Introdução
A relação entre religião e política é objeto de estudo recorrente nas ciências sociais. A ascensão da religiosidade nas últimas décadas tem mobilizado ampla atenção dos pesquisadores para a interface entre estas esferas no mundo contemporâneo. No Brasil o fenômeno apresenta contornos e variações singulares, haja vista a crescente inserção de grupos religiosos cristãos na política institucional.
Este texto tem por objetivo diagnosticar as formas de construção da relação entre religião e política no Brasil.1 Para desenvolver o argumento dividimos o texto em duas seções, que abordam elementos históricos e conceituais sobre o fenômeno no Brasil. Na primeira seção examinamos o modo como a Igreja católica influenciou a elaboração da Constitui-ção de 1933 através da Liga Eleitoral Católica, bem como sua estreita relação com o Governo Vargas e seu apoio ao golpe militar de 1964. Nesta seção também analisamos o impacto que a Teologia da Libertação (TL) e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) provocaram na orientação do catolicismo e na transformação do relacionamento da Igreja com a política e as elites nacionais.
Na segunda seção, o texto analisa a emergência dos pentecostais e neopentecostais como atores políticos a partir do cenário da Assembleia Constituinte, responsável pela elaboração da Constituição brasileira de 1988. Por conseguinte, averiguamos a forma como este segmento religioso construiu estratégias para eleger parlamentares vinculados com sua liturgia e ideário político, bem como para se consolidar no ambiente legislativo mediante a formação de uma das principais bancadas parlamentares do Congresso brasileiro.
O avanço dos grupos religiosos na política conferiu caráter conservador as discussões e as legislações propostas nos últimos anos. Neste sentido, temas como a descriminalização do aborto, casamento civil igualitário, eutanásia e outras agendas com impacto em valores religiosos e/ou morais se tornaram tabus no ambiente político nacional. Ao invés disso, os dados da pesquisa registram a significativa mobilização dos representantes políticos vinculados às frentes parlamentares religiosas para ampliar as restrições e a criminalização destas práticas. Por isso acreditamos que os pontos discutidos neste trabalho apresentam contribuições para pensar o fenômeno e os desdobramentos da incursão religiosa na política brasileira, sobretudo por analisar conjuntamente e de forma comparativa a atuação da Igreja católica e das igrejas pentecostais e neopentecostais.
A intervenção política da Igreja católica
A Constituição do Brasil de 18912 consagrou, ao menos formalmente, a separação entre o Estado e a religião. Mesmo que esta divisão não fosse reflexo de profundas rupturas nas relações entre estas esferas, no entanto, vale ponderar que naquele momento havia dinâmicas sociais em marcha que poderiam abalar o poder de influência da Igreja católica. Estamos nos referindo às tendências seculares, tais como o liberalismo, racionalismo, positivismo e o comunismo, que naquela ocasião eram, até certo ponto, concepções permeáveis entre algumas frações das elites e dos movimentos sociais no Brasil. Conforme sustenta Scott Mainwaring, isto desafiou a capacidade de resposta da Igreja a um possível cenário de recomposição da organização social e da ascensão de ideias adversas a sua fé e dogmas.
Diante deste cenário a Igreja católica brasileira promoveu transformações internas entre 1891 e 1920, com o objetivo de acentuar sua presença na sociedade. Sua débil situação no país em termos financeiros, de recursos humanos e influência (especialmente se comparada com a força política e social da Igreja na América hispânica), ampliava o tamanho de seus desafios na época. Agora como instituição autônoma, já que os investimentos e o sustento da Igreja até então eram providos (por diretivas da Santa Sé) pelo Estado.
Neste contexto histórico há denominações cristãs que emergem no campo religioso e social brasileiro, a destacar principalmente as incursões3 do pentecostalismo nas duas primeiras décadas do século XX. Este segmento será (a partir de 1970) a grande força na esfera religiosa a ameaçar a hegemonia social e política da Igreja católica. Por enquanto cabe apenas identificar as duas principais denominações do período, que introduziram inovações teológicas no cristianismo nacional, mediante a crença nos dons do Espírito Santo. A Igreja pentecostal mais antiga do país é a Congregação Cristã (CC), fundada em 1910 em São Paulo, por membros dissidentes das igrejas protestantes. A aversão da CC a política e a divulgação midiática de seu entendimento da fé fizeram com que seu peso social e político se tornassem periféricos ao longo dos anos. Já a Assembleia de Deus, fundada em 1911 por missionários suecos que se instalaram no estado do Pará (ao norte do País), se converteu até a década de cinquenta na maior expressão da igreja pentecostal no Brasil.
Como forma de reação e reafirmação de suas crenças, a Igreja católica construiu um discurso sustentado pela dualidade bem/mal, onde o mundo moderno, representado por novas concepções de organização social, era tratado como nocivo e contrário a deus, aos valores morais, a família e a autoridade. De igual modo, esta dualidade foi utilizada no tocante às religiões que logravam ascensão popular, entre estas o pentecostalismo e o espiritismo. Portanto, segundo Marina Bandeira, a Igreja se apresentava como guardiã dos valores “vitais” para a ordem social, ao mesmo tempo em que a única via de comunicação com deus, tendo em vista as campanhas contra as religiões que emergiam, consideradas seitas.4
Scott Mainwaring enfatiza que a ascensão do comunismo e do movimento sindical mobilizou a adesão de boa parte dos católicos ao movimento integralista (de inspiração conservadora). Além das campanhas de “demonização” desta orientação política e de seus membros,5 a Igreja criou no início da década de 1930 associações, como os Círculos Operários Católicos e a Juventude Operária Católica, que funcionavam como instituições concorrentes dos sindicatos na mobilização dos trabalhadores. Mesmo vinculados a estas agremiações, os operários eram estimulados pela Igreja a permanecerem sindicalizados, especialmente para demarcar oposição às posturas à esquerda nas reuniões de seus respectivos sindicatos.
Estes exemplos são iniciativas importantes para termos um esboço da relação entre a Igreja católica e a política no Brasil durante primeiras décadas do século XX. Elas denotam certo poder de resistência da instituição frente a possíveis ameaças de sua hegemonia como provedora de um estatuto moral e religioso à sociedade. No entanto, aos propósitos deste estudo, nenhum empreendimento foi tão singular quanto a Liga Eleitoral Católica (LEC). Visto que ela se constituiu em uma das principais estratégias de intervenção dos objetivos e concepções religiosas na esfera política, desde a separação de ambas.
A LEC tinha por objetivo influenciar a composição do legislativo federal nas eleições de 1933 e, por conseguinte, a Assembleia Nacional Constituinte que seria (e foi) realizada em 1933. A LEC foi instituída em todo Brasil e funcionava através de comitês, que se encarregavam de identificar possíveis representantes de seu projeto no interior da Igreja para as eleições de 1933. Posteriormente, a LEC analisava todas as plataformas eleitorais dos postulantes ao legislativo, para estipular aos católicos quais eram recomendados e aquelas que deveriam ser evitados. Os critérios utilizados para a promoção das candidaturas levavam em consideração basicamente a posição do postulante acerca dos valores morais e seu alinhamento com os interesses da Igreja, entre estes, a questão do divórcio e o ensino religioso nas escolas.
As eleições de 1933 revelaram a impactante vitória da estratégia eleitoral da LEC, haja vista que a maioria dos candidatos com seu apoio foram eleitos. Contudo, a pesquisa de Felipe Leite pontua que a ação da LEC não se limitou em construir candidaturas e oferecer aos católicos um cardápio eleitoral de postulantes “aceitáveis” ao legislativo, sua atuação se dirigiu também à supervisão dos que foram eleitos sob sua tutela. Neste sentido, a Igreja formou comissões em seu interior com o intuito de debater o Código Civil e Penal, a Lei Eleitoral e a defesa dos valores da família. Sendo assim, os parlamentares no Congresso Nacional atuavam como interlocutores a pressionar o sistema político pelos interesses da Igreja na elaboração da constituição.
A instabilidade política do período tornou aquele momento o mais oportuno para exercer esta forma de pressão, com vistas à “recristianização” do país e a restauração da hegemonia social e religiosa. A Constituição de 1934 foi o grande reflexo dessa ofensiva religiosa na esfera política, posto que, as demandas da Igreja foram incorporadas ao novo texto constitucional, tais como a proibição do divórcio, o ensino religioso nas escolas e o estabelecimento de subsídios estatais para as obras assistenciais vinculadas a Igreja.
É possível elaborar aqui uma reflexão sobre a comparação entre a intervenção política católica neste período (década de 1930) e a ascensão política pentecostal/neopentecostal (que será discutida adiante), iniciada na década de 1980. Primeiramente, os contextos são similares, isto é, o Brasil estava em processo de elaboração de novas constituições (1934 e 1988, respectivamente) e havia grupos sociais que aspiravam à inclusão de novos reordenamentos jurídicos nestes textos, aos quais estas instituições religiosas eram contrárias, por entenderem que tais reordenamentos iriam subverter certos valores morais e/ou religiosos. Em segundo lugar, vale destacar as estratégias empreendidas. Tendo em vista que nos dois casos buscou-se a construção de quadros eleitorais remanescentes do interior das igrejas, assim como a aprovação ou “demonização” para aqueles postulantes reprovados. Não queremos dizer com isso que haja um padrão de reprodução entre estas duas experiências, ou seja, uma receita exitosa adotada pelos católicos e que foi copiada pelos pentecostais/neopentecostais posteriormente. A despeito disso, pretendemos apenas chamar a atenção à porosidade da sociedade e do sistema político em absorver estas estratégias/intervenções do mundo religioso na política. É válido ressaltar que em ambos os casos houve reações de grupos sociais. Porém, não houve um debate amplo, motivado pelo estranhamento da ingerência de grupos religiosos na política.
Scott Mainwaring sustenta que após a Carta Constitucional se estabeleceu entre a Igreja católica e o governo Vargas (1930-1945) uma aliança política sólida de acordos. De um lado, o Estado atendeu demandas importantes da Igreja, como a obstrução de impulsos políticos orientados pelo liberalismo e comunismo, além da concessão de privilégios a Igreja. Por sua vez, os lideres encarregados do arranjo político daquele momento identificaram como extremamente positivos os ganhos provenientes de sua aliança com a Igreja, sobretudo no que tange ao respaldo social do regime.
Com base nesta composição presente na era Vargas, queremos sublinhar o lugar ainda mais periférico que a perspectiva liberal passou a ocupar no Brasil. Longe de ser no século XX uma orientação política inclinada à ruptura das relações de poder estabelecidas, como o socialismo, os liberais brasileiros, de modo geral, estavam razoavelmente comprometidos em promover a importância de valores sustentados pela razão, conhecimento técnico/científico e na secularização, entre outros pontos. Estes foram motivos suficientes para “entrar na linha de tiro” da Igreja e de setores políticos conservadores, o que provocou sua marginalização política.6
Com o fim da era Vargas houve alterações na aliança entre a Igreja e o Estado. Isto porque, no período democrático (1946-1964) a Igreja já não dispunha do mesmo amparo do Estado, e as relações entre estas instituições já não eram tão estáveis. Ademais, correntes internas pressionavam por mudanças na Igreja católica brasileira, que permanecia conservadora, preocupada em conquistar e constituir vínculos com as elites urbanas, rurais e com a classe média, em detrimento do grande público. Na primeira convenção da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em 1952, Dom Hélder Câmara enfatizou a necessidade de novas perspectivas, por exemplo, através do estimulo às organizações leigas e da aproximação com as classes populares.7
Neste ambiente ocorria a expansão dos centros urbanos, a industrialização e os fluxos migratórios do norte/nordeste para o sudeste, que são traços singulares da primeira experiência democrática. Estes processos tiveram impacto sobre a emergência do pentecostalismo nos centros urbanos, mais especificamente na cidade de São Paulo. A intitulada segunda onda/fase do pentecostalismo foi marcada pela crença na cura divina, somada aos dons do Espírito Santo, elementos já presentes em outras denominações.8 A combinação entre mudanças sociais, urbanas, políticas e a emergência destas denominações no centro de tais transformações conferiu ao pentecostalismo ampla inserção nas classes populares. Apesar de sua significativa presença social, os pentecostais em sua maioria permaneceram afastados de qualquer debate relacionado à política institucional. Por esse motivo nos concentramos até o momento em apenas diagnosticar os elementos principais de seu desenvolvimento, pois é a partir da terceira fase/onda que a relação deste segmento com a política irá sofrer alterações.
O reposicionamento da Igreja católica frente a estas mudanças e ao mundo contemporâneo foi materializado no Concílio Ecumênico realizado em 1961, mais conhecido como Concílio Vaticano II. Neste evento foram revisados os padrões de autoridade, a importância do laicato e a opção pelos “pobres” se tornou posição oficial da instituição. Conforme destacam José F. Régis de Morais e Ernesto Seidl, a Igreja teve de defrontar-se de uma vez com questões acumuladas ao longo dos séculos. Em suma, o Vaticano II “reconheceu” que a hegemonia social e as posições da Igreja já estavam deterioradas, por isso era necessário se tornar mais flexível as transformações sociais. As resoluções do evento apontavam para grande modificação teológica, onde a Igreja deveria priorizar sua presença no mundo.
Após o Vaticano II houve crescente tensão entre grupos progressistas e conservadores no interior do catolicismo nacional, pois estes últimos almejavam empreender as mudanças de modo gradual, preservando velhas estruturas. É imprescindível ressaltar o peso das organizações leigas nesta disputa como a JUC, JOC, ACB e a Ação Popular (AP), criada em 1961, tendo em vista os conflitos travados com a hierarquia conservadora. Mais do que a tomada de posição na presente tensão, estas associações romperam com paradigmas cristalizados, ao demonstrarem que os leigos poderiam pensar e oferecer caminhos ao catolicismo, sem depender exclusivamente do clero para isso. Em virtude de sua aproximação com grupos de esquerda, sua crítica ao capitalismo e proposta de intervir no mundo para promover a justiça social via catolicismo, estas associações foram consideradas a gênese das CEBs e das concepções que formaram a TL no país.9
A despeito da reorientação eclesial no catolicismo e da ascensão de vertentes progressistas no Brasil, a Igreja apoiou o golpe militar em 1964.10 O suporte ao golpe teve como objetivo afastar as possíveis ameaças de implantação do comunismo no Brasil, mas também, como pano de fundo, foi impulsionado para pressionar a chamada “esquerda católica”. Esta estratégia da hierarquia produziu efeitos substanciais na desarticulação dos setores progressistas, haja vista que algumas associações leigas tiveram militantes presos, foram consideradas subversivas e se tornaram ilegais a partir de 1966.
Acreditamos que o apoio da Igreja ao golpe e ao regime militar é mais um importante capítulo dos fecundos diálogos estabelecidos entre religião e política no Brasil. Posto que a aliança entre estas esferas denotou a composição de um estruturado arranjo político que conferiu parte da legitimidade da intervenção militar, ao passo que também propiciou as elites eclesiais frear mudanças bruscas que pudessem ameaçar seu poder de controle sobre a Igreja. A nosso ver, pelo menos até este momento da história, parece que qualquer possibilidade de transformação social mais profunda era suficiente para mobilizar a aliança entre estas esferas, com o intuito de enfraquecer opositores internos e/ou externos ao que estava vigente nas estruturas destas instituições.
Nos primeiros anos do regime militar a Igreja católica brasileira permaneceu em silêncio sobre os casos de repressão e praticamente inalterada quanto às mudanças teológicas promovidas pelo Vaticano II, apesar da resistência conservadora a “esquerda católica” já contava com lastro social que lhe permitia resistir às reações adversas e expandir sua proposta de mobilização. Após o recrudescimento da repressão e das posições expressas pelo catolicismo internacional é que a oposição mais ávida ao regime militar se consolidou no interior da Igreja.11
Nos anos de 1970 alguns setores da Igreja católica iniciaram uma nova etapa na ligação da instituição com as elites e a política. Outrora a Igreja era parte integrante desse arranjo, neste período se converteu em contestadora da acumulação financeira, das desigualdades, do latifúndio e da autoridade política vigente. Tal postura estabeleceu conflitos com o Estado, que culminou em copiosos episódios de repressão militar. Por exemplo, alguns setores militares consideravam a Igreja católica uma das principais inimigas do país.12
As CEBs tiveram significativa importância nesta redefinição do papel da Igreja. Por um lado, elas se propunham a estabelecer novo relacionamento dos católicos com a fé, sobretudo com base nos laços comunitários e pela liberdade frente à hierarquia eclesial. Por outro lado, as CEBs estimulavam maior intervenção e postura crítica dos cristãos sobre os processos políticos e sociais. Portanto, as reuniões das CEBs se concentravam no aspecto religioso, mas nelas também eram discutidos problemas sociais locais (como infraestrutura dos bairros) e nacionais (as ações do regime).
Desde sua concepção um dos objetivos das CEBs era ser instrumento para recuperar o espaço perdido pela Igreja católica para as religiões de matriz africana, espiritismo e principalmente para os pentecostais. Na década de 1970 os pentecostais já representavam cerca de 10% da população brasileira, e é neste período que emerge a terceira onda/fase do pentecostalismo. A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e a Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD)13 são as principais representantes dessa fase, pois promoveram significativas alterações no campo religioso, visto que tais denominações introduziram no Brasil a teologia da prosperidade,14 o uso intensivo das mídias, do exorcismo e da inserção deste segmento religioso na política institucional. O crescimento destas denominações (junto com as demais) consolidou o pentecostalismo como força concorrencial capaz de ameaçar a hegemonia religiosa dos católicos no Brasil.
Apesar das CEBs não terem obtido pleno êxito em sua função de reconquistar amplos espaços no campo religioso, é notório que elas dinamizaram as bases do catolicismo nacional (Estima-se que havia entre 1970 e 1980 cerca de oitenta mil CEBs, com dois milhões de fiéis), combinando sua missão evangelizadora com a proposta de fomentar a discussão e a participação política. A atuação destas entidades transformou a Igreja católica em um dos principais atores na luta contra o regime militar, sendo uma das entidades relevantes no apoio e articulação dos protestos contra a repressão (por exemplo, na greve dos metalúrgicos do ABC em 1979). Convém lembrar também, que a agenda de discussões, a mobilização política e o apoio da Igreja católica (através das CEBs e CNBB) são fatores que influenciaram a criação de alguns dos principais atores sociais e políticos da esquerda, tais como o Partido dos Trabalhadores, sindicatos, associações de bairros e movimentos de luta pela terra.
Em virtude de seus posicionamentos, a Igreja brasileira foi considerada a mais progressista do catolicismo mundial, todavia, a instituição seguiu engessada no que tange a revisão de seus valores morais. Ao analisar os documentos emitidos pela CNBB, José F. Regis Morais salienta que a Igreja reforçou neste período a necessidade de preservar a família nuclear (e as posições de gênero presentes nela) e a indissolubilidade do matrimônio. A única inflexão de maior “abertura” neste terreno foi a tolerância com aqueles que se divorciaram. Estes assuntos permitem questionar o quão progressista era a Igreja, pois sua inovação se concentrou em resgatar elementos presentes na origem do cristianismo, tais como, a cooperação e a luta contra as injustiças, porém seus dogmas morais permaneceram intocáveis e nem ao menos foram inscritos no rol de temas pertinentes à reflexão.15
Há consenso na literatura de que as CEBs criaram espaços (em meio à repressão), para a organização dos interesses coletivos das comunidades. No entanto, Reginaldo Prandi considera superestimada a participação política promovida pelas CEBs, e identifica algum grau de centralização na condução das reuniões e das atividades. Do mesmo modo, José F. Regis Morais assinala que quando as lideranças leigas não concordavam com as ações propostas pela comunidade elas dificilmente se desenvolviam. Por sua vez, John Burdick em parte de sua pesquisa analisou o lugar de fala dos participantes e identificou assimetrias, exemplificadas em duas situações que constrangiam grande parte dos/as integrantes: 1) a desenvoltura, letramento e a educação na fala pesavam mais que a participação; 2) a fala deveria se alinhar com o discurso progressista para ser considerada válida.
O declínio da Igreja progressista se inicia nos anos de 1980, algumas circunstâncias aceleraram este processo. De um lado, a redemocratização provocou certa desmobilização nas CEBs. Isto porque o espaço ocupado por estas entidades passou a ser assumido por associações de bairros, movimentos sociais e partidos políticos, que a partir de então passaram a reivindicar suas demandas de forma autônoma. Isto não significa dizer, pelo menos na maioria dos casos, que houve um processo de ruptura. As CEBs permaneceram desempenhando papel importante nas ações das comunidades, entidades e movimentos sociais que contribuiu para a criação ou que atuavam em conjunto a ela. De outro, a salientar as pressões sofridas pelas CEBs de setores conservadores do Vaticano e do catolicismo nacional. Por exemplo, o papado de João Paulo II se empenhou em frear o avanço da Teologia da Libertação e dar suporte à expansão da Renovação Carismática Católica (RCC) no país.16
As frações progressistas da Igreja católica foram extremamente importantes para a abertura política do Brasil. Por exemplo, se pondera que suas ações se concentraram em denunciar e criticar a repressão por intermédio de documentos, mas também como instituição de articulação política e social para pressionar o regime. Reconhecemos a legitimidade da agenda de oposição contra a ditadura militar, mesmo assim parece plausível ponderar que novamente no Brasil um ator religioso assumiu enorme protagonismo para impulsionar transformações no sistema político.
Com base no conceito de laicidade do Estado, acreditamos não ser razoável justificar interferências da religião na política a partir da legitimidade, pois se o critério for este se abre um leque de precedentes, tendo em vista que a construção social que torna uma agenda legitima ou ilegítima, democrática ou antidemocrática está em permanente disputa. Por exemplo, atualmente no Brasil se tornou significativamente mais legítimo para amplos grupos sociais a ingerência religiosa em prol de políticas conservadoras, que tenham por propósito preservar os princípios basilares da família cristã, do que a luta contra um regime que cerceie a liberdade de expressão e organização. Neste sentido, devemos considerar que as razões para a intervenção da Igreja progressista na política são completamente distintas daquelas que ocorreram anteriormente (como a LEC) e ocorrem atualmente. Entretanto, mesmo a par de todas as ressalvas, não por isso a ação da Igreja neste período deixou de se configurar uma intervenção.
Um novo modelo de relação entre religião e política após a redemocratização
Os trabalhos de Leonildo Campos e Alexandre Fonseca17 apontam que houve intensa atuação dos atores religiosos, nas mais variadas frentes, no ambiente de abertura democrática e da elaboração da Carta Constitucional de 1988. Além da Igreja católica, este cenário apresentou a significativa presença dos (neo) pentecostais,18 denotando a consolidação deste segmento religioso no cenário político. Sua atuação e mobilização no ambiente constituinte foi reflexo da adoção de estratégias políticas construídas ao longo dos anos de 1980, sobretudo pela Igreja Universal do Reino de Deus. Consequência disso, a chamada “bancada evangélica”19 entre 1982 e 1986 saltou de 14 para 33 representantes na Câmara dos Deputados.
Duas razões são apontadas para explicar a incursão política deste segmento. Primeiramente, o temor de que a Carta Constitucional contemplasse temas como a liberação das drogas e a descriminalização do aborto incentivou a articulação e presença destes no cenário político partidário. Por outro lado, havia também o receio de que setores da Igreja católica aliado a forças à esquerda no quadro partidário viessem a aprovar leis com o intuito de impor limites ao avanço dos (neo) pentecostais. Por estes motivos algumas denominações abandonaram a posição apolítica que sustentavam até então, iniciando um processo de organização com fins eleitorais para influenciar em temas na elaboração da nova constituição.
A mobilização política dos (neo) pentecostais pode ser vista como reação em face da disputa religiosa, social e política com outros setores (por exemplo, veículos da mídia, partidos políticos de esquerda e a Igreja católica),20 mas também como forma de respaldo político de seus interesses. Conforme destacam alguns estudiosos em trabalhos mais recentes, frequentemente a presença nos espaços legislativos se configuraria em instrumento de proteção de suas práticas litúrgicas (tais como, a cura divina, exorcismo e a arrecadação de donativos), que até aquele momento era ponto central no conflito com os setores mencionados.
Esta postura foi decisiva para as alianças confeccionadas pelas lideranças políticas e/ou religiosas (neo) pentecostais nas eleições seguintes. O apoio a Collor em 1989 e a Fernando Henrique Cardoso em 1994 teve como objetivo a oposição ao candidato Lula, do Partido dos Trabalhadores (PT), à Presidência da República. Neste sentido, os fiéis eram orientados a evitar candidatos “extremistas” para os cargos executivos e legislativos. Conforme dito, naquele período as lideranças (neo) pentecostais acreditavam que havia uma aliança entre o PT e setores da Igreja católica para restringir sua liberdade religiosa.21
Autores como Maria das Dores Machado e Joanildo Burity assinalam que o desejo de ingresso efetivo destas denominações na vida política impulsionou também o desejo dos partidos políticos neste “mercado” de eleitores que naquele momento estava em franca expansão. A interface entre estas instituições permitiu a captação e preparação de possíveis quadros eleitorais no interior das igrejas, alinhados com os interesses e orientações eclesiais. Do mesmo modo, de acordo com Simone Bohn, tal estratégia também se direcionou no sentido de estimular entre os fiéis à consciência da necessidade da presença da Igreja na política, como forma de intervenção em temas políticos relevantes para a sobrevivência dos valores religiosos. Contudo, estes dispositivos para estruturar uma base eleitoral sólida conviveram com tensões, entre as quais foi necessário desconstruir a aversão anteriormente depositada no universo político.
A preservação de sua liberdade religiosa foi o eixo de sustentação para a presença dos (neo) pentecostais nas esferas de decisão no campo político. Embora é possível identificar que este argumento foi mobilizado durante toda trajetória deste segmento pós décadas de 1980 e 1990, seja para demarcar posição frente à Igreja católica ou para frear iniciativas em prol do respeito e de avanços na legislação, às minorias religiosas e de gênero. Paulo Siepierski reflete que este grupo sempre foi pouco sensível as demais liberdades, entre elas, a de organização e expressão. Por sua vez, Ricardo Mariano e Antonio Pierucci também questionam esta hierarquização das liberdades (ou seja, a liberdade religiosa em detrimento das outras liberdades), e suas possíveis consequências a democracia brasileira:
Os pentecostais estão entrando em nossa incipiente vida democrática erguendo a bandeira da liberdade religiosa. Boa causa. Todavia, para nossos ouvidos “religiosamente não musicais”, como dizia Weber, soa um tanto quanto esdrúxula esta demanda na boca de quem, durante os vinte anos de ditadura, nunca reclamou da falta de liberdade de expressão, liberdade de im-prensa, de associação política, da liberdade partidária, de consciência e de pensamento. Sinal de que a questão da liberdade -e das liberdades- tem sempre um movimento diferente conforme o grupo a que se pertence e o deus (ou demônio) que se cultua. A hierarquização das liberdades é sempre um ato arbitrário; valorizar absoluta e cegamente uma delas, em detrimento das outras, pode dar num desastre.22
A partir disso, podemos sinalizar a emergência de um novo ator que busca converter seu capital religioso em político. De fato, utilizando métodos comumente empregados pela Igreja católica ao longo do século XX,23 tais como: 1) o exercício de sua influência religiosa para intervir na escolha eleitoral de seus fiéis; 2) a “demonização” de forças políticas e sociais que pudessem lhe representar ameaças; e 3) a mobilização de sua densidade social e peso político como moeda de troca para pressionar o sistema político em prol de suas demandas.
Mesmo havendo similaridade nas estratégias de católicos e (neo) pentecostais, entendemos que há novo capítulo na relação entre religião e política sendo escrito. Isto dito, tendo em vista a formação de candidaturas oficiais pelas denominações e a construção de frentes parlamentares de caráter confessional. Esta questão é importante, na medida em que provoca ruptura no modo como os cristãos se relacionavam com a política, isto é, embora se buscasse a influência havia separação entre a missão eclesial e o universo político. É nos anos de 1980 que o ingresso de pastores e bispos na política institucional passa a ser entendido como componente da missão eclesial da Igreja. A proposta de inserção no campo político seria a “purificação” deste espaço, ou melhor, a conquista para o “reino de deus” das esferas que estão sob “domínio do diabo”.
Paulo Siepierski aponta a debilidade dos pesquisadores em perceber este fenômeno. Uma vez que grande parte das investigações se concentrou na atuação das CEBs junto aos movimentos sociais e às forças políticas durante a redemocratização. Enquanto isso, transformações no cenário social, político e religioso estavam sendo registradas, como o vertiginoso influxo dos (neo) pentecostais na política institucional e nos cargos de direção dos partidos políticos.
No mesmo momento em que os (neo) pentecostais demarcavam seu espaço, igualmente a Renovação Carismática buscava se consolidar no interior da Igreja católica, ainda que persistissem disputas com setores progressistas. A RCC surgiu e se expandiu no Brasil (assim como nos EUA) no interior da classe média, apesar disso é o grupo católico que conquistou maior visibilidade nos últimos anos, inclusive com certa inserção nas camadas populares. Um dos elementos que podem explicar este significativo crescimento (além do amplo apoio da hierarquia nacional e do Vaticano) é o uso intensivo da TV e das rádios como veículos de propagação de sua mensagem, bem como os padres com notoriedade midiática.
A RCC está a meio caminho entre o neopentecostalismo e o catolicismo, por isso é comumente denominada de pentecostalismo católico. Isto em virtude dos carismáticos incorporarem grande parte das práticas (neo) pentecostais, como a crença nos dons do espírito (sobretudo, a glossolalia e a cura divina),24 a valorização da Bíblia, o formato dos encontros (músicas e a crença manifesta através da expressão corporal) e o proselitismo religioso. Há questões que os diferenciam, especialmente o papel proeminente do “demônio” nas explicações sobre os “desvios” morais e sociais e os bens materiais como instrumento de legitimação da fé, elementos ausentes na RCC. Não obstante, a devoção em Maria e a obediência ao Papa são efetivamente os traços mais distintivos que aproximam e distanciam os carismáticos do catolicismo e do neopentecostalismo, respectivamente.
De acordo com algumas pesquisas os (neo) pentecostais e a RCC colaboraram de forma decisiva para o ressurgimento na liturgia cristã no país da transformação moral dos indivíduos, do ideário da família e da rígida moral sexual. No caso da Igreja católica, o avanço do projeto moral da RCC promoveu um retorno às bases presentes na Igreja tradicional, anterior ao Vaticano II. Mais do que mudanças teológicas na forma como entendem o cristianismo, é interessante notar que estas organizações compreendem que estas normas devem ser estendidas à sociedade. Como veremos adiante, um dos traços de compreensão da atuação destes segmentos é a verificação de sua mobilização para que determinadas crenças se convertam em legislação, portanto, que o Estado opere com base em alguns valores.
Como forma de intervir social e politicamente a RCC também iniciou processo de articulação política em meados dos anos de 1990, mediante a criação das secretarias nacionais.25 Cabe sublinhar que neste caso há acentuada rejeição a participação política ao modo das CEBs, pois os carismáticos são mais inclinados à intervenção através da política partidária. Conforme destacam estudiosos do tema, os carismáticos votam com posições bem definidas (frequentemente em propostas de centro-direita), e tem obtido êxitos na eleição de representantes políticos nas casas legislativas. Os parlamentares egressos da RCC (e da Igreja católica de modo geral) formam junto com os (neo) pentecostais coalizões políticas para frear iniciativas que interfiram em agendas morais.
O modo como a representação política foi construída é uma das mais expressivas diferenças da inserção, no atual cenário político, dos (neo) pentecostais e dos carismáticos, aliás, este elemento é fundamental para delinearmos esta nova relação entre religião e política no Brasil. Isto porque, a representação de ambos os segmentos religiosos até os anos de 1990 era resultado de iniciativas individuais, isto é, algum de seus integrantes (com projeção religiosa ou política) se candidatava e procurava conquistar apoio entre as lideranças religiosas e os participantes de suas denominações ou grupos. Assim, mesmo sendo cristão e eventualmente atraindo apoio das lideranças e dos fiéis, isso não queria (quer) dizer que o parlamentar fosse incorporar e defender integralmente a agenda deste segmento.26
Para superar possíveis ruídos existentes entre os interesses das denominações e os do candidato/parlamentar, os (neo) pentecostais entre os anos de 1980 e 1990 deram os primeiros passos em direção ao modelo intitulado por Ari Pedro Oro e Paul Freston como institucional ou corporativo, respectivamente. Ou seja, uma forma de representação política que é construída e emerge no interior das igrejas, em que os mandatos são elaborados para atender os interesses das denominações.
A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) foi a instituição religiosa que empreendeu de forma mais significativa (desde 1980) o modelo institucional ou corporativo como estratégia de ocupação dos espaços políticos, majoritariamente nas casas legislativas. Ainda que os motivos para esta mobilização sejam os mesmos de outras denominações, como o temor de forças sociais e políticas adversas. Todavia, tal orientação não se restringiu a influência aos contornos da Carta de 1988, pelo contrário, foi ampliado nas eleições subsequentes mediante a estruturação de táticas articuladas por lideranças remanescentes de seu alto escalão, como o bispo Rodrigues e o bispo Marcelo Crivella.
Entre estas estratégias duas parecem ser fundamentais na consolidação deste modelo, que transformou a IURD em “ator político” relevante no cenário nacional. A primeira delas se refere ao engajamento que bispos, pastores e obreiros dispensam aos períodos eleitorais. A segunda e talvez a mais importante, seja o que caracterize com mais propriedade esta forma de representação, a saber, o carisma institucional. Este dispositivo, de acordo com Ari Pedro Oro, constrói mecanismos que vinculam o mandato com a instituição. Neste caso, as candidaturas são construídas no interior da Igreja e para atender os desígnios dela, sendo o capital político do candidato insignificante (em boa parte das vezes sequer existe).27 Além disso destaca o conhecimento das lideranças da IURD sobre o sistema eleitoral e político através elaboração das candidaturas oficiais. Assim, as candidaturas dependem de “recenseamento” prévio realizado pela Igreja para identificar o perfil de seus fiéis, do postulante, bem como sua plausibilidade eleitoral. Isto com vistas a diagnosticar quantos candidatos a instituição deverá lançar, para que não ocorra a possibilidade de uma candidatura retirar votos da outra. Desse modo, embora sejam desconhecidos de seus futuros eleitores (o que ocorre com frequência), os postulantes atendem a um perfil passível de adesão, a partir dos dados do recenseamento.
O êxito eleitoral destas estratégias promoveu durante os anos de 1990 um debate perene entre diversas denominações a respeito da necessidade de seguir (mimetizar) o modelo da IURD. Alguns líderes religiosos, como Silas Malafaia, chegaram a expressar verbalmente que esta forma de se organizar politicamente deveria ser imitada pelos (neo) pentecostais.
Apesar de certo consenso em relação à necessidade de construir táticas políticas, é preciso lembrar que boa parte das igrejas (neo) pentecostais foram elaboradas e se mantém com uma base organizacional diferente da estrutura centralizada e verticalizada da iurd. A estrutura organizacional nestes moldes é fundamental para a execução e êxito deste modelo de representação política. Por isso, a diversidade organizacional dos (neo) pentecostais impõe diferenças no modo como outras denominações irão se articular no campo político. A Assembleia de Deus, por exemplo, é bem mais heterogênea, pois apresenta em seu interior ministérios regionais parcialmente autônomos a liderança central, e alguns totalmente independentes, como o Ministério de Madureira, liderado por Silas Malafaia. Este elemento é central na medida que permite entender as razões de alguns setores da Assembleia de Deus que mimetizarem o modelo institucional da iurd, ao passo que outros não, inclusive preservando uma postura apolítica (esta observação se aplica a outras denominações e/ou ministérios). Diferentemente, a Igreja do Evangelho Quadrangular reproduziu o modelo da iurd, porém com diferenças interessantes, tais como, a realização de prévias internas para a escolha dos candidatos oficiais.
Estes exemplos ajudam a entender as conclusões da literatura acerca da estruturação de uma série de dispositivos que fazem com que o mandato, de certa forma, “pertença” à instituição, ao invés do postulante e ao partido político. Por exemplo, alguns candidatos que obtinham o apoio da IURD e depois se candidataram espontaneamente tiveram impactante derrota. Portanto, esta situação é inteiramente diferente do modelo autogerado presente na Igreja católica, em algumas denominações protestantes históricas e (neo) pentecostais, pois neste caso há definições prévias de como se posicionar e a quem se deve prestar contas, caso o desejo seja a manutenção da carreira política.
Como é possível verificar no gráfico abaixo, a adoção destas estratégias propiciou o crescimento paulatino da chamada “bancada evangélica” desde os anos de 1990. A única queda registrada pós-redemocratização ocorreu nas eleições de 2006, onde a bancada perdeu quase metade de seus representantes. Este fenômeno está correlacionado com as denuncias sobre o sistema de corrupção instalado no Congresso Nacional denominado “Mensalão”, tornado público em 2005. Entre os chamados “mensaleiros” destaca-se a presença de 28 dos 72 deputados da “bancada evangélica”, principalmente os representantes das Igrejas Universal e Assembleia de Deus. Este acontecimento fez com que algumas denominações recuassem no discurso de restauração da ética na política e passassem a enfatizar outros elementos, como o ideário da família tradicional. Contudo, como indica o gráfico, esta força política e religiosa recuperou nas eleições de 2010 quase toda força perdida em 2006. O ápice da representação dos (neo) pentecostais ocorreu na 55° Legislatura (2015-2019), atingindo o número de 92 parlamentares, aproximadamente 18% do total de deputados federais.28
Fonte: Elaboração própria, com base nos dados da Frente Parlamentar Evangélica. Membros da fpe. Em http://www.fpebrasil.com.br/portal/
É interessante notar que estes parlamentares estão dispersos em cerca de 19 partidos.29 A dispersão dos (neo) pentecostais no sistema partidário é uma questão que mobiliza a literatura. Dois enfoques principais podem ser elencados. O primeiro, apresentado por Alexandre Fonseca, Joanildo Burity e Rafael Gonçalves, sinaliza a inexistência de uma identidade entre os representantes das variadas denominações. Isto em função de haver poucos temas em que se pode perceber coesão entre este grupo, entre estes, as intenções legislativas de debater valores morais. Por outro lado, algumas investigações, como de Maria das Dores Machado, Ari Pedro Oro e Tiago Borges, apontam que esta pulverização pode revelar também o conhecimento sobre o sistema político brasileiro. Assim, ela é vista como uma estratégia, ao invés de fragmentação e ausência de centralidade nas ações. Visto que permite a “bancada evangélica” alcançar maior barganha para influenciar o sistema partidário como um todo, desde o colégio de líderes aos parlamentares da mesma sigla.30
O efeito mimético das práticas exercidas pela Igreja Universal teve impacto substancial no campo religioso, influenciando inclusive instituições fora do neopentecostalismo. Por exemplo, mediante este processo, a Igreja católica redobrou esforços para ampliar seu capital político.31 Neste caso, Emerson Silveira destaca o aprimoramento na Renovação Carismática de secretarias e ministérios com o propósito de incentivar e formar lideranças políticas, o que impulsionou o crescimento de representantes políticos desta vertente do catolicismo. A aprovação das lideranças leigas carismáticas32 é importante respaldo as candidaturas, pois as reveste, até certo ponto, de legitimidade institucional, haja vista que a Igreja católica não apoia oficialmente nenhum candidato.
Mesmo que a literatura aponte para o êxito dos carismáticos na política (e católicos de modo geral) era difícil mensurar com exatidão seu tamanho devido à ausência, ao menos oficialmente, de uma bancada católica. Ainda que possamos presumir um número elevado, tendo em vista a bancada em defesa da vida e de outras que abordam temas importantes para os católicos e (neo) pentecostais. Somente em 2015 foi possível ter um quadro apurado deste segmento na política, por intermédio da apresentação da Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana, que conta com 209 deputados federais e cinco senadores entre seus signatários.33
O reflexo dessa incursão religiosa na política ganhou visibilidade e se tornou público em 2016, durante a articulação e votação do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, na Câmara dos Deputados, em que a maioria dos/as parlamentares justificou seus votos com base em deus, suas igrejas e pela família cristã. Este episódio emblemático teve enorme repercussão, no Brasil e no exterior, para a presença expressiva de representantes políticos vinculados a denominações cristãs no Congresso brasileiro.
Trabalhos recentes enfatizam que a ascensão da RCC no interior do catolicismo permitiu a superação de impasses históricos entre católicos e (neo) pentecostais e, por conseguinte, a convergência de agendas entre estes segmentos.34 Os dados de nossa pesquisa confirmam a hipótese de que os parlamentares eleitos pela Igreja católica e igrejas (neo) pentecostais formam coalizões políticas para frear iniciativas que interfiram no statu quo, notadamente na conservação dos valores morais.
Com relação à questão do aborto, parlamentares de ambas as vertentes compõem o grupo mais mobilizados para restringir avanços na legislação. Nossos dados apontam que eles são responsáveis por pronunciarem 72% dos discursos contrários aborto entre 1991-2016.35 Além disso, são autores de 80% dos projetos de lei (equivalente a 29) com o objetivo de impor maiores penalidades a prática, como a ampliação dos anos de detenção às mulheres que realizam e também retrocessos nos casos já permitidos por lei, tais como o aborto em casos de estupro.36 Os parlamentares católicos com atuação mais destacada nesta agenda são: Severino Cavalcanti (PP-PE), Miguel Martini (PHS-MG) (ambos da Renovação Carismática) e Dr. Talmir (PV-SP); entre os (neo) pentecostais: Eduardo Cunha (PMDB-RJ), Costa Ferreira (PSC-MA) e Pastor Roberto de Lucena (PV-SP).
Da mesma forma, as proposições políticas com vista a outorgar direi-tos para a comunidade LGBTT, na mesma intensidade, provocam a cooperação destes congressistas. O episódio mais significativo foi suscitado em torno do Projeto de Lei n° 122 de 2006, que em termos gerais propunha a criminalização da homofobia. A oposição ao projeto foi justificada com base na violação da liberdade religiosa, de acordo com o Pastor Silas Malafaia, os pregadores do evangelho seriam legalmente punidos por instruir que a conduta homossexual é errada, conforme sua interpretação da Bíblia. Do mesmo modo, o deputado Marco Feliciano (PSC-SP) sustentou em discurso que tal proposta legislativa não teria sido destinada exclusivamente a penalizar os autores de agressão aos homossexuais (físicas e/ou simbólicos), mas apresentava uma velada tentativa de intervenção do mundo secular nas práticas e dogmas cristãos. Depois de ter sido aprovado na Câmara dos Deputados em 2006,37 este projeto foi vetado pelo Senado em 2015.38 Assim, em virtude da oposição religiosa a este e outros projetos, não há no Brasil legislação específica que garanta os direitos contra a difamação, discriminação e agressão cometida(s) em razão da orienta-ção sexual e/ou identidade de gênero.39
A preservação da ideia de família tradicional tornou-se uma das principais demandas desses representantes. Neste sentido, o Projeto de Lei nº 6583 de 2011, conhecido como Estatuto da Família, almeja o reconhecimento (pelo Estado) da família como uma entidade formada apenas por um homem, uma mulher e seus filhos, ou um dos pais e seus descendentes (artigo 2). Desde a sua introdução, este projeto tem feito progressos no processo legislativo, uma vez que foi aprovado de forma conclusiva em Comissão da Câmara dos Deputados e agora (2017) aguarda para ser enviado à votação no Senado. Os discursos parlamentares e os documentos analisados com relação a esta proposta indicam a necessidade de proteger esta instituição considerada como a base da sociedade, frente a outros setores sociais que buscam a sua reconfiguração.40 Portanto, o objetivo deste é que o Estado não reconheça a legitimidade dos diferentes arranjos familiares, especialmente aqueles compostos por casais do mesmo sexo. Por mais que esta norma não seja capaz de destituir a pluralidade que o conceito de família assumiu ao longo dos anos, mesmo assim, em caso de aprovação definitiva, outras composições familiares estarão excluídas de direitos.
Finalmente, parece importante sublinhar de forma muito breve o caso da Emenda Constitucional nº 99, de 2011, apresentada pelo deputado João Campos (psdb-go). Esta iniciativa postula conferir às igrejas o poder de questionar as decisões tomadas pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (por meio de ações diretas de inconstitucionalidade ou de outros recursos). 41 Esta proposição legislativa também foi aprovada em 2015, em Comissão da Câmara dos Deputados. No entanto, é válido considerar que por se tratar de uma Emenda Constitucional, o trâmite é mais complexo em comparação a um projeto de lei, por exemplo, requer um maior número de votos em todas as instâncias. De todo modo, independente dos procedimentos, a presente proposição põe em xeque a questão da laicidade do Estado no Brasil, uma vez que apresenta um propósito tácito de interferência das perspectivas religiosas nas decisões da mais alta esfera jurídica do país.
Sendo assim, a atuação desses parlamentares e sua pulverização no sistema partidário permitem a eles influenciar e em alguns casos impor e/ou conduzir o curso de algumas políticas públicas. Haja vista que a combinação dessas forças religiosas no legislativo é, sem dúvida, suficientemente capaz de desfazer as maiorias na Câmara dos Deputados e, portanto, frear a governabilidade e a agenda do Executivo. Certamente, não podemos perder de vista a heterogeneidade desses atores, posto que nem sempre a posição daqueles que compõem estes grupos/bancadas confluem em uma mesma direção. Não obstante, apesar das diferenças, parece claro que há certa convergência no entendimento de que alguns valores morais são inegociáveis, entre estes, a família nuclear cristã e o valor da vida desde a concepção.
Com base em tudo o que foi dito, sustentamos neste texto que o crescimento e a junção destes setores (católicos e (neo) pentecostais) no âmbito legislativo reescreve a relação entre religião e política no Brasil. 42 Por um lado, considerando a construção das candidaturas oficiais e a engenharia eleitoral desenvolvida por algumas dessas instituições ou grupos cristãos. Por outro lado, como resultado disso, é pertinente avaliar o poder de negociação conquistado. Isso devido a expressão numérica dos deputados que compõem a “Bancada Evangélica” e a “Frente Parlamentar Católica”, mas também pelos cargos que esses representantes têm assumido, por exemplo, o deputado Severino Cavalcanti (PP-PE), vinculado a Renovação Carismática, foi presidente da Câmara dos Deputados em 2005, posição atualmente ocupada por Eduardo Cunha (PMDB-RJ), da “Bancada Evangélica”. 43 Assim, a magnitude da força política desses atores permite a realização de alianças e o estabelecimento de compromissos sólidos com diferentes esferas da vida partidária e política do país.
Considerações finais
Dentro deste quadro geral podemos vislumbrar com mais propriedade a influência da religião na política brasileira. Historicamente, parece haver certa admissibilidade ou ausência de impedimentos para que ideias religiosas sejam mobilizadas como forma de intervir no funcionamento do Estado e no mundo secular. Isso ocorre porque, embora o Estado tenha se constituído como uma república no século XX, os privilégios da Igreja foram preservados, tanto para estabelecer como religião pretensamente “oficial”, como para pressionar o Estado no intuito de influenciar no modelo comportamento de grande parcela da sociedade.
Neste sentido, os limites da divisão entre religião e política no Brasil foram precariamente construídos, sem nunca haver sido plenamente demarcados ao longo da história. Por exemplo, atualmente ainda é possível encontrar símbolos cristãos (como bíblias e crucifixos) em posição de destaque nos locais onde as principais decisões políticas e jurídicas do país são tomadas (como no STF, Senado e Câmara), além da evocação a Deus na Constituição e nas cédulas de dinheiro. Essas representações são concessões simbólicas que conferem legitimidade política a determinados símbolos religiosos em espaços predominantemente seculares.
No panorama contemporâneo, o poder de influência das religiões cristãs no legislativo desafia a capacidade dos atores sociais e políticos para discutir e pressionar o Estado, sobretudo para implementar políticas com base na laicidade, direitos humanos e individuais. Por isso, entre as/os analistas brasileiras/os se tornou consensual a posição de que mudanças na legislação nestas áreas exigirão enormes esforços dos movimentos sociais e dos partidos políticos.
Diante deste cenário, consideramos que a atenção a este fenômeno deve estar na ordem do dia da agenda de pesquisa das ciências sociais no Brasil, ao invés do espaço periférico que os estudos sobre a interface entre religião, sociedade e política ocupam atualmente no ambiente acadêmico. A envergadura deste fenômeno apresenta capacidade para se constituir como objeto de pesquisa amplo e/ou variável de extrema relevância para analisar, por exemplo, os recuos na legislação e as formas de resistência engendradas pelos movimentos sociais que demandam por direitos e pela laicidade do Estado. Assim, a partir deste desenvolvimento teremos novas ferramentas capazes de oferecer outros ângulos de análise ao objeto.