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Investigaciones geográficas

versión On-line ISSN 2448-7279versión impresa ISSN 0188-4611

Invest. Geog  no.52 Ciudad de México dic. 2003

 

Geografias e topografias médicas: os primeiros estudos ambientais da cidade concreta

 

Medical Geography and Topography Works: the first environmental studies in a specific city

 

Angela Lúcia de Araújo Ferreira*  Anna Rachel Baracho Eduardo**  Ana Caroline de Carvalho Lopes Dantas***

 

*Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo - UFRN. Natal-RN, Brasil. Fax: 55-84-215-3776. E-mail: angela@ct.ufrn.br

**Programa de Pós-Graduação em Arquitetura - EESC/USP, São Carlos-SP, Brasil. E-mail: annarbe@yahoo.com.br

***Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo - UFRN. Natal-RN, Brasil. E-mail: anacaroline.dantas@bol.com.br

 

Recibido: 21 de enero de 2003
Aceptado en versión final: 17 de julio de 2003

 

Resumo

O meio natural e os condicionantes geográficos fundamentaram o pensamento higienista e orientaram médicos, do século XVIII ao início do século XX, no estudo e diagnóstico do espaço urbano. Tais idéias foram sistematizadas em tratados conhecidos como Geografias e Topografias Médicas, que, difundidos pelo mundo, culminaram em descrições precisas do território das cidades, espacializando as doenças e identificando sua natureza, sua evolução e seu tratamento. Este trabalho, além de retomar a origem desses tratados, considerando-os como um dos primeiros estudos "geográficos" do espaço urbano, busca inserir o Brasil e, mais especificamente, a cidade de Natal (região nordeste do Brasil) no contexto dessas análises, destacando a Topographia de Natal e sua Geographia Médica elaborada pelo médico Januário Cicco em 1920.

Palavras-chave: Geografia médica, topografia médica, higienismo, natal, Brasil.

 

Resumen

El medio natural y los condicionantes geográficos fundamentaron el pensamiento higienista y dirigieron médicos, del siglo XVIII al inicio del siglo XX, en el estudio y diagnóstico del espacio regional y urbano. Tales ideas fueron sistematizadas en tratados conocidos como Geografías y Topografías Médicas, que, difundidos por el mundo, culminaron en descripciones precisas del territorio de las ciudades, espacializando las enfermedades y identificando su naturaleza, evolución y tratamiento. Este trabajo, además de recuperar el origen de esos tratados y apuntarlos como uno de los primeros estudios "geográficos" del espacio urbano, busca insertar a Brasil y, de forma específica, a la ciudad de Natal (región nordeste de Brasil) en el contexto de esos análisis destacando a Topographia de Natal e sua Geographia Médica, elaborada por el médico Januário Cicco en 1920.

Palabras clave: Geografía médica, topografía médica, higienismo, Natal, Brasil.

 

Abstract

The natural environment and the geographical circumstances set the basis for the development of an hygiene-oriented thinking and led physicians to investigate and diagnose the regional and urban space between the eighteenth and twentieth centuries. These ideas were systematically compiled in works known as Medical Geography and Topography Works which, when known throughout the world, ended up becoming precise descriptions of the cities' territory, providing a spatial account of diseases and identifying their nature, evolution and treatment. Besides recovering the origin of these treaties and stressing their importance as amongst the first "geographical" investigations of urban space, this work aims to include Brazil, and specifically the city of Natal (in northeast Brazil) within the context of these analyses, with special emphasis on the work entitled Topography of Natal and its Medical Geography authored by doctor Januário Cicco in 1920.

Key words: Medical Geography, Medical Topography, hygienism, Natal, Brazil.

 

INTRODUÇÃO

O reconhecimento das condições ambientais, urbanas, bem como, socioeconômicas de um dado lugar como fatores determinantes ou disseminadores de enfermidades é cada vez mais corrente nos estudos e investigações médicas atuais, em distintas regiões do Brasil e do mundo. Algumas pesquisas evidenciam, de forma setorizada, a ocorrência ou agravamento de certas doenças, como também, a qualidade de vida da população, usando como recurso Sistemas de Informações Geográficas (SIG) que possibilitam a visualização sócio-ambiental de um determinado espaço geográfico, permitindo a sua descrição, análise e distribuição espacial da enfermidade (Chiesa et al., 2002). A relação cidade-saúde coletiva, ambientalismo e, sobretudo, medicina e geografia, no entanto, não tem origem na contemporaneidade; transcende séculos.

Estudos como os de Carlos Lacaz (1972), Mumford (1982), Luis Urteaga (1980), Clarence Glacken (1996), Maria Costa (1997) e Anthony Dzik (2002) mostram que a origem do ideário higienista, da preocupação com os condicionantes ambientais e de sua vinculação com a qualidade de vida nas cidades têm suas raízes nas teorias desenvolvidas por Hipócrates no século V a.C, sobretudo a partir de sua mais citada obra Dos ares, das águas e dos lugares. O médico inglês Thomas Syndenham é apontado como o sistematizador dos preceitos hipocráticos para a Era Moderna, suscitando a existência, no século XVII, de uma relação entre o meio natural e certas patologias (Urteaga, 1980:9). O higienismo -"... una corriente de pensamiento desarrollada desde finales del siglo XVIII, animada principalmente por médicos" (Urteaga, 1980:5)-, os tratados médicos e a conseqüente análise do ambiente construído como propagador de doenças firmam-se, desse modo, como paradigmas das intervenções de (re)estruturação das cidades nos séculos ulteriores.

Ao relacionar as questões ambientais à saúde das comunidades, as idéias de Hipócrates representam a base dos princípios do mundo moderno em relação ao meio ambiente. Foram esses princípios que orientaram os higienistas do século XVIII ao início do século XX e que justificaram as mudanças, tanto na estrutura física dos espaços da cidade como nas habitações e nos costumes dos indivíduos. Esse célebre tratado hipocrático, para Glacken (1996:106) constitui-se como "el primer tratado sistemático sobre Ias influencias del médio en la cultura humana", apontando relevantes contribuições para a história da medicina, da geografia e da antropologia.1

A correta orientação dos prédios e das ruas a fim de controlar a insolação de verão e permitir a penetração dos ventos, assim como a procura por fontes de água pura e a eliminação de ambientes pantanosos e insalubres, foram alguns dos preceitos amplamente adotados e difundidos a partir da teoria de Hipócrates. A saúde da população e os próprios problemas sanitários do lugar eram avaliados a partir das condições de vida da população (o trabalho, o tipo de alimentação, as condições de moradia, entre outros), da análise do meio natural e do ambiente construído -situando o paciente no lugar em que ele vivia. Atribui-se também à teoria de Hipócrates a compreensão da importância do consumo da água pura, tanto para a ingestão quanto para os banhos. A influência dessas idéias tornou-se evidente com o surgimento dos sistemas de abastecimento d'água das cidades, dos aquedutos e dos balneários especializados em todos os tipos de banhos.2

Dentre os estudos elaborados com o intuito de diagnosticar e "curar" as cidades destacam-se as Geografias e Topografias Médicas, surgidas ainda no século XVIII, que se consolidaram como importantes instrumentos de análise e observação do espaço urbano e regional. Assim, o presente trabalho é uma tentativa de sistematizar a trajetória destes tratados médicos que deram origem às primeiras análises "geográficas" do meio urbano, e, principalmente, de introduzir a cidade de Natal/ Brasil no conjunto desses estudos, a partir da investigação de sua topografia e geografia médica, realizada pelo médico Januário Cicco em 1920. A pesquisa visa, ainda, contribuir para a ampliação da discussão sobre a origem dos estudos ambientais fundamentando, assim, o embate atual sobre a cidade.

Constituíram-se fontes primárias para este estudo, jornais oficiais e não-oficiais, Mensagens de Governo, Relatórios de Repartições de Higiene e tratados médicos, dentre os quais, mais especificadamente, Geografias e Topografias médicas elaboradas no Brasil. Como fontes secundárias, foram utilizados periódicos médicos, teses de doutoramento da Faculdade de Medicina da Bahia, livros e trabalhos de autoria do médico Januário Cicco, bem como trabalhos anteriores desenvolvidos pelo grupo de pesquisa. Várias foram as instituições brasileiras (arquivos, bibliotecas e faculdades) consultadas no levantamento de dados: Faculdade de Higiene e Saúde Pública, Faculdade de Medicina, Escola Paulista de Medicina e Arquivo do Estado, em São Paulo; Biblioteca Nacional e Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro; Faculdade de Medicina, na Bahia; e Arquivo do Estado e Instituto Histórico e Geográfico, no Rio Grande do Norte.

O trabalho inicialmente discorre sobre a origem, a conceituação, as influências teóricas e o desenvolvimento das Geografias e Topografias Médicas em algumas regiões do mundo; em um segundo momento, aborda a trajetória desses estudos no Brasil, seguida de uma análise da topografia e geografia médica datada de 1920 para a cidade de Natal. Por fim, aponta algumas considerações acerca da importância e atualidade desses estudos que muito contribuem para a análise do espaço urbano.

 

Geografias e Topografias médicas: algumas considerações

A Geografia médica, para Carlos Lacaz (1972:1) "é a disciplina que estuda a geografia das doenças, isto é, a patologia à luz dos conhecimentos geográficos". Também chamada de Patologia geográfica, Geopato-logia ou Medicina geográfica, é considerada ainda como um ramo da Geografia humana ao estudar o homem em suas relações com o meio, utilizando-se, para tanto, de alguns conceitos e descobertas de outras disciplinas correlatas como a Antropologia, a Etnografia, a Estatisica, a Demografia, a Arqueologia e a História. Para Luis Urteaga (1980:24), a geografia médica consiste na "... ciência que estudia las relaciones existentes entre el médio físico y social y el estado de salud de la población", considerando as enfermedades fortemente determinadas pelo clima e pelo meio local. Já Anthony Dzik (2002:250) a define como "um sub-campo da geografia que lida principalmente com os padrões espaciais das epidemias", ressaltando a estreita relação com a epidemiologia.

Apesar dos autores divergirem em relação à origem e ao primeiro uso do termo, são unânimes em aceitar a influência das teorias hipocráticas como base "paradigmática" ou referência fundamental para elaboração desses trabalhos. Lacaz (1972) cita como importantes obras que marcaram o período pré-pausteriano as publicações "Essai de GéographieMédicale" de Bourdin, em 1843 e, principalmente, "Handbook of Geographical and Historical Pathology do professor de medicina, em Berlim, Augusto Hirsch, publicada em inglês no ano de 1883. Todavia, atribui ao médico alemão Leonhard Ludwig Finke a publicação do primeiro tratado científico de Geografia Médica "Versuch einer allgemeinem medicinish-praktischen Geographie/ Attempt at a General Medical-Pratical Geography", ainda no século XVIII, entre 1792 e 1795 -afirmação defendida, aliás, a partir dos estudos de Hirsch. Dzik (2002:250) reafirma essa hipótese destacando um trecho da obra de Finke: "... quando se lida com um país atrás do outro ... posição ... solo... , peculiaridades do ar, da água... modos de vida... desde que tenham qualquer coisa a ver com saúde e doença ... um trabalho dessa natureza merece ser chamado geografia médica".

No entanto, o recente trabalho de Frank Barret (2002), ressaltando a contribuição francesa no desenvolvimento das geografias médicas, vem contestar essa afirmação tão amplamente divulgada pela historiografia. Atribui ao físico francês Dehorne o primeiro uso do termo em artigo publicado no Journal de médicine militaire no ano de 1782: "seria um dia reunido(s) para formar geografia médica para toda a França que seria da maior utilidade para o tratamento de doenças" (Dehorne apud Barret, 2002:s/p). Menciona outras referências francesas como a do médico Jean-Noel Hallé na Encyclopédie Méthodique (1787,1792) e a de Julien Virey no ano de 1817 no Dictionnarie des Sciences Médicales, anteriores, portanto, aos escritos do alemão. Maria Clelia L. Costa (1997:154) indica o médico francês Vicq d'Azur como o idealizador dessas topografias "onde se destacam as descrições voltadas para a área urbana". Ao discorrer sobre a tradição geográfica na medicina espanhola, Urteaga (1980:14) destaca a Topografia médica de Alcira y de los Riberos del Xucar, elaborada por F. Llansol em 1797, identificando os estudos realizados na Espanha como herdeiros de trabalhos anteriormente desenvolvidos na Inglaterra e na França.

Em todas as codificações ou denominações, é clara a interligação dos conhecimentos geográficos e médicos, bem como a importância do meio geográfico no aparecimento e distribuição de determinadas doenças. Por meio de descrições precisas do território das cidades, buscou-se espacializar as doenças identificando sua natureza, evolução e tratamento. A noção de clima também se fazia muito presente nestes estudos, pois se acreditava na influência quanto à alteração da feição genérica da patologia, dando-a características regionais e distintas, como pode ser visto nos dizeres do médico Luis Cuervo Márquez quando da elaboração da Geografia Médica y Patologia de Colômbia (Figura 1). Tan variados climas modifican las enfermedades que en ellos se desarrollan ó producen otras que les son peculiares: tales la fiebre amarilla, el coto, el carate, que solo se encuentran en regiones determinadas, y la fiebre tifoidea o la neumonía, por ejemplo, cuya evolución no es igual en un clima tórrido ó en un clima frío (Márquez, 1916:4).

Por meio da correlação de fatores naturais com a saúde da população, esses estudos médicos englobavam aspectos amplamente estudados pela geografia física como as elevações e as depressões da superfície da terra, a hidrologia, a atmosfera e os movimentos da população (índices de nascimento, mortalidade, migração, etc; Urteaga, 1980:24). Eram registrados desde dados de temperatura, pluviometria e direção dos ventos, aos hábitos e costumes de seus habitantes (Costa, 1997), acabando por perfazer não apenas aspectos físicos da estrutura urbana, como também, sociais, ao estudar a qualidade de vida na cidade, no local de moradia, de trabalho e destacando temas como prostituição, alcoolismo, pauperismo, entre outros.

Lacaz (1972) acrescenta que, ao se estudar uma doença à luz da Geografia médica devem ser considerados além dos já citados fatores geográficos, físicos, humanos ou sociais (como distribuição e densidade de população, padrão de vida, costumes religiosos e superstições, meios de comunicação), os fatores biológicos (vidas vegetal e animal, parasitismo humano e animal, doenças predominantes, grupo sanguíneo da população, entre outros). Assim, tais fatores contribuiriam para a formação de quadros característicos de regiões, como também subsidiariam na escala urbana, uma descrição da cidade concreta.3

Algumas "doutrinas científicas", elaboradas por médicos, constituíram-se como a base teórica das topografias, dentre as quais se destacam a teoria dos meios4 e a teoria miasmática5.

Por outro lado, as precárias condições de vida da população pós-Revolução Industrial, a pobreza, o excesso de trabalho e a falta de salubridade das cidades originaram uma outra corrente de pensamento que coexistiu, no meio médico, com a teoria miasmática. O médico J. P. Frank publicou, em 1790, um folheto -La miseria del pueblo, madre de enfermedades- no qual identificava a doença como um fenômeno social, dando origem assim, ao que Urteaga (1980) denominou de teoria social de la enfermedad. Essas teorias, além de apontarem -por meio das geografias e topografias médicas-uma série de focos infecciosos e algumas "disfunções urbanas" que justificaram as intervenções nas cidades, contribuíram para a compreensão do espaço não somente urbano como regional6.

Na Espanha, segundo Urteaga (1980:18), a realização desses estudos pautou-se, desde a metade do século XVIII, na emergência de uma "política da saúde", impulsionada pelos Estados absolutistas e instrumentalizada por meio de Sociedades científicas, como a Academia de Medicina, e novas demandas sociais que evidenciavam o impacto e as conseqüências de enfermidades epidêmicas. Aponta ainda que a elaboração das topografias médicas foi, em grande medida, uma tarefa institucional, apoiada e promovida por diversas corporações médicas. Tais instituições passaram a organizar e publicar "programas" e "planos" para redação das topografias. Tratava-se de um esquema geral -que poderia ser complementado mediante observações de campo realizadas por cada médico na localidade considerada para o estudo- que contemplava os seguintes itens:

1. Introdução histórica do local; 2. Estudo da geografia física da área (relevo, clima, vegetação); 3. Descrição econômico-social (produção agrária, situação econômica, comércio, profissões, festas, vestimentas) e descrição do meio urbano com seção dedicada à higiene urbana (situação das moradias, abastecimento d'água, descrição de edifícios anti-higiênicos, elaboração de plantas da cidade); 4. demografia (estatísticas da natalidade, mortalidade e nupcialidade) e, por fim, 5. situação patológica (enfermidades mais comuns e as possíveis medidas terapêuticas; Urteaga, 1980).

A teoria miasmática só passou a ser contestada a partir da teoria microbiana de Pasteur, para a qual a propagação das doenças se dava por via invisível e as suas causas tornavam-se mais precisas e identificáveis a partir do micróbio -independente do odor e observável através de instrumentos apropriados (Franco, 1997:78).

A partir de então, imprime-se um novo conceito às pesquisas médicas, comprovando a falta de "credibilidade científica" da teoria miasmática; no entanto, o ideário higienista e o saber médico -ancorados na relação meio ambiente-saúde da população-, renovados pelas então recentes descobertas, continuaram a influenciar as inúmeras intervenções na cidade, muitas vezes concretizadas por outros profissionais, durante o final do século XIX e primeiras décadas do século XX.

Apesar do papel do meio físico no determinismo das doenças ficar relegado a um plano secundário a partir da nova medicina do final do século XIX, continuou a se verificar ainda no início do século XX a realização de Geografias e Topografias médicas em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. A influência do meio e sua relação com a saúde coletiva, como dito anteriormente, revive hoje em dia em estudos que podem ser considerados uma (re) leitura dos antigos tratados médicos. Segundo Lacaz (1972:2) aborda-se nesses estudos "as peculiaridades regionais de numerosas doenças, sua distribuição e prevalência na superfície da Terra e as modificações que nelas possam advir por influência dos mais variados fatores geográficos e humanos". A seguir, tem-se uma primeira sistematização da ocorrência desses tratados em território brasileiro, dando-se ênfase ao caso específico da cidade de Natal.

 

Uma breve trajetória de estudos médicos sobre o Brasil

No Brasil, a obra do médico francês José Francisco Xavier Sigaud Du climat et dês Maladies du Brésil ou Statistique Médicale de cet Empire de 1844, é considerada por Lacaz (1972) como o primeiro tratado brasileiro de Geografia Médica. Nomes como o do zoólogo Johann Spix e do médico naturalista Carl Friedrick Martius também são citados pelo autor em função de seus estudos realizados entre os anos de 1817 a 1820 quando:

percorreram as províncias de São Paulo e Minas, chegando até os limites de Goiás, visitando a Bahia, parte da província de Pernambuco, Piauí e Maranhão, subindo, por fim, o Amazonas. Estudando a flora e a fauna do Brasil, os famosos pesquisadores de Munique realizaram entre nós notável trabalho etnomédico. Preocuparam-se também com o estudo das doenças de nossos indígenas (Lacaz, 1972:10).

Destacam-se ainda as importantes atuações de Carlos Chagas7 -grande estudioso da Tropicologia médica e descobridor da tri-panossomíase americana -e do médico Roquette-Pinto- professor de antropologia no Museu Nacional e célebre estudioso dos indígenas na América, sendo sua principal publicação "Rondônia", de 1916, considerada por Lacaz (1972:13) como uma "verdadeira obra de Geografia Médica" e como "um dos mais sólidos monumentos da cultura brasileira". Vale salientar que o pensamento higienista, apesar de pouco influente, já vigorava no país no século XVIII embasado pela já mencionada teoria miasmática. Os médicos, nesse momento, apontavam as possíveis causas para a insalubridade da colônia, principalmente na cidade do Rio de Janeiro:

a ação prejudicial dos pântanos, que produziam miasmas; das montanhas que circundavam a cidade que impe diam a ação purificadora dos ventos; da proximidade do lençol d'água, que dificultava a drenagem das águas pluviais e tornava o solo sempre úmido, da imundice das vias públicas, que infeccionava o ar. (... ) a direção errada das ruas, a superpopulação das habitações, o costume de enterrar os mortos nas igrejas, a dieta inadequada, a ausência de exercícios físicos (...), a prostituição, etc. (Abreu, 1997:40-41).

A influência do meio sobre a saúde da população passou, no entanto, a ter maior sustentabilidade no Brasil a partir do século XIX, com a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808. O médico Manoel Vieira da Silva, então ffsico-mor do Reino, atento às ordens do Príncipe Regente que queria descobrir as causas das freqüentes doenças, elaborou um estudo para a cidade do Rio de Janeiro (Abreu, 1997:41). As soluções apontadas para melhorar as condições "climáticas" da cidade -consideradas as verdadeiras causas das enfermidades- abrangiam, além da condenação dos enterramentos nos templos e o aterro dos pântanos (medidas já indicadas no século anterior), "... a fundação de um lazareto destinado à quarentena dos escravos recém-chegados da África... " e uma maior fiscalização sobre os gêneros alimentícios colocados à venda (Abreu, 1997:41).

A Abolição da Escravatura em 1888 e, principalmente, a Proclamação da República em 1889, configuraram, no Brasil, os primeiros indícios de mudança ou, como se dizia à época, de superação de sua estrutura colonial. Embora ainda contestadas por parte da historiografia corrente, quer seja no campo político, cultural ou social, por representarem meras codificações ou "reinvenções" de antigos processos e arraigadas relações, no campo da medicina, as mudanças ocorridas no século XIX instauraram um processo de "medicalização da sociedade" que consolidou o meio urbano e seus habitantes como alvos de estudo e intervenção, como afirma Roberto Machado (1978:156 -157):

[... ] Tendo a saúde como fio condutor da análise da sociedade, a medicina que se impôs desde o século XIX -esquadrinhando o espaço urbano, inventariando o positivo e o negativo, as potencialidades e os recursos e propondo um programa normalizador do indivíduo e da população- penetra em tudo e inclusive no Estado.

A medicina se afirmou, então, como apoio científico necessário ao exercício do poder do Estado. Necessária era também a criação de instituições de ensino médico que difundissem esse saber no Brasil e que, restaurando a saúde da população, contribuiriam, sobremaneira, para a própria "prosperidade" do país e para superação da imagem considerada arcaica e pouco atrativa ao capital estrangeiro. Nessa perspectiva, foram criadas as primeiras instituições no ano de 1808: a "Escola Cirúrgica" da Bahia, no mês de fevereiro, e a "Escola Cirúrgica" do Rio de Janeiro, em março. Em 1813, tais escolas foram reorganizadas, originando a Academia médico-cirúrgica do Rio de Janeiro e, no ano de 1815, a Academia médico-cirúrgica da Bahia. No ano de 1832, consolidaram-se as Faculdades de Medicina nas duas já mencionadas cidades (Machado, 1978). Em 1850, foi instituída a Junta Central de Higiene que, visando combater as epidemias, passava a intervir nas cidades adotando normas de higiene pública que se estendiam ao controle e disciplinamento da população, combatendo hábitos e 'vícios' considerados antihigiênicos (Abreu, 1997). Cabe destacar que nas instituições médicas, principalmente no início do século XX, a questão racial apresentava-se, também e muito freqüentemente, como cerne da discussão acerca da origem de determinadas doenças e de disfunções morais (tão comuns no Brasil) que opunham ao projeto de "engrandecimento da nação".

A história dos estabelecimentos de ensino médico no Brasil, brevemente traçada por Lilia Schwarcz (2001), evidencia que a discussão sobre a higiene pública mobilizava boa parte das atenções até os anos 1880. Já

Nos anos 1890 será a vez da medicina legal, com a nova figura do perito -que ao lado da polícia explica a criminalidade e determina a loucura-, para nos anos 1930 ceder lugar ao 'eugenista', que passa a separar a população enferma da sã (Schwarcz, 2001:190).

Conectada à noção de higiene, ainda na metade do século XIX, aparecia a idéia de saneamento evidenciando uma outra forma de atuação no espaço, pelo menos do ponto de vista teórico e acadêmico, como pode ser visto a seguir:

caberia aos médicos sanitaristas a implementação de grandes planos de atuação nos espaços públicos e privados da nação, enquanto os higienistas seriam os responsáveis pelas pesquisas e pela atuação cotidiana no combate às epidemias e às doenças que mais afligiam as populações. No entanto, essa divisão entre sani-taristas -responsáveis pelos grandes projetos públicos -e hygienistas-vinculados diretamente às pesquisas e à atuação médica mais individualizada- funcionou, muitas vezes, de maneira apenas teórica. Na prática, as duas formas de atuação apareceram de modo indiscriminado (Scwarchz, 2001:206).

Pode-se, dessa forma, considerar as Geografias e Topografias médicas como notáveis exemplos dessa junção de práticas uma vez que apresentavam propostas concretas de modificação do espaço construído em função de pesquisas e levantamentos realizados pelos próprios médicos. A "Geo-graphia e Topographia medica de Manaós"8 (Figura 2), de 1916, pode ser vista como umas das mais completas obras de Geografia Médica realizadas no Brasil. Tal obra foi requisitada ao então médico chefe da municipalidade Alfredo da Matta, pelo Superintende Municipal de Manaus, com o objetivo de apontar "a evolução das moléstias que mais commumente caracterisam a pathologia local". Esse trabalho deveria ainda mostrar quais as "medidas indispensáveis ao saneamento do meio urbano e suburbano, salientando, principalmente, a acção que o poder publico deve exercitar no sentido de combater, com efficacia, as moléstias infectuosas" (Matta, 1916:10). O médico, em resposta ao pedido oficial, alegou que abordaria outros temas "indispensáveis para melhor êxito e cunho scientifico do trabalho", discorrendo: "De facto, como estudar as doenças de Manáos, sem conhecer o meio, e de que modo a este precisar sem intervir nas suas condições metereologicas e topografia local? Como estabelecer as relações de mortalidade, por exemplo, desconhecendo o movimento de sua população?" (Matta, 1916:11).

Encontra-se dividida em uma pequena introdução denominada "Razão da obra"; Capítulo I. "Noções summarias de Geographia" (situação e descrição da cidade, natureza do solo, topografia, sistema de águas, fauna e flora; Capítulo II. "Noções de climatologia" (temperatura, chuvas, pressão atmosférica, higrometria, ventos, luminosidade, trovoadas, atmosfera, reparos à climatologia de Manaus); Capítulo III. "Demographia em geral" (Censo e Demo-grafia sanitária da cidade); Capítulo IV. "Notas para o serviço de Prophylaxia do Paludismo, da Lepra e da Tuberculose"; e, finalizando, vários anexos contendo planta da cidade, planta da rede de esgotos, planta de igarapés, quadros de observações pluvio-métricas, quadro de observações termo-métricas, gráficos apontando índices de mortalidade em decorrência de algumas doenças entre outros. Datado de 1916 e, por-tanto, posterior às descobertas pasteurianas, evidencia que o meio continuava, pelo menos no Brasil, a desempenhar papel relevante no que concerne ao surgimento e desenvolvimento de doenças, embasando pesquisas científicas. Outro fator importante a ser destacado nesse trabalho é a influência que determinadas moléstias, ou apenas a ameaça de seu surgimento, desempenhavam na mudança ou disciplina-mento de hábitos locais:

Bom é relembrar que os carapanans prego (mosquitos anophelinas) atacam de preferência o homem no crepúsculo, muito longo aliás para os habitantes do Amazonas, pois que o crepúsculo anophelino não corresponde ao nosso crepúsculo por se prolongar até as 19 e 21 horas. Os passeios e trabalhos nessas occasiões se tornarão mais perigosos ainda, muito particularmente nos subúrbios de Manáos (Matta, 1916:73).

Aos leprosos eram impostas as mais severas ordens e proibições como a interdição do casamento, separação dos filhos de pais leprosos e proibição no desempenho de qualquer profissão que requisitasse contato com gêneros alimentícios. Mudanças também foram impressas no "corpo" da cidade e difundidas ao longo da Geografia Médica, como a drenagem e retificação de pequenos rios, proteção das margens com muralhas até o nível da rua e plantio de árvores para absorção da umidade. No âmbito das habitações era prevista a colocação de telas milimétricas nas aberturas para impedir a passagem de mosquitos, bem como a adoção de portas denominadas de "duplo tambor" do sistema Oswaldo Cruz (Matta, 1916).

Ao final de suas considerações, o médico estimulou a prática da educação física e incentiva a vida ao ar livre, reivindicando para as cidades brasileiras a construção de grandes jardins e parques para exercícios e jogos. A exemplo da Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos defendia a "construcção das GARDEN CITIES" (Matta, 1916:91).

 

"Topographia Médica de Natal e sua Geographia Médica": a cidade de Natal sob a ótica médica de Januário Cicco

O médico Januário Cicco, de descendência italiana, nasceu na cidade de São José de Mipibu/RN, em 1881, formando-se, em 1906, na mencionada Faculdade de Medicina da Bahia. Sua contribuição científica inclui a tese de doutoramento "Ligeiras considerações sobre o destino dos cadaveres perante a Higiene e a Medicina Legal" -que defendia a cremação como meio de higiene e profilaxia dos cemitérios-, entre outras publicações nas décadas de 1920 e 1930, como "Notas de um médico de província", "Puericultura no ano 1999", "Abrigo Padre João Maria" e os romances "Eutanásia" e "Herança Mórbida. Absorveu a emergência de um saber médico no país que pregava a medicina como "Tutora da sociedade, saneadora da nacionalidade, senhora absoluta dos destinos e do porvir" (Schwarcz, 2001).

A sua formação na consagrada e tradicional Faculdade da Bahia (de forte influência francesa) rendeu-lhe o convívio com profissionais de várias partes do Brasil e do mundo,9 além do acesso a artigos e pesquisas com distintas abordagens temáticas que eram publicadas na Gazeta Médica da Bahia -primeiro periódico médico brasileiro, cuja circulação inicial data de 1866. Entre os temas centrais que compunham os artigos, no período de 1870 a 1930, registra-se a superioridade numérica dos ensaios de "hygiene publica" (36%)- apesar de não ser tema central de pesquisas da faculdade baiana -que compreendiam além da epidemiologia, temas como saneamento, higienização, demografia e meteorologia (Schwarcz, 2001:204).

Essa produção pode ter influenciado diretamente a carreira profissional de Januário Cicco que em 1920, quando exercia o cargo de Inspetor da Saúde do Porto, publicou o livro "Como se hygienizaria Natal", no qual faz uma primeira descrição concreta do espaço urbano por meio da "Topographia Médica de Natal e sua Geographia Médica". Deu-se ênfase, nesse estudo, a uma descrição detalhada das regiões habitadas (incluindo número de edificações e seus usos, número de habitantes e características geográficas do lugar), como também, à espacialização das principais enfermidades e indicação das possíveis causas e soluções -sendo o meio ambiente, a própria insalubridade urbana e as precárias condições de habitabilidade, sobretudo das camadas populares, os responsáveis pela origem das enfermidades. Essa análise da cidade concreta constituiu-se, portanto, como um dos primeiros estudos geográficos de Natal no século XX.

O Estado, segundo Januário Cicco, possuía o dever de combater as questões sociais e ambientais que favoreciam o contágio e a disseminação das doenças, enfatizando e implantando programas de saúde coletiva. O seu ideário, apesar de se fundamentar e incorporar a concepção científica com base na microbiologia e na concepção infecto-contagiosa da nova medicina, levava em consideração o meio urbano como agente favorecedor da propagação das doenças e epidemias. A água era entendida por ele como o veículo de maior transmissibilidade das enfermidades. Assim, enfatizou o combate à estagnação hídrica, quando apontava, em suas propostas, soluções para os problemas causados pela insalubridade urbana.

Ao descrever Natal, o higienista destacou as especificidades de cada área da cidade, considerando sua climatologia e topografia. Para tanto, não respeitava os limites oficiais dos bairros instituídos pela Municipalidade e dividia a cidade em áreas com base na contigüidade dos focos e nas zonas atendidas pelos "serviços de prophylaxia". Assim, discorria sobre a topografia e geografia do lugar e os fatores que influenciavam o seu estado sanitário, diagnosticando suas enfermidades e propondo os "remédios" adequados. Concretizava, dessa forma, os objetivos das topografias médicas ao indicar "los lugares sanos y enfermos, Ias zonas en que es posible habitar y aquéllas que deben evitarse" (Urteaga, 1980:10).

A capital potiguar era, para Januário Cicco, a cidade mais saudável do Norte do Brasil em virtude da sua proximidade com o oceano, pela predominância e constância de ventos "puros", incidência solar e permeabilidade do solo. Reconhecia, no entanto, que tais fatores eram incapazes de acabar com a insalubridade verificada em algumas localidades da cidade. Em 1920, a área urbana era, no seu estudo, dividida em Cidade Alta (compreendendo-se os bairros de Cidade Alta, Alecrim e Passo da Pátria) e Cidade Baixa (Ribeira e Rocas).

A Ribeira, apesar de plana na sua maior parte, possuía um grande declive que gerava o acúmulo de água, especialmente em épocas de inverno. Essa área, denominada de Lagoa do Jacob, mesmo constituindo uma bacia de grandes dimensões, não comportava o volume de água vindo da Cidade Alta. A falta de escoamento originado pela inexistência de galerias fez da lagoa um foco de doenças até no período de verão (de estiagem). Essa área ribeirinha merecia maiores cuidados também por se consolidar como a porta de entrada de Natal "à civilização e à morte". O porto, que oferecia condições propícias para a disseminação das doenças vindas de outras localidades do país e do exterior, deveria ser fiscalizado constantemente.

O fato de o bairro ter sido edificado "... de Norte para Sul, em oposição às correntes dos ventos dominantes" e por possuir um traçado urbano constituído por ruas estreitas e irregulares, favorecia, segundo o médico, o seu estado de insalubridade (Cicco, 1920:24). Como soluções, foram apontadas a terraplenagem da Lagoa do Jacob, a impermeabilização dos pisos das edificações, a retirada das vacarias, cocheiras e estábulos presentes no bairro e a construção de fossas estanques, acabando, assim, com as escavações para depósito de excrementos, a céu aberto, muitas vezes visíveis nas ruas e avenidas.10

A descontinuidade das dunas presente na região das Rocas e as depressões por elas formadas geravam um problema de acúmulo de água também nesse bairro operário. As precárias condições das habitações (em sua grande maioria de taipa) eram apontadas como propagadoras de doenças. Portanto, algumas medidas foram indicadas por Cicco para esses problemas: terraplenagem dirigindo o escoamento das águas para a planície e reconduzindo-as pela drenagem ao Rio Potengi; a construção, em cada habitação de um tipo de fossa biológica e sistematização da impermeabilização dos pisos.

O bairro da Cidade Alta, apesar de se constituir uma área abastada da cidade, é citado pelo médico como o foco inicial das epidemias em Natal, devido à pequena distância em relação ao Matadouro Público, ao forno de incineração de lixo e ao aglomerado de pobres denominado Passo da Pátria. Portanto, a retirada desses equipamentos do centro e a regulamentação da construção das habitações no povoado do Passo da Pátria foram algumas das soluções presentes no estudo.

O bairro do Alecrim -o mais populoso na época- possuía disfunções muito similares às verificadas nas Rocas, como a inexistência de um sistema de fossas apropriado e o acúmulo e transbordamento de água em algumas lagoas. As soluções, como não poderiam deixar de ser, também seguiam os princípios adotados nas demais áreas de problemas semelhantes.

A fonte de abastecimento d'água da capital potiguar ficava em uma área intermediária entre a Cidade Alta e o Alecrim. Essa zona, denominada Baldo ou Bica, encontrava-se disposta em um terreno pantanoso em cujas proximidades se situa-vam o matadouro e o forno de incineração de lixo -o que não favorecia a salubridade de suas águas.

O médico sugere em seu estudo a criação de uma galeria subterrânea para a condução da água das nascentes vizinhas até o Oitizeiro- onde somente afloraria. Assim, seriam oferecidas boas condições para o consumo saudável da água, por parte da população, como também se tornava possível o aterramento do Baldo, eliminando mais um foco de doenças.

Os bairros de Petrópolis e Tirol, fruto de uma intervenção urbanística ocorrida em 1904, eram considerados, na Topografia, os pontos mais saudáveis de Natal, não apresentando patologias consideráveis em suas localidades (Figura 3). As avenidas largas, o solo arenoso e a disposição das ruas aos ventos dominantes, são alguns dos aspectos que o médico julgou como responsáveis pelas boas condições de salubridade das duas áreas, confirmando, assim, a dicotomia entre a cidade "antiga" e a cidade planejada dentro dos princípios higienistas. Apesar de indicadas algumas soluções pontuais, Januário Cicco concluiu enfatizando, como imprescindível, a construção de uma rede de esgoto, alegando que esse serviço tornava-se indispensável para uma região constituída por uma população maior que dois mil habitantes, como pode ser visto a seguir:

Outras medidas de maior alcance sanitário e removíveis só pela rede de esgotos da capital pedem a intervenção dos governos, reclamam o nosso empenho, apelam para o nosso patriotismo, exigem mesmo o nosso sacrificio, desafiam os nossos créditos de gente civilizada, cuja cultura se mede também pelas condições de vida de que nos cercamos (Cicco, 1920:39).

Natal, segundo o Anuário Estatístico do Brasil (Instituto, 1936:46), possuía, em 1920, uma população de 30 696 habitantes, o que justificava a eloqüência das palavras do médico, clamando por uma solução urgente e extremamente necessária ao bem-estar e à salubridade da cidade.

Essa descrição, apesar de se tratar de um estudo médico, evidencia uma análise geográfica e ambiental da cidade, em seu contexto sócio-espacial, que apontava soluções para a insalubridade de Natal.

As propostas de Januário Cicco foram retomadas e efetivadas posteriormente, no "Plano Geral de Obras de Saneamento de Natal", elaborado em 1924 pelo engenheiro Henrique de Novaes, e no "Plano Geral de

Obras", do Escritório Saturnino de Brito, datado de 1935, que acabaram por introduzir as redes de água e de esgotos da cidade.

 

"Corpo enfermo" e cidade saudável, dois paradigmas para uma mesma questão: considerações finais

A insalubridade urbana e as conseqüentes epidemias determinaram, em fins do século XIX e primeiras décadas do século XX, a análise da cidade enquanto um "corpo enfermo", onde os médicos tornaram-se os responsáveis por sua cura.

No entanto, os médicos europeus, sobretudo a partir do século XVIII, já fixavam suas investigações na influência do meio ambiente e do contexto social no processo patológico, tomando desde então, o espaço e o meio geográfico como objeto de estudo. Evidenciou-se, nesse momento, um novo pensamento e novas atitudes da sociedade e das autoridades públicas e sanitárias frente ao fenômeno das enfermidades. Registra-se uma preocupação, sob forte influência do ideário positivista, quanto à preservação do "corpo social", onde a saúde coletiva torna-se ponto central das políticas públicas e das práticas médicas (Urteaga, 1980). Desenvolveram-se medidas de salu-bridade e controle, e principalmente, estudos visando à implantação de estratégias de prevenção às epidemias.

As geografias e topografias médicas, ao descrever o espaço urbano, divulgaram informações sobre os perigos que ameaçam esse "corpo social". Representavam, assim, a materialização de um tipo de reflexão médico-higienista que buscava identificar os fatores responsáveis pela insalubridade das cidades, associando a origem e a evolução das enfermidades aos aspectos ambientais e sociais do lugar. Ao indicar espaços sãos e enfermos, onde se deveria morar ou evitar, acreditava-se que as variáveis meteorológicas e climáticas de uma área poderiam relacionar-se com "las 'fiebres' del lugar, y el 'temperamento' de sus habitantes, possibilitando así una acción terapéutica eficaz" (Urteaga, 1980:10).

Ao responder a uma preocupação dos poderes públicos, tornaram-se, também, importantes para o estudo e história da geografia, pois acabaram por descrever o ambiente urbano, a partir das variáveis ambientais e espaciais do meio, e apresentando dados sobre a população local. Os higienistas antecipam, dessa forma, estudos que posteriormente viriam a ser desenvolvidos por ecólogos e geógrafos, como bem enfatiza Urteaga (1980:38):

Desde la perspectiva de la ciencia geográfica, el paradigma de las topografias médicas representa una importante aportación de estudios empíricos de tipo regional, anterior a los impulsados por la comunidad de geógrafos y, en el plano teórico, uno de los primeros intentos de análisis del complejo de interrelaciones que median entre el hombre y el ambiente ecológico en que se desenvuelve.

Com base nesse novo modelo, htensificaram-se, no Brasil, principalmente em fins do século XIX, estudos médico-científicos e políticas de higienização das cidades, das habitações e dos próprios indivíduos. Com a virada do século, às idéias de higiene foram incorporadas teorias da nova medicina, e as descobertas técnicas muito reafirmaram e se dirigiram para uma prática sanitária mais enfática nas cidades brasileiras. Os parâmetros miasmáticos vão dar lugar a uma interpretação mais sistemática e fundamentada nos estudos da população e de suas condições de habitabilidade.

Essa nova visão foi, como dito, transportada para Natal no início do século XX e sintetizada pelo médico Januário Cicco, que a partir da observância do ambiente construído, ou seja, a partir da cidade real, propôs ações de modificação do meio urbano, ressaltando a introdução de serviços, por parte do poder público. Destaca-se ainda que esse estudo inovou pelo uso de fotografias que justificavam regiões características da cidade, bem como locais deficientes, anti-higiênicos e que mereciam intervenção.11 A cidade foi literalmente retratada a partir da visão médica. Apesar dessas ações permanecerem apenas no ideário de seu propositor ressalta-se a evidência da relação da questão médica como diagnóstico e proposta, e da questão técnica e política, como solução. Solução essa que, aliás, viria se concretizar apenas na década de 1930.

Este estudo histórico ressalta, portanto, a preocupação, naquele momento, de criação de uma outra cidade fundamentada em estudos médicos e intervenções sanitárias do poder público que visavam melhorar a salubridade da área urbana existente. Por outro lado, o presente trabalho revela que os médicos, por meio principalmente, das geografias e topografias médicas, foram os primeiros a analisar a relação entre clima, habitantes e ambiente construído, bem como a estudar os espaços concretos da cidade. Esses estudos e propostas, ao contemplar características sócio-ambientais, foram deixando de ser uma questão isolada de higiene e se tornaram paulatinamente uma questão global de ambiência urbana (Ferreira et al., 2000).

Vale salientar, no entanto, que continua alarmante o percentual da população que apresenta problemas de saúde devido a um consumo de água inadequada e à carência de saneamento. Em função desse quadro têm surgido várias propostas visando melhorar a qualidade de vida nas cidades e as condições de saúde da população. Muitos setores da sociedade civil se articulam frente a esta questão. No que se refere aos médicos e sanitaristas, o Movimento das Cidades Saudáveis, originado no Canadá nos anos 1970 e incorporado pela Organização Mundial da Saúde, representa uma dessas propostas que, por meio de uma nova visão e prática da medicina baseada em uma ação intersetorial e uma nova forma de gestão das cidades, promove a interpelação entre programas de saúde e desenvolvimento urbano. Nesse contexto, o Estado é apontado como promotor das ações devendo contar também com a participação efetiva da sociedade civil (Westphal, 2000). Observam-se, também, recentes estudos e pesquisas desenvolvidos em Instituições de ensino médico no Brasil que se utilizam de técnicas de geoprocessamento a fim de se promover a saúde da população. O instrumental metodológico usado permite uma análise exploratória espacial por meio da construção de mapas, identificando áreas e condições de risco, prevalência de determinadas doenças, e, principalmente, auxiliando no planejamento, monitoramento e avaliação das ações em saúde (Chiesa et al., 2002).

Dessa maneira, o discurso higienista de fins do século XIX e inicio do século XX, assim como o discurso ambientalista ou ecologista atual e recentes pesquisas na área da medicina, pregam um mesmo ideal: a importância e a indispensabilidade das condições ambientais urbanas para a melhoria da qualidade de vida da população.

 

AGRADECIMENTOS

As autoras gostariam de agradecer ao Grupo de Pesquisa História da Cidade e do Urbanismo do Depto. de Arquitetura da UFRN e a concessão de bolsas por parte do CNPq e da FAPESP.

 

NOTAS

1 Cabe ressaltar que Glacken coloca em questão a autenticidade de algumas das obras que integram o "corpus" de Hipócrates, no entanto, afirma que "Las incertidumbres sobre fecha y autenticidad no oscurecen el hecho de que, justa o injustamente, Hipócrates haya sido visto em todo tiempo como um médico muy real y autor de la obra, y Aires, aguas, lugares, como uno de sus tratados más populares" (1996:107).

2 A esse respeito, Mumford (1961: 57) afirma que os banhos públicos, ao ar livre, além do fim terapêutico -de "purgação da epiderme"-constituíam-se, na Idade Média, como uma prática social: "... lugar onde a gente trocava mexericos e comia assim como, atendia à tarefa mais séria de tratar de dores e condições inflamatórias".

3 Segundo Abreu (1997), "não há notícia da realização de topografias médicas no Brasil colonial", mas indícios mostram que o pensamento higienista foi introduzido no Brasil no século XVIII e se difundiu no século XIX, principalmente a partir da instituição do ensino médico e da Sociedade de Medicina.

4 Filiada à tradição do pensamento hipocrático.

5 Para esta, tudo que estava parado ou estagnado -o ar, a água, os dejetos, o lixo e os próprios homens- era fator de doenças; e os vapores emanados dos processos de putrefação da matéria animal ou vegetal (os miasmas), os causadores das epidemias.

6 Cabe aqui destacar que, segundo Luis Urteaga (1980:24), as topografias e geografias médicas, apesar de analisarem o meio ambiente segundo os mesmos métodos, distinguem-se na escala de abrangência do estudo. As topografias estudam lugares, comarcas ou regiões, enquanto que as geografias atingem um nível supraregional ou nacional.

7 Cientista brasileiro que, em 1909, concluiu as pesquisas sobre a tripanossomíase, posteriormente conhecida como "doença de Chagas".

8 A cidade de Manaus, capital d estado do Amazonas, situa-se na margem esquerda do Rio Negro. Possui clima tropical, quente e úmido, com temperaturas médias anuais de 27° C e chuvas abundantes. Sua paisagem caracteriza-se por florestas, rios e vários igarapés.

9 No ano de sua formação, 1906, concluíram o curso médicos de outros estados brasileiros, além da Bahia como Alagoas, Pernambuco, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Piauí, Ceará e Rio Grande do Sul. Registram-se também médicos naturais da Itália, de Portugal e da França.

10 Essa prática era comum em toda a cidade e foi maciçamente criticada pelo médico em virtude da contaminação do lençol freático, uma vez que a população se abastecia da água filtrada nas dunas. Era, portanto, um problema a ser solucionado de um modo geral.

11 Cristina Campos (2002) destaca, no Brasil, o uso da fotografia retratando o espaço urbano a partir de trabalhos desenvolvidos pelo médico Geraldo Paula Souza, entre 1921 e 1922, quando diretor do Serviço Sanitário em São Paulo. Segundo a autora, o médico envolveu-se com a fotografia no período que passou nos Estados Unidos (1918 a 1920) cursando a Universidade Johns Hopkins. Os estudos de Cicco são, portanto, anteriores aos de Paula Souza não se tendo, no entanto, informações quanto a outros trabalhos no Brasil, nem como o médico potiguar teve acesso a tal técnica.

 

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