Introdução
Em 2014, durante o último semestre de doutorado na Universidade Livre de Berlim, participei do coletivo queer (heidy), em um espaço artístico que resultou na exposição de arte contemporânea intitulada What is Queer Today is Not Queer Tomorrow. O propósito da exposição era trabalhar a ideia de uma temporalidade queer, envolvendo um conjunto de indagações que as definições de queer nos traziam, principalmente, fazendo uma crítica de como as diferentes subjetividades dissidentes no espectro LGBTQI+ vinham sendo assimiladas por um discurso político mainstream, o qual, na nossa visão, despotencializava algumas das radicalidades que poderiam ser acionadas por esse termo. Partíamos, assim, de uma crítica da mercadologização/tokenização do queer, que instalaria uma vontade de saber problemática e voyeurística em torno das dissidências sexuais e de gênero. A exposição se deu em um formato que combinava diferentes linguagens, como artes visuais, performance, vídeo, instalação, palestras e workshops; permitindo-nos atravessar questões envolvendo comunidade, identidade, antirracismo, imigração, diáspora, capitalismo, pornografia, pós-colonialidade etc.1
Quase seis anos depois, ao evocar esse momento, trago de volta uma discussão sobre como montar um arquivo queer, sobre o que permanece e o que se evanesce como uma memória queer. Gostaria de esclarecer que não se trata de uma questão de linearidade e assimilação, no sentido de que o que é considerado queer hoje será “assimilado” no futuro e deixará de ser queer, mas antes sobre a poética e a política que podemos acionar através do termo. Como pensar em um arquivo queer em que a memória articule a teoria, a biografia, a poética e a política? Existiria uma impressão queer, em um daqueles sentidos da impressão freudiana que discute Derrida (2001)? Ou antes o tempo queer, o tempo do arquivo queer teria uma certa relação fundacional com o esquecimento, com o fracasso, como nos propõe Halberstam (2011)? Até que ponto é possível falar de uma memória queer ou de uma historiografia queer? Mais ainda, como problematizar o queer dentro de uma geopolítica do conhecimento em que o termo é questionado na sua apropriação embranquecedora e hegemônica de um Norte Global para um Sul Global desobediente? E as memórias e as lutas que não encontram lugar nas narrativas hegemônicas da academia letrada? E o trabalho poético e político daquelas que em vida viram as portas se fecharem mais de uma vez?
Não obstante, outra ficção reguladora atravessa as apropriações da palavra queer. Não é apenas uma questão sobre o tempo e o movimento, mas é também uma questão sobre o espaço, sobre a tentativa de achatar corporalidades dissidentes em geografias das sexualidades, através da despossessão desses corpos pela norma. Naquele momento da exposição, por exemplo, percebia uma leitura problemática no contexto de uma Europa pós-nacional (El-Tayeb, 2011; Haritaworn, 2015), em que as dissidências de gênero e sexualidade podem ser lidas dentro dessa “globalização da sexualidade” que o termo queer comporta para vários segmentos, ainda que muito das corpas de pessoas dissidentes de gênero e sexualidade sejam atravessadas por histórias de migração e diáspora. Algumas dessas corpas são oriundas de realidades sociais em que a palavra queer não possuía sentido identitário, confrontadas pela racialização e por políticas normativas de vigilância da mobilidade dos corpos, para as quais o termo está longe de garantir um conforto ontológico (Puar, 2007). Vários cruzamentos estão em jogo entre ser um “outro” da Europa e ser lido como queer. Habitar as brechas e produzir fissuras nesse jogo pode ser a estratégia de quem se propõe a desmontar a lógica representativa e colonial que ainda subsiste no termo e imaginar outros mundos, em um trabalho radical de world-making (Muñoz, 2009).
Neste texto, pretendo tratar com uma certa gramática do tempo e com uma colonialidade que estabelece fronteiras e territórios a serem conquistados por novas configurações do saber e do poder. Nesse sentido, meu texto busca desmontar a colonialidade do traço demarcador das fronteiras do conhecimento em uma outra configuração das relações em torno do termo queer. A noção de arquivo vai compor, neste exercício, a função de operador conceitual e metodológico para especular, mesmo de maneira um tanto quanto randômica.
A meu ver, as contribuições mais contemporâneas do Sul Global carregam a potência de críticas da conquista e do regime das humanidades estabelecidos por uma epistemologia colonial na qual se firmariam os estudos de gênero, por exemplo. Tais proposições conjuram o movimento de uma anticolonialidade radical na experiência de corpas racializadas, genderizadas e de sexualidade, descolonizando práticas e conhecimentos estabelecidos, além de uma crítica da teoria queer ou das apropriações do termo queer na América Latina pelos centros de “excelência acadêmica”. Esse trabalho tem sido realizado por intelectuais, artistas e ativistas, como Hija de Perra (2014-2015), Jota Mombaça (2016, 2019), Pêdra Costa (2016, 2017), Tatiana Nascimento (2018), para citar algumas pessoas importantes nesse debate. Em todas essas contribuições, se afirma um trabalho dedicado e afinado de construções críticas, poéticas, imaginações políticas, descolonização do conhecimento e anticolonialidade.
Mombaça (2016) desmonta a ideia de um “queer nos trópicos” e desarticula um conjunto de maneiras hegemônicas de produção de conhecimento, a partir de linguagens e práticas que silenciam as tensões sul-sul no movimento que “importou” a teoria queer estadunidense para a academia brasileira. Esse é um debate importante que lança várias questões sobre os regimes de autorização discursiva e sobre os tipos de relações que estabelecemos com outras pessoas racializadas, dissidentes de gênero e sexualidade e desprivilegiadas de vários acessos sociais; para além da demanda etnográfica de produzir conhecimento sobre outras vidas e com isso acessar lugares de prestígio na academia e na sociedade.
Nesse movimento, fiquei me perguntando sobre a minha própria trajetória, de um corpo de bicha preta e ocupando um lugar nessa mesma academia, sobre como esses conhecimentos foram me atravessando nesse percurso entre vários espaços acadêmicos e não acadêmicos nos países por onde passei nos últimos dez anos. Debrucei-me sobre quais conhecimentos me foram possíveis acessar e o que tenho produzido com eles, ao mesmo tempo em que me indagava sobre como a academia também faz parte da minha memória. De volta ao arquivo e ativado pela vontade de escrever este texto, ocorreu mais uma vez ao meu pensamento um dos trabalhos mais complexos dessa genealogia queer que é a obra de Gloria Anzaldúa (1987), Bordelands/La Frontera: The New Mestiza. Complexo, em um primeiro momento, pois a discussão sobre teoria queer no feminismo chicano de Anzaldúa (1987) parte de um aspecto chave para a problematização da geopolítica do conhecimento: a fronteira. O pensamento chicano de Anzaldúa (1987) me afeta em temas como colonialidade, racialidade e dissidências, por meio de um texto que apagou as fronteiras da teoria queer em seu modelo anglófono e urbano. Tento uma outra travessia por sua obra naquilo que ela questiona e ousa nos limites de uma memória corporal que desafia o sistema cognitivo-sensitivo do racismo e do sexismo coloniais.
Com o texto de Anzaldúa (1987), me permiti pensar que o arquivo é uma noção da epistemologia colonial, que conhecemos também com o corpo (o que vai ser dito também por outras autoras do sul das Américas), a partir do qual produzimos imagens e memórias, assim como resgatamos alguns fios desse emaranhado espacial e temporal que está na nossa experiência como um corpo inquietante. Fiquei trabalhando no que esse texto me provoca como exercício especulativo-teórico de articulação em torno do conceito de arquivo. Isto posto, nestas notas, introduzo a leitora em algumas conceituações sobre o arquivo naquilo que essa categoria se torna uma ferramenta para em seguida ser tensionada. Nesse sentido, são notas de uma investigação conceitual para futuras pesquisas que problematizem a produção social, poética e política de um arquivo queer.
Alguns conceitos e perspectivas sobre o arquivo
Diana Taylor (2003) nos apresenta uma definição do arquivo articulada dentro dos estudos da performance e da memória cultural nas Américas. No seu trabalho, ela busca compreender essa transmissão de conhecimento incorporado que caracteriza a performance, ao mesmo tempo em que amplia a compreensão sobre o que seriam os estudos da performance. Para isso, ela retoma os estudos do teatro, a performance-arte, a sociologia dos papeis e a antropologia em uma genealogia dos estudos da performance com o objetivo de problematizar o caráter epistêmico e diferencial da performance enquanto prática de transmissão de conhecimento incorporado em um conjunto de práticas que remete à memória cultural.
Na sua crítica aos primeiros antropólogos dos rituais e da performance, Taylor (2003, p. 8) sublinha a colonialidade epistêmica dessa forma de produção de um conhecimento sobre o outro pautada na separabilidade espacial e temporal dos atos de transferência, fazendo do arquivo um instrumento poderoso para o conhecimento centrado na documentação e, portanto, no distanciamento entre “nós” e “elas/eles”, entre o passado e o presente, o aqui e o lá. Esse distanciamento da dimensão de presença que tanto caracteriza a performance faz do arquivo um instrumento valorizado, o qual também não deixa de ser objeto de mitos e fetiches, tais como a ideia da sua pureza, da sua não contaminação e da sua autenticidade. Taylor (2003, p. 30-31) desconstrói essa mitologia ao demonstrar, na história das Américas, a relação entre arquivo, transmissão e poder no marco do que foi a conquista e a conversão forçada dos vários povos que aqui já estavam, na legitimação do conhecimento logocêntrico em detrimento das sabedorias ancestrais e incorporadas dos povos originários das Américas.
Na história da conquista, ao exceder a dimensão do que acontece ao vivo, o arquivo performa uma vida póstuma, uma fantasmagoria do que não se foi totalmente e se atualiza, algo do que irresistivelmente realiza a pulsão de morte da epistemologia colonial para além do tempo. Achille Mbembe (2002) e Jacques Derrida (2001) nos dão pistas para entender a relação do arquivo com dois elementos da sua virtualidade: o espectro e a impressão. Na matéria bruta do papel ou da pele, algo é impresso, um traço. A marca desse gesto tem um efeito mnemônico ao mesmo tempo em que carrega um mal, algo entre o lembrar, o esquecer e uma compulsão inextinguível. O espectro é a reminiscência de um ato de destruição que encontra vida em algo que ainda dura, algo (um texto escrito, uma imagem, uma memória) com potência de evocação no umbral do tempo. Sendo assim:
The archive could not have a relationship without including the other remnant of death - the spectre. To a very large extent, the historian is engaged in a battle against world of spectres. The latter find, through written texts, a path to an existence among mortals - but an existence that no longer unfolds according to the same modality as in their lifetime (Mbembe, 2002, p. 25 ).
Ao escrever sobre os trabalhos em performance de Edilson Militão e Pêdra Costa (2017), elaborei a ideia de um arquivo colonial (Gadelha, 2018), o qual seria revirado pela ação performática que operaria no desmonte das fantasias coloniais e rupturas com os roteiros da morte instalados pela colonialidade necropolítica, persistente no nosso presente. Evocar-se-iam os fantasmas indomáveis entre as ruínas, os fragmentos e as opulências empoeiradas em ações que desafiam o arquivo, tanto como arquitetura quanto como composição de uma narrativa temporal hegemônica, refazendo o pacto daquelas que combinaram de não morrer2.
Aqui o arquivo não estaria mais operando na comodificação da memória, no sentido que fala Mbembe (2002) em seu texto, ao apontar alguns limites do arquivo, mas ativado em sua tensão de forças, entre os mundos do visível e do invisível, pondo em xeque o diagnóstico do tempo. A reflexividade moderna, em sua herança kantiana, fundou um “sujeito da crítica”, um sujeito para o qual o mundo se daria, na limitação do seu entendimento, como “objeto” cognoscível repetindo o roteiro da ocupação colonial. A performance anticolonial não obedece a tal protocolo. Em contraste, a arte que tais performances realizam podem nos permitir outra relação de aproximação, a qual seria, e aqui sigo inspirada em uma proposição de Denise Ferreira da Silva (2019), “em estado bruto”. A filósofa exercita uma aproximação poética em estado bruto da obra de arte, a qual creio também ser uma inspiração para não cair nas armadilhas da colonialidade do conhecimento:
Ao fazê-lo, portanto, proponho que o trabalho de arte não deve, de antemão, apresentar-se ao apreciador na condição de “objeto”, com todas as premissas e implicações que isso comporta. Pois o objeto (da ciência, do discurso ou da arte) nada mais é que uma mistura dos pilares onto-epistemológicos da razão universal, que sustenta os modos de operação do sujeito nos momentos de apreciação, produção e presentificação. Quando desenredada do sujeito, a reflexão sobre a obra de arte libera a imaginação da rede de significação sustentada pela separabilidade, determinabilidade e sequencialidade. Trata-se de um passo crucial na dissolução de um modo de conhecimento que sustenta o estado-capital, isto é, que fundamenta uma imagem do mundo como aquilo que deve ser conquistado (ocupado, dominado e subjugado) (Ferreira da Silva, 2019, p. 55).
Em princípio, o arquivo em estado bruto poderia ser o corpo, corpo como lugar da memória, seguindo a definição de Leda Maria Martins (2003), quando ela formula o seu conceito de performances da oralitura. Ao pesquisar as tradições culturais da diáspora africana, a autora discorre sobre outra epistemologia que articula performance e memória, desde o espaço afro-atlântico em uma rica contribuição teórica que desmonta tanto o princípio de uma reminiscência absoluta, quanto mostra a dimensão de incompletude que envolve o trabalho do esquecimento. No trabalho da autora, essa grafia da oralitura se realiza e transborda a dimensão de uma marcação corporal, sendo o próprio jogo do lembrar e do esquecer em movimento, em uma coreografia que materializa corporeidades:
Como um estilete, esse traço cinético inscreve saberes, valores, conceitos, visões de mundo e estilos. A oralitura é do âmbito da performance, sua âncora, uma linguagem; uma grafia, uma linguagem, seja ela desenhada na letra performática da palavra ou nos volejos do corpo. Como já grifamos, em uma das línguas bantu do Congo, o mesmo verbo tanga, designa os atos de escrever e dançar [... ] (Martins, 2003, p. 77).
Na tradição africana, não há separabilidade epistemológica entre arquivo e repertório. Assim, se há uma marca que joga com os sentidos do original e do primeiro, do recalque e do que é suprimido, no sentido derridiano, essa marca se realiza como uma mutação, uma marca mutante. O corpo instaura memória, fabula mundos, pois se grafa em movimento. Contudo, em meio a uma perspectiva da cisheteronormatividade que produz as corporalidades não-normativas no registro da abjeção e para a qual os dispositivos bio e necropolíticos funcionam na conjuração da morte de tais existências, de que maneira um certo arquivo queer ativaria esse corpo? A marca mutante se grafaria cuir/kuir, mais além dos registros do desaparecimento, da violência e no sentido de uma futuridade, da prosperidade de uma vida que desde o agora anuncia o fim desses mesmos dispositivos?
Arquivos queer: tempo, espaço e território
Nas pesquisas sobre o arquivo queer, o documental e o autobiográfico costumam ser convocados de diferentes maneiras. Algumas armadilhas de um possível arquivo queer podem ser examinadas na análise que faz Halberstam (2005), muito focada nos marcadores de tempo e espaço/lugar para problematizar a queeridade, sobre o assassinato de Brandon Teena, homem trans vivendo no interior do estado de Nebraska em 1993. Sua análise, especialmente a parte intitulada “The Brandon Archive”, parte da repercussão desse crime nas comunidades queer ao redor do país. Halberstam (2005) discorre sobre uma articulação muito mais complexa de uma narrativa queer que desconsidera geografias das sexualidades, nas quais marcadores de gênero, raça, classe e localidade entram em jogo, a partir do momento em que esse caso revela as raízes profundas de uma masculinidade cisnormativa com a própria história do processo de ocupação do território do interior dos Estados Unidos por imigrantes brancos:
In the Midwest, moreover, the history of whiteness is linked to the early-twentieth-century Alien Land Laws, which restricted landownership only to those eligible for citizenship, thereby excluding, for example, Asian immigrants (Lowe 1996). As the federal government waged war on native populations in states like Nebraska, “white” immigrants from Scandinavia and other northern European destinations were encouraged to settle in the Midwest by specific government policies aimed at recruiting “white” (Lieberman 1998; Hietala 2003). White rural populations in the United States, particularly in the Midwest, must in fact be thought about through the racial project of “whiteness” and the historical construction of working-class “whiteness” as a place of both privilege and oppression. Because of this complex construction, we must avoid either romanticizing rural lives or demonizing them: rural queers in particular may participate in certain orders of bigotry (like racism or political conservatism) while being victimized and punished by others (like homophobia and sexism) (Halberstam, 2005, p. 39).
A análise de Halberstam (2005) de como o caso Brandon Teena reverberou nas comunidades e ativismos queer estadunidenses nos fornece uma ideia da própria limitação de um paradigma queer, no qual vários impasses impedem uma compreensão interseccional das diferentes geografias das sexualidades em sua tensão com uma globalização de um queer imaginado a partir das comunidades urbanas, brancas e de classe média nos Estados Unidos. Com a análise dela, somos convocados a entender as dimensões de espacialidade e temporalidade que atravessam a experiência e a compreensão da queeridade. Na dimensão da temporalidade, a proposta de Halberstam (2005), de situar o rural em um marco mais amplo da própria ocupação do interior dos Estados Unidos, nos remete a uma análise entre gênero, raça e sexualidade nas encruzilhadas da colonialidade. O texto de Halberstam (2005), ainda que forneça pistas das relações entre supremacia branca, cisnormatividade e o ódio perpetrado contra dissidentes sexuais e de gênero, não nos leva mais a fundo a uma geografia interseccional e anticolonial, naquilo em que a cisheteronormatividade branca emerge como uma forma de ordenar o tempo e o espaço. Quando falo de interseccionalidade, quero ressaltar que me baseio na grande contribuição que nos traz Carla Akotirene (2019) ao abrir os caminhos desse conceito, na trilha de toda uma tradição afro-atlântica do pensamento, para além das molduras do pensamento moderno-colonial do Estado. Nas suas palavras:
É oportuno descolonizar perspectivas hegemônicas sobre a teoria da interseccionalidade e adotar o Atlântico como locus de opressões cruzadas, pois acredito que esse território de águas traduz, fundamentalmente, a história e migração forçada de africanas e africanos. As águas, além disto, cicatrizam as feridas coloniais causadas pela Europa, manifestas nas etnias traficadas como mercadorias, nas culturas afogadas, nos binarismos identitários, contrapostos humanos e não humanos. No mar Atlântico, temos o saber duma memória salgada de escravismo, energias ancestrais protestam lágrimas sob o oceano (Akotirene, 2019, p. 20).
Todo esse aporte me permite trazer uma outra contribuição das dimensões espaciais e temporais em uma perspectiva mais profunda acerca das relações entre temporalidade e especialidade a partir do feminismo chicano de Gloria Anzaldúa (1987, 2009a, 2009b) e os sentidos que a palavra queer encontra em alguns dos seus textos. Em Anzaldúa (1987, 2009a, 2009b), o queer conecta o territorial, o corporal e o ancestral em outro entendimento dessa subjetividade que seu pensamento inaugura. Seguindo sua orientação, as dimensões da temporalidade e da espacialidade são alargadas, pensadas para além do marco moderno na medida em que Anzaldúa (1987, 2009a, 2009b) recupera e se conecta com a sabedoria dos povos originários do território chicano, com a mitologia asteca e cartografa um espaço-tempo em várias camadas de história que traçam as linhas genealógicas e ancestrais de sua gente, os fluxos migratórios e os processos de ocupação, luta e hibridismo entre diferentes povos que ali chegaram e também se estabeleceram.
A percepção queer em Anzaldúa (1987, 2009a, 2009b) apaga a temporalidade dos saberes normativos sobre o corpo e a sexualidade, que capturaram essa matéria viva no sistema binário dos dois sexos, binarismo também que emoldura colonizador e colonizado. Ela rompe com o simplismo desse esquema que pode ser entendido como a primeira fronteira que nos cruza. A fronteira é a ferida colonial aberta pela ocupação territorial e pela invenção euro-moderna do Estado nacional. O território chicano é um território conquistado que desfaz as fronteiras nacionais e cosmológicas entre os vários mundos que se cruzam, na fronteira entre Estados Unidos e México.
A fronteira entre México e Estados Unidos até hoje é uma ferida aberta (Anzaldúa, 1987). O pensamento de Glória Anzaldúa (1987, 2009a, 2009b) nos oferece uma narrativa contra etnográfica, pois é o desmonte do olhar do outro, do sujeito da razão colonial, uma das bases do seu pensamento, já que desautoriza o sujeito universal branco do centro de saber. Trago aqui a obra dessa autora para questionar, nessas disputas entre Norte e Sul acerca do termo queer, as geografias que não se deixam domar totalmente pelo nacionalismo metodológico que ainda insiste em se reproduzir em uma certa imagem da geopolítica do conhecimento.
Essa dicotomia me parece de pouca eficácia, até pelo eco que a teoria de Anzaldúa (1987, 2009a, 2009b) encontra em várias perspectivas subalternas ao mesmo tempo em que reverberou nos grandes centros de produção de conhecimento na academia norte-americana e seu desencaixe com algumas perspectivas mais hegemônicas da teoria queer. O pensamento de Gloria Anzaldúa (1987, 2009a, 2009b) nos leva a cruzar com um tempo ancestral cujo sentido os sistemas binários instalados pelos regimes de separabilidade do pensamento moderno colonial não gozaram desfazer. É sobre este solo que se dá a invasão, o emaranhado das raças e as guerras em torno da fronteira, a conversão da terra em propriedade, a relação mais visceral do corpo com o território:
How I love this tragic valley of South Texas, as Ricardo Sanchez calls it; this borderland between the Nueces and the Rio Grande. This land has survived possession and ill-use by five countries: Spain, Mexico, the Republic of Texas, the U. S., the Confederacy, and the U.S. again. It has survived Anglo-Mexican blood feuds, lynchings, burnings, rapes, pillage (Anzaldúa, 1987, p. 90).
Em Borderlands/La Frontera: The New Mestiza, a autora nos clama a mirar todo o movimento a partir de um outro México, Aztlan, a terra ancestral. Em um primeiro momento, comparando com a análise de Halberstam (2005), o que é um problema para Anzaldúa (1987) é a fronteira que a cruza, a colonialidade em sua relação de ocupação não apenas da terra, mas também do corpo e do espírito, através da normatividade heterossexual compulsória e do racismo - em suma, as batalhas instaladas desde aí que fundam o cisheteropatriarcado branco como regime territorial de subjugo. A narrativa da experiência chicana em Gloria Anzaldúa (1987) e sua proposta da new mestiza se desenvolve em movimento daquilo que resiste ao mesmo tempo que se transforma: a língua bifurcada que não se deixa domar, os cruzamentos das diferentes ancestralidades que atravessam o vale do Rio Grande, a resistência e a persistência daquelas que se quedaron en el entre.
Em um dos seus escritos mais conhecidos, Anzaldúa (2009a) manifesta esse autoconhecimento incorporado que diz respeito à experiência queer, ser um corpo estranho, um corpo em um mundo marcado pelo sexismo e pelo racismo, ser um corpo preto assombrado por várias imagens da violência homofóbica, das imposições do patriarcado, ser um corpo que aprende a atravessar e a viver nas ambivalências, nas encruzilhadas. Na escrita desse texto, a autora me põe a reimaginar a relação da genealogia com a ancestralidade. A imagem da serpente é invocada várias vezes em seu texto e com ela a deusa asteca Coatlicue3. A língua que não se deixa domar é a língua bifurcada da serpente que desliza ao esquadrinhamento das classificações. A geografia do pensamento chicano de Anzaldúa (2009a) é uma geografia anticolonial, é uma experiência de não encontrar conforto ontológico em nenhum desses labels, os quais não conseguem circunscrever a subjetividade que transborda, cruzada pelas fronteiras:
I am wind-swayed bridge, a crossroads inhabited by whirlwinds. Gloria, the facilitator, Gloria, the mediator, straddling the walls between abysses. “Your allegiance is to La Raza, the Chicano movement,” say the members of my race. “Your allegiance is to the Third World,” say my Black and Asian friends. “Your allegiance is to your gender, to women,” say the feminists. Then there’s my allegiance to the Gay movement, to the socialist revolution, to the New Age, to magic and the occult. And there’s my affinity to literature, to the world of the artist. What am I? A third world lesbian feminist with Marxist and mystic leanings. They would chop me up into little fragments and tag each piece with a label (Anzaldúa, 2009a, p. 45).
Em To(o) Queer the Writer - loca, escritora y chicana, a autora lança críticas a uma literatura queer desimplicada das configurações de raça, classe e etnia, perguntando-se sobre quem seria essa escritora da literatura lésbica no espectro do queer e se seria possível falar de uma literatura lésbica, desconsiderando outros eixos de identificação. Anzaldúa (2009b) questiona os pilares que sustentam uma ideia universal do “escritor” que, ao não ser marcado por nenhum outro adjetivo minoritário, pressupõe a transparência hegemônica da branquitude. Além disso, e nesse ponto seu pensamento se alia a uma análise interseccional, a sexualidade não é uma experiência que pode ser isolada, tratada como um substrato puro que não seria atravessada por outros eixos de diferenciação. Portanto, um entendimento mais complexo e menos simplista se torna necessário:
Oblivious to privilege and wrapped in arrogance, most writers from the dominant culture never specify their identity; I seldom hear them say, I am a white writer. If the writer is middle class, white, and heterosexual, s/he is crowned with the “writer” hat - no mitigating adjectives in front of it. They consider me a Chicana writer, or a lesbian Chicana writer. Adjectives are a way of constraining and controlling. “The more adjectives you have the tighter the box.” The adjective before writer mark, for us, the “inferior” writer, that is, the writer who doesn’t write like them. Marking is always “marking down” (Anzaldúa, 2009b, p. 165).
Sabemos como os privilégios de raça e classe contam na negociação das dissidências de sexualidade para o acesso aos espaços de sociabilidade, nas políticas de visibilidade e representatividade. O texto de Anzaldúa (2009b) já nos alerta sobre esse fato. O que se formula na sua proposição baseia-se em uma crítica da branquitude e da colonialidade dentro da própria literatura queer. O jogo com as palavras no título nos remete tanto a to queer, no sentido verbal de queerizar ou tornar-se queer, como a too queer, queer demais, demasiado queer, mais que queer. Isso me deixa concluir que não se trata aqui de “rechaçar” o termo queer, mas de dobrá-lo em sua própria crítica ao ponto em que se possa pensar em novas políticas de alianças na sua pluralidade e não apagando/silenciando outras diferenças ou segmentando-as em subdivisões do queer, como muitas vezes é encarada a crítica queer of color. Torna-se necessário questionar the white queer subjetc em sua relação com aquelas que passam a constituir seus outros internos da dissidência que não é mais apenas de sexualidade:
Higher up in the hierarchy of gay aesthetics, they, most readily get their work published and disseminated. They enter the territories of queer racial ethnic/Others and re-inscribe and recolonize. They appropriate our experiences and even our lives and “write” us up. They occupy theorizing space, and though their theories aim to enable and emancipate, they often disempower and neo-colonize. They police the queer person of color with theory. They theorize, that is, perceive, organize, classify, and name specific chunks of reality by using approaches, styles, and methodologies that are Anglo-American or European. Their theories limit the ways we think about being queer (Anzaldúa, 2009b, p. 165).
Não temos como seguir em frente em um debate queer reproduzindo uma lógica colonial, desprivilegiando outras epistemologias e não dobrando a reflexividade queer sobre si mesma, naquilo em que ela está em privilégio de não querer ver, um pálido reflexo no campo da hegemonia. Por fim, too queer alcança o sentido de transbordar a demanda de ser o outro da norma, pulverizando-a, em um exercício que pode começar por “reading them reading me” (Anzaldúa, 2009b, p. 168) e ir além.
Considerações finais
Muito do que dissertei até aqui não constitui novidade para vários dos ativismos e criações acadêmicas, artísticas, militantes na América Latina hoje. Soa estranho chegar até aqui com ares de inovação, depois de tudo que estive expondo. As geografias interseccionais e anticoloniais que atravessam as dissidências de gênero e sexualidade já nos mostraram a necessidade de descolonizar o conhecimento das dissidências. Além disso, neste texto, busquei problematizar os jogos de forças na composição de um arquivo queer através de notas teóricas e insolências epistêmicas que atravessam a tentativa de uma definição queer para as Américas. Se a questão do arquivo é uma questão própria ao futuro, tal pensou Derrida (2001), de que modo podemos traçar outras impressões que não aquelas que nos remetem sempre a uma falha entre a memória das lutas e a compulsão à repetição das políticas de apagamento, silenciamento e morte?
Nesse movimento, faz-se necessário discutirmos outras práticas de conhecimento; conectarmo-nos com outras metodologias e modos de circunscrever os problemas ao redor das dissidências de raça, gênero, sexualidade; pensarmos que arquivo queer é esse que está sendo montado para um futuro. Isso implica romper com as posturas e epistemologias excludentes e entender esse circuito mais imanente de um entrar em relação não linear que demanda ver além do visível, atravessar com o corpo o pensamento e uma geografia que vai se delineando nos encontros e nas alianças, no movimento daquelas corpas que se reconhecem na vibração do que está por vir. Isso acarreta entender como aponta Gloria Anzaldúa (1987, 2009a, 2009b), a dimensão epistemológica e cosmológica das encruzilhadas.
Além disso, provoca a afirmação do corpo como lugar da memória em performances que não são apenas as da linguagem verbal, tal como nos lembra Leda Maria Martins (2003) quando aponta o corpo como lugar da memória. O edifício do arquivo é menos que o corpo, porque esse corpo se estende para além da pele que se marca (pela violência racial cissexista), talvez seja isso que assombra tanto os dispositivos normalizadores que tendem a comprimir o corpo ao arquivo. Por fim, quais geografias imaginativas são subjugadas no recorte das fronteiras que chancelam passagens? Talvez teríamos que desmontar algumas demarcações, revirar arquivos e refundar o impossível. Estas notas são lembranças de anunciações, daquilo que transbordou o arquivo queer.
The sea cannot be fenced,
el mar does not stop at borders.
To show the white man what she thought of his
arrogance,
Yemaya blew that wire fence down.
This land was Mexican once,
was Indian always
and is.
And will be again.