embalados os juízos morais; e (3) a miríade de contextos históricos distintos das teorias que são empregadas em favor de posições morais (MacIntyre, 2007, 7-10).
Sobre o ponto (1), na esfera das discussões morais contemporâneas, verifica-se a possibilidade de oferecer um argumento contra as consequências de uma premissa capital do pensamento rival, contudo não se pode estabelecer critérios aptos para a escolha da premissa correta. Em tom paradoxal, acerca do ponto (2), MacIntyre (2007, 8-9) afirma que apesar da possibilidade de justificação e avaliação racional das várias perspectivas morais existentes, tais discussões apresentam-se como argumentações fundadas tão somente na racionalidade dos agentes, construída de maneira genérica, impessoal e completamente desprovida de interesses particulares. Ao fim, sobre o ponto (3), MacIntyre observa que as distintas premissas, que sustentam e instrumentalizam diversas percepções morais rivais, decorrem de contextos históricos muito diferentes. Dessa forma, os vários argumentos responsáveis por conferir solidez às concepções morais distintas, possuem um substrato histórico singular, guia de determinada noção moral.
Em breve síntese, esse é o diagnóstico apresentado por MacIntyre acerca da condição de desordem em que se encontra a moralidade e a linguagem moral contemporânea. Ao fim, compreende-se que cada percepção de moralidade tem suas raízes em uma racionalidade específica, situada em algum momento da história. A consequência direta disso é a aparente insolubilidade das controvérsias morais, atribuindo-se ênfase ao lugar do éthos emotivista, que se converte em paradigma da moralidade hodierna, pelo que se deve proceder a analisar esse recorte teórico da crítica de MacIntyre com mais atenção.
B. O emotivismo e a desordem na linguagem moral
MacIntyre (2007, 22) entende que o emotivismo é o paradigma da Modernidade – e, no presente estudo, ocupa um lugar predominante na hipótese acerca do fundamento do identitarismo e o debate público. MacIntyre (2007, 14-15) associa o surgimento do emotivismo à situação moral da Inglaterra – nas quatros primeiras décadas do século XX –, como uma consequência direta do impacto público do chamado intuicionismo – corrente filosófica postulada por G. E Moore em Principia Ethica (1903). Moore pensava ter finalmente resolvido os problemas seculares da Ética, por haver sido capaz de precisar a natureza das questões sob a alçada da Ética “com a tese de que o ‘bom’ é uma propriedade singular e indefinível, diferente de qualquer outra propriedade natural, perceptível por ‘intuição’, não sujeita a provas, e para a qual nenhuma evidência ou raciocínio pode ser apresentado contra ou a favor” (Carvalho, 2011, 25).
O emotivismo consideraria que todos os juízos valorativos – especialmente os de natureza moral – não seriam mais que a expressão de preferências subjetivas dos indivíduos, não escoradas por quaisquer fundamentos racionais, mas tendo o aspecto emotivo como real fundamento e artefato de convencimento (MacIntyre, 2007, 11-12):
O emotivismo é, portanto, uma teoria que professa ter fornecido uma explicação de todos os argumentos valorativos. Claramente, se essa concepção é verdadeira, todas as discordâncias morais são racionalmente intermináveis; e claramente, se essa concepção é verdadeira, então aquilo apresentado anteriormente como sendo um conjunto de características particulares ao debate moral contemporâneo de fato não tem nada de especificamente contemporâneo (MacIntyre, 2007, 12).
Assim, verifica-se que (1) não haveria razão subjacente aos juízos morais em disputa; (2) que esses não seriam mais que um intento retórico de convencimento propagados a partir de apelos à emoção; (3) não haveria formas racionais destinadas à resolução de divergências morais, pelo que (4) estas restariam incondicionalmente insolúveis de forma racional.
No âmbito do pensamento de MacIntyre, o emotivismo considera que todos os julgamentos avaliativos – e, especificamente, todas as avaliações morais – consistem essencialmente em expressões de preferência, de atitudes ou sentimentos, na medida em que são de caráter moral ou valorativo. O autor entende que julgamentos factuais são verdadeiros ou falsos e, no âmbito dos fatos, existem critérios racionais através dos quais se pode obter concordância final sobre o ser verídico de juízos. Contudo, no que diz respeito às expressões morais – sendo elas expressões de atitudes ou sentimentos –, estas não poderiam ser verdadeiras ou falsas, e a concordância nos julgamentos morais não será obtida por nenhum meio racional, dada a ausência de ferramentas (MacIntyre, 2007, 11-12).
Então, MacIntyre (2007, 12) postula a assertiva de que a “solução” das divergências morais no interior do arcabouço do emocionalismo funciona a partir de uma perspectiva exclusivamente “manipulativa”, de tentativa de persuasão mútua atuante sobre a dimensão emocional dos interlocutores envolvidos no embate. Logo, o acordo eventualmente obtido não se dá por meio do emprego razoável de mecanismos racionais, mas pelo uso de elementos retóricos. Uma vez fundados em preferências subjetivas, desprovidas de qualquer tipo de racionalidade, as discussões seriam resumidas a uma disputa retórica manipulativa.
Ora, por acaso estaria o emotivismo correto na forma como realiza a sua caracterização da moralidade? Em resposta a essa inquirição, MacIntyre (2007, 12-13) sustenta que a pretensão emotivista em prover uma explicação acerca do significado das assertivas utilizadas em juízos morais, uma espécie de veredicto concernente à natureza da moralidade de per si, seria um fracasso por, pelo menos, três razões distintas: (1) o emotivismo revelou-se incapaz de descrever precisamente os tipos de atitudes e afetos envolvidos nos juízos morais, com todas as tentativas redundantes em uma circularidade centrípeta e inócua; (2) o emotivismo se mostraria equivocado ao pretender caracterizar como equânimes dois tipos de expressões que, no campo da linguagem, têm seus significados subjacentes à diferenciação fundamental entre elas; (3) ao se postular como uma teoria explicativa das expressões morais, o emotivismo falhou em compreender que as expressões emotivas ou de atitudes eram, em realidade, atributos de expressões de uso em determinados contextos de aplicações práticas. Dito noutro tom, o emotivismo confundiu o significado com o uso, generalizando um atributo que é, com efeito, atrelado apenas a situações específicas (MacIntyre, 2007).
Em relação ao ponto (2), MacIntyre (2007) explica que a externalização de preferências pessoais seria distinta de um juízo valorativo – aqui incluídos os de tipo moral –, e a sua equiparação, operada pela filosofia emotivista, constituiria um erro em suas pretensões fundamentais. Por exemplo, afirmar que determinado comportamento seria “desprezível” seguramente expressaria um sentimento e poderia, outrossim, apelar à dimensão emocional do interlocutor. Mas, isso difere essencialmente da assertiva de que determinado comportamento é “errado”, vez que essa carrega consigo um significado que remete a critérios morais objetivos, alheia à condição do locutor ou seu estado emocional (Carvalho, 2011, 24).
Agora, a teoria emotivista não prevaleceu na tradição filosófica. Então, como o emotivismo poderia constituir, em MacIntyre, o chamado éthos paradigmático da Modernidade? Para responder a essa questão – e estabelecer um diálogo com as exposições vindouras ao longo do presente estudo – deve-se observar a definição dos três estágios elaborada por MacIntyre (2007, 18-19).
No primeiro momento – uma espécie de estágio pré-catástrofe, conforme a analogia apocalíptica –, a teoria e a prática moral incorporariam em si critérios objetivos e impessoais por meio dos quais tornar-se-ia possível prover fundamentação racional para ações e juízos morais, assim como solução de desacordos morais de maneira racional. Na sequência, o estágio imediatamente pós-catástrofe consistiria numa sucessão de intentos fracassados de manutenção da objetividade e impessoalidade dos juízos morais a partir dos fragmentos do esquema conceitual anterior, outrora coerente; o resultado é o fato de que o projeto de provisão de justificação racional, paulatina e sucessivamente, apresenta falhas (Carvalho, 2011, 26).
Na terceira fase, as teorias emotivistas gozariam de ampla aceitação na dimensão prática, ainda que isso não se dê de maneira teoricamente ordenada – em razão da desordem moral social. Nessa fase, os chamados em prol da objetividade e impessoalidade seriam criticamente desacreditados ante a sua aparente insolubilidade definitiva e as teorias seriam instrumentalizadas de modo arbitrário, sem a possibilidade de consenso ou resolução. Nesse ponto, “MacIntyre situa a moralidade contemporânea no terceiro estágio, em que há o predomínio de uma dissolução dos parâmetros racionais do éthos e uma fragmentação generalizada da linguagem moral”, que se tornam evidentes pela multiplicidade de teorias emotivistas que, ao fim, transformam “a condição de declínio em uma condição normal e perene de toda a moralidade humana” (Carvalho, 2011, 26).
Assim, quando o emotivismo é reinterpretado como o diagnóstico de um tipo específico de moralidade localizada histórica e socialmente, obtém um poder explicativo que lança luz sobre as condições da moralidade contemporânea. Apesar da visão emotivista não ser aplicada com o status de uma leitura da moralidade, verifica-se que o uso da linguagem moral se dá em um contexto que assume implicitamente a lógica emotivista (Lutz, 2012, 91). A crença de que as pretensões de argumentação racional não são mais que máscaras retóricas que estão a ocultar interesses privados é completamente normalizada e aceita implicitamente no cotidiano. Portanto, a perspectiva prática de moralidade, a percepção dos embates morais e das interlocuções pessoais aderem implicitamente ao emotivismo (Carvalho, 2013, 116; MacIntyre, 2007, 22).
III. A política do reconhecimento e a crise do debate público
Cientista político, historiador das ideias, professor de humanidades na Universidade de Columbia, Mark Lilla é categórico em afirmar que, na atualidade, o liberalismo1 “é visto, com alguma justiça, como uma doutrina professada basicamente pelas elites urbanas instruídas, sem contato com o resto do país”, que, no entendimento do autor, apreendem os problemas atuais “sobretudo através das lentes da identidade, e cujos esforços se resumem em zelar e alimentar movimentos hipersensíveis que dissipam em vez de concentrar as energias do que resta da esquerda” (Lilla, 2018, 15). Esse enfoque nas identidades particulares esmaeceu a consciência de classe que unia as esquerdas (Lindgren-Alves, 2019), e “todo progresso da consciência identitária liberal tem sido marcado por um retrocesso da consciência política liberal” (Lilla, 2018, 15).
A. As categorias identitárias e a despolitização da sociedade
A precisão das críticas elencadas por Lilla (2018) ganha mais clareza quando ele analisa a crise do debate público a partir das políticas identitárias, que, quando inseridas na esfera discursiva pública, convertem-se em um problema teórico que põe à prova os limites de sua viabilidade social: seriam as categorias identitárias suficientes para possibilitar um debate plural numa comunidade política?
Lilla (2018), numa tentativa de estruturar uma espécie de arqueologia das chamadas políticas identitárias, destaca que o movimento de direitos civis compartilhava com grupos religiosos e de minorias étnicas do passado a pretensão de ter garantida sua igualdade e sua dignidade de cidadão. Tal lógica de dignidades básicas também se estende às duas primeiras ondas dos movimentos feministas e, ainda, ao movimento inicial de direitos LGBTQIAP+.
Contudo, no curso da década de 1970, é possível afirmar que a cidadania desapareceu do mapa, à medida que a atenção deixou de concentrar-se na relação entre a identificação nacional e progressivamente transferiu-se para identificação com diferentes grupos sociais (Lindgren-Alves, 2019). As partes matizadas por raça, sexo e gênero se converteram no novo padrão de composição político. Tal processo é sintetizado por Lilla (2018, 55-56) ao dizer que “o desafio lançado por John F. Kennedy, ‘Que posso fazer pelo meu país?’ (...) tornou-se ininteligível. A única pergunta com significado ganhou uma dimensão profundamente pessoal: o que o meu país me deve em virtude da minha identidade?”. Nesse contexto, quando da substituição da concepção de cidadania em prol das categorias identitárias, o psicólogo social Jonathan Haidt (2013, 329) observa que o desejo de ajudar os imigrantes hispânicos na década de 1980 teve como mecanismos programas de educação multiculturais que enfatizavam as diferenças em vez de seus valores e identidade compartilhados.
Como apontaram Haidt (2013), Lilla (2018) e Lindgren-Alves (2019), seria de se esperar que, no intuito de combater o chamado individualismo econômico de Reagan, a atuação dos liberais nas instituições educacionais conduzisse as pautas pedagógicas no sentido de compartilhar um ideal político comum entre os compatriotas. Não obstante, em vez de ensinar os alunos a “construir progressivamente uma individualidade através do envolvimento do eu com o mundo exterior”, a pedagogia liberal conduziu-os à conclusão de que “nos envolvemos com o mundo, e com a política, em particular, com o limitado objetivo de compreender e afirmar aquilo que já somos” (Lilla, 2018, 70). A ausência de um sentimento cívico faz com que as democracias liberais estejam sujeitas à entropia (Mounk, 2019; Vianna e Carvalho-Mendonça, 2021), e quando o vínculo de cidadania é mal forjado ou se consente que enfraqueça, há uma tendência natural a dar às adesões subpolíticas lugar de destaque nas mentalidades individuais (Lilla, 2018, 105). Trata-se de um franco processo de despolitização, pela negação do bem comum e da razão pública.
De maneira similar, Paul Bloom (2016, 2-3), professor de psicologia e ciências cognitivas de Yale, ao falar sobre a falibilidade da empatia como fundamento de decisões políticas e sociais complexas, explica que, embora esta tenha seus méritos e, em certas condições, possa estimular a fazer o bem, no geral, consiste em um guia moral pobre que, conduzindo à imprecisão de juízos morais e pautando-os em níveis exacerbados de afetivização da moralidade, pode levar a decisões políticas irracionais e injustas.
A hipótese deste estudo postula que a ideia de “lugar de fala” tenha perdido o estatuto epistemológico ou mesmo ontológico-existencial, com que é defendido por Djamila Ribeiro (2019), ao promover uma retórica identitária que neutraliza a razão pública. Em vez de estimular o debate público pela inclusão de participantes, sobretudo mulheres e negros, essa função retórica não se dirige ao que é comum, como na tópica clássica, mas marca justamente a diferença, funcionando como um elemento imperativo de persuasão sobre o conteúdo da fala pela experiência exclusiva de quem sofre a subalternização, impedindo a identificação e o reconhecimento por quem não compartilhe, de fato, da realidade do oprimido.
Naturalmente, Djamila Ribeiro (2019) reconhece que o dispositivo do “lugar de fala” tem função inclusiva e participativa, e não excludente e censora. Portanto, o quadro descrito por Lilla (2018) deve ser considerado como a denúncia de uma distorção e um abuso do sentido verdadeiramente emancipatório e democrático da política da diferença, quando ele é mobilizado para silenciar as vozes na sociedade e infirmar a discussão aberta, franca e transparente. Todo tipo de bloqueio discursivo do debate é antidemocrático: não se trata de excluir atores sociais do debate público, mas de incluir as vozes historicamente silenciadas por estruturas sociais de desigualdade e opressão.
Esses grupos marginalizados devem conquistar voz própria, e não apenas assimilar o discurso igualitário, liberal e formal das classes opressoras, que podem conter formas de dominação. O reconhecimento se adquire não pela concessão do grupo hegemônico, que representa o Outro a partir de suas próprias categorias, mas franqueando-lhe a voz para que descreva a sua própria experiência de exclusão.
B. Política da identidade e fragmentação social
Um dos pioneiros e protagonistas da elaboração teórica do conceito de “política da diferença”, Charles Taylor (2000, 241) postula a tese psicossocial de que a “nossa identidade é moldada em parte pelo reconhecimento ou na sua ausência, frequentemente pelo reconhecimento errôneo por parte dos outros”. Ora, esse reconhecimento errôneo ocorre quando eu não me vejo espelhado adequadamente na representação que o Outro tem de mim, quando o grupo com que me identifico é estigmatizado por outro grupo, normalmente com experiência oposta, consoante uma divisão econômica, política, sexual e cultural no seio da sociedade, como a que separa homens e mulheres, e brancos e negros.
Por isso, segundo Taylor (2000, 241), “uma pessoa ou grupo de pessoas pode sofrer reais danos, (...) se as pessoas ou sociedade ao redor deles lhes devolverem um quadro de si mesmas redutores, desmerecedor ou desprezível”. Trata-se de um aprisionamento numa modalidade de ser “falsa, distorcida e redutora”. Portanto, ao lado da política do universalismo, que afirma a igualdade de direitos negando todas as diferenças e privilégios sociais, desponta a política da diferença, em que todos devem ter a sua identidade peculiar reconhecida.
Com a política da dignidade igual, aquilo que é estabelecido pretende ser universalmente o mesmo, uma cesta idêntica de direitos e imunidades; com a política da diferença, pedem-nos para reconhecer a identidade peculiar desse indivíduo ou grupo, aquilo que o distingue de todas as outras pessoas. A ideia é de que precisamente esse elemento distintivo que foi ignorado, distorcido, assimilado a uma identidade dominante ou majoritária. E essa assimilação é o pecado capital contra o ideal de autenticidade (Taylor, 2000, 250-251).
O que Taylor percebe é que não basta a afirmação igualitária da dignidade universal de todas as pessoas, se as estruturas sociais não permitirem a afirmação da autenticidade e a diferença de grupos não hegemônicos: “A política da diferença está repleta de denúncias de discriminações e recusas que produzem cidadanias de segunda classe” (Taylor, 2000, 251). Daí a importância de sopesar e qualificar o universalismo da política da igualdade com o pluralismo da política da diferença, como um “reconhecimento da especificidade”.
Remontando ao problema filosófico primordial da unidade e da pluralidade, há uma tensão entre a política da igualdade universalista e a política da diferença particularista. Se a segunda reprova a primeira pela negação da identidade ao impor às pessoas uma forma universalista, homogênea e inautêntica, a primeira critica todo tipo de discriminação (Mulhall, 2004).
Embora esse debate da igualdade e da diferença se volte sobretudo às políticas afirmativas de inclusão social pelo sistema de cotas, consoante uma teoria liberal igualitária de justiça distributiva, é possível enfocá-lo na análise da composição do debate público, questionando se a lógica do “lugar de fala”, tal como descrito por Lilla (2018), contribui para a compreensão recíproca dos grupos sociais ou se contribui, involuntariamente, para fragmentá-los e hostilizá-los entre si.
Nesse contexto, Taylor aduz que há sério risco de que o reconhecimento e o respeito sejam esvaziados, se a política da diferença for reduzida a uma questão de poder e contrapoder, pautada no relativismo subjetivista, em que “todos os juízos de valor se baseiam em padrões em última análise impostos por estruturas de poder que contribuem para consolidar” (Taylor, 2000, 272). Adotando essa lógica de política de poder, neutraliza-se a política da razão pública, em que a participação democrática é, na verdade, reduzida à luta discursiva pelo poder de falar e de calar, afirmar e negar, em detrimento da lógica do diálogo em que identidade e alteridade moral e cultural se encontram numa unidade maior que é a política.
Não se pode, por outro lado, ignorar as particularidades, mas buscar “algum meio-termo entre a exigência inautêntica e homogeneizante de reconhecimento de igual valor, de um lado, e o autofechamento em padrões etnocêntricos do outro”, visto que “há outras culturas, e temos de viver juntos cada vez mais, tanto em escala mundial como na convivência no interior de cada sociedade” (Taylor, 2000, 273).
O multiculturalismo afirma a possibilidade de convivência de culturas diferentes, tanto no âmbito internacional, quanto nacional, como consumação do projeto liberal de igualdade e não discriminação (Carvalho, 2018, 149-150). Para isso, Taylor defende um debate político que seja inclusivo e participativo, sem desviar para particularismos excludentes e tribais, cuja oposição resulta, cedo ou tarde, em conflito e mesmo em guerra.
Este texto seminal de Taylor (2000), ‘Política do reconhecimento’, de 1992, deve ser lido em continuidade com o clássico estudo de 1989 sobre a construção da identidade moderna, As fontes do self (Taylor, 2005), que apresenta pontos de convergência com a reconstituição da ética moderna emotivista de MacIntyre (2007), pelo reconhecimento do caráter problemático e insolúvel dos dilemas morais modernos pela afirmação da individualidade irredutível que pode neutralizar o bem comum (Abbey, 2000).
Em obra mais recente, A ética da autenticidade, de 2010, Taylor (2011) adverte contra “o escorregar para o subjetivismo” que a cultura moderna narcisista pode gerar, uma vez que o ideal de autenticidade exige o reconhecimento de todas as formas particulares de vida, que fragmenta cada vez mais a sociedade, preterindo a busca compartilhada pelo bem comum:
Uma sociedade fragmentada é aquela cujos membros acham cada vez mais difícil identificar-se com sua sociedade política como uma comunidade. Essa falta de identificação pode refletir numa perspectiva atomista, na qual as pessoas acabam enxergando a sociedade como puramente instrumental. (...) Mas a fragmentação cresce à medida que as pessoas não mais se identificam com sua comunidade política, que seu senso de pertencimento incorporado é transferido para outro lugar ou atrofia inteiro.” (Taylor, 2011, 116-117)
A interpretação de um filósofo político e historiador das ideias como Charles Taylor (2011) permite articular a ética emotivista da revolução afetiva com a dimensão política da política do reconhecimento, que corre o risco de promover a fragmentação social pela afirmação incondicionada da diferença e da experiência particular irredutível e incompartilhável. Sem negar a diferença e importância de multiplicação das vozes e grupos que compõem a esfera pública, importa recuperar uma ética comunitária mínima, para que a convivência seja frutífera e os projetos individuais e grupais de vida sejam significativos para o bem comum.
IV. Renovação de uma ética comunitária: bem comum e cidadania
A crise da convivência política na modernidade apresentada acima evidencia a premência de formular-se ações e discursos políticos que tenham por fundamento uma ética comunitária assentada em uma condição comum que transcenda – embora não ignore – as identidades particulares. Não há solução simples para uma reforma que é eminentemente cultural, mas alguns passos podem ser dados em direção ao seu desenvolvimento. A tradição neoaristotélica, com sua noção de bens humanos e cidadania, possui contributos profícuos ao desdobramento dessa discussão, tanto num autor da filosofia moral, como John Finnis, com sua ética dos bens humanos básicos, quanto Michael Sandel e sua defesa de uma razoabilidade prática do bem comum.
A. Bem comum, amizade cívica e razão prática
John Finnis, possivelmente o principal expoente do neoclássico contemporâneo, ao tratar sobre as regras necessárias à comunicação interpessoal, adota a concepção aristotélica de debate como um “discurso motivado pelo desejo de realmente conhecer o assunto em discussão”, em contraste com uma “mera performance” (Finnis, 2011, 41). Assim, deve haver um interesse genuíno nos argumentos do lado contrário. Para Sócrates e Platão, uma das marcas da verdade é que, sob condições que hoje seriam denominadas de “ideais”, as pessoas envolvidas na discussão acabarão por chegar a acordo (Finnis, 2011, 42).
Conquanto a história política tenha demonstrado que a concretização fática dessa hipótese é utópica, as condições assentadas pelos autores para a discussão produtiva são altamente pedagógicas: “(i) uma educação sólida e ampla”; “(ii) boa vontade em relação às outras partes do discurso (de fato, a estima cordial que se tem com os amigos)”; e “(iii) a disposição de conversar de forma honesta (mesmo quando isso envolver admitir os próprios erros, contradições ou refutações)” (Finnis, 2011, 42).
Ao falar sobre “a estima cordial que se tem com os amigos”, Finnis está laborando a partir do conceito aristotélico de amizade (ou sociabilidade) como um dos bens (ou valores) humanos básicos (Pinheiro e Neiva, 2019), os quais representam “as formas elementares de florescimento humano, bens que são universalmente buscados e realizados por todos que refletem e deliberam sobre o que fazer, ainda que sejam infundadas as suas conclusões” (Culleton, Bragato e Fajardo, 2009, 47). Na concepção neoaristotélica, a tendência humana à sociabilidade é inata. Logo, a relação do ser humano com o próximo e com a sociedade não seriam – como entendem autores individualistas como Hobbes e Freud – conflitantes com a sua natureza essencial. “A comunidade não é entendida como um mal necessário, mas, ela mesma, como uma oportunidade racional de realizar o bem humano básico da sociabilidade” (Pinheiro e Neiva, 2019, 259).
Como MacIntyre, referenciado acima, Finnis também parte de uma crítica metaética ao ceticismo e ao emotivismo modernos (Pereira e Pinheiro, 2020, 71), como compreensões morais que neutralizam a razão pública, na busca por fundamentos comuns de ação social, que caracterizam o ideal político de cidadania, aqui considerada como amizade cívico-política.
Nesse sentido, Finnis reconhece o valor e a desejabilidade da adoção de uma lógica de amizade mesmo no âmbito da política pública (amizade política), frisando, contudo, que a sustentação desse tipo de amizade exige um conhecimento compartilhado e um respeito comum belos bens humanos intrínsecos, como vida, liberdade, igualdade (Finnis, 2011, 42). É claro que diferentes sujeitos podem (e irão) discordar acerca das melhores formas de proteção e efetivação desses bens, sendo, entretanto, sua discordância localizada precipuamente no reino dos meios, e não dos fins, como se visualizam nos reiterados apelos de ordem moral presentes nos discursos tanto de esquerda quanto de direita (Haidt, 2013). Não obstante, na perspectiva Finnisiana, se corretamente compreendido o bem da amizade e as obrigações que a ele correspondem, sua concretização na esfera mais ampla, a comunidade política, conduzirá à realização do bem comum (Pinheiro e Neiva, 2019, 258).
O ideal de bem comum é um conceito-chave na filosofia clássica, sendo, nessa tradição, a própria razão de ser do Estado. É a promoção do bem comum que justifica e legitima a autoridade do Estado de Direito (Finnis, 2007). Jacques Maritain (1966, 54), outro neoaristotélico notório, explica que a função do Estado “não é garantir a conveniência material de indivíduos esparsos, cada um absorvido no seu próprio bem-estar e enriquecendo a si mesmo”, nem “promover o domínio industrial sobre a natureza, ou o domínio político sobre outros homens”, mas, antes, “melhorar as condições de cada vida humana em si” e “procurar o bem comum da sociedade”, e isso “não apenas em uma classe privilegiada, mas por toda a coletividade”.
Veja-se que, nessa perspectiva, não há conflito verdadeiro entre a garantia dos bens individuais e a promoção do bem comum. O bem comum aristotélico não é o bem do maior número dos indivíduos, em uma lógica utilitarista, nem uma finalidade coletiva imposta que suprima os valores das minorias, mas a consecução, na medida mais plena possível, de todas as expressões dos bens particulares (Finnis, 2007). Essa compreensão dialógica da relação entre bens particulares e bem comum implica que a proteção dos valores de um sujeito ou grupo deve adotar caminhos que oportunizem a concretização também dos valores humanos das outras comunidades (Pinheiro e Neiva, 2019, 254).
É importante salientar que essa concepção comunitarista é fundamentalmente distinta daquela presente nas sociedades pré-modernas, com sua lógica homogeneizadora que suprimia as identidades particulares. O bem comum neoaristotélico “nem afirma, nem acarreta que os membros de uma comunidade devam todos ter os mesmos valores ou objetivos (ou um conjunto de valores ou objetivos)”, mas sim que “deve haver algum conjunto (ou um conjunto de conjuntos) de condições que precisa se dar para que cada um dos membros atinja seus próprios objetivos” (Finnis, 2007, 156). Com isso, Finnis “supera a abstração de teorias normativas de pretensão universal” – como a de John Rawls –, que excluíam visões de mundo particulares e alberga o pluralismo razoável de formas de vida (Pinheiro e Neiva, 2019, 247).
Isso porque o bem da razoabilidade prática equaciona a pluralidade de bens humanos, tanto no plano de vida individual de cada agente moral, como no plano social de vida, sendo este último arquitetado pelo direito, leis e políticas públicas, de que participaram ativamente todos os cidadãos, em par de igualdade, como coparticipantes de um plano, de um bem comum, que comporta as formas diversificadas de cada bem humano (Souza e Pinheiro, 2020). Ora, o bem da sociabilidade pressupõe exatamente o diálogo com o outro, a alteridade das formas razoáveis de vida, na participação inesgotável dos bens básicos e das diferentes formas de instanciá-los. Por isso, esta teoria comporta várias formas de conhecimento, experiência estética, jogo ou religião, desde que pautados nos princípios da razoabilidade prática que os tornam compatíveis com o bem comum e com os direitos humanos dos demais cidadãos, que são considerados como “amigos” cívicos (Barzotto, 2010).
Nessa lógica, em sua missão de consecução do bem comum, conquanto o Estado não endosse quaisquer identidades particulares, ainda assim garante às pessoas e aos grupos o direito de expressá-las, pois “os indivíduos só podem ser eus – isto é, ter a ‘dignidade’ de serem ‘agentes responsáveis’ – se não forem forçados a viver suas vidas para a conveniência de outrem, mas lhes seja permitido e sejam ajudados a criar uma identidade duradoura por ‘toda a vida’” (Finnis, 2007, 266).
Não se trata aqui, portanto, de retornar ao paradigma pré-moderno uniformizador, mas de transcender tanto este quanto as políticas embasadas em lógicas unicamente identitárias e atomistas, articulando a garantia do direito à construção da própria identidade, como expressão básica de humanidade, com uma noção comunal de ética social.
B. Cidadania e fóruns compartilhados
É fato que, como já referido, o surgimento dos grupos identitários já demonstra, em alguma medida, um avanço em direção ao reconhecimento da sociabilidade. Não obstante, é preciso expandir a abrangência dessa instanciação para albergar não apenas os membros que compartilham determinada raça ou gênero, mas a comunidade política como um todo.
Para tal fim, Mark Lilla propõe a recuperação do conceito clássico de cidadania, cuja superioridade está, na visão do autor, em que ela “oferece uma linguagem política para falar sobre uma solidariedade que transcende os vínculos identitários”, bem como mitiga o atomismo exacerbado que tem maculado as democracias liberais, introduzindo no projeto político uma lógica relacional: “A cidadania democrática implica direitos e deveres recíprocos. Temos obrigações porque temos direitos; usufruímos de direitos porque cumprimos obrigações” (Lilla, 2018, 98).
Essa perspectiva dialógica, em oposição a uma ótica de militância e rivalidade é essencial se pretendemos tratar a questão sob o paradigma da realização do bem aristotélico da amizade. A amizade verdadeira não nasce de uma cedência temerosa a violências verbais, senão em um contexto de respeito mútuo às diferenças oriundo de uma preocupação genuína e desinteressada com o outro (Finnis, 2007). Essa preocupação, se corretamente entendida e instanciada, compreenderá o reconhecimento da pessoalidade do outro em sua identidade radical, sem pretensão de mudá-lo.
Não obstante, uma ressalva deve ser feita: não se pode adotar uma ideia de cidadania que implique a desconsideração das identidades particulares, ou permitir a instrumentalização de tal conceito para projetos totalitários de homogeneização social. Como elucida o autor, “dizer que somos todos cidadãos não é dizer que somos todos iguais em todos os sentidos”, e embora seja “um fato social que muitos americanos hoje pensam em si mesmos em termos de grupos identitários”, “não há razão para que não possam simultaneamente pensar em si mesmos como cidadãos políticos, iguais a todo mundo. As duas ideias podem ser – e de fato são – verdadeiras” (Lilla, 2018, 97).
É, portanto, uma questão de reestruturação das prioridades do projeto político: “a prioridade da política institucional sobre a política de movimentos; a prioridade da persuasão democrática sobre a autoexpressão sem propósito; e a prioridade da cidadania sobre a identidade grupal ou pessoal” (Lilla, 2018, 83). Para isso, é essencial enfatizar mais as similaridades do que as diferenças e, em vez de chamar atenção para distinções étnicas e raciais, torná-las menos relevantes por meio da ênfase na similaridade e na celebração dos valores comuns compartilhados pelo corpo social (Haidt, 2013, 257-258).
Em outras palavras, a reformulação daquela comunidade simbólica que confere sentido ao sujeito e que se perdeu no advento da Modernidade, agora, entretanto, por meio não da supressão das identidades individuais, mas da sua articulação com uma identidade comunitária de cidadania. Cidadania, assim, “não é identidade no sentido em que usamos o termo atualmente, mas torna possível incentivar as pessoas a se identificarem umas com as outras” (Lilla, 2018, 101, grifos nossos).
Outro autor importante neste debate é Michael Sandel (2012, 328), que renova a tradição aristotélica, ao reconhecer a necessidade de uma ética pública do bem comum, para superar o atomismo liberal: “O esvaziamento do domínio público dificulta o cultivo do hábito da solidariedade e do senso de comunidade dos quais depende a cidadania democrática.”. Sem uma pertença comum a um projeto político, os indivíduos atomizados tendem a se dispersar, fragmentar e a tribalizar, impedindo o ideal de razão pública, em que as diferenças são equacionadas a partir da igualdade cidadã de fundo.
Para explicar a ética comunitária de filósofos políticos como Sandel (2012) e Taylor (2011), que, ao lado de filósofos morais como MacIntyre (2007) e Finnis (2011), embasam a argumentação deste artigo, Kymlicka (2006, 279) advoga a necessidade de “fóruns compartilhados” para se debater, constantemente, a estrutura cultural que torna significativa as escolhas individuais, pois “a participação em práticas linguísticas e culturais compartilhadas é o que capacita os indivíduos a tomarem decisões inteligentes a respeito da boa vida” (Kymlicka, 2006, 285). Nesta concepção ética comunitária, o eu não é um átomo desenraizado, abstraído do seu contexto social. Ao contrário, ele sempre depende do bem comum para se afirmar e desenvolver a própria personalidade, identificando-se com determinada forma de vida promovida e valorizada por sua comunidade política maior.
No contexto de crise da sociabilidade política e desconfiança generalizada na razão pública do bem comum, a identificação do grupo é proporcional à condenação do grupo opressor, do outro, que não deve ser assimilado, antes deve ser neutralizado politicamente. O sentimento de exclusão da esfera pública, marcada pelo ideal liberal de neutralidade moral, gera o isolamento e o enclausuramento dos grupos, que alimentam o ressentimento, radicalizando a culpabilização e hostilização do polo antagônico, seja social, econômico, étnico ou religioso. Assim, a razão pública é neutralizada com a redução da linguagem a clichês e slogans, numa desconfiança e instabilidade sufocantes, que esgarçam o tecido social ao ponto de fragmentá-lo, gerando a cacofonia dos discursos morais relativos e irredutíveis entre si, como descreveu MacIntyre (2017). Com a polarização de grupos identitários, perde-se de vista a dimensão comum e interdependente da razão pública, fundamento da convivência política.
A autorrealização e mesmo a determinação da identidade pessoal e de um senso de orientação no mundo dependem de um empreendimento comunal. Este processo compartilhado é a vida cívica e sua raiz é o envolvimento com outros: outras gerações, outros tipos de pessoas cujas diferenças são significativas porque contribuem para o todo do qual nossa percepção específica do eu. Portanto, a interdependência é a noção fundamental da cidadania (Sullivan, 1982, 158).
Ora, na concepção clássica aqui renovada, a política não pode ser a causa da desagregação social, mas, ao contrário, é a condição de possibilidade de convivência harmônica e justa. Quando a política se torna, ela mesma, o motivo de hostilização social, ela perde a sua dimensão civilizatória de promoção do bem comum, a partir da experiência de vida compartilhada e intermediada pela razão pública.
A perda do diálogo cidadão é a falência da própria racionalidade política, pois “qualquer coisa que não seja politicamente deliberada é, desta maneira, deixada a uma vontade individual incapaz de julgamento racional” (Kymlicka, 2006, 286). Sem razoabilidade prática e debate público honesto entre os cidadãos, não há bem comum, nem pluralismo saudável e muito menos a política identitária da diferença, pois se debilita a própria estrutura social liberal que sustenta essa política. Por isso, os fóruns compartilhados cumprem uma função de refletir, constantemente, sobre a estrutura social que torna a experiência comum inclusiva e participativa, em que as diferentes identidades individuais e grupais de vida são valorizadas e compreendidas.
V. Considerações finais
Enquanto as cosmovisões pré-modernas continham a ideia de uma comunidade simbólica, que oferece sentido ao eu e um ponto de referência para a localização do self, a ascensão do pensamento racionalista e antropocêntrico da Modernidade conferiu ao sujeito o direito soberano – bem como lhe impôs a obrigação – de encontrar uma significação de si que seja independente das comunidades de sentido.
Desvinculado de uma simbologia cultural com elementos que transcendem o próprio sujeito, esse giro copernicano antropocêntrico foi acompanhado da ascensão de categorias de fundo eminentemente emotivista na construção tanto das identidades individuais, como dos discursos públicos no campo da ética e da política social.
O corolário da hegemonia das categorias afetivas na construção cultural foi que, no âmbito individual, o desejo tornou-se o critério constitutivo do sujeito; e, no plano social, o lugar de expressão dos argumentos políticos, éticos e sociais tornou-se a sua aceitação emocional. Assim, embora se pudesse esperar que o humanismo implicasse uma emancipação do indivíduo em relação às estruturas socioeconômicas, o que se visualizou foi justamente o oposto: as identidades foram instrumentalizadas pelo sistema industrial capitalista, com a hierarquização das afeições segundo critérios econômicos e utilitaristas.
Nesse contexto, a política do reconhecimento de identidades plurais na sociedade liberal resultou numa tendência à fragmentação e à despolitização, em que o dispositivo do “lugar de fala” é reduzido a um bloqueio discursivo do debate público, por quem não esteja na situação existencial do grupo. Este artigo argumentou que, pelo contrário, o expediente do “lugar de fala” tem sentido inclusivo e participativo, e não excludente ou censor. Ele serve para dar voz e espaço às categorias historicamente discriminadas e oprimidas, como mulheres, negros, e a comunidade LGBTQIAP+ para que possam participar ativamente do debate público, e não ter a sua identidade obscurecida e distorcida pela classe hegemônica. Não basta lhes reconhecer uma igualdade formal, mas urge lhes franquear a palavra para que possam afirmar-se na sua diferença e particularidade.
Porém, a política identitária do reconhecimento dessa diferença não pode neutralizar o debate público e a busca compartilhada do bem comum, consoante a noção de cidadania interpretada como amizade cívica. Daí a tentativa deste artigo de reabilitar os conceitos clássicos de bem comum e cidadania, como meio de impedir que as políticas identitárias fracassem na intenção de promover a igualdade por meio do reconhecimento das diferenças.
A dialética das políticas da igualdade e diferença depende de fóruns compartilhados, em que as formas de vida e as perspectivas morais sejam elevadas ao patamar de razão pública, que forma uma estrutura cultural em que o reconhecimento, o respeito e a valorização do concidadão (amigo) supere a hostilidade que a alteridade pode causar, na tentativa de silenciamento do Outro.