Introdução
O estudo a que se reporta este artigo foi realizado no contexto da pandemia do Covid-19 e teve como objetivo trazer ao debate alguns de seus impactos no campo educacional, mais especificamente em instituições de ensino superior (IES), situadas na Amazônia brasileira. Nessa situação contingencial, em 2020, o ensino presencial teve de ser suspenso por razões de segurança sanitária, impostas para conter a propagação do coronavírus e evitar o colapso nos sistemas de saúde pelo mundo. Medidas de isolamento social foram recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e adotadas pelos países que seguem orientações científicas. Algumas IES iniciaram aulas remotas, mediadas por tecnologias digitais, e a internet passou a ser essencial para esse modo de trabalho on-line, que alterou a forma como a educação havia sido administrada até àquele momento. Como afirmou o relatório Broadband Commission for Sustainable Development (2020) da UNESCO e da UNICEF, a utilização de tecnologias digitais da informação e comunicação (TDIC) teve um incremento sem precedentes e colocou às instituições desafios que as afetaram de modo diferente, tendo em conta, quer as características que possuíam, quer as realidades com que conviviam. Ao mesmo tempo, essa passagem do ensino presencial para o ensino remoto ou a distância, de modo emergencial, oportunizou também muitas reflexões, de onde é possível extrair lições que podem ser úteis na avaliação das políticas educacionais e no modo como as IES estão preparadas para enfrentar situações não previstas.
Tendo esta situação como ponto de partida, foi realizado o estudo a que este artigo se reporta e que se orientou pelos seguintes objetivos:
Conhecer como as duas universidades públicas, situadas em uma cidade do contexto amazônico, enfrentaram as medidas sanitárias impostas pela pandemia da Covid-19.
Analisar as consequências das medidas sanitárias de prevenção à propagação da Covid-19 nos processos de ensino e aprendizagem dos estudantes dessas IES.
Inferir a importância de planos alternativos para médio e longo prazos, como os definidos no âmbito da União Europeia, que visam alfabetizar digitalmente as pessoas.
Metodologia
Procedimentos de obtenção de dados
Para a obtenção de dados sobre efeitos das medidas sanitárias impostas pela pandemia do Covid-19 nas duas universidades públicas situadas em uma cidade da Amazônia brasileira, foram realizadas entrevistas com os seus gestores. Essas entrevistas tiveram o intuito de obter informações sobre concepções, expectativas e percepções destes dirigentes sobre efeitos da pandemia. Além das entrevistas com estes gestores, foi realizada uma pesquisa sobre a legislação educacional emanada pelas autoridades brasileiras no período da pandemia que alterou, não apenas o ordenamento jurídico como também regulamentou a própria forma como a educação passou a acontecer em território brasileiro. No total, encontramos: três portarias ministeriais oriundas do Ministério da Educação (MEC); seis pareceres aprovados pelo Conselho Pleno (CP), do Conselho Nacional de Educação (CNE); uma lei ordinária (que alterou uma lei anterior à pandemia); e um despacho ministerial. Todos os itens elencados possuem relação direta com as modificações que impeliram as instituições, os profissionais de educação e os estudantes a se adaptarem à nova realidade do ensino mediado pelas tecnologias digitais.
Procedimento de análise de dados
Os dados oriundos dessa pesquisa foram submetidos à análise de conteúdo, nos termos propostos por Bardin (1977), que permite que façamos análises de fontes verbais e não verbais e, a partir das categorias criadas, realizar deduções que ajudam a compreender melhor o texto ou o que é dito, e estabelecer analogias ao contexto social de forma objetiva. Um dos objetivos da autora é o favorecimento de uma compreensão em profundidade do que está presente na mensagem que se está analisando, minorando, com este recurso, eventuais subjetividades. A análise categorial é a técnica utilizada para o tratamento dos dados e consiste em realizar uma classificação a partir dos itens de sentido presentes nos textos, ou nos discursos. É esse procedimento que permite elencar os elementos de significação que constituem a mensagem (Bardin, 1977: 36). O procedimento foi o seguinte: transcrições de entrevistas e leitura de legislação a fim de perceber se servem ao escopo da pesquisa; elaboração das categorias gerais de análise; tratamento dos resultados, em que se identificaram mensagens relevantes para a investigação (Bardin, 1977: 95-118).
A escolha dos entrevistados foi determinada por se reconhecer que os gestores são os atores que instrumentalizam as medidas políticas nos ambientes organizacionais das IES e são os que, na pandemia, tiveram de encontrar soluções.
As entrevistas, do tipo semiestruturadas (Boni e Quaresma, 2005; Batista et al., 2017), foram antecedidas pela elaboração de um guia. Nele, foram elencadas categorias gerais para a obtenção de informação na sua relação com os objetivos do estudo. A essas categorias prévias foram acrescentadas as que emergiram da análise dos discursos dos entrevistados relativamente a impactos da pandemia e como essas universidades reagiram.
A lista de categorias de análise, que ajudou a classificar os temas que nos auxiliaram na compreensão da realidade, estudada nessa investigação, foi:
Impactos da pandemia na educação
Como as universidades reagiram na pandemia
Papel social da universidade
Aulas remotas/ensino híbrido
Legislação educacional/o que se vislumbra para o futuro da educação
É em função dessas categorias que, depois das referências à legislação brasileira diante da pandemia, os dados obtidos por entrevistas a gestores universitários são acompanhados pelo que foi produzido na legislação educacional.
Legislação educacional brasileira diante da pandemia
Dentre as mudanças que ocorreram no sistema educacional brasileiro, no enfrentamento emergencial da pandemia, a principal foi a passagem das aulas dos ambientes físicos para os ambientes virtuais, mediados pela tecnologia, isto é, as aulas passaram a ocorrer de modo remoto, on-line. No campo dos eventos acadêmicos, os seminários de debate passaram também a ser webnários, tendo a internet assumido um papel de protagonista fundamental, pois passou a ser usada como um meio através do qual as atividades acadêmicas passaram a ser desenvolvidas.
No Brasil, as providências tomadas pelos gestores incluíram o uso da tecnologia, até então pouco aceite por parte de alguns educadores que recorriam apenas ao método presencial de ensino e viam o ensino a distância com desconfiança. Todavia, foi o uso do digital que apareceu como solução para o prosseguimento das atividades educacionais. Quando começaram a surgir os primeiros casos de Covid-19 no Brasil, com vítimas fatais, as autoridades começaram a publicar legislação para que os órgãos públicos e a sociedade civil se adequassem à nova realidade. Em 18 de março de 2020, a Portaria 343/2020, publicada no Diário Oficial da União (DOU), regularizou a “substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus-Covid-19”. A partir de então, as instituições públicas e as privadas passaram a estar autorizadas a modificar seus modelos de ensino e seus desenhos curriculares para se adequarem à nova situação.
Em 19 de março de 2020, segundo matéria do G1, portal de notícias, da maior emissora jornalística do país, havia 647 infectados, de acordo com dados oriundos das Secretarias de Saúde dos Estados, e 621, de acordo com o Ministério da Saúde, espalhados por vinte e um estados. Além disso, sete pessoas haviam morrido de Covid-19, sendo cinco em São Paulo e duas no Rio de Janeiro. Diante desse quadro, as autoridades perceberam que era preciso enfrentar o problema e, no dia 20 de março, o Decreto Legislativo 6/2020 foi publicado (DOU, 2020a). Este Decreto reconheceu o “estado de calamidade pública”, solicitado pela presidência da República por meio da Mensagem 93, de 18 de março de 2020. Quando é decretado o estado de calamidade, os gastos públicos podem ser aumentados, sem precisarem de cumprir as metas de austeridade fiscal previstas. A declaração do estado de calamidade agilizou a tomada de decisão pelos órgãos que tratam sobre a legislação educacional.
Em 28 de abril de 2020, o Conselho Nacional de Educação, em reunião do Conselho Pleno, aprovou o Parecer CNE/CP 5/2020 (MEC, 2020a) que reorganizou o calendário escolar e a possibilidade de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da pandemia do Covid-19. Esse parecer foi fundamental para desengessar a legislação, que era rígida em relação às atividades presenciais e ao cumprimento da carga horária mínima presencial.
Em 8 de junho de 2020, o Conselho Nacional de Educação aprovou o Parecer CNE/CP 9/2020 (MEC, 2020b) em que reexaminou o Parecer CNE/CP 5/2020, aprovando-o parcialmente. A única parte do documento que não foi aprovada foi a que colocava dúvidas sobre os processos de avaliações e do Exame Nacional do Ensino Médio-ENEM.
No dia 16 de junho de 2020, o MEC publicou a Portaria MEC 544/2020 (DOU, 2020b) que autorizou a substituição das aulas presenciais por aulas realizadas em meios digitais, no período da pandemia. Essa Portaria revogou Portarias anteriores que tratavam sobre a mesma temática. Assim, ficaram revogadas as Portarias MEC 343, de 17 de março de 2020; 345, de 19 de março de 2020, e 473, de 12 de maio de 2020.
Em 7 de julho de 2020, o Conselho Pleno, do Conselho Nacional de Educação, aprovou o Parecer CNE/CP 11/2020 (MEC, 2020c), que continha orientações educacionais, visando a realização de aulas e atividades pedagógicas presenciais e não presenciais no contexto da pandemia, adequando a legislação para o retorno paulatino às aulas presenciais, segundo as autoridades sanitárias locais, em razão da evolução da pandemia do Covid-19.
No dia 19 de agosto foi publicada, no Diário Oficial da União (DOU, 2020c), a Lei 14 040/2020, que estabeleceu “normas educacionais excepcionais a serem adotadas durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020”. Houve a percepção que a pandemia iria durar mais tempo do que se supunha anteriormente e por causa disso era necessário regulamentar a situação excepcional no ordenamento jurídico brasileiro.
O Parecer CNE/CP 15/2020, de 6 de outubro de 2020 (MEC, 2020d), aprovou as Diretrizes Nacionais visando a implementação dos dispositivos da Lei 14 040, que foi aprovada em 18 de agosto de 2020. O documento é extenso, tem cento e seis páginas e versa desde o retorno às aulas presenciais, perpassando pela “reposição da carga horária presencial ao final do período de emergência”, disciplinando todos os níveis e modalidades de educação, tratando, a partir da página 60, da educação superior. Transparece, da leitura do documento, que as autoridades trabalhavam com a hipótese de que a pandemia recrudesceria no Brasil e que o retorno às atividades presenciais estava próximo. De fato, a Portaria MEC 1 030, de 1º de dezembro de 2020 (DOU, 2020d), determina que as atividades letivas realizadas pelas IES, integrante do sistema federal de ensino deverão ocorrer de forma presencial, “recomendada a observância de protocolos de biossegurança para o enfrentamento da pandemia de Covid-19”. Nessa Portaria, o artigo 2º refere:
Art. 2º Os recursos educacionais digitais, tecnologias de informação e comunicação ou outros meios convencionais deverão ser utilizados de forma complementar, em caráter excepcional, para integralização da carga horária das atividades pedagógicas, no cumprimento das medidas para enfrentamento da pandemia de Covid-19 estabelecidas no Protocolo de Biossegurança instituído na Portaria MEC nº 572, de 2020.
§ 1º Será de responsabilidade das instituições, nas hipóteses a que refere o caput:
I - a definição dos componentes curriculares que utilizarão os recursos educacionais digitais;
II - a disponibilização de recursos aos alunos que permitam o acompanhamento das atividades letivas ofertadas; e
III - a realização de avaliações.
§ 2º No que se refere às práticas profissionais de estágios ou às práticas que exijam laboratórios especializados, a aplicação da excepcionalidade de que trata o caput deve obedecer às Diretrizes Nacionais Curriculares aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação - CNE, ficando vedada a aplicação da excepcionalidade àqueles cursos que não estejam disciplinados pelo CNE.
§ 3º A aplicação da excepcionalidade nas práticas profissionais ou nas práticas que exijam laboratórios especializados de que trata o § 2º deve constar de planos de trabalhos específicos, aprovados no âmbito institucional pelos colegiados de cursos e apensados ao projeto pedagógico do curso.
§ 4º Especificamente para o curso de Medicina, fica autorizada a excepcionalidade de que trata o caput apenas às disciplinas teórico-cognitivas do primeiro ao quarto ano do curso, conforme disciplinado pelo CNE.
§ 5º As instituições deverão comunicar ao Ministério da Educação caso utilizem-se dos recursos de que trata o caput, mediante ofício, em até quinze dias após o início destas (Brasil, 2020: 1).
Importante realçar que, por um lado, é expresso o uso dos meios digitais de forma complementar e em caráter excepcional, mas, por outro, que, se não se conseguir controlar a pandemia, como de fato aconteceu, os sistemas de ensino ficam desde logo autorizados a utilizar meios digitais de forma integral, quando houver a suspensão das atividades presenciais por autoridades sanitárias locais. Foi exatamente o que ocorreu durante o ano de 2020 e continuou acontecendo no Brasil, no primeiro semestre de 2021. Apesar disso, essa Portaria trouxe uma previsão de retorno de atividades presenciais, situação que não se concretizou. A redação da Portaria mostra que o MEC já trabalhava com a noção de que o “negacionismo”1 do Governo Federal, levado adiante pelo presidente do Brasil, não ajudaria o país a sair da situação em que se encontrava com grande número de óbitos.
O ano de 2020 encerrou com o Parecer CNE/CP 19, de 8 de dezembro de 2020 (MEC, 2020e), que reexaminou o Parecer CNE/CP 15, de 6 de outubro de 2020. Esta legislação, relativa a “Diretrizes Nacionais para a implementação dos dispositivos da Lei 14 040/2020”, não afetou o ensino superior.
Convém referir que, no Brasil, a educação por meios digitais tem sido chamada de modo recorrente de ensino remoto e como já havia, antes da pandemia, uma modalidade de educação que utilizava a internet para se desenvolver, convém fazer uma distinção conceitual entre os termos educação a distância (ED) e ensino remoto.
No site oficial da Universidade Federal de Goiás, por exemplo, há uma nota explicativa que expõe essa diferenciação. A nota esclarece que educação a distância (ED) é diferenciada da modalidade presencial em razão de suas especificidades. Trata-se de um processo educacional planejado, em que as atividades de ensino e aprendizagem ocorrem em lugares e momentos diferentes tanto para os professores quanto para os discentes. A concepção didático-pedagógica da ED encontra-se alicerçada na mediação, sobremaneira, das tecnologias digitais de informação e de comunicação. A diferença entre a ED e o ensino remoto ocorre porque o segundo: está sendo utilizado em razão de uma situação emergencial e não é fruto de uma vontade deliberada de realizar uma educação nesse formato; passou a ser ministrada dessa maneira em razão das circunstâncias sanitárias e das medidas emergenciais que o momento exigiu. O ensino remoto pode receber outros termos como educação remota, ensino virtual, educação virtual, educação on-line, etc., mas nenhum deles deve ser utilizado como sinônimo de educação a distância (UFG, 2020).
No site do Centro Universitário Maurício de Nassau, há um texto sobre esses termos, escrito por Leal (2020), que menciona que a literatura educacional não havia conceituado ensino remoto por ser uma expressão nova, advinda recentemente como consequência da pandemia, já o conceito de ED, está no artigo 80 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9 394/1996. Neste, as aulas são assíncronas, enquanto na modalidade de ensino remoto, a atividade deve ocorrer de modo sincrônico, sendo que tanto professores quanto estudantes devem estar ao mesmo tempo nas salas virtuais, já que a modalidade remota reproduziria o ambiente diário de sala de aula, porém de modo on-line.
No Brasil, ambas as modalidades, ED e ensino remoto, articularam ações pedagógicas por intermédio da tecnologia da informação e da comunicação (TIC). Além disso, do mesmo modo, ambas também passaram por processos organizacionais cujos planejamentos são voltados para o uso dos meios digitais (Charczuk, 2020). Por causa disso, podemos inferir que são parcialmente aproximados, porém, na classificação conceitual utilizada no Brasil, trata-se de coisas diferentes e devemos ter o cuidado para não cometer o equívoco de confundi-las.
Apresentação e discussão dos dados
As duas IES pesquisadas possuem características distintas: uma é estadual e oferece majoritariamente cursos voltados para a área da saúde; a outra é federal e possui uma estrutura maior, oferecendo cursos desde a área de educação a áreas de tecnologia, saúde, ciências agrárias, naturais e ambiental. São as únicas instituições públicas que existem na cidade a que se refere o estudo e têm as características a seguir apresentadas.
Universidade estadual. Trata-se de uma instituição estadual de ensino superior (IEES) pública e gratuita, encravada no interior da Amazônia, que realiza formação principalmente na área de ciências da saúde. De acordo com o site oficial da instituição, foi criada em 1993, decorrente da fusão de faculdades estaduais de Enfermagem, Medicina, Educação Física e Educação. De lá para cá, vem desenvolvendo atividades de ensino, pesquisa e extensão nas áreas da Saúde, da Educação e da Tecnologia, sendo esta última área não ofertada na região pesquisada. Essa instituição chega ao interior da Amazônia a partir de um processo de interiorização e está presente em dez regiões (do total de doze) do Estado do Pará. No total, possui cinco campi na capital e outros distribuídos em 16 municípios.
Universidade federal. É uma Instituição Federal de Ensino Superior (IFES) pública e gratuita, criada em 2009 e vinculada ao MEC, com o objetivo de ministrar o ensino superior, desenvolver pesquisas nas diversas áreas do conhecimento, promover a extensão universitária, visando levar formação a locais longínquos. A ideia desse projeto expansionista do ensino superior foi aprofundar a possibilidade de acesso a este nível de ensino por populações do interior e de cidades pequenas, que fazem parte da Amazônia brasileira. Tem porte de universidade grande, possuindo trinta e quatro cursos de graduação que ocorriam todos na modalidade presencial antes da pandemia, e que estão dispersos em seis institutos abrangendo áreas como as ciências agrárias, as ciências da educação, as ciências da natureza, as ciências da saúde, engenharias, geofísica e geologia. Estas áreas contemplam treze programas de pós-graduação em nível de mestrado e quatro programas de doutorado, sendo três em rede com outras instituições e um deles assegurado por esta universidade, sem ser em parceria.
Os impactos da pandemia nas IES
O estado de calamidade que obrigou as IES no Brasil a recorrerem a meios digitais não foi muito diferente do que aconteceu em muitos outros países. Como referem Pokhrel e Chhetri (2021), a pandemia obrigou a uma “Educação em Emergência” para a qual não se estava preparado. No caso das instituições públicas da cidade do interior da Amazônia a que diz respeito este artigo, a situação é a que a seguir se apresenta. Os dados são organizados pelas categorias que a análise de conteúdo permitiu identificar.
Na IEES, o calendário acadêmico foi suspenso por seis meses, devido às medidas de segurança e isolamento social recomendadas e pelo fato dessa instituição precisar de um tempo para se organizar de acordo com a nova conjuntura. Nessa universidade estadual, as atividades de ensino e aprendizagem ficaram suspensas de março a setembro de 2020. Como acontece em muitos outros países, as universidades brasileiras, conforme o que está disposto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), artigo 53, possuem em seu ordenamento jurídico, autonomia didático-científica. Como é referido no artigo 207 da Constituição Federal do Brasil: “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. Para que possam gozar dessas prerrogativas, as universidades constituem os seus conselhos superiores, que são instâncias de deliberação de onde emanam as normas internas que serão seguidas pela instituição, que deve operar dentro de uma lógica democrática e onde quem ali trabalha e os estudantes possuem assento e poder de voto, na proporção que a lei recomenda.
Face à situação da pandemia, o Conselho Superior da IEES reuniu-se, o que também ocorreu com os colegiados dos cursos dessa universidade, e passou a trabalhar na elaboração de uma proposta de ensino híbrido em que os estudantes pudessem ter aulas presenciais, mas também remotas, seguindo o que a legislação apresentada em ponto anterior deste artigo determinou. Como efeito dessa medida e dessa legislação publicada devido à pandemia, o funcionamento administrativo da instituição passou a ter um horário especial, em regime de escala, e muitos fluxos administrativos passaram a ser realizados exclusivamente on-line.
Na IFES, houve a suspensão do calendário acadêmico regular por 11 meses ficando a maioria dos estudantes, durante esse período, sem atividades de ensino e aprendizagem, exceto os alunos concluintes que puderam concluir o curso em um semestre especial ocorrido inteiramente on-line. As atividades regulares foram suspensas em março de 2020 e retornaram apenas em fevereiro de 2021. A paralisação das atividades por todos estes meses resulta do fato da IFES ter uma identidade regional com alunos de cidades do interior da Amazônia, assim como indígenas, quilombolas, pessoas de comunidades ribeirinhas etc., para além dos que habitam o meio urbano. Muitos destes grupos não possuem boa situação socioeconômica ou não teriam condições de acompanhar aulas não presenciais, que ocorreriam on-line, conforme foi reivindicado por seus representantes estudantis no Conselho Superior da Instituição, na ocasião em que se discutia o retorno ou a suspensão do calendário acadêmico, ainda em março de 2020, no início da pandemia. Desse modo, a instituição teve de se reorganizar não apenas em relação ao planejamento didático-científico para as aulas on-line, mas também para organizar seu orçamento no sentido de incluir esses estudantes, visando garantir que eles conseguissem acessar a internet. Esta instituição conviveu com problemas de desigualdade social face ao acesso a recursos digitais, como aconteceu em muitos outros países e para as quais houve um alerta geral (Bonal e González, 2020; Bordalba e Bochaca, 2019). Para a ultrapassar, foi necessário comprar chips com planos de internet para o uso nas plataformas que essa universidade passou a utilizar, e até notebooks, que foram cedidos, em regime de comodato, para os que apresentavam situação mais acentuada de vulnerabilidade social. Como se compreende, esta situação demandou tempo que justifica só ter sido possível retomar atividades ao fim de alguns meses.
Como a universidade reagiu à pandemia e desempenhou seu papel social
A universidade estadual não parou suas atividades no período da pandemia, quando o seu calendário acadêmico permaneceu suspenso, porque continuou trabalhando internamente para viabilizar as condições sanitárias para um retorno seguro, conforme as normas sanitárias determinavam. Além disso, era preciso adequar a legislação educacional interna, que previa apenas o ensino presencial, para a nova realidade, dado o quadro de pandemia.
No campo social, a IEES organizou ações solidárias para amparar pessoas em situação de rua. Além disso, também providenciou atendimento psicológico para os membros da comunidade acadêmica, sobretudo, para aqueles que haviam sofrido alguma perda na pandemia, prestando assistência psicológica nesse momento mais difícil. Essa ação foi estendida aos estudantes que recebiam bolsas de assistência estudantil, que possuem situação socioeconômica de maior vulnerabilidade. Por outro lado, esta ação foi expandida para os trabalhadores das áreas de segurança e limpeza da instituição, que também tiveram perdas.
Durante essa fase, a IEES forneceu aperfeiçoamento para os docentes que precisavam se adequar ao ensino remoto, assim como constituiu o seu Comitê de Biossegurança, com a presença de especialistas nas áreas de infectologia e epidemiologia para analisar o quadro epidemiológico-sanitário visando receber com maior segurança docentes e discentes que retornariam às atividades híbridas. Ademais, também firmou parceria com a organização não governamental (ONG) “Saúde e Alegria”, que forneceu Equipamentos de Proteção Individual (EPI), tais como face shields, além de álcool gel e líquido.
Devido a urgente demanda por profissionais de saúde, por conta da pandemia, foram realizadas outorgas antecipadas nesta IEES, colocando mais profissionais de medicina, enfermagem e fisioterapia no mercado de trabalho. Para que isso fosse possível, houve a regulamentação das outorgas, para se adequar ao momento de pandemia. Nesse caso, o MEC havia publicado a Portaria 374/2020, que trata sobre a antecipação da colação de grau para os alunos dos cursos de Medicina, Enfermagem, Farmácia e Fisioterapia, como parte das ações de combate à pandemia. Essa legislação estava voltada para as instituições do sistema federal de ensino brasileiro, mas sinalizou um norte a ser seguido por demais instituições de interesse público, como foi o caso da IEES.
Ainda na categoria como a universidade reagiu à pandemia, a IEES passou a participar da aplicabilidade das vacinas contra a Covid-19 no município onde está situada, conforme relata a coordenadora da instituição em entrevista concedida em 19/03/2021:
A partir do momento que surgiu a vacina, e a aplicabilidade, nós também fizemos a parceria com a Secretaria Municipal de Saúde para auxiliar no planejamento, na organização e na administração dessas vacinas. Então, a IEES esteve também colaborando nesse sentido. Nós montamos equipes para realizar a vacinação, drive-thru para os idosos, em dois momentos (Gestora da IEES, 19/03/2021).
Apesar de não ter tido aulas por seis meses, a IEES não parou o seu funcionamento e esteve ativa envidando esforços para ajudar a comunidade em geral no combate à pandemia, inclusive somando-se ao Plano Nacional de Imunização Brasileiro.
No caso da IFES, durante os onze meses em que teve o calendário acadêmico regular suspenso, foi mantido ativo o Conselho Superior para debater os rumos da universidade no enfrentamento da pandemia. Além disso, a gestão da IFES e servidores planejaram ações para viabilizar o retorno das aulas presenciais e semipresenciais a depender da situação sanitária, produzindo Equipamentos de Proteção Individual, como face shields e álcool em gel, pois o produto tinha ficado escasso na região, além de ajudar o hospital:
[...] de maneira imediata, já em março, abril [2020], a universidade imediatamente, começou a trabalhar na produção de epis. Esse era um momento que você não encontrava face shield, você não encontraba álcool em gel mais. Uma escassez de álcool em gel. Nós que começamos então, a fazer essa produção de face shield e depois ela evoluiu para uma montagem de ventilador, de cápsulas de ventilação, em parceria com o Hospital Regional. Entregamos várias cápsulas, dezenas de cápsulas, aí em toda a região [...] para os hospitais. E é um instrumento de ventilação não invasiva que a ideia é justamente evitar que a pessoa seja entubada, porque é uma situação muito invasiva e tem várias contraindicações, vários efeitos colaterais. Então, a universidade continua tralhando nisso (Gestor da IFES, 26/02/2021).
Essa experiência de trabalho em parceria com os hospitais oportunizou a IFES associar-se a um grupo de pesquisadores, levando as expertises em engenharia e ciência da computação, para fortalecer o campo de tecnologia da saúde, montando e distribuindo ventiladores para o interior da Amazônia. Outra ação importante foi a disponibilização de profissionais da área da Psicologia para realizar atendimento não apenas para a comunidade acadêmica, mas para a comunidade em geral. Esses atendimentos foram realizados na modalidade on-line com psicólogos da IFES e profissionais externos. De modo semelhante, a universidade organizou círculos de vivência para o compartilhamento das experiências dos alunos que viveram perdas em um espaço de amparo no seu momento de dor.
A IFES atuou na linha de frente também, por intermédio do barco-hospital, que levou atendimento para comunidades ribeirinhas situadas às margens dos rios da Amazônia, inclusive com testagem PCR no ano de 2020:
[...] Em junho nós colocamos para funcionar no laboratório de biologia molecular, fazendo testagem de pcr e na região norte foi o único local fora de capitais onde a gente conseguiu fazer isso [...] Então, a universidade teve muito orgulho dessa ação e atendemos de junho até dezembro, cerca de sete mil e quinhentas pessoas de 21 municípios aqui da região do Pará. Essa testagem, de maneira muito objetiva, salvou vidas, porque o hospital regional conseguiu fazer um gerenciamento muito mais eficiente dos leitos de UTI. Então você conseguia detectar em vinte e quatro horas, às vezes, no máximo até quarenta e oito horas, se é uma pessoa que está com Covid ou não, se um profissional estava com convite ou não. Antes, quando você não tinha essa testagem, o profissional tinha que se afastar, aguardar sete dias, dez dias para poder fazer uma testagem sorológica. E chegou um momento do hospital regional que tinha mais de uma centena de profissionais afastados e uns com suspeita ou não. E a gente conseguiu trazer essa informação praticamente em vinte e quatro horas, se eu estava doente ou não, e, também liberar muito mais rápido leitos que eram exclusivos para a Covid, identificando se aquela pessoa tinha Covid ou não. Quando havia uma suspeita, não somente aquele leito tinha que ficar bloqueado, como também os leitos vizinhos tinham que ficar bloqueados, se, de repente, uma pessoa estivesse na UTI, não Covid e com suspeita de Covid. Então, a gente conseguiu ali dentro do hospital regional, trazer uma eficiência nessa gestão dos leitos (Gestor da IFES, 26/02/2021).
Essas ações ocorreram até o mês de dezembro de 2020 e, em 2021, a IFES tem levado adiante pesquisas relacionadas à Covid-19, como investigações sobre as novas cepas, sobre a presença do vírus em águas etc., recrutando pesquisadores em nível de pós-doutorado para atuar em seu laboratório de biologia molecular. A capacidade da IFES era de atender até vinte e cinco mil pessoas para teste PCR no primeiro semestre de 2021. Em síntese, a instituição não assegurou aulas, mas desempenhou uma função social muito importante na comunidade (Sobrinho, 2018; Seibert e Macagnan, 2019).
Em relação às bolsas das políticas de assistência estudantil, a IFES não as suspendeu e o recebimento desses auxílios foram garantidos pela administração da universidade durante todo o período que o calendário esteve suspenso. Além disso, a universidade já vinha apoiando agricultores da região, promovendo uma vez por semana uma feira de agricultura familiar voltada à comunidade acadêmica da IFES. Com a pandemia, esses produtores foram incluídos digitalmente para que pudessem continuar a ter acesso aos servidores da universidade, para quem vendiam os seus produtos.
Aulas remotas/ensino híbrido
Na IEES, as discussões para o retorno das atividades foram ativas dentro dos colegiados dos diversos cursos em conjunto com a Pró-reitoria de Graduação. A intenção desses coletivos era que as aulas teóricas pudessem ocorrer de forma remota, sendo as atividades práticas de modo presencial, seguindo protocolos sanitários em acordo com o bandeiramento de risco da região. O termo bandeiramento é utilizado para classificar uma segmentação regional, de acordo com o risco de contaminação apresentado. Essa classificação é baseada em estudos e no monitoramento do Comitê Técnico e Científico, que é liderado pela Secretaria Estadual de Saúde. Os segmentos do bandeiramento são:
Zona 1, vermelho: alerta máximo com capacidade hospitalar em risco e evolução acelerada de contaminação.
Zona 2, laranja: capacidade hospitalar em risco e evolução da doença em fase de atenção.
Zona 3, amarelo: controle II, capacidade hospitalar em risco ou evolução da doença relativamente controlada.
Zona 4, verde: capacidade hospitalar controlada e evolução da doença em fase de crescimento.
Zona 5, azul: novo normal, total controle sobre a capacidade hospitalar e evolução da doença.
De acordo com esta classificação, aulas presenciais podiam ocorrer ou serem suspensas. Por isso a discussão sobre o retorno das atividades passou também pela capacitação dos professores para se adequar ao novo momento, que necessitava o ensino híbrido e que, como é defendido por Viegas (2020), não implica apenas o domínio das tecnologias, mas sim saber usá-las com o propósito educacional. Em relação à plataforma utilizada, na IEES optou-se pela utilização do Google for Education, mas a gestora, na entrevista realizada, disse que havia outra plataforma utilizada para o registro de atividades e podia ser usada também para fóruns de discussão e depósito de material de estudo. Trata-se do Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas (SIGAA), utilizado por várias IES no Brasil, que possui inúmeras funcionalidades.
Além do ensino híbrido, que mescla atividades presenciais e remotas, em setembro de 2020, houve o retorno das atividades de iniciação científica, com alunos que tinham bolsas de pesquisa. Já as atividades de extensão suscitaram mais cautela, por causa da segurança sanitária e do quadro epidemiológico da região, pois, como atrás foi referido, se houvesse bandeiramentos vermelho ou preto (que é quando se determina lockdown), essas atividades presenciais seriam suspensas.
Na IFES, além de aspectos pedagógicos, a situação socioeconômica de parte dos alunos foi tida em consideração, o que redundou no fornecimento de chips com internet que foram distribuídos aos alunos da instituição para que todos tivessem condições de realizar o acesso às aulas remotas. Foram adquiridos 4 500 (quatro mil e quinhentos) chips voltados para essa finalidade. A região amazônica, em relação ao sudeste e ao sul do país, possui um serviço de internet precário e, por causa disso, na IFES foi discutida a utilização de outras estratégias como a gravação de aulas e disponibilização em pen drives, voltar ao material impresso e ainda a possibilidade de utilização do rádio para contornar a precariedade que a região enfrenta com a prestação do serviço de internet: “Nós usamos rádio aí por muito tempo, tendo que voltar a utilizar isso e a rádio tem um alcance enorme. E agora, esse trabalho dos nossos docentes, nossos técnicos busca reinventar. Estamos nos reinventando tanto como universidade quanto como humanidade” (Gestor da IFES, 26/02/2021).
Além dos chips com internet, outra ação da administração da IFES para incluir estudantes com maior vulnerabilidade social foi a aquisição de notebooks, que foram emprestados aos alunos. No primeiro lote de entrega foram 150 (cento e cinquenta) e, segundo o Reitor da IFES, haveria mais um lote com a mesma quantidade. Os aparelhos foram entregues seguindo o cadastro da assistência estudantil. O processo para adquirir esses equipamentos leva tempo e segue uma legislação que normatiza os processos licitatórios. Por isso, só depois de onze meses (fevereiro de 2021) a IFES conseguiu retomar o seu calendário acadêmico regular.
Em relação à metodologia utilizada, a IEES utiliza a Aprendizagem Baseada em Problemas, chamada pelos acadêmicos de “PBL”, que é a abreviatura do inglês Problem Based Learning, presente sobremaneira nos cursos da área de saúde. Trata-se de uma estratégia educacional cuja base se assenta em apresentar um problema prático para que os estudantes possam resolvê-lo (Silva e Souza, 2020) Desse modo aprendem informações relevantes de modo autodirigido e sempre acompanhado por um docente que tem a função de tutor, mediando o aprendizado e os debates que ocorrem nas aulas marcadas para a resolução dos problemas apresentados. Essas atividades, ocorreram de modo remoto, mantendo a metodologia de aula inaugural para a abertura do tutorial e aulas posteriores para que os estudantes apresentem a resolução de cada caso prático apresentado. Esses encontros ocorriam por meio do Google Meet e apenas aulas práticas ocorriam de modo presencial. A metodologia continuou sendo PBL, a mudança que ocorreu foi que as aulas passaram a ser mediadas pelas TDIC. A aferição da aprendizagem ocorreu por meio de avaliações de forma remota, em 2020, e em 2021 de modo remoto, mas também presencial.
No caso da IFES, no curso de Engenharia Civil, adotou-se o método PBL, por ser esse método adequado à educação de adultos e estimular mais o estudo autodirigido, conforme Silva e Souza (2020), e assim poder contribuir para o aprendizado dos estudantes que ao tentar resolver os problemas conseguem envolver mais assuntos articulando-os em um arcabouço de significação mais relevante, segundo relatou o coordenador do curso. De modo que, no entendimento dele, o PBL nesse momento de ensino remoto mediado pelas TDIC essa abordagem metodológica pareceu mais apropriada. Já no curso de Pedagogia, a metodologia utilizada foram aulas remotas expositivas feitas pelos docentes via Google Meet, textos para discussão em pequenos grupos e posterior socialização via TDIC. Em relação à avaliação, da aprendizagem, foram realizadas atividades avaliativas sempre mediadas pelas TDIC e não houve atividades dessa natureza ocorrendo de modo presencial.
Legislação educacional/o que se vislumbra para o futuro da educação
Como já foi exposto, a situação de pandemia nesta cidade do interior da Amazônia mudou completamente a maneira como a educação era ministrada, e alertou para as situações de desvantagem de alunos que não possuem condições econômicas para acessar a internet ou que vivem em zonas onde esse acesso é precário (Honorato e Marcelino, 2020). Ao mesmo tempo, lidar com essa adversidade trouxe novas perspectivas para a prática docente e para o modo como as aulas eram asseguradas. Nesse cenário desafiador, a dirigente da universidade estadual disse:
Eu vislumbro uma universidade pública renovada, que pensa o futuro com essas perspectivas sempre de melhorar o ensino com qualidade, melhorar o avanço, todo esse ensino baseado na ciência, no ensino a distância. Eu penso que a pandemia nos trouxe reflexão acerca da forma de ensinar, da forma de pesquisar, da forma de trabalhar os nossos projetos de extensão e vejo que uma dessas reinvenções, dessas readequações, foi justamente ter que sair da zona de conforto, muitas vezes e vislumbrar outras possibilidades, como o acesso às tecnologias de informação, de comunicação. O que eu penso que não será mais algo somente para o período da pandemia, mas é algo para o futuro. E eu penso que dentre uma das principais potências que a gente conseguiu vivenciar foi justamente isso: poder compartilhar experiências, poder ter a oportunidade de ter essas conversas através dessas redes de comunicação, com toda certeza vai favorecer e vai melhorar a qualidade da educação, do ensino na nossa região. É isso, eu vejo um futuro, vislumbro como do verbo esperançar e não de esperar mesmo. Foi necessário esse momento que, infelizmente, nos atingiu com um impacto muito negativo, mas dessas fragilidades, nós precisamos repensar nossas práticas e nossas vivências educacionais para que a gente possa vislumbrar um futuro melhor pra todos nós (Gestora da IEES, 19/03/2021).
Respondendo a um questionamento semelhante, o gestor da universidade federal diz:
[...] nós temos no nosso PDI [Plano de Desenvolvimento Institucional] antes da pandemia e vamos pensar, depois tentar fazer uma reflexão sobre educação pós-pandemia. E eu nem diria pós, eu diria durante e pós... o que que eu defendo, é que o PDI da universidade fala sobre educação a distância. Então, olhando num cenário pré-pandemia, no nosso PDI, já há uma indicação da inserção da universidade... hoje não tem nenhum curso a distância - mas já há uma indicação do PDI da universidade de investimento nessa educação. [...] A educação a distância é algo obrigatório para uma universidade numa região como essa que nós trabalhamos, com dificuldades logísticas inerentes ao espaço que nós vivemos. [...] No ritmo presencial, que nós temos, nós fazemos, nós vamos demorar muito tempo para chegar num patamar aceitável de formação. [...] Então, eu sou defensor da educação a distância, não como substituto presencial. Eu acho que é importante estabelecer isso. Não se pode colocar educação a distância ou mediada por tecnologia como uma substituição do ensino presencial (Gestor da IFES, 26/02/2021).
As ideias destes dois gestores acadêmicos estão em linha com estudos que reconhecem que a pandemia gerada pelo Covid-19 proporcionou também aprendizagens que podem apoiar mudanças positivas na educação e na formação (Hargreaves e Fullan, 2020; Harris e Jones, 2020; McLeod e Dulsky, 2021) e, no caso do estudo aqui apresentado, aprendizagens sociais que aprofundem o papel das IES nas comunidades que as circundam. De fato, a educação mediada por plataformas digitais, o ensino híbrido e as atividades remotas são situações que, tudo indica, vieram para ficar e a pandemia potencializou o uso da TIC como um meio para superar as adversidades que as situações de confinamento e as medidas de segurança sanitária como proteção ao coronavírus trouxeram. É neste sentido que se considera que a pandemia provocada pelo SARS-CoV-2, embora tenha tido impactos sociais muito graves, trouxe também ensinamentos que podem ser aproveitados pelo conjunto da sociedade no futuro.
Educação mediada pelas tecnologias digitais
No e-book “Ensino superior em transição: estudantes on-line”, há um texto sobre “Ensino a distância-percepções de estudantes de engenharia”, de autoria de Fátima Monteiro, Marina Duarte e Carlinda Leite, publicado em 2021, que reflete a situação vivida por estudantes de Portugal sobre as percepções advindas a partir da experiência com a educação mediada pelas tecnologias digitais e a educação não presencial. O texto menciona que a pandemia compeliu as IES a mudar o formato das aulas. Lembra também que a formação a distância, mediada por tecnologia digital, já era uma opção comum entre as IES de Portugal, que decorriam em formato e-learning (aprendizado por meio eletrônico) ou b-learning (aprendizado por meio híbrido), com atividades presenciais e mediadas pelas plataformas digitais (Monteiro et al., 2021).
Quando pensamos sobre os impactos da pandemia no mundo, uma das coisas que sempre suscita reflexões é que o mundo não será o mesmo depois da ação do novo coronavírus e essa modificação está sendo percebida em todas as áreas e não apenas no setor educacional. Porém, nesse campo, notamos os desafios enfrentados pela substituição de um ensino tradicionalmente presencial para outro que recorre a plataformas digitais. Notamos também que os avanços tecnológicos, que permitiram o uso da internet em larga escala, ainda não garantem o seu acesso e do mesmo modo a todos os cidadãos do mundo. Evidentemente que, conforme as diferenças entre as nações e mesmo entre regiões, esse acesso ocorre de modo assimétrico, causadas, muitas vezes, por diferenças socioeconômicas.
Essa assimetria no acesso às tecnologias digitais redunda consequentemente em diferentes desafios. No Brasil, por exemplo, que é um país continental, há cenários diversos, com regiões altamente industrializadas e urbanizadas até regiões onde as cidades não têm esta configuração, como algumas situadas na Região da Amazônia, e essa diferença não é apenas estética, em que uma teria mais prédios de concreto e a outra mais áreas bucólicas. Trata-se de diferenças também percebidas na infraestrutura, afetando também a disponibilização de energia elétrica e telecomunicações. É nesse cenário que situamos as universidades públicas IEES e IFES que funcionam na Amazônia brasileira e que estão sendo focalizadas neste estudo.
Não bastasse isso, ainda temos a ponderar que a mudança no formato habitual em que as aulas decorriam, assim como os modos de aprendizagem dos estudantes, colocou todos em uma experiência coletiva sem precedentes, obrigando as pessoas e as instituições a improvisações (Monteiro et al., 2021). Trabalhadores da educação, de forma geral, e alunos foram submetidos a essa mudança súbita, que não oportunizou formação com antecedência, já que não foi algo planejado. Houve a necessidade de encontrar respostas práticas e rápidas nessa nova configuração a que o campo educacional foi submetido.
No Brasil, não havia e não há nenhuma iniciativa governamental no sentido de buscar ampliar o acesso às tecnologias digitais para fins educacionais. Pelo contrário, havia e há um movimento empresarial que parece atuar no Congresso Nacional brasileiro no sentido de pressionar para que as aulas presenciais retornem, porque as instituições privadas de ensino assim desejam. Em agosto de 2020, o jornal O Globo publicou uma matéria que indicava o abandono de estudantes da rede privada, depois que foram adotadas aulas remotas, mediadas pela tecnologia, com o uso de plataformas digitais e salas de aula virtuais. A Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) fez uma projeção que o setor perderia cerca de R$ 19.1 com o abandono de alunos da rede provocada por causa da pandemia. Pelo montante, é possível imaginar o tamanho do lobby para que em 21/04/2021 a Câmara Federal aprovasse o Projeto de Lei 5595/2020 que tornou a “educação como serviço essencial”, proibindo que as aulas fossem interrompidas mesmo em tempos de pandemia. Esta situação pode ser um indicativo que o lucro do setor está acima inclusive de critérios científicos, que são colocados em prática como medidas para conter a propagação do novo coronavírus, que apenas no Brasil, na data de 21/04/2021, em que foi aprovado o pl 5595/20, a Covid-19 já tinha matado cerca de 378 mil cidadãos brasileiros.
Esse projeto de lei visa o retorno presencial das aulas, mesmo sem a imunização das pessoas, já que a vacinação no Brasil anda a passos de cágado, uma vez que o governo decidiu não comprar vacinas no ano de 2020, quando a empresa farmacêutica Pfizer ofereceu 70 milhões de doses ao governo brasileiro, que seriam entregues em dezembro de 2020, conforme noticiou a revista Isto é (2021). Esta decisão, além de atrasar o processo de imunização da sociedade brasileira, redundou tragicamente no agravamento da pandemia no país.
Este é o cenário brasileiro na pandemia, em que o poder púbico, por meio do governo da nação, não possui iniciativas que possam fazer uma leitura mais apropriada do momento, no sentido de perceber que a educação digital pode representar a ampliação de oportunidades, uma vez que pode possibilitar a continuidade da formação, agora amparada no avanço tecnológico fruto dos avanços científicos humanos. Se na questão sanitária, que é urgente, não se percebe uma movimentação estratégica, também não é notado qualquer movimento em relação ao setor educacional, no sentido de amparar a educação mediada por tecnologias digitais.
Na Europa vemos as autoridades seguirem estratégias para se adequar a essa nova realidade imposta pela pandemia. Uma ação que está sendo colocada em prática atualmente pode ser percebida no documento intitulado Digital Education Action Plan (2021-2027), que traduzido seria Plano de Ação de Educação Digital (2021-2027), que é um documento de vinte páginas onde estão descritas as ações que a União Europeia (UE) irá desenvolver com o objetivo de estabelecer uma educação digital de alta qualidade, que seja inclusiva e acessível aos cidadãos europeus. O documento funciona como um norte para que os países membros possam cooperar visando uma verdadeira alfabetização digital dos adultos que não estão com ela familiarizados, disponibilizando essas ferramentas para o aprendizado da população no período compreendido entre 2021 e 2027.
O princípio basilar do documento reside que a crise da Covid-19 trouxe a percepção do uso em larga escala da tecnologia, situação sem precedentes na história, inclusive com a utilização sistemática de tecnologias digitais na área educacional, como alternativa ao ensino presencial, que fora emergencialmente suspenso. Porém, essa adaptação foi feita de modo apressado e improvisado em face da emergência sanitária. No entanto, agora a UE pretende realizar isso de modo planejado. Assim, há a intenção de tornar os sistemas de educação e treinamento adequados para a era digital (European Comission, 2020b).
O site oficial da European Comission informa que houve uma consulta pública, que ocorreu entre junho e setembro de 2020, que tratou esse plano de ação. Após essa consulta, foram sistematizadas as ideias que passaram a ter duas estratégias prioritárias: a primeira, seria promover o desenvolvimento de um ambiente de educação digital de alto desempenho; e a segunda, teria por objetivo a melhoria das habilidades e competências digitais dos cidadãos, com a intenção de uma transformação digital. Para a consecução dessas prioridades estratégicas foram definidas ações de todos os membros da UE.
Na primeira prioridade, que tem a ver com o ambiente, é preciso envidar esforços concentrados na infraestrutura, na ampliação da conectividade e nos equipamentos digitais. Além disso, será necessário incluir os professores, para que se tornem competentes e confiantes no mundo digital e isso não poderá ocorrer sem formação. Os professores irão atuar nesse ensino mediado pelas tecnologias e para isso será necessário também que os conteúdos de aprendizagem sejam de alta qualidade, com ferramentas fáceis de usar e com o uso de plataformas seguras, que resguardem a privacidade dos usuários e, sobretudo, os padrões éticos (European Comission, 2020b). Os desafios estruturais e de capacitação são gigantescos, mas a Comissão Europeia indica que fará mediação e diálogo com Estados-Membros da União Europeia, (UE), pois o objetivo é alcançar êxito na educação digital já no ano de 2022.
O documento da União Europeia, Digital Education Action Plan 2021-2027: Resetting education and training for the digital age (European Comission, 2020b), diz ainda que, ao longo do ano de 2021, a ideia é tornar eficaz o ensino on-line -que pode ser na modalidade remota ou a distância-, tanto para o ensino primário, quanto para o secundário, que seriam equivalentes ao ensino fundamental e médio do Brasil. Nessa modalidade de ensino também há referências ao ensino híbrido, em que uma parte ocorra presencialmente e outra on-line. Esta preparação em níveis de escolaridade que antecedem o ensino superior, implica que os alunos cheguem, às instituições preparados para o uso adequado do meio digital na sua formação.
É importante ressaltar que a Europa já vinha planejando essa orientação para o uso das tecnologias digitais antes mesmo da pandemia explodir no mundo. No site da Comissão Europeia, o documento Shaping Europe’s digital future, de fevereiro de 2020, que traduzindo seria, Aprimorando o futuro digital da Europa, expõe a pretensão da UE em dar aos seus cidadãos, mas também às empresas e aos governos a possibilidade de tomarem as rédeas das transformações digitais que estavam ocorrendo com o avanço da TIC (European Comission, 2020a).
Esse documento enuncia três pilares nos quais a UE deveria se fixar: o primeiro diz que a tecnologia deve estar ao serviço dos cidadãos; o segundo que a UE deve favorecer uma economia digital justa e competitiva para todos os seus cidadãos; e o terceiro pilar que a UE deve se assentar nos princípios de uma sociedade aberta, democrática e sustentável. Com isso, a intenção da União Europeia é se tornar líder mundial no uso das tecnologias digitais. Consolidada essa posição, a UE intenta poder auxiliar economias emergentes na transição para o digital, além de elaborar normas em nível internacional para regulamentar essa nova realidade (European Comission, 2020a).
O conjunto de ações que estavam previstos nesse documento publicado um pouco antes da pandemia se agravar consistia em realizar investimentos para que os europeus pudessem desenvolver competências digitais, mas também proteger os cidadãos das ameaças oriundas do mundo digital, tais como a pirataria informática, softwares intrusos que podem causar malefícios aos usuários e usurpação de identidade de cidadãos europeus. Outra ação prevista é a aceleração na implantação de uma internet de banda larga ultrarrápida não apenas nas escolas e nos hospitais, mas também nas residências de todos os que fazem parte da UE, pois sem isso não se concretiza a inclusão de todos no meio digital.
No segundo pilar, visando uma economia justa e competitiva, a UE planeja fomentar e facilitar o acesso a financiamento para as startups, que podem crescer rapidamente. Além disso, responsabilizar as plataformas digitais, por meio de regulamentação dos serviços digitais, para que as regras fiquem claras, a fim de garantir que as normas europeias são adequadas à economia digital, garantindo concorrência leal entre todas as empresas na Europa. Isso tem relação com o terceiro pilar que visa uma sociedade aberta, democrática e sustentável, e em que o uso das tecnologias poderia ajudar a Europa a ter um impacto neutro no clima até o ano 2050, realizando ações para a redução das emissões de carbono e proporcionando aos cidadãos meios que favoreçam controlar e proteger os seus dados.
Considerações finais
Como podemos perceber, a União Europeia pretendia, já antes da pandemia, utilizar os avanços tecnológicos para promover o seu desenvolvimento. Com a urgência experimentada na pandemia, a ciência e a tecnologia realizaram uma parceria visando a superação dos problemas decorrentes dessa situação e que foi possível identificar. Nesse sentido, o documento de setembro de 2020, Digital Education Action Plan (2021-2027), estabelece a intenção de serem realizados estudos de viabilidade sobre uma possível plataforma de intercâmbio europeia para o compartilhamento de recursos on-line certificados e conectados com plataformas de educação existentes. Esta situação, além de favorecer a conectividade das escolas e incentivar os Estados-Membros a tirar o máximo partido do apoio da UE no que respeita ao acesso à internet, tal como a aquisição de equipamento digital, aplicações e plataformas de e-learning, visa a transformação digital em todos os níveis de educação e formação, integrando projetos de cooperação Erasmus, que é um projeto que financia cursos de mestrado na Europa e projetos comuns (European Comission, 2020b).
Como se pode depreender, são ações planejadas que intentam melhorar as condições da população europeia que, com a alfabetização e apropriação dos recursos digitais, estarão mais familiarizados com essas ferramentas e poderão se adaptar com mais facilidade em caso de necessidade. Estas ações destoam do que ocorre no Brasil, onde o governo não tem condução apropriada relacionada com a situação sanitária e muito menos pensa em um planejamento de médio prazo para a inclusão das tecnologias digitais na educação formal e de preparação de estratégias que possam incluir os cidadãos brasileiros no uso dessas tecnologias.
Os exemplos de construção coletiva e democrática que tanto a universidade estadual quanto a universidade federal desta cidade do interior da Amazônia deram, recorrendo à ciência e ao planejamento, ouvindo especialistas, seguindo orientações científicas em diversas áreas, visando à adequação a essa nova realidade educacional não têm eco no governo federal brasileiro. Como os dados revelaram, nos caminhos trilhados no enfrentamento da Covid-19, estas IES envolveram-se, com os recursos que tinham, na construção de estratégias que fazem das universidades espaços democráticos. Disso são exemplo: o reconhecimento da relevância das ferramentas digitais; a importância da capacitação das pessoas; o reconhecimento de que o acesso à tecnologia é fundamental, não apenas para assistir a aulas remotas (on-line), mas, sobretudo, porque pode ampliar oportunidades, não apenas de formação, mas também de trabalho, já que muitas atividades laborais passaram a ser desempenhadas através da internet.
Entretanto, a construção desses conhecimentos, produzidos no período da pandemia pelas universidades, não parece estar sendo levada em consideração pelos dirigentes governamentais brasileiros. Não apenas as universidades, que são foco da nossa investigação, mas em muitas outras IES e de pesquisa brasileiras. Os orçamentos são cada vez mais apertados e as instituições são deixadas de lado em nome de uma política negacionista que tem ganhado cada vez mais espaço no país.
Por causa disso, contrariando a lógica, mesmo durante o pico da pandemia, o governo buscou tentar obrigar o retorno presencial das aulas, com a aprovação da “educação como atividade essencial”, não para receber mais recursos, em nome de uma formação de excelência, mas para aplacar a sanha das empresas privadas, o que coincide com a falta de soluções inteligíveis como as expressas nos documentos oficiais da Comissão Europeia. As informações estão disponíveis, resta saber se o Brasil conseguirá sair da catástrofe em que se encontra, sem um planejamento claro sobre os reais problemas que enfrenta, não apenas na área educacional, mas em todas as áreas de atuação governamental em que se percebem apenas retrocessos. Em síntese, o estudo permitiu reconhecer a urgência de investir em condições que permitam o uso generalizado das tecnologias digitais pelas populações, sejam elas urbanas ou não, e formar professores para o seu adequado uso, se se quiser construir caminhos de futuro em que o digital não funcione como fator de desigualdade social e de exclusão.