Sumário:
I. Introdução. II. Breves considerações acerca das investidas de monetização da água. III. A contribuição do Direito Internacional para a afirmação do direito humano à água. IV. A água enquanto direito fundamental à luz da Proposta de Emenda à Constituição No. 4, de 2018. V. Conclusões. VI. Bibliografia.
I. Introdução
Não é demais afirmar que a água é fonte de vida, visto que mais de 75% do planeta e do corpo humano são constituídos por água.1 Numa despretensiosa observação ao nosso redor, é possível notar a sua relevância tanto pelo uso direto dos seres humanos, bem como pela sua relevância na atividade agropecuária, na geração de energia e no abastecimento das indústrias.
A despeito de haver um grande volume de água cobrindo o planeta, sabe-se que a quantidade disponível para o consumo humano é deveras diminuta. Somam-se a isto, os desafios da distribuição de maneira igualitária. Ainda, as adversidades climáticas em determinadas localidades do planeta fazem surgir conflitos, em particular, nas regiões do Oriente Médio e da bacia do rio Nilo, na África.2
Diante deste cenário, se faz necessário recordar que a Divisão de População do Departamento de Economia e Assuntos Sociais das Nações Unidas divulgou, em 2019, a revisão de um relatório no qual prevê o aumento da população mundial, atingindo a marca histórica de cerca de 10.9 bilhões de pessoas até 2100.3 Ora, não é preciso grandes esforços para depreender que o aumento populacional implicará diretamente no aumento do consumo de água e, consequentemente, poderá contribuir para o acirramento dos conflitos envolvendo o seu uso.
Assim é que o presente manuscrito visa analisar os desafios e caminhos percorridos para se reconhecer a água como um direito essencial à luz do ordenamento internacional e brasileiro.
Em apertada síntese, a primeira seção apresenta breves considerações acerca das constantes investidas de monetização da água a partir das ações advindas, em especial, de grandes conglomerados privados.
Na sequência, a segunda parte busca apresentar como ocorreu, apesar de interesses contrários, o reconhecimento formal da água como um direito. A partir daí, analisar-se-á o papel desempenhado pelo Direito Internacional, lançando luz para as contribuições especiais do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Por fim, tendo em vista o cenário nacional, a terceira seção propõe analisar a relação do Direito Internacional com o direito interno, tendo em vista a Proposta de Emenda Constitucional N. 4, de 2018 (PEC n. 4, de 2018), que altera o artigo 5o. da Constituição Federal, no sentido de inserir formalmente o acesso à água no rol de direitos e garantias fundamentais.
II. Breves considerações acerca das investidas de monetização da água
O atual cenário internacional tem revelado a busca dos Estados Soberanos pela conquista de novos mercados em vista de potencializar o seu progresso econômico. No contexto desse processo de globalização, ao considerar os desafios do Direito Internacional, sobressai de forma pungente a necessidade de se discutir de maneira simbiótica aspectos atinentes aos direitos humanos, meio ambiente e desenvolvimento sustentável.
Diante disto, percebe-se que o atual modelo capitalista, aliado ao aumento da população mundial, tem exigido o uso cada vez mais latente dos bens naturais a fim de atender as demandas comerciais. Assim é que, consoante alerta de Vianna et al., a natureza se transmuta em recursos naturais na medida em que o ser humano passa a se relacionar com o meio ambiente a partir de valores econômicos.4
Dentre os vários recursos naturais inseridos neste modelo, não há como deixar de mencionar aquele que é de vital relevância, tanto para o ser humano em sentido direto, quanto para a própria produção, qual seja: a água.
Ocorre que, o efeito nefasto advindo desta situação não atinge a todos na mesma proporção. De acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano 2006, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a lógica mercatória aplicada ao acesso à água afeta principalmente as populações mais pobres, em especial, aquelas que habitam regiões distantes dos grandes centros urbanos. Nesse sentido, torna-se comum que esse grupo de pessoas acabe pagando mais pelo acesso à água e, por isso, outras necessidades básicas para uma vida digna passam a restar comprometidas. Em outras palavras, vigora a premissa de que “quanto mais pobre se é, mais se paga”.5
Considerando o aspecto mencionado anteriormente, o referido Relatório lança luzes para a política de preços aplicada pelos serviços de abastecimento e, de forma ilustrativa, alerta sobre o quão arbitrário pode ser o acesso à água em determinadas regiões. Ao ensejo:
As políticas de preço dos serviços de abastecimento público agravam o problema. A maioria dos serviços de abastecimento implementa agora tarifas por escalão progressivamente crescentes. O objectivo é aliar a equidade à eficiência através da elevação do preço em consonância com o volume de água utilizado. Na prática, acabam frequentemente por aprisionar as famílias mais carenciadas nos escalões mais altos... Em Manila, o custo de ligação ao serviço de abastecimento representa cerca de três meses de rendimentos dos 20% de famílias mais pobres, elevando-se a seis meses no Quénia urbano.6
Em oportuno escólio sobre o tema, Vandana Shiva recorda que em alguns Estados, sob o escopo de defesa do livre comércio ou melhoria na prestação do serviço, vigora uma tendência de lidar com a água a partir de seu potencial mercadológico. No entender da autora, essa visão estritamente monetária e, consequentemente, o ato de negar o acesso adequado aos recursos hídricos para certas camadas da sociedade, pode ser comparado às práticas terroristas, tendo em vista os efeitos catastróficos para a fruição de uma vida digna.7
No ponto, vale trazer à baila as considerações apresentadas por Barlow e Clarke no sentido de que esse fenômeno de exploração exacerbada dos recursos hídricos elevou a água à qualidade de uma “mercadoria” altamente lucrativa. Assim é que os autores a consideram como uma espécie de “ouro azul”, que rende bilhões de dólares anualmente para as empresas privadas.8
Em compasso com Barlow e Clark, García complementa a análise informando que a estratégia adotada por essas empresas é a seguinte: i) introdução da percepção de que a água é um produto; ii) a privatização é essencial para a melhor prestação e ampliação da oferta, ainda que, em contrapartida, haja a submissão aos princípios aplicados ao comércio; e, por fim, iii) a sua normatização deve ser feita por instituições econômicas e financeiras internacionais, de modo a alijar qualquer interferência público-estatal.9
Impende recordar, ainda, que no tocante ao processo de privatização da gestão dos recursos hídricos abre-se flanco para o fenômeno conhecido como water grabbing, cuja incidência é maior, embora não exclusiva, nos países emergentes ou em desenvolvimento, demonstrando mais uma vez como os mais pobres se tornam mais vulneráveis.10 Sobre esse fenômeno, não custa rememorar os dizeres de Franco et al. que informam que:
Water grabbing refers to situations where powerful actors are able to take control of or reallocate to their own benefit water resources at the expense of previous (un)registered local users or the ecosystems on which those users’ livelihoods are based. It involves the capturing of the decision-making power around water, including the power to decide how and for what purposes water resources are used now and in the future. Thinking of water grabbing as a form of control grabbing means going beyond the narrow, proceduralist definition of ‘grabbing’ as ‘illegal appropriation’ since the means by which new powerful actors gain and maintain access to and benefit from water resources often involve legal but illegitimate dynamics.11
No ensejo de tais considerações, García é enfática ao chamar atenção para o argumento em defesa da gestão da água utilizado por atores privados. A autora recorda que, de acordo com essas empresas, a crise hídrica sói ocorrer basicamente por duas razões: i) o preço pelo uso da água é artificialmente baixo; e ii) o uso da água é negligente e ineficaz por parte da população, noutros termos, as pessoas contribuem de forma significativa para o desperdício de água.12
Assim é que, por mais mendaz que possa parecer, tenta-se difundir a ideia de que ao elevar o preço da água, será possível engendrar esforços para uma gestão mais eficiente, visto que quanto mais caro o serviço, menos desperdício haverá.
É por isso que, entendendo que nada ocorre sem um propósito, Enrique Leff afirma que tornar a água escassa é parte essencial para inseri-la na lógica do mercado.13
Decerto, tal proposta demonstra o quão necessário se faz reiterar as críticas já entalhadas acima por Vandana Shiva de que há eminente risco de agravamento da situação das populações mais pobres no acesso à água. De parte isto, cumpre atinar para os apontamentos de Enrique Leff no sentido de que:
A privatização da água é promovida em um discurso que pretende obter o “uso racional e uma gestão eficiente da água”, fazendo com que os usuários paguem o “custo real” pelo abastecimento desse recurso. Assim, nessa fase da globalização econômica, a privatização da água inscreve-se nas estratégias de expansão do capital natural para absorver os bens e serviços ambientais, isto é, os bens naturais comuns da humanidade. A apropriação capitalista da natureza, que antes se alimentara da natureza definindo-a como recurso natural, agora tenta apropriar-se dos ecossistemas do planeta e governá-los sob os princípios da economia global e do poder supremo do mercado.14
Aliás, vale trazer à baila que historicamente os interesses econômicos concernentes à água estão relacionados à serventia de um grupo privado muito exclusivo que, de certo modo, constitui uma espécie de monopólio da água. Convém explicar: consoante averbado por Barlow e Clarke, até o início dos anos 2000, 70% do mercado privado era dominado pelas empresas francesas Vivendi e Suez-Lyonnaise. Na sequência remanescente, os autores reforçam a expressiva influência de outras quatro empresas, a saber: a francesa Bouygues-Saur, a alemã RWE-Thames Water, a anglo-americana Bechtel-United Utilities e a americana Enron-Azurix.15
Corroborando com a doutrina apresentada, Amorim tece duras críticas acerca deste modelo que, visando alcançar prioritariamente o lucro, gera um risco real de privação de uma parcela da população no acesso à água. Sob sua perspectiva, a visão estritamente capitalista aplicada à água escancara as desigualdades, fazendo com que essas pessoas se coloquem à margem do apanágio proporcionado pelo grande capital.16
Sem mais delongas, tendo em vista a complexidade do tema, insta mencionar que o presente trabalho não pretende aprofundar a discussão acerca da gestão dos recursos hídricos, no sentido de apresentar argumentos favoráveis ou contrários sobre a privatização e/ou estatização. Todavia, entendemos de antemão que, haurida sob a égide da dignidade humana, não é viável a perpetuação de condutas que obstaculizem o acesso à água, em especial, como vem ocorrendo para as populações mais pobres, conforme apontado no Relatório do PNUD supramencionado.
De parte isto, a seção vindoura se ocupará em analisar a contribuição do Direito Internacional dos Direitos Humanos na construção do reconhecimento de um direito de acesso à água como elemento fulcral na construção de uma vida pautada na dignidade.
III. A contribuição do direito internacional para a afirmação do direito humano à água
Os manuais de Direito Internacional costumam apresentar a noção de que a proteção ao indivíduo é pautada em três vertentes, particularmente: Direito Internacional dos Direitos Humanos, Direito Internacional Humanitário e Direito Internacional dos Refugiados. Assim, averbe-se, de plano, que a presente fração deste manuscrito lançará luzes, em especial, sobre a primeira vertente, relacionando-a com o acesso à água.
Pois bem, os diversos tratados de proteção à pessoa humana surgidos a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, demonstram a preocupação em universalizar as garantias mínimas que devem ser concedidas ao ser humano independentemente de sua nacionalidade, raça, orientação política, religião e quaisquer outras diferenças intrínsecas a sua existência. Tal concepção se subsome pela regra plasmada no artigo 1o. do referido documento, que informa que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos... São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.17
Essencialmente, recorda Cançado Trindade, não havia a busca por impor determinada “forma de organização social, ou modelo de Estado, nem sequer uma uniformidade de políticas”, mas o empenho pela construção de critérios mínimos que convergissem com os valores e preceitos básicos talhados na Declaração e nos dois Pactos adicionais, de sorte a promover a fruição de uma vida digna.18
Nessa perspectiva, é oportuno frisar que a dignidade humana se apresenta como um dos fundamentos dos direitos humanos, visto que a sociedade internacional entendeu necessário que o reconhecimento formal se aliasse, paralelamente, à construção de meios para garantir a sua proteção.19
Portanto, dessume-se que a construção do Direito Internacional dos Direitos Humanos passou a ser baseada na ideia de que os Estados devem respeitar a dignidade humana de forma universal e indivisível.
No ponto, vale mencionar que dentre as várias características apontadas pela doutrina, evidencia-se a inexauribilidade dos direitos humanos, “no sentido de que têm a possibilidade de expansão, a eles podendo ser sempre acrescidos novos direitos a qualquer tempo”, inclusive, podendo ser complementados por direitos advindos de princípios e/ou de tratados interna cionais em matéria de direitos humanos.20
Malgrado a inexistência explícita ao direito de acesso à água no principal instrumento em matéria de proteção aos direitos humanos, qual seja, na DUDH, foi justamente o reconhecimento de que esta vertente ostenta um caráter inexaurível que contribuiu para o avanço da discussão acerca de elevar a água ao patamar de direito indispensável para uma vida digna.
De plano, Márcia Leuzinger, com grande acuidade, afirma que o direito de acesso à água vai muito além do mero direito ao meio ambiente equilibrado, pois, embora relacionados, podem existir hipóteses onde o ambiente natural é preservado sem que as populações locais usufruam os “recursos hídricos para suprir suas necessidades básicas”.21
Todavia, cumpre ressaltar que o reconhecimento formal da água enquanto direito humano não transcorreu de forma imediata, ao contrário, foi um processo árduo até o pleno reconhecimento internacional, cuja sociedade internacional ainda precisa avançar na sua implementação, conforme será demonstrado.
A par de tais considerações, os comentários de Herrera Flores acerca da construção e solidificação dos direitos humanos se amoldam perfeitamente para esta situação. Isso porque, o autor assevera, de forma concisa, que os direitos humanos são direitos conquistados a partir de um processo de luta por acesso aos bens necessários para se levar uma vida digna. Ao ensejo:
Os direitos humanos, mais que direitos “propriamente ditos”, são processos; ou seja, o resultado sempre provisório das lutas que os seres humanos colocam em prática para ter acesso aos bens necessários para a vida. Como vimos, os direitos humanos não devem confundir-se com os direitos positivados no âmbito nacional ou internacional. Uma constituição ou um tratado internacional não criam direitos humanos. Admitir que o direito cria direito significa cair na falácia do positivismo mais retrógrado que não sai de seu próprio círculo vicioso. Daí que, para nós, o problema não é de como um direito se transforma em direito humano, mas sim como um “direito humano” consegue se transformar em direito, ou seja, como consegue obter a garantia jurídica para sua melhor implantação e efetividade. Os direitos humanos são uma convenção cultural que utilizamos para introduzir uma tensão entre os direitos reconhecidos e as práticas sociais que buscam tanto seu reconhecimento positivado como outra forma de reconhecimento ou outro procedimento que garanta algo que é, ao mesmo tempo, exterior e interior a tais normas. Exterior, pois as constituições e tratados “reconhecem” -evidentemente não de um modo neutro nem apolítico- os resultados das lutas sociais que se dão fora do direito, com o objetivo de conseguir um acesso igualitário e não hierarquizado “a priori” aos bens necessários para se viver. Interior, porque essas normas podem dotar tais resultados de certos níveis de garantias para reforçar o seu cumprimento...22
Destarte, Herrera Flores, ao romper com o entendimento jus positivista tradicional, evidencia que os direitos humanos não devem ser amoldados a uma estrutura engessada ou exclusivamente formal. Nesta senda, partindo do pressuposto de que os direitos humanos são inexauríveis e a água é um elemento vital/essencial para a garantia de uma vida digna, é possível inferir que o alcance a este bem se mostra como um verdadeiro direito humano.
Em compasso com tal entendimento, Vandana Shiva eleva o acesso à água ao nível máximo, considerando-o como um direito “que nasce da natureza humana, das condições históricas, das necessidades básicas ou de noções de justiça”.23
Merece menção, por oportuno, as ilações de Fachin e Silva que firmam entendimento de que o direito à água assegura condição mínima de higiene que todo ser humano deve ter, bem como é de interesse do Estado, porquanto se mostra uma medida profilática no controle da difusão de determinadas doenças e, consequente, evita gastos com o tratamento médico de sua população.24
Ora, a par de abrir caminho para o reconhecimento da água enquanto bem indissociável da própria existência humana, vale mencionar, de plano, alguns acontecimentos, tais como: i) a Conferência das Nações Unidas so bre Água, de 1977, realizada em Mar Del Plata, Argentina; ii) a Conferência Internacional sobre a Água e o Desenvolvimento Sustentável, de 1992, realizada em Dublin, Irlanda; iii) a Conferência Internacional das Nações Unidas sobre População e Desenvolvimento, de 1994, realizada no Cairo, Egito; e iv) a Declaração do Milênio das Nações Unidas, de 2000, realizada em Nova Iorque, Estados Unidos.
De igual forma, é digno consignar a importância da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992 (ECO92), que permitiu a formalização de alguns compromissos pelos Estados, no sentido de corroborar com a concepção de que a água é um elemento essencial para existência humana, reforçando, assim, aquilo que fora preconizado na Resolução da Conferência sobre a Água, de 1977. Nessa toada, insta citar, em especial, o item 18(2) da Agenda 21, documento elaborado sob os auspícios da ECO-92:
Water is needed in all aspects of life. The general objective is to make certain that adequate supplies of water of good quality are maintained for the entire population of this planet, while preserving the hydrological, biological and chemical functions of ecosystems, adapting human activities within the capacity limits of nature and combating vectors of water-related diseases. Innovative technologies, including the improvement of indigenous technologies, are needed to fully utilize limited water resources and to safeguard those resources against pollution.25
Na sequência, à guisa de ilustração, convém destacar alguns instrumentos internacionais elaborados a partir da década de 1990, ainda no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), que robusteceram a preocupação no tocante à água, tais como: i) a Declaração Universal do Direito das Águas, de 1992; ii) a Resolução A/RES/54/175 da Assembleia Geral da ONU, de 1999;26iii) a Resolução A/RES/55/2 da Assembleia Geral da ONU, de 2000; iv) a Resolução 2002/6 da Subcomissão das Nações Unidas para a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos sobre a promoção do direito à água potável; v) o Comentário Geral n. 15 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, que veio regulamentar os artigos 11 e 12 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais27; vi) a Resolução 58/217, de 2004, que proclamou o período de 2005 a 2015 como a década de reconhecimento da “Água para a Vida”; e vii) a Resolução A/HRC/RES/7/22, de 2008, que nomeou relator especial para a tratar dos assuntos afetos aos direitos humanos e acesso à água; viii) a Resolução A/HRC/RES/12/8, de 2009, que alerta os Estados para a necessidade de adoção de medidas que visem eliminar as desigualdades no acesso à água e ao saneamento.
Diante dos acontecimentos e instrumentos jurídicos reportados acima, percebe-se, portanto, que o reconhecimento formal da relevância da água foi fruto de um processo laborioso que gradativamente e, em descompasso aos interesses de determinados grupos econômicos, passou a ser compreendido como indispensável para uma vida digna e de preocupação da sociedade internacional.
Todavia, imperioso aludir que o grande marco sobreveio através da Resolução A/RES/64/292 da Assembleia Geral da ONU, de 2010, que reconheceu, pela primeira vez e de forma inequívoca, o acesso à água potável e o saneamento básico como parte dos direitos humanos.28
Em conveniente glosa acerca da matéria, Barlow ressalta que a referida Resolução foi um feito histórico, posto que reconheceu expressamente o direito humano à água potável e ao saneamento, relacionando-o com o pleno gozo do direito à vida.29
Frisa-se, por oportuno, que diante da aprovação não unânime do docu mento, foi apresentada, em 2015, a Resolução A/RES/70/169 da Assembleia Geral da ONU, cujo conteúdo foi aprovado, desta vez, por unanimidade e que serviu para ampliar o escopo tratado na resolução anterior, bem como para assegurar legitimidade política internacional.30
Não obstante todo esforço em formalizar o acesso à água como um direito humano, não é prudente acreditar que esses instrumentos internacionais foram suficientes para garantir a água a todos os povos. Isso porque, há de se recordar que as orientações cunhadas nos instrumentos internacionais em matéria ambiental costumam ser erigidas através da soft law, o que por vezes representa um obstáculo na concretização de direitos, já que não geram obrigações positivas.31
Nestes termos, convém ainda lembrar o ensinamento de Herrera Flores no qual o autor afirma que a mera positivação não assegura ou cria qualquer direito, uma vez que a norma jurídica, ao usar o termo “ser”, transmite a noção de “deverá ser”, pois caso suas premissas fossem entendidas como algo concreto, seriam descrições sociológicas ou um mero fato. Noutras palavras, nota-se a necessidade de perseguição constante da concretização dos valores formalmente consagrados, no sentido de que
...uma norma, e isso tem de ser reconhecido desde o princípio, não é mais que um meio, um instrumento a partir do qual se estabelecem caminhos, procedimentos e tempos para satisfazer, de um modo “normativo”, as necessidades e demandas da sociedade. Uma norma nada mais pode fazer por si só, já que sempre depende do conjunto de valores que impera em uma sociedade concreta.32
Diante do quadro esboçado, importante se faz esclarecer que a ONU, ao declarar o acesso à água como um direito humano, não visou extinguir a cobrança de tarifas ou permitir o seu uso ilimitado. Deveras, o que se buscou foi garantir que os serviços de água e saneamento tenham preços razoáveis, sendo a contribuição de acordo com as possibilidades de cada indivíduo. Com efeito, espera-se que através do uso consciente da água as pessoas possam desenvolver suas atividades domésticas e pessoais de forma a resguardar, igualmente, o acesso às futuras gerações.
Nessa mesma linha de raciocínio, Livia Campello e Pedro Gonçalves asseveram que:
Na realidade, o marco jurídico dos direitos humanos visa estabelecer diretrizes para garantir o acesso à água potável segura e a preços módicos, evitando a ocorrência de abusos por parte dos detentores do direito de propriedade sobre a água, os quais podem estabelecer quadro tarifário no qual a(o) cidadã(o) é compelida(o) a realizar escolhas difíceis entre o abastecimento de água potável ou a satisfação de outros direitos tão caros à dignidade humana como a alimentação, saúde e moradia.33
Portanto, à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos percebe-se não haver compatibilidade com a perpetuação de práticas de supressão do direito concernente ao acesso à água, posto o seu caráter de elemento essencial para uma vida digna. De parte isto, a próxima seção se propõe a tecer algumas reflexões sobre a influência que este reconhecimento internacional gerou no âmbito interno brasileiro, em especial, ao escrutínio da Proposta de Emenda Constitucional nº 4, de 2018, e a sua relevância para a consagração do direito de acesso à água no Brasil.
IV. A água enquanto direito fundamental à luz da proposta de emenda à constituição no. 4, de 2018
Os desafios impostos no que tange ao direito de acesso à água não atingem a sociedade internacional de maneira abstrata. Ao contrário, nota-se de maneira concreta que o Brasil, por exemplo, também se vê impulsionado a adotar medidas que assegurem o pleno gozo deste direito, em especial, engendrando esforços para que se possa alcançar a devida segurança hídrica. Sobre isso, o Plano Nacional de Segurança Hídrica (PNSH), elaborado pela Agência Nacional de Águas, informa que:
A Segurança Hídrica, de acordo com o conceito da Organização das Nações Unidas (ONU), existe quando há disponibilidade de água em quantidade e qualidade suficientes para o atendimento às necessidades humanas, à prática das atividades econômicas e à conservação dos ecossistemas aquáticos, acompanhada de um nível aceitável de risco relacionado a secas e cheias, devendo ser consideradas as suas quatro dimensões como balizadoras do planejamento da oferta e do uso da água em um país.34
Sob essa perspectiva, o PNSH sinaliza que há fragilidade interna em matéria hídrica, mui especialmente, pela carestia de investimentos em infraestrutura e ausência de planos que definam critérios para gestão de riscos. Assim, reputa-se “fundamental a existência de um roteiro comum que oriente os investimentos, construído a partir de uma base única de diagnóstico e metodologia de análise integrada dos déficits hídricos e das soluções requeridas em todo o território nacional”.35
Para além dos problemas apontados no PNSH, cumpre, ao ensejo, destacar o que fora observado por Nestor Santiago e Patrícia Vieira no sentido de que, no caso brasileiro, a urbanização desarticulada culminou na falta de acesso à água potável e ao saneamento básico, evidenciando a precariedade das políticas habitacionais, os efeitos nocivos da especulação imobiliária, a deficiente ação do Estado e as desigualdades sociais, sendo, portanto, um “desastre social, não natural”. Diante do que vêm ocorrendo, os autores entendem que cabe ao Estado “uma maior intervenção em direção à expansão do alcance desses serviços essenciais, inclusive, atinente a possibilidade de positivação constitucional”.36
Pois bem, conforme delineado na seção anterior, o Direito Internacional trouxe relevante contribuição para o efetivo reconhecimento da água enquanto um direito humano, muito embora não tenha sido suficiente para torná-lo um direito fundamental à luz da legislação brasileira.
De molde a que se possa dotar a presente seção de assimilação dos sentidos ora empregados, impende, preliminarmente, ressaltar que a doutrina pátria alude que os direitos humanos não se confundem com direitos fundamentais. Consoante averbado por Valerio Mazzuoli, os direitos humanos se relacionam a um conjunto de direitos consagrados em tratados ou costumes internacionais, ao passo que os direitos fundamentais são aqueles transubstanciados nas cartas constitucionais, de sorte a serem “direitos garantidos e limitados no tempo e no espaço, objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta”.37
Ressalte-se, todavia, que não se pode menoscabar a congruência do sentido dos termos aventados, qual seja: ambos refletem a persecução pelo reconhecimento de direitos indispensáveis para uma vida digna. Assim é que se mostra perfeitamente cabível que a legislação internacional em matéria de proteção à pessoa humana influencie a construção do direito interno do Estado.
Por tal razão, ponto digno de abordagem é o fato de que a doutrina vem manifestando uma tendência a relacionar cada vez mais o Direito Constitucional e o Direito Internacional dos Direitos Humanos.
No ponto, consoante assevera Gardbaum, o sistema de direitos humanos pode ser pensado como mais uma etapa no desenvolvimento histórico da ideia de constitucionalismo. Isso porque, ao recordar os antecedentes acerca do desenvolvimento do constitucionalismo, o autor afirma que na ordem pré-constitucionalista a soberania era conceituada como absoluta e indivisível, como também era centralizada na figura do monarca. No seu desenvolvimento, o primeiro estágio do constitucionalismo reafirmou o caráter absoluto e indivisível da soberania, porém cujo exercício passou a ser do povo através de seus representantes (soberania popular). Já no segundo estágio do constitucionalismo, os limites ao exercício do poder passaram a ser legalizados e também muitas vezes judicializados, a partir de limites e mecanismos de aplicação elaborados internamente (constitucionalismo doméstico). Por fim, neste novo e atual estágio, o autor entende que os limites legais passam a ser impostos pelo Direito Internacional, bem como interpretados e aplicados por atores estatais internacionais ao invés de sujeitos exclusivamente nacionais, fazendo florescer o chamado constitucionalismo global.38
Ora, em que pese a Constituição Federal tenha atribuído à água a qualidade de bem de domínio público (segundo os artigos 20, III e 26, I), bem como tenha dedicado atenção especial ao meio ambiente (nos termos do artigo 225), não houve qualquer menção expressa que reconhecesse a água como um direito fundamental à luz do direito brasileiro.
A fim de amainar a celeuma advinda desta ausência e atento às discussões internacionais acerca do tema, o Senado Federal apresentou, em 2018, uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC n. 4, de 2018) que altera o artigo 5º da Constituição Federal, no sentido de inserir formalmente o acesso à água no rol de direitos e garantias fundamentais.39 Averbe-se que atualmente a referida proposta está registrada na Câmara dos Deputados sob a designação de PEC n. 6, de 2021, e contou com o parecer favorável do relator, Deputado Geninho Zuliani (Partido Democratas/São Paulo), atestando a admissibilidade na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC).40
O projeto inicial, de autoria do então Senador Jorge Viana (Partido dos Trabalhadores/Acre), deixa explícita a influência do Direito Internacional, visto que faz alusão à Resolução A/RES/64/292 da Assembleia Geral da ONU, de 2010, que reconheceu o direito ao acesso à água potável e ao saneamento como direito humano essencial ao pleno desfrute da vida.
Ante tais considerações, por obra da PEC em comento, propõe-se que o artigo 5o. da Constituição da República Federativa do Brasil passe a vigorar com a seguinte redação: “Artigo 5o.... LXXIX - é garantido a todos o acesso à água potável em quantidade adequada para possibilitar meios de vida, bem-estar e desenvolvimento socioeconômico”.
Acerca disto, observa-se que caso a proposta seja exitosa, o direito à água deverá constar no inciso LXXX, do artigo 5o., da Constituição Federal, tendo em vista que recentemente, por intermédio da Emenda Constitucional n. 115, de 2022, o direito à proteção dos dados pessoais passou a ser previsto no inciso LXXIX.
Cumpre registrar, ainda, que um dos motivos que servem como justificativa para a PEC n. 4, de 2018 (atualmente PEC N. 6/2021) é o risco de exclusão de determinados grupos vulneráveis no acesso à água, o que poderia levar ao acirramento de tensões envolvendo relações de poder e de dominação do território.
No ponto, ao expor tais adversidades, em especial, na região do semiárido brasileiro, o Poder Legislativo se mostra empenhado em abrir caminhos para a estruturação de meios que obstaculizem a incidência do fenômeno do water grabbing. Assim, caso haja a inserção do novo inciso ao artigo 5o. da Constituição Federal, o direito pátrio se apresentará na vanguarda da proteção ao acesso à água, tendo em vista que, segundo apontado por Parola e Amorim, não existe no Direito Internacional um instrumento capaz de regular de maneira específica a questão acerca da gestão e apropriação de recursos hídricos.41
Trazendo novamente as contribuições exaradas no campo do Direito Internacional dos Direitos Humanos, Campello e Gonçalves consideram que mesmo que os efeitos infaustos sobre o direito à vida e à saúde não sejam notados imediatamente, “a pessoa sofre violação ao direito à água potável ao não ter acesso a fontes seguras, ao residir distante da fonte de água, ao receber quantidades diárias inferiores ao consumo para atender as necessidades de higiene e alimentação”.42 Nesta senda, caso a proposta seja aprovada, consagrar-se-á o nascimento de um direito autônomo no plano interno, não derivado, por exemplo, do direito à vida e à saúde.
De parte isto, Santiago e Vieira asseveram que a nova redação do texto constitucional guarnecerá os aplicadores do direito de meios adequados para garantir o acesso à água e mitigar interesses sociais, econômicos e mercantis. Entrementes, os autores pleiteiam que a proposta seria mais agregadora se incluísse “expressamente, o saneamento básico no rol dos direitos fundamentais, tendo em vista sua relação intrínseca com a saúde, qualidade de vida e desenvolvimento da sociedade como um todo”.43
Todavia, faz-se prudente aparar algumas arestas, tendo em consideração que a referida proposta, por si só, não cria meios adequados para garantir o acesso à água, ou seja, não há qualquer menção acerca de instrumentos e/ou elaboração de políticas públicas que viabilizem o efetivo gozo deste direito, embora abra caminhos para a judicialização, conforme será demonstrado.
A despeito disto, entende-se, por certo, que o reconhecimento formal da água enquanto direito fundamental pode se mostrar positivo por permitir ao Estado a ampliação e construção de (novos) instrumentos eficazes que sejam capazes de garantir o acesso à água à população brasileira. Assim, espera-se que o aludido projeto gere no poder público o dever de engendrar esforços para a elaboração de um plano a nível nacional que subsidie a aplicação de recursos financeiros para aperfeiçoar a dinâmica do compartilhamento dos recursos hídricos.
Com grande acuidade, Gorczevski e Irigaray asseveram que, nos moldes do que proclama o artigo 5o., §1o. da Carta Magna, as normas veiculadoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata. Isto posto, os autores ponderam, ainda, que, em respeito ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, erige-se “a possibilidade de se reivindicar judicialmente a satisfação de tais direitos pela via individual, nos casos de omissão ou atuação insuficiente da Administração Pública”.44
Portanto, caso o Estado se mantenha omisso no sentido de assegurar o devido acesso à água, uma vez havendo a inserção do novo inciso ao artigo 5º reconhecendo a água como direito fundamental, haverá a possibilidade concreta de reivindicar judicialmente a plena fruição deste direito.
Insta, por derradeiro, recordar as considerações de João Hélio Pes, que pleiteia pela possibilidade de aplicação do reconhecimento do acesso à água como um direito fundamental ainda que tal situação não seja enumerada no texto constitucional. Isso porque, a reafirmação do direito surgiria através da interpretação de cláusula aberta, consoante reza o artigo 5o., §2o. da Constituição Federal ao preconizar: “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.45
Por certo, as conferências, compromissos e instrumentos jurídicos mencionados alhures traduzem o entendimento de grande parte da sociedade internacional no sentido de busca pela proteção dos recursos hídricos e, consequentemente, para a promoção efetiva do acesso à água potável. E, nesta conjuntura, o Brasil não pode se manter inerte.
Desta feita, sob todas as perspectivas ora assentadas, entende-se que o reconhecimento expresso do direito de acesso à água no plano interno ratificará o compromisso internacional do Brasil com os direitos humanos e ampliará o acesso à água. Todavia, ainda que a PEC n. 4, de 2018, não logre êxito e reste por não ser aprovada, a Constituição Federal reconhece implicitamente a água como direito fundamental, tendo em vista o seu caráter de essencialidade para uma vida digna porquanto atende as aspirações frente à dignidade humana, consubstanciada no artigo 1o., III da Carta Maior.
V. Conclusões
Diante do atual momento no qual a sociedade clama pelo fortalecimento da proteção da pessoa humana, não se pode mais admitir a privação do direito de acesso à água em favor do interesse econômico. Isso seria um retrocesso, pois indiretamente estar-se-ia relativizando o direito à vida e à saúde sem qualquer razoabilidade.
Com o intuito de franquear ao leitor uma perspectiva dos pontos retro esposados no corrente estudo, é preciso considerar que:
Existem grupos econômicos que buscam aplicar princípios mercatórios no acesso à água. Logo, não é inoportuno reconhecer a necessidade de discutir o assunto levando em consideração o meio ambiente, a dignidade humana e o desenvolvimento sustentável.
O Direito Internacional trouxe relevante contribuição para que se pudesse reconhecer formalmente o acesso à água como um direito humano, portanto, reafirmando se tratar de um direito indispensável para que indivíduo tenha uma vida pautada na dignidade.
O Direito Internacional não é distante do direito interno. Ao escrutinar a Proposta de Emenda Constitucional N. 4, de 2018, nota-se evidente influência do Direito Internacional, em especial, ao mencionar a Resolução A/RES/64/292 da Assembleia Geral da ONU, de 2010.
A aprovação e promulgação da Proposta de Emenda Constitucional N. 4, de 2018, representa um passo importante na efetivação do direito de acesso à água, posto que ampliará o rol protetivo de direitos e garantias fundamentais, permitindo, inclusive, que políticas públicas sejam elaboradas para garantir o acesso à água no Brasil.
Portanto, sem intento de causar qualquer sobressalto, observa-se que o esforço da sociedade internacional em criar instrumentos capazes de assegurar formalmente o direito humano de acesso à água, apesar de louvável, não pode ser considerado um objetivo alcançado.
Averbe-se, todavia, que as proposições ora salientadas não buscam exaurir a discussão. Ao contrário, espera-se que o debate seja amplificado de sorte a que se possa buscar constantemente, no Brasil ou alhures, a garantia de acesso aos bens mínimos para uma existência digna, em especial, com o devido acesso à água potável.