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Estudios sociales (Hermosillo, Son.)

versión impresa ISSN 0188-4557

Estud. soc vol.17 no.34 Hermosillo jul./dic. 2009

 

Dossier de nanotecnología

 

Quando as tecnologias embaralham nossas vidas: as nanotecnologias1

 

Marcos Nalli*

 

* Universidade Estadual de Londrina – Brasil. Correo electrónico: marcosnalli@hotmail.com

 

Fecha de recepción: noviembre de 2008
Fecha de aceptación: enero de 2009

 

Resumen

Apesar dos avanços tecnológicos e científicos patentes, os empregos dos produtos nanoestruturados podem ser benéficos ou altamente prejudiciais para todo ser vivo. Há riscos, porém há também promessas... Neste sentido, urge uma interpretação ética das nanotecnologias: não um discurso moralista resguardando "direitos", pensando em categorias de bem e mal, e formulando normas deontológicas. As nanotecnologias contribuem para pensar qual o estatuto dos seres vivos, do ser humano principalmente, diante do binômio – geralmente incompreendido e mal interpretado – da artificialidade e da natureza: sua interação caracterizase basicamente na capacidade humana (que as nanotecnologias apenas radicalizam) de transformação de seu meio–ambiente.

Palavras–chave: nanotecnologias; ética; ser humano; natureza; artificialidade.

 

Abstract

Despite the obvious scientific and technological advances, the use of nanostructured products can be highly beneficial or harmful to any living being. There are risks, but there are also promises ... Therefore, it is urgent to interpret ethics of nanotechnology: not a moral discourse on "rights", thinking in categories of good and evil, and formulating deontological rules. Nanotechnologies help to think what is the status of living beings, especially human beings, based on binomial – often misunderstood and misinterpreted – of the artificiality and nature: their interaction is characterized primarily in the human ability (that nanotechnology only radicalizes) for the transformation of their environment.

Key words: nanotechnology; ethics; human; nature; artificiality

 

Todos erram mais perigosamente quanto cada qual
busca uma verdade. Seu erro não consiste emseguir uma falsidade,
mas em não seguir outra verdade (Pascal, 1998: 863).

Há séculos, o filósofo e geômetra Blaise Pascal colocava e desafiava o homem diante do infinito: o infinitamente grande e o infinitamente pequeno (em termos geométricos, metafísicos e antropológicos); o que nos desloca de qualquer ponto fixo, e que nos impede uma base ou uma baliza interpretativa, ou mesmo uma condição de possibilidade de pensar nosso ser e nossa natureza. Esse descentramento topológico nos força a pensarnos como enigmas e como incompreensíveis. "Incompreensível? Nem tudo o que é incompreensível deixa de existir. O número infinito. Um espaço infinito igual ao infinito" (Pascal, 1998: 430).

Ainda que Pascal tenha colocado de modo pertinente a questão do infinito, sua abordagem é por demais analógica, o que lhe impede de ver o quão distintos podem ser o infinitamente grande e o infinitamente pequeno. Se ele pôde conjecturar geometricamente a questão do infinito, faltavam–lhe recursos tecnológicos para compreender e analisar as múltiplas naturezas do infinito.

Um excelente exemplo disso se deve às prolíficas investidas em torno de um novo campo de investigação, multidisciplinar em sua(s) natureza(s) e história(s), pelo menos desde 29 de dezembro de 1959, data da famosa conferência – "Há mais espaços lá embaixo: um convite para penetrar um novo campo da física" ["There's Plenty of Room at the Bottom: An invitation to enter a new field of Physics"] – do físico norte–americano Richard Feynman. É a partir dessa célebre conferência de Feynman que nasceu, como atividade de pesquisa e inovação, a Nanociência e a Nanotecnologia (NCT), como ao menos nos contam vários nanotecnólogos. Hoje, podemos questionar este lugar–comum que se tornou esta conferência de Feynman e nos perguntar se, na condição de não ser o texto fundador das nanotecnologias, qual a sua função na história e na formação discursiva das nanotecnologias. Tratamos disso em outro texto ("Le 'Degré Zéro' de la Nanotechnologie: à propos de Feynman comme précurseur", aceito para publicação no Cahiers du Centre de Recherche Historique – MSH–EHESS, Paris –França)

As chamadas Nanociência e Nanotecnologia podem ser definidas como a congregação multidisciplinar de vários campos de conhecimento científico e tecnológico que atuam com a manipulação e desenvolvimento de materiais ou estruturas/sistemas tecnológicos em escala nanométrica, isto é, cujas medidas equivalem ao bilionésimo de metro (1 nm = 10–9 m). Para termos uma noção didática do que significa a escala métrica do universo liliputiano da nanotecnologia, podemos lembrar que naquela famosa conferência de Feynman, ele levantou a hipótese de que seríamos capazes de escrever toda a Enciclopédia Britânica na cabeça de uma agulha. Ora, a cabeça de uma agulha tem o tamanho aproximado de um milímetro. Um milímetro é um milhão de vezes maior que um nanômetro e mil vezes menor que um metro, e nós podemos ver. Imaginemos agora que, por analogia, a cabeça de alfinete represente a medida de um nanômetro. Por equivalência, para termos um metro, necessitaríamos de um bilhão de agulhas enfileiradas lado a lado de tal modo que suas cabeças formassem, por analogia, um metro! Ou seja: um quilômetro de extensão!

Os materiais e os sistemas estruturados manipulados em nível nanométrico apresentam características bastante peculiares diante do nível macroscópico da realidade, de nosso quotidiano sensível, tais como temperatura, cores (como as identificadas por Faraday na análise de ouro coloidal – variando do azul para a púrpura – por decorrência do tamanho entre suas partículas), reação química, condutividade elétrica, funções eletro–eletrônicas e mecânicas (como a de monolitos microfabricados em silício, desenvolvendo tais funções simultaneamente para fabricação de memórias no Projeto Millipede, da IBM), ou resistência (como a das partículas nanométricas de carbono – o "negro de fumo" – componentes de pneus, e que garantem a sua "durabilidade").

Dada à natureza epistêmica da Nanociência e da Nanotecnologia, uma só pode ser desenvolvida mediante a outra, de tal modo que as nanotecnologias podem ser interpretadas como o resultado "de uma acelerada evolução do conhecimento e do domínio humano sobre a matéria" (MCT/BR, 2004: 1). Aliás, no mesmo documento encontramos a seguinte definição de nanotecnologia: "é o conjunto de ações de pesquisa, desenvolvimento e inovação que são obtidas graças às especiais propriedades da matéria organizada a partir de estruturas de dimensões nanométricas" (MCT/BR, 2004: 1). Durán e De Azevedo (2002), por sua vez, reforçam esta definição:

Nanotecnologia é a ciência, engenharia e manufatura de sistemas de tamanho nano que podem desempenhar funções específicas como elétricas, mecânicas, biológicas, químicas ou tarefas computacionais. Nanotecnologia está baseada no fenômeno que os sistemas nanoestruturados, equipamentos e sistemas exibem novas propriedades e função como resultado de seu pequeno tamanho tipicamente de 1–100 nanômetros.

Sabidamente, a nanobiotecnologia é a aplicação da nanotecnologia às ciências biológicas. Suas possibilidades de aplicação ainda estão, na sua grande maioria, nos níveis meramente especulativos e conjecturais: "As proposições da nanobiotecnologia são inúmeras e falar dela pode, muitas vezes, parecer que se está descrevendo cenas de um filme de ficção científica" (Laçava e Morais, 2002: 1).

Segundo Durán e De Azevedo, são três os principais segmentos da Nanobiotecnologia: liberação de fármacos, agentes de imagem, e biossensores. Por outro lado, conforme o Plano Plurianual 2004–2007, prevê–se a criação de uma Rede de Nanobiotecnologia e de três laboratórios (abertos em multi–unidades e multiusuários) como Centros de Pesquisas nas três áreas prioritárias (eleitas como tais) da Nanobiotecnologia: fármacos e vacinas, nanobiossensores, e drogas magnéticas.

As novidades e os desafios gerados pelos materiais e sistemas nanoestruturados, por conta das características peculiares que apresentam, colocam aos cientistas um novo ramo multidisciplinar de investigação, que se comporta sob os auspícios da biotecnologia, a saber sob a voga da aplicação e manipulação de organismos, sistemas e processos biológicos a partir principalmente das técnicas da biologia molecular, bioquímica, microbiologia, genética e engenharia genética – se tomarmos como amparo "somente" a aplicação da N&N às ciências biológicas, a qual pode ganhar simplificações e/ou complexidades características se o "alvo" for a sua aplicação no campo da saúde humana, com objetivos precisamente clínicos.

Ora, isto pode nos colocar num campo de investigação metacientífica que nos impede a formulação geral e abrangente do que vem a ser as nanotecnologias, bem como nos impede também uma determinação completa de seu estatuto científico. No entanto, não nos impede uma formulação mínima que explicite sua coerência teórica – científica, metodológica e experimental. Neste sentido, mais do que formular um discurso metacientífico sobre as nanotecnologias – isto é um discurso legitimador, que evidencia sua lógica e estrutura interna, porém na sua generalidade – urge intentar um discurso paracientífico, ou seja, que se processa em paralelo com as investigações efetivamente realizadas nesse campo multidisciplinar de conhecimento científico, cuja natureza é fluída e bastante maleável, em virtude dos conhecimentos e das tecnologias que são empregadas para solucionar determinados problemas teoricamente colocados pela investigação realizada. Em suma, o fundamental é, em termos epistemológicos, estabelecer uma relação de parceria e de acompanhamento de tal modo que não se pretenda dizer como se deve fazer – científica e tecnologicamente – esse ou aquele experimento, mas que se busque mecanismos e estratégias interpretativos de tal modo a evidenciar para a comunidade científica envolvida, para os filósofos das ciências interessados nessas novas temáticas, e para a comunidade leiga em geral – socialmente interessada, porquanto virtualmente afetada pelos novos aparatos nanotecnológicos porventura advindos dessas pesquisas (financiadas, inclusive, com recursos financeiros dos governos, como no caso brasileiro, previsto no orçamento [item 11.0] do PPA 2004–2007) – a racionalidade inerente a tais experimentos e a suas possíveis aplicações, sua singular validade epistêmica e ética.

Deste modo, duas questões básicas se colocam: (a) qual ou quais os estatutos epistêmicos de uma pesquisa em nanotencologias; e (b) quais as suas implicações e como tais pesquisas em N&N se validam eticamente (podese acrescentar, também, socialmente). Acrescente–se às mesmas uma necessária especificação: atentando para as pesquisas em nanotecnologias voltadas para as ciências biológicas e, principalmente, as aplicadas à saúde (humana). Portanto, pensar em estratégias de resolução dessas questões é a meta geral de investigações sobre as nanotecnologias.

Tomemos como exemplo o que a própria comunidade dos cientistas envolvidos (particularmente os brasileiros, mas que certamente também refletem as opiniões da comunidade internacional) em nanotecnologias preconiza como possibilidades viáveis e interessantes a sua aplicação clínica.

Zulmira Laçava e Paulo Morais, professores da Universidade de Brasília envolvidos no projeto de pesquisa de desenvolvimento de nanopartículas magnéticas exemplificam algumas de suas possibilidades aplicáveis a variados campos da biologia (desenvolvimento de biossenssores para poluentes, ou para a detecção de contaminantes bacterianos) e da medicina (como, por exemplo, sua aplicação em tecnologias voltadas para sistemas de liberação controlada de fármacos [drug delivery sistems] mediante alvos dirigidos; ou ainda como ferramenta fundamental na detecção por ressonância magnética; ou também aplicada com precisão celular em procedimentos de magnetotermocitólise [morte celular por calor gerado magneticamente]). Ora, tais investigações envolvem, de imediato, pesquisadores das áreas de biologia, física e química e por suas necessidades tecnológicas deve envolver também pesquisadores das engenharias. Como tantos pesquisadores tão distintos entre si em seu aparato e estatuto epistêmico interagem entre si? A nosso ver, seguramente não é por conta nem da proximidade téorico–metodológica, nem mesmo por uma suposta homologia estatutária que tais pesquisadores se unem. Nossa hipótese primeira é que o fator unificante provém de um alvo metacientificamente estabelecido, a saber, as possíveis aplicações práticas que os sistemas nanoestruturados desenvolvidos por essas equipes multidisciplinares podem ter. Em princípio, as pesquisas no campo das nanopartículas magnéticas não são diretamente aplicáveis aos possíveis usos elencados pelos pesquisadores. Ousamos até dizer que, só após um desenvolvimento mínimo (o que vem a ser isso? Provavelmente algo bastante maleável que só pode ser determinado a partir dos primeiros resultados das pesquisas do setor) das pesquisas de base para o desenvolvimento de sistemas magnéticos nanoestruturados – como desenvolvê–los, como controlá–los e manipulá–los levando em consideração suas nanopeculiaridades –, é que se pode partir para o desenvolvimento de pesquisas que levem em conta problemas teóricos e práticos significativos, por exemplo: como os organismos vivos, especialmente os sistemas orgânicos (refiro–me, especialmente, ao corpo humano) interagem com algumas dessas nanopartículas, de tal modo a potencializar qualitativamente o modus essendi e o modus operandi desses mesmos organismos; e evitando problemas e "efeitos colaterais" variados como contaminação, imunodeficência, dentre outros. Daí a necessidade de estudos sobre o "comportamento biológicos desses novos materiais" bem como da evidência que

Os nanobiotecnologistas precisarão dos conhecimentos das áreas envolvidas – biologia, física, química, farmácia, engenharia – cruzar barreiras, usar as habilidades e as linguagens das várias ciências que necessitam para fazer os sistemas vivos e os artificiais trabalharem lado a lado (Laçava e Morais, 2002: 3).

De qualquer modo, parece ser esse télos metacientífico o que motiva as pesquisas multidisciplinares em nanotecnologias. Em outros termos, poderíamos dizer que o ponto norteador e unificador de tantos profissionais diferentes, com metodologias, técnicas, paradigmas científicos distintos, é uma espécie de aposta, que por sua novidade, não estão claros nem para os pesquisadores (principalmente) quais os efeitos benéficos ou colaterais que suas "invenções" podem apresentar. É como se a síndrome, a maldição de Fausto rondasse constantemente as vizinhanças das nanotecnologias! Se tomarmos como exemplo o artigo "O que é nanobiotecnologia? Atualidades e perspectivas", dos pesquisadores Durán e De Azevedo, do Instituto de Química da UNICAMP, vislumbramos um pouco esse sentido da aposta metacientífica da nanotecnologias:

A grande motivação que levou ao estudo destas estruturas nanométricas aplicadas a sistemas biológicos foram as suas inúmeras vantagens como o direcionamento a alvos específicos, liberação progressiva do fármaco, menor toxicidade, menor número de doses (conveniência), diminuição dos picos plasmáticos, proteção e economia do fármaco. [...] ademais da eficácia terapêutica, ela é conveniente ao paciente, seja do ponto de vista de seu conforto e adesão ao tratamento, seja do menor custo em hospitais, com menor necessidade de internações, remoções cirúrgicas de implantes e complicações pós–cirúrgicas. Entretanto nada foi exposto a respeito de possíveis desvantagens associadas a estes tratamentos. Uma dificuldade seria interromper a ação farmacológica do medicamento, no caso de intoxicação ou alguma intolerância, inclusive com risco de acúmulo do fármaco se não for acompanhada a sua farmacocinética (Durán e De Azevedo, 2004: 8–9)

Vê–se, pois, que se trata de uma aposta carregada de perigos... Que se agigantam aos olhos dos leigos em geral, tomando as proporções de uma possível catástrofe – capaz de afetar toda a humanidade, dizimando–a ou degradando–a, de tal modo que, num caso ou em outro, ela perde sua essência e natureza, "superior" e "semi–divina", de ser humana.

Não deixa de ser sintomático que em vários textos de nanotecnologia encontramos referências ao fato hodierno de que boa parte das conjecturas tecno–científicas, dos ainda virtuais – não no sentido de que ainda não existam; sim, já existem, mas estão em sua existência efetiva, impregnados de possibilidades por se realizarem – sistemas nanofabricados que, por falta de tecnologias de nanofabricação e nanomanipulação, ainda não puderam sair das projeções. E essas citações vêm acompanhadas de expressões genéricas referentes às ficções científicas. Além de evidenciar os possíveis e incríveis ganhos que a humanidade poderá usufruir das pesquisas em nanotecnologias, essas colocações também revelam um medo latente, porém constante em todos nós, leigos ou cientistas, da catástrofe e da aniquilação absoluta. Como bem observa L. V. Thomas,

Os progressos consideráveis da técnica alargaram e tornaram complexos os campos de intervenção, o lugar excepcional ocupado pelas mídias que conferem ao homem de hoje a impressão de imediatez e de onipresença face o acontecimento e talvez um obscuro e permanente reflexo de culpabilidade podem bem explicar o interesse voltado à catástrofe e, em seu prolongamento, ao apocalipse. A este respeito, a ficção científica constitui um revelador de grande perspicácia: encontra–se nela um fundo mitológico arquetípico das representações fantasmagóricas da ciência, a obsessão do fantástico apocalíptico (Thomas, 1986: 107).

É fato porém que a história recente tem, contundentemente, alimentado nossa imaginação e nosso medo obsessivo do fantástico apocalíptico. Práticas genocidas foram empregadas em larga escala na Alemanha durante o regime nazista. Políticas questionáveis em saúde pública – como esterilização em massa, cirurgias neurológicas altamente invasivas como a lobotomia, dentre outras tantas – foram empregadas, geralmente sob os auspícios das ciências. Surge diante disso, cada vez mais crescente, o medo de um retorno de práticas e políticas eugênicas. Sem levarmos em conta o intenso desenvolvimento de tecnologias bélicas, das armas capazes de acertar um alvo com precisão quase total (que vai de uma pistola às tecnologias de mísseis teleguiados) até os artefatos de destruição em massa (bombas nucleares, e armas químicas ou biológicas). Por que, então, não haveria o risco de se desenvolver artefatos nanofabricados, capazes de trucidar vidas?

Este medo constante afeta todas as pessoas, inclusive os cientistas. E dado o papel capital que os cientistas têm no desenvolvimento e fabricação desses artefatos, que podem ser empregados com finalidade de destruição e aniquilamento, sua responsabilidade ética com tal emprego das ciências e tecnologias desenvolvidas aflora à pele.

Ora, se as pesquisas em nanotecnologias parecem se dar a partir de uma aposta meta–científica – isto é, na aposta de se conseguir um resultado que supera os limites da pesquisa multidisciplinar das nanotecnologias, que tenham uma funcionalidade e uma relevância social, médica, econômica, tecnológica, etc. – deve–se também admitir que essa aposta possa ser muito arriscada. Busca–se uma melhoria da vida humana; mas o que pode realmente garantir que os avanços tecno–científicos das nanotecnologias não acarretem, como conseqüência, o aniquilamento humano? Em suma, não há como se garantir que o objetivo visado se realize a partir da criação de um artefato, cuja legitimação inicial foi aquele objetivo.2

A nossa hipótese é que esse temor ético provenha do fato de que, mais do que o risco de afetar a natureza, de que por si só já se tem alguma espécie de temor, há uma intensificação, pois se pergunta pela integridade da natureza humana frente ao desafio das nanotecnologias. Explicitemos melhor essa questão.

Como bem observa Latour (2000), a natureza sempre é reclamada numa disputa científica. Quando o embate ainda está em curso, as partes envolvidas na contenda reclamam para si a voz da natureza, e dizem – ambas – expressarem melhor, ou de modo veraz, essa voz. Contudo, nessa fase a natureza aparece como um resultado ou uma conseqüência das pesquisas realizadas, de tal modo que não há ainda como contar realmente com ela. Só dá para contar efetivamente com os pares que compartilham as mesmas posições diante da polêmica. Algo similar acontece com os cientistas envolvidos em nanotecnologias: suas projeções assemelham–se às imaginadas pelos autores de histórias de ficção científica. Já comentamos um pouco este aspecto constante em muitos textos de nanotecnologias. Ele aponta para certo temor... Mas também aponta para o feito prometêico de melhorar significativamente as nossas vidas. Tal feito ainda não se realizou em larga medida por força da ausência de tecnologias aptas ao desenvolvimento de muitos dos artefatos nanoestruturados. Mas as pesquisas que devem culminar no desenvolvimento dessas "tecnologias–meio" estão em pleno curso. É só depois disso tudo que talvez as nanotecnologias poderão reclamar para si a autoridade da voz da natureza para a resolução das contendas...

Mas é fato também interessante que a natureza requerida não equivale a nossa realidade macroscópica, fenomenológica, sensível – como nós, os filósofos, diríamos. A realidade, a natureza, não é simplesmente pequena; ela é imensamente pequena, de tal modo que sua observação quase beira a intervenção da percepção na sua ordem subjacente (tal como preconizada pela física quântica3). Aliás, deve–se atentar que a natureza recorrente às nanotecnologias é decorrente, sempre, de algum empreendimento tecnológico, de engenharia. Como Drexler (1986) afirma peremptoriamente, "Nossa Tecnologia encontra suas fundações na sua faculdade em arranjar os átomos". Nos níveis nanométricos, provavelmente mais do que em quaisquer outros, fica patente que não há um abismo intransponível entre natureza e artificialidade. Ao contrário: a interação humana com a natureza consiste justamente no fato de que o homem sempre procurou, para garantir até mesmo a sua sobrevivência como indivíduo e como espécie, afetar a ordem natural das coisas, de modo a transformar artificialmente a natureza como um todo e, por conseguinte, a sua própria. Como nos diz Rabinow, comentando o filósofo francês Dagognet,

[...] durante milênios a natureza não foi natural, no sentido de pura e intocada pelo trabalho humano. [...] a maleabilidade da natureza demonstra um "convite" ao artificial. A natureza é um bricoleur cego, uma lógica elementar de combinações, produzindo uma infinidade de diferenças potenciais. Estas diferenças não estão prefiguradas por causas finais, não há uma perfeição latente buscando a homeostase. Se a palavra "natureza" deve reter algum sentido, ela deve significar uma polifenomenalidade explícita de apresentação. Uma vez compreendida nestes termos, a única atitude natural do homem seria facilitar, estimular, acelerar sua expansão: variação temática, não rigor mortis. Dagognet nos lança um desafio de feição consumadamente moderna: "ou caminhamos para uma espécie de veneração ante a imensidão daquilo que é ou aceitamos a possibilidade de manipulação." O termo manipulação é apropriadamente ambíguo; infere tanto um desejo de dominar e disciplinar, quanto um imperativo de aperfeiçoar o orgânico. Confrontar esta complexidade constitui o desafio da artificialidade e do Iluminismo (Rabinow, 1999: 154).

Ora, o ser humano não é algo fora da natureza, nem mesmo uma exceção dela. É parte integrante dela, com a qual se relaciona e interage a partir de seu ímpeto natural de manufaturá–la, de moldá–la e reorganizá–la artificialmente. O homem não é um simples organismo regulado por algumas leis naturais. Aliás, mesmo a dinâmica evolutiva e de variação das espécies vivas, ainda que suficientemente revelada – de tal modo que parece aos nossos olhos inteligível – pelo princípio da seleção natural, não basta para explicar, caso a caso, os estratagemas adotados para garantir a sobrevivência do indivíduo e a perpetuação da espécie. No caso do animal humano, sua ecologia implica compreendermos que ele não é pura e simplesmente determinado por uma carga genética; mas que ele desenvolveu, durante milhares de anos, várias estratégias que podem ou não garantir sua sobrevivência enquanto indivíduo e enquanto espécie. Diz–nos Georges Canguilhem que:

[...] o homem é o animal que por meio da técnica, consegue variar, no próprio local, o ambiente de sua atividade. Deste modo, o homem se revela, atualmente, como a única espécie capaz de variação [...] A saúde é uma margem de tolerância às infidelidades do meio. Porém, não será absurdo falar em infidelidade do meio? Isto ainda é admissível quanto ao meio social humano, em que as instituições são, no fundo, precárias, as convenções revogáveis, as modas efêmeras como um relâmpago. Mas o meio cósmico, o meio do animal de modo geral não será um sistema de constantes mecânicas, físicas e químicas, não será feito de invariantes? É claro que esse meio definido pela ciência é feito de leis, mas essas leis são abstrações teóricas. O ser vivo não vive entre leis, mas entre seres e acontecimentos que diversificam essas leis (Canguilhem, 1990: 142 e 159).

Algumas dessas estratégias humanas – diversificadoras das leis naturais e, como tais, garantias mínimas da sobrevivência da espécie – são as culturas, as ciências e as tecnologias. E são justamente essas últimas que, a partir do século XX, especialmente de 1900 até hoje, fizeram com que, no homem, natureza e artificialidade deixassem de ser encaradas como forças antagônicas.4

Será essa conjugação entre o artificial e o natural no corpo humano a chave que caracterizará nosso "bom design", segundo a fórmula proposta por Dawkins (2001: 64–66) diante da evolução e variação das espécies? É difícil dizer, visto que o "designer" dos seres vivos é –ainda recorrendo ao rol das metáforas de que se vale o mesmo Dawkins – o relojoeiro cego, isto é, a seleção natural que, contrariamente a qualquer artífice, "não prevê, não planeja conseqüências, não tem propósito em vista." Em suma: dessa conjunção pode sim decorrer nosso novo design; mas não dá para garantir se ele será bom ou mal, eficaz ou inócuo, ou mesmo exterminador, podendo levar a espécie humana à extinção.

Entretanto, tal impasse deve manter–nos atônitos e estáticos, deixando de fazer aquilo que, aparentemente caracteriza nossa condição humana, a saber, nossa capacidade de nos adaptar ao meio transformando–o? Afinal, não somos propriamente seres adaptacionistas. A nosso ver não resta outro caminho senão o de dar prosseguimento aos avanços tecno–científicos dos quais as nanotecnologias são apenas um dos capítulos. Mas seguramente é um dos capítulos que nos desafia a pensar, não no que seremos futuramente, mas no que somos hoje, animais tecnológicos, que acabamos por nos tornar humanos.

Nossos impasses quanto a nossa sobrevivência, e de modo mais radical a nossa existência, devem ganhar uma configuração ética. Contudo não uma ética deontológica – do que deve ou não ser permitido fazer –, tampouco uma pseudo–ética que apenas justifica e legitima inter–esses sociais, econômicos, geopolíticos e militares escusos. Essa configuração ética é aquela que acompanha toda a pesquisa, inclusive e talvez até principalmente em nanotecnologias: temos que ser responsáveis pelo que somos – enquanto indivíduos embora não se possa garantir o mesmo quanto à nossa condição de espécie – visto que somos o resultado de nossa interferência no meio. Ora, à medida que afetamos engenhosamente o meio, tendemos à medida similar, a afetar nós mesmos. Neste sentido, nós nos fazemos; somos o resultado –porém, não necessariamente previsto – de uma complexa rede de engenharia, biológica e molecular, sempre interagindo com o meio ambiente (que, neste caso, também é ecológica). Dito ainda de outra maneira, somos o resultado em aberto, inacabado e sempre por se fazer e realizar, de nossa potência transformadora da realidade de indivíduos, de sujeitos, de espécie, de coletividade e de sociedade.

É neste sentido, que podemos retomar a metáfora de Dawkins para pensar nossa relação ética com os artefatos oriundos das novas tecnologias como as desenvolvidas sob o selo das nanotecnologias. Construímo–nos e, portanto, devemos mais do nunca garantir nossa autogestão, nosso auto–governo; é por um curioso processo de autocracia (utilizamos o termo aqui mais por sua etimologia que pelo sentido usual que alguns teóricos vêm empregando para pensar o fenômeno ditatorial) que se pode constituir um efetivo exercício de autonomia, de liberdade. Ora, qualquer exercício autocrático e autonômico de liberdade não se pode dar sem levar em conta a inevitável interação em que ela implica e, portanto, na inevitável dimensão social de nossa auto–constituição como sujeitos livres; ou seja, fazemo–nos livres não por uma sorte estranha de atomização individualista de nossos modus essendi e operandi, de nosso modo de ser e de agir, mas sim por nossa inescapável condição social. O que implica dizer que a prática tecno–científica em geral e a nanotecnológica em particular sempre tem uma dimensão social, política, ética que lhe é inerente; isto é, dimensões que têm que ser consideradas não na condição de efeitos – benéficos ou deletérios – dos produtos dessas pesquisas nanotecnológicas, mas como dimensões mesmas, próprias, dessas ações e dos produtos gerados a partir dessas ações nanotecnológicas. Afinal, ao acatarmos o princípio de que nossa condição humana diante do meio em que vivemos marca–se muito mais pelo movimento transformador do que adaptacionista, há que se admitir inevitavelmente que não nos afetamos e transformamo–nos apenas a nós mesmos, mas a todos com quem interagimos, ainda que de modos e graus diversos. E a cada vez mais, vivemos num tempo em que as interações são mediadas tecnologicamente, seja pelos diversos meios de comunicação a que dispomos atualmente, seja pelos que somos capazes de produzir e inventar. É esta dimensão – social, coletiva, ética – das ações e produtos tecnológicos (e especificamente ao caso aqui considerado das nanotecnologias) que os nanocientistas e os nanotecnólogos não devem esquecer: que não apenas as ações, mas também os produtos nanotecnológicos são mediadores sociais e éticos, pelos quais podemos todos nos fazer mais livres ou mais opressores/oprimidos. Não perder de vista esta inevitável dimensão sócio–ética dos nanoartefatos é admitir como fundamental, por mais difícil que seja administrá–la, o tenso diálogo, porquanto plural, com os concernidos (num nível mais direto ou com envolvimentos mais distantes e indiretos), posto que vivemos num mundo plural mas comum (Latour, 2003).

Portanto, estas reflexões não implicam que nós devamos ser visceralmente contra nem ingenuamente entusiastas das pesquisas em nanotecnologias, mas sim sermos responsáveis e livres, percebendo que as distâncias entre o fato e o artefato, entre o biológico e a engenharia, entre o natural e o artificial, entre o individual e o social, são bem menores do que acreditávamos até então. Como bem nos aconselha Canguilhem (1980),

Temos de aceitar a colaboração destes simuladores das funções do ser vivo humano, temos de acatar, a partir de agora, viver na sua companhia, se de fato nos empenharmos em saber melhor o que é viver.

Eis o que faz de nós maravilhosamente humanos!

 

Referencias

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NOTAS

1 Esse artigo é uma das atividades desenvolvidas no projeto de pesquisa "Nanociência e Nanotecnologia aplicadas às ciências da vida: Bases epistêmicas, impasses éticos", financiado pelo CNPq (Processo 400778/04–1), entre os anos de 2004 e 2006. Sua versão atual – até então inédita – se dá como parte das atividades desenvolvidas em meus estágio pós doutoral, durante o ano de 2008, no Centre de Recherche Historique – École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris – França, com o apoio financeiro da Capes (processo 0606/07–3), Brasil. Meus sinceros agradecimentos ao parecerista, por suas preciosas observações; contudo, todas as limitações deste artigo são de minha inteira e exclusiva responsabilidade.

2 Seguramente, alguns teóricos são fundamentais nessa concepção, principalmente Nietzsche, em sua Genealogia da Moral (1887), Segunda Dissertação, seção 12; Darwin, Origem das Espécies, cap. IX; e Dennett, A Perigosa Idéia de Darwin, p. 488.

3 O que não implica necessariamente um limite às nanotecnologias, posto que o princípio da incerteza se aplica a níveis subatômicos, ou seja, a níveis inferiores ao nível atômico, onde ocorrem as nano–manipulações. Para tanto, conferir Drexler (1986), capítulo 1, "Engines of Construction".

4 É o próprio Canguilhem que observa sobre a biologia do século XX: "Foi porque os físicos e os químicos tinham, de certo modo, desmaterializado a matéria, que os biólogos puderam explicar a vida, desvitalizando–a. O homem investigava agora em preparações laboratoriais o que tinha procurado compreender nos organismos, tal como a natureza lhos oferecia desde tempo imemoriais. De descritivo, o darwinismo tornou–se dedutivo. De vivissectora, a fisiologia tornou–se matemática. O que o olho ou a mão não podiam discernir ou perceber foi confiado ao poder dos aparelhos de detecção. De ora em diante já não há mais biologia sem maquinaria, nem sem calculadoras. O conhecimento da vida depende, de agora em diante, de novos autômatos. São eles seus modelos, os seus instrumentos e delegados. [...] Nunca até este ponto se tinha tornado manifesto quanto o homem deve trabalhar para tornar estranhos a si os objetos ingênuos das suas perguntas vitais, para merecer conhecê–los cientificamente" (Canguilhem, 1980: 106). Como essa fórmula escrutina bem pelo que passa as pesquisas em nanotecnologias voltadas para as ciências da vida!

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