Sumário: I. Introdução. II. Observações técnicas a respeito do sistema internacional de promoção e proteção do investimento estrangeiro. III. A perspectiva das repúblicas bolivarianas: saindo do sistema internacional de proteção de investimentos? IV. Alternativas ao ICSID para as repúblicas bolivarianas. V. Conclusão: rumos efetivos para a América Latina?. VI. Referências bibliográficas.
I. Introdução
A América Latina vem liderando a reação contra o sistema internacional de proteção e promoção do investimento estrangeiro, o qual se apoia, principalmente, em tratados internacionais específicos e na arbitragem do Centro Internacional para Solução de Controvérsias sobre Investimentos (ICSID).1 Os motivos para esta reação forte da região contra o ICSID são variados, mas podem ser resumidos a duas percepções centrais: (i) a existência de um viés pró-investidor, e; (ii) o risco a políticas públicas soberanas legítimas, em especial nas áreas ambiental, de saúde, trabalho e direitos indígenas.
Este cenário explicaria, segundo alguns autores: (i) a recusa do Brasil ,§ a ratificar a Convenção de Washington, por razões supostamente políticas e econômicas; (ii) a denúncia da Convenção de Washington por parte de Bolívia, Equador e Venezuela; (iii) a ameaça de denúncia da Convenção de Washington por parte da Argentina, e; (iv) as discussões no âmbito da UNASUL para criação de um centro de solução de disputas similar ao ICSID, mas de âmbito regional.2
Diante deste cenário, este artigo tem por objetivo entender a estratégia das repúblicas bolivarianas da Bolívia, Equador e Venezuela ao denunciar a Convenção de Washington e propor uma breve reflexão sobre os caminhos que existem para a América Latina ao se tratar do sistema internacional de proteção ao investimento.
Embora seja possível relacionar diversas variáveis a tal estratégia, o presente artigo avalia a influência de três fatores: (i) os casos de arbitragem de investimento envolvendo esses Estados, no ICSID e em outros foros, e seus resultados já disponíveis, (ii) a opção por abandonar a Convenção de Washington de 1965 associada, ou não, à denúncia de acordos internacionais de investimento e (iii) as normas constitucionais restritivas da submissão à arbitragem de investimento.
Disso resultam três hipóteses que, se confirmadas, corroboram a relação entre os motivos contrários à arbitragem já apontados (viés e restrição de políticas) e as estratégias adotadas: (i) os casos de que os países participaram confirmam a percepção de haver viés arbitral contra os Estados; (ii) há saída do ICSID, mas não se questionam os acordos internacionais de investimento e (iii) as normas constitucionais são mais um ponto de apoio retórico do que uma exigência vigorosa da Ordem jurídica.
Para abordar a reação latino-americana contra o sistema internacional de proteção e promoção dos investimentos estrangeiros em sua composição atual, o presente artigo realiza uma breve revisão técnica das características dos acordos sobre investimento e das arbitragens do ICSID. Em seguida, analisa e avalia a perspectiva das repúblicas bolivarianas com a finalidade de gerar uma compreensão analítica do fenômeno e realizar uma crítica ao discurso legitimador normalmente empregado.
II. Observações técnicas a respeito do sistema internacional de promoção e proteção do investimento estrangeiro
Pode-se dizer que a pedra angular do chamado sistema internacional de proteção ao investimento estrangeiro é a Convenção de Washington de 1965, que criou e estabeleceu, no âmbito do Banco Mundial, o Centro Internacional para Solução de Disputas relacionadas ao Investimento (ICSID). A função primordial do ICSID neste sistema é a de administrar procedimentos arbitrais e de conciliação sob sua jurisdição.3 Em outras palavras, o ICSID tem uma função fundamentalmente procedimental neste sistema, sem qualquer influência sobre a natureza e o conteúdo de regras substantivas.
As questões materiais de proteção do investimento, que dizem respeito aos direitos e deveres dos investidores e dos Estados podem ter diferentes origens formais, como Direito internacional geral, contratos e legislação interna. Destacam-se, no sistema internacional atual, os acordos de promoção e proteção recíproca de investimentos (APPRIs), os quais estabelecem obrigações específicas (p. ex. cobertura das expropriações regulató-rias e padrões de indenização), padrões de tratamento (proteção integral, tratamento justo e equitativo, tratamento nacional e cláusula de nação mais favorecida) e sistemas de solução de controvérsia entre os Estados partes e entre investidores e Estados, muitas vezes oferecendo o consentimento para arbitragens ICSID.
Em termos técnicos, portanto, a jurisdição dos tribunais arbitrais do ICSID tem seu fundamento na Convenção de Washington de 1965, entretanto nenhuma arbitragem pode ocorrer sem o consentimento por escrito de ambas as partes na controvérsia (Artigo 25). A maior parte das arbitragens mistas de investimento deriva de consentimento dado pelo Estado em APPRIs e pelo investidor mediante o próprio pedido de instauração da arbitragem; o Direito aplicável nesses pleitos, portanto, é o estabelecido e delimitado nestes mesmos acordos (às vezes com referências ao Direito interno do Estado receptor do investimento e/ou ao Direito internacional geral).
Portanto, embora o ICSID seja um instrumento independente dos APPRIs, tanto histórica4 quanto tecnicamente, o grande incremento das arbitragens a partir dos anos 1990 projeta a percepção de um amálgama indestrutível. Discursos políticos não se constróem sobre a base de conceitos jurídicos sofisticados, mas na maniqueização do mundo e, portanto, colocando no mesmo saco o Banco Mundial, os árbitros internacionais e, claro, os oposicionistas. Nada de excepcional, mas é importante observar que o instituto da arbitragem dos investimentos sofre ataques que seriam melhor direcionados aos APPRIs ou, por vezes, a problemas internos de gestão governamental.
Ocorre, também, que a estrutura jurídica predominante de proteção internacional de investimentos dispõe de uma toponomia curiosa: regras materiais e instrumentos processuais encontram-se em tratados diversos e, portanto, submetidos a dinâmicas de vigor e denúncia diferenciados. Deste modo, a saída do ICSID pode se apresentar como uma alternativa politicamente aceitável de extrair os dentes aos APPRIs sem ter de aguardar dez ou mais anos pelo fim de seus efeitos, como tantas vezes aparece em sua sistemática de denúncia.
III. A perspectiva das repúblicas bolivarianas: saindo do sistema internacional de proteção de investimentos?
Esta seção se dedica a entender a motivação e a estratégia das repúblicas bolivarianas ao decidirem por denunciar a Convenção de Washington de 1965 como medida de saída do sistema internacional de proteção de investimentos.
Antes de passarmos a esta análise, no entanto, é importante esclarecermos o contexto nos quais estes países estão inseridos, que é aquele da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América ("ALBA"). A ALBA é um tratado de cooperação, criado em 2004 por Venezuela e Cuba, e que se baseia na ideia de integração social, política e econômica, como uma alternativa ao modelo de integração regional neoliberal.
Objetivo da ALBA, portanto, não se restringe à liberalização comercial, mas também envolve a promoção e proteção de direitos sociais, tendo como fundamento a ideia de solidariedade e complementariedade entre & países. A ALBA hoje conta com mais de 12 Estados membros e ainda 3 Estados observadores.
Em 2007, esse movimento de reação ao ICSID começa a se desenvolver de forma mais acintosa, quando Bolívia, Venezuela e Nicarágua declaram sua intenção de se retirar do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e do ICSID.5 A justificativa era, em suma, o interesse em garantir o direito de regular investimento estrangeiro em seu próprio território, servindo esta medida como rejeição à pressão diplomática e da mídia exercida por multinacionais, que tenham resistido à aplicação de regras soberanas pela mera ameaça de iniciar um procedimento arbitral contra os Estados recebedores do investimento.6
No contexto da América Latina, portanto, apesar da noção de sistema de proteção internacional de investimento estrangeiro abranger também os tratados de proteção material do investimento (bi ou multilaterais), os Estados das chamadas Repúblicas Bolivarianas veem na arbitragem de investimento sob os auspícios do ICSID uma grande ameaça à sua soberania.
Com efeito, em termos discursivos, a percepção do Direito internacional do investimento estrangeiro como um sistema único, dotado de fontes materiais estabelecidas nos diversos acordos internacionais de investimentos existentes e uma estrutura de aplicação de tais normas consolidada, principalmente, no ICSID,7 leva ao inevitável amálgama entre ambos aspectos, para prejuízo da análise racional e da clareza. Há, porém, um aspecto contraditório em tal discurso: se os acordos são feitos para favorecer os investidores, eventuais arbitragens que, aplicando suas normas, lhes deem ganho não são enviesadas; apenas aplicam regras negociadas e aceitas entre Estados.
Se, integrado, o sistema internacional de proteção de investimentos estrangeiros efetivamente tende a restringir o espaço de implementação de políticas públicas,8 tal culpa não pode recair sobre os ombros da arbitragem. Tanto do ponto de vista da qualidade técnica das decisões, quanto da efetividade dos instrumentos para evitar a eventual parcialidade dos árbitros, parece mais razoável colocar a culpa nas regras materiais, não na composição dos tribunais e, muito menos, pela vinculação do ICSID com o Grupo Banco Mundial.9
Não obstante, essa percepção da arbitragem como bem menos parcial que os tratados com regras materiais sobre investimentos parece não haver conquistado as convicções bolivarianas. Para uma análise mais detalhada, nas subseções seguintes abordaremos detidamente as perspectivas boliviana, venezuelana e equatoriana para propor uma reflexão sobre a efetividade da denúncia da Convenção de Washington dentro deste objetivo de "se retirar do sistema de proteção de investimento".
1. A perspectiva da Bolívia
A Bolívia foi o primeiro país a implementar esta estratégia da ALBA e notificou ao ICSID sua decisão de denunciar a Convenção de Washington em 2 de maio de 2007.10 Em sua motivação, o governo boliviano indica os problemas que, em sua visão, afetavam o sistema de arbitragem investidor-Estado. Os principais problemas são (i) uma aparente tendência pró investidor, (ii) falta de transparência; (iii) falta de um mecanismo de apelação; ê (iv) altos custos de transação, e; (v) pedidos de indenização irracionais.11
Em particular, o caso Aguas del Tunari v. Republica da Bolivia foi mencionado pelo governo boliviano como um exemplo ilustrativo de todos os problemas que motivaram o Estado a denunciar a Convenção de Washington.
Desde este episódio, em 2007, a Bolívia fez diversos anúncios públicos de que iria terminar ou denunciar seus tratados bilaterais de proteção de investimento. Em 2009, isto passou a ser um objetivo constitucional.12 Os tratados assinados pela Bolívia que continham uma disposição acerca de investimentos (como o Tratado de Livre Comércio com o México ou o Tratado Bilateral de Investimento com os Estados Unidos) foram denunciados ou renegociados com o objetivo de não conter disposições relacionadas a investimento estrangeiro.13
A própria constituição boliviana assume uma posição bastante contrária ao investimento estrangeiro ao estipular que o investimento nacional será priorizado em detrimento do estrangeiro (art. 320) e indicando que o Estado Plurinacional da Bolívia é independente em todas as decisões de política pública interna e não se sujeitará a condições ou imposições de Estados, bancos ou instituições financeiras bolivianas, estrangeiras, multilaterais ou mesmo de empresas transnacionais.
É curioso pontuar que o número de arbitragens de investimento contra a Bolívia no âmbito do ICSID é similar ao número de arbitragens ad hoc (Regulamento da UNCITRAL) ao qual ela se sujeitou.14 Também se pode destacar que não há informação pública disponível sobre condenações da Bolívia em casos de arbitragem de investimento, que possam explicar sua opção por denunciar a Convenção de Washington, saindo do sistema ICSID, mas mantendo-se vinculada a outras formas de arbitragem de investimento previstas nos tratados bilaterais de investimento ainda em vigor.15
2. A perspectiva do Equador
O Equador, diferentemente da Bolívia, primeiramente adotou a estratégia de restringir a jurisdição do ICSID. Em 4 de dezembro de 2007, o Secretário Geral do ICSID recebeu a notificação de que o Equador excluiria da jurisdição do ICSID futuras disputas relacionadas a petróleo, gás e mineração, nos termos do art. 25(4) da Convenção de Washington.
O efeito desta notificação, no entanto, é limitado. Isto porque, o efeito legal de tal notificação apenas opera para casos em que o Estado não tivesse consentido previamente para este tipo de disputa.16 No caso do Equador, no entanto, o Estado havia consentido genericamente em submeter disputas ao ICSID em diversos setores econômicos, por meio dos tratados de proteção de investimento em vigor.17
Diante do alcance limitado de sua estratégia, em 6 de julho de 2009, o Equador denunciou a Convenção de Washington, tendo esta se tornado efetiva em 7 de Janeiro de 2010.
Dentro desta estratégia de gradualmente sair do sistema ICSID, o Equador também encerrou diversos tratados bilaterais de proteção de investimento. Em 2008, o Equador denunciou seus tratados bilaterais com Cuba, República Dominicana, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Pati raguai, Romênia e Uruguai. A partir de 2010, a Corte Constitucional do Equador declarou diversos BIT's inconstitucionais, embasando as denúncias no direito nacional.18
A questão fundamental na perspectiva da corte constitucional não é a proibição ao investimento estrangeiro per se, mas a limitação à concessão de sua jurisdição soberana a instituições arbitrais internacionais em disputas relacionadas a contratos ou comércio entre o Estado e pessoas naturais ou jurídicas, o que é proibido pelo art. 422 da Constituição Equatoriana.19
Após estas decisões no âmbito da Corte Constitucional, o governo do Equador iniciou o processo interno para denúncia de todos seus tratados bilaterais remanescentes, o que foi aprovado pela Assembleia Nacional. Atualmente, segundo a UNCTAD, o Equador possui 16 BITs em vigor.20
Historicamente, o Equador é um dos países com maior número de casos públicos contra si. Atualmente, o Equador possui 3 casos em trâmite contra si e 10 concluídos no âmbito do ICSID. Dos casos concluídos, o Equador obteve êxito em 3 deles, tendo realizado transações em outros 5 e sido condenado a pagar compensação monetária em outros 2. Além disso, o Equador responde, atualmente, a outros 7 casos arbitrais sob o Regulamento da UNCITRAL.21 Dos casos conhecidos fora do âmbito do ICSID, o Equador prevaleceu em 2, tendo sido condenado a pagar uma compensação monetária em outros dois.22
De um ponto de vista exclusivamente de resultados, o Equador teve resultados melhores no sistema ICSID do que fora dele, o que talvez justificasse o movimento de encerrar também os tratados bilaterais de investimento e não apenas denunciar a Convenção de Washington.23
3. A perspectiva da Venezuela
Seguindo a estratégia de Bolívia e Equador, em 24 de janeiro de 2012, a Venezuela denunciou a Convenção de Washington, retirando-se do sistema ICSID em 25 de julho de 2012.
Em sua notificação de denúncia, a Venezuela argumentou que sua adesão ao sistema, datada de 1993, foi realizada por um governo "fraco e sem legitimidade popular, pressionado por interesses econômicos transnacionais envolvidos no desmantelamento da soberania nacional da Venezuela". Além disso, indicou o governo que considerava a Convenção de Washington como contrária à sua constituição de 1999, que proíbe o uso de "jurisdição internacional" em contratos de interesse público. 24
Não há nenhuma previsão que, como no caso da Bolívia, priorize o investimento nacional, ou que, como no caso do Equador, preveja-o como suplementar ao doméstico. Pelo contrário, a previsão é a de tratamento isonômico ao investimento nacional, tendo-se como implícita a cláusula de eleição de foro nacional, sujeito ao direito nacional, nos casos de contratos tidos como de interesse público.25
A estratégia da Venezuela com relação à sua saída do sistema internacional de proteção ao investimento parece também se restringir ao ICSID.26 O Estado não buscou encerrar os outros tratados bilaterais de investimento, tendo, na verdade, a partir de 2008, negociado e ratificado tratados bilaterais de proteção de investimento com a Bielorrússia, Rússia e o Vietnam. Nenhum destes novos tratados, no entanto, contém uma cláusula de resolução de conflito investidor-Estado prevendo arbitragem ICSID. Atualmente, a Venezuela possui 27 tratados bilaterais de proteção de investimento em vigor.27
A Venezuela é o segundo Estado mais demandado no ICSID, atrás apenas da Argentina. Em 2012, segundo a UNCTAD, havia 11 casos concluídos no âmbito do ICSID (4 casos tendo sido dispensados, 4 casos encerrados pelo investidor, 1 caso encerrado por acordo e 2 condenações contra o Estado). Nesta mesma data, havia ainda 26 casos pendentes no âmbito do ICSID, 9 dos quais foram iniciados após a notificação de denúncia da Convenção de Washington pela Venezuela.28
Diferentemente dos casos da Bolívia e do Equador, a maior parte dos casos conhecidos de arbitragem de investimento contra a Venezuela se deram g no âmbito do ICSID. Este fato talvez possa explicar a reação contra o ICSID 2 e o sistema que ele representa.
IV. Alternativas ao ICSID para repúblicas bolivarianas
Como visto nas seções anteriores, Bolívia, Equador e Venezuela adotaram estratégias diferentes para se retirar do sistema internacional de proteção de investimento. Todos estes Estados, no entanto, optaram por denunciar a Convenção de Washington como medida máxima representativa de seu desacordo com o que estava à sua disposição no que diz respeito à proteção internacional dos investimentos.
Isto não significa, no entanto, que estes Estados sejam completamente avessos ao investimento estrangeiro ou mesmo que não reconheçam sua importância ao desenvolvimento nacional. Ao menos em uma perspectiva constitucional, a Bolívia prioriza o investimento nacional, mas não proíbe ou veda o estrangeiro; o Equador prevê o investimento estrangeiro como suplementar ao nacional, e; a Venezuela equipara-o ao nacional.
Em outras palavras, na busca de um "inimigo comum", parece-nos que estes Estados não o reconhecem no capital estrangeiro ou mesmo nas regras substantivas dos tratados de proteção de investimento, mas em se sujeitar a órgãos jurisdicionais internacionais de resolução de conflitos e, particu-I larmente, ao ICSID. As alternativas que têm sido discutidas pela Bolívia, o Equador e a Venezuela nos indicam a adoção desta posição.
A alternativa natural que existe ao ICSID e a qualquer forma alternativa de resolução de conflitos relacionados a investimentos é a utilização de cortes domésticas no Estado hospedeiro. Existem estratégias diferentes a serem adotadas, conforme veremos na seção seguinte para os casos da Bolívia, Equador e Venezuela.
1. Avaliação das Opções de Bolívia, Equador eVenezuela
No caso da Bolívia, a constituição reconheceu no artigo 320,29 que os investimentos estrangeiros estão sujeitos à jurisdição, leis e às autoridades bolivianas, com renúncia expressa a qualquer tipo de proteção diplomática. Em linha com este conceito, mas mais especificamente na questão ligada aos hidrocarbonetos, o art. 366 da constituição30 proibiu o recurso a cortes ou jurisdições estrangeiras e também estabeleceu uma proibição aos investidores de se utilizarem de arbitragem internacional ou proteção diplomática.31
Por outro lado, existem autorizativos legais, anteriores à constituição de 1999, como é o caso da Lei Boliviana de Arbitragem e também regulamentação contratual, que autorizam empresas públicas bolivianas a participarem de arbitragens, inclusive internacionais, para contratos de compra e venda de mercadorias. Isto é, diante da forte linguagem utilizada na constituição boliviana, em especial em seus artigos 320 e 366, o caso boliviano gera dúvidas com relação à verdadeira preocupação do Estado: se com qualquer tipo de arbitragem ou apenas com o caso de arbitragens do tipo investidor-Estado fundadas em tratados internacionais de proteção de investimento.
Em princípio, parece-nos que estes autorizativos infraconstitucionais não teriam sido recepcionados pela constituição de 1999, de forma que diante da ordem constitucional boliviana, a utilização de qualquer tipo de arbitragem internacional (ou sujeição do Estado ou empresas públicas) ao direito estrangeiro ou a uma jurisdição internacional, seria proibida.
O caso do Equador é ligeiramente parecido com o Boliviano. Em princípio, como vimos, há uma proibição expressa de que o Estado entregue sua jurisdição a entidades internacionais de arbitragem em disputas na modalidade investidor-Estado.32 Entretanto, o parágrafo segundo deste mesmo artigo permite uma exceção para o caso de disputas envolvendo cidadãos da América Latina por entidades regionais de arbitragem ou para entidades judicantes designadas pelos países signatários do tratado.
A proibição do artigo 422 da Constituição, no entanto, não compreende arbitragens investidor-Estado estipuladas contratualmente. Este entendimento é também corroborado pelo Código Orgânico de Produção, Comércio e Investimento, que, no artigo 27, expressamente prevê a solução de disputas entre investidores e o Estado por meio de arbitragem. Há, inclusive relatos de que o Equador celebrou oito contratos de proteção de investimento com investidores Chineses e Europeus contendo cláusulas arbitrais, conforme previstas no Código Orgânico de Produção, Comércio e Investimento.33
A Venezuela adotou uma abordagem similar à do Equador. O artigo 151 I da constituição venezuelana dispõe que as cortes domésticas terão juris-u dição exclusiva em disputas de investimento estrangeiro quando houver interesse público nos contratos. Não haveria, portanto, uma proibição genérica ao uso da arbitragem de investimento, que pudesse ser considerada uma questão de política pública geral. A Corte Constitucional Suprema da Venezuela já decidiu que contratos de interesse público são aqueles que são celebrados pelos órgãos competentes da República e:
cujo objeto seja crucial ou essencial para atingir os objetivos e tarefas do Estado venezuelano buscando satisfazer interesses individuais ou coincidentes da comunidade nacional e não apenas aqueles de um setor particular, como nos casos de contratos de interesse do estado ou local, quando o objeto de tais atos são críticos ou essenciais para os habitantes daquele estado ou entidade local...34
Há, portanto, um reconhecimento da alta instância judicial Venezuelana de que a arbitragem pode ser utilizada em determinadas circunstâncias, desde que os contratos não sejam de interesse público. Em outras palavras, em contratos de interesse genérico, ainda que celebrados com o Estado, é aceitável a utilização de arbitragens internacionais na modalidade investi-dor-Estado.
Na prática, no entanto, nos parece difícil pensar em algum caso, em que um contrato de investimento, celebrado com o Estado seria compreendido por este conceito flexível de "interesse genérico" e não de "interesse público". Como bem se sabe, uma das características marcantes dos casos de investimento é sua íntima relação com projetos de infraestrutura ou de exploração de recursos naturais, intimamente ligados ao desenvolvimento nacional e à exploração de recursos naturais e, nestes termos, ao interesse público.
2. A criação de um organismo regional de arbitragem o
Uma das propôs tas da ALBA, como alternativa ao sistema ICSID, é a criação de um centro regional de resolução de disputas relacionadas a investimentos. A linha mestra estabelecida para este novo centro regional seria a de garantir a não interferência de multinacionais no desenvolvimento do interesse público e a supremacia das decisões nacionais sobre decisões de órgãos arbitrais.
A ALBA endossou a proposta de criação de um centro regional de arbitragem, como alternativa ao ICSID da União das Nações Sul Americanas - UNASUL. A proposta foi inicialmente discutida em 2009. A primeira proposta foi apresentada pelo grupo de trabalho em 2011 e oito conceitos centrais em resposta a diversas críticas das repúblicas bolivarianas ao sistema ICSID formam sua coluna vertebral.35
O primeiro destes conceitos é o de jurisdição limitada. Em princípio, a regra geral seria a de excluir da jurisdição deste novo organismo questões relacionadas a saúde, impostos, energia, entre outros, salvo disposição expressa em sentido contrário. Questões relacionadas à legitimidade do direito nacional seriam excluídas por completo da jurisdição deste centro.
O segundo pilar do sistema proposto para este centro é o chamado princípio de exaustão dos remédios locais, que exige a exaustão de medidas judiciais e administrativas nacionais como pré-condição à arbitragem. Na proposta original não há um limite de tempo para que as medidas nacionais sejam finalizadas ou mesmo um conceito de "razoabilidade" para permitir o acesso à arbitragem após este lapso temporal.
Em consonância com o espírito de evitar o recurso à via arbitral, bem como com as propostas mais modernas da UNCTAD, o terceiro conceito I é exigir que eventuais disputas sejam submetidas a consultas prévias ou ediação. Este período de negociação obrigatório entre as partes (chamado também de cooling off) pode ser importante para reduzir a litigiosidade típica destas disputas e também para incentivar acordos.
Em resposta à crítica frequente de viés pró-investidor na indicação dos árbitros que comporão o tribunal arbitral pelo Presidente do Banco Mundial (na falta de acordo entre as partes ou na falta de indicação de um árbitro por uma das partes), a proposta da UNASUL é a de que o Diretor Geral da organização sorteie o árbitro a ser designado. O fato de haver um sorteio dentre os nomes que compõem uma determinada lista, em substituição à escolha livre dentre estes mesmos nomes, neutralizaria, de certa forma, este viés pró-investidor do qual o ICSID é taxado. Além disso, a proposta a UNASUL compreende a elaboração de um código de conduta que incluiria, além do tradicional exame de independência e imparcialidade, a probabilidade de um árbitro ter um estado de espírito ou pré-julgamento em relação a qualquer das partes.
O quinto elemento inovador do sistema proposto pela UNASUL é a criação de um procedimento específico para a consolidação de dois ou mais procedimentos arbitrais envolvendo questões de fato ou de direito similares. O objetivo desta previsão, não existente no Regulamento UNCITRAL e no regulamento do ICSID, mas comum em outras câmaras arbitrais, como a da CCI, é evitar decisões e sentenças contraditórias em matérias que sejam semelhantes envolvendo as mesmas partes.
Diferentemente do sistema de anulação previsto na Convenção de Washington, a proposta da UNASUL inclui um sistema de apelação. Este sistema consistiria no estabelecimento de um órgão permanente de apelação, que permitisse a revisão de questões de direito com base em um sistema de precedentes. O órgão seria composto por oito árbitros, três dos quais atuariam em cada caso concreto e o objetivo seria permitir a criação de uma jurisprudência coerente e consistente, em resposta às críticas frequentes que se faz ao sistema do ICSID.
Além disso, visando garantir publicidade e transparência, a proposta estabelece um dever geral de publicidade de documentos. Desta feita, arquivos, provas, audiências e sentenças, exceto para o que se relacionar à defesa e segurança do Estado e para os casos em que as partes estabeleçam confidencialidade de comum acordo.
Por fim, a oitava inovação proposta diz respeito ao reconhecimento e execução da sentença arbitral. De forma similar à Convenção de Washington, a sentença arbitral estaria sujeita à ratificação, revisão e anulação (havendo, como visto, a possibilidade de apelação), no entanto, após ela ser considerada final, ela seria auto executável de acordo com a Constituição e leis dos Estados signatários. Em termos práticos, não haveria uma diferença grande entre os requisitos previstos na Convenção de Nova Iorque de 1958. Isto é, diferentemente do previsto expressamente na Convenção de Washington, haveria a possibilidade de excepcionar o reconhecimento e execução da sentença arbitral por motivos de ordem pública.36
Apesar de ser uma proposta inovadora do ponto de vista das alternativas para resolução de disputas relacionadas a investimentos, a proposta da criação de um centro regional como o proposto pela UNASUL é também passível de críticas.
A primeira delas pode ser direcionada ao escopo e alcance deste sistema, tanto de um ponto de vista geográfico quanto com relação às matérias a serem abrangidas no sistema. Do ponto de vista geográfico, diferentemente da proposta do ICSID, o Centro proposto nasce limitado à América Latina e, portanto, dificilmente será considerado um sistema mundial ou mesmo uma referência mundial.
Já do ponto de vista das matérias a serem submetidas à arbitragem, a proposta de excluir da jurisdição do centro questões relativas à saúde, impostos, energia e discussões relacionadas à legitimidade do direito nacional limita sobremaneira a atuação do Centro. O exame de conformidade das medidas adotadas localmente com parâmetros internacionais de proteção do investimento foi um dos pilares do desenvolvimento do direito internacional dos investimentos e é tido como um dos alicerces do sistema. Além disso, boa parte das disputas submetidas ao ICSID é relacionada, direta ou indiretamente, à saúde, energia e impostos.37
Além disso, por ser um sistema que nasce como uma resposta ao ICSID e seu suposto viés pró-investidor, o Centro poderia ser visto, inicialmente, como possuindo um viés pró-Estado. Além de não resolver a questão de imparcialidade, há um risco de amedrontar investidores ao sujeitar eventuais disputas do mesmo a este Centro.38
Também é discutível se esta proposta resolveria o problema central das repúblicas bolivarianas, conforme colocamos acima. Isto porque, segundo o que vimos, apenas o Equador possui uma disposição constitucional expressa que autoriza investidores latino americanos a iniciar arbitragens investidor-Estado contra o Estado Equatoriano, em um centro regional.
Por fim, de um ponto de vista técnico, apesar da proposta de exigir a exaustão dos remédios locais antes de submeter as disputas a um período de cooling off para consultas e, eventualmente, mediação, estar alinhada com o que é a recomendação da própria UNCTAD, a ausência de um critério de tempo razoável para ativar a cláusula arbitral pode gerar um sistema ainda mais moroso que o atual do ICSID. Haveria, portanto, um receio válido de que o centro se transformasse em algo inútil, de um ponto de vista prático, e que não resolvesse o problema de insegurança quanto à uma decisão final, tanto para o Estado quanto para o investidor.
V. Conclusão: rumos efetivos para a américa latina?
Como apresentado anteriormente, a Convenção de Washington representa a pedra angular do chamado sistema internacional de proteção de investimento. Historicamente, foi a partir da criação do ICSID que diversos tratados de proteção de investimento (bi e multilaterais) foram negociados e celebrados, seguindo o movimento de internacionalização do capital dos países desenvolvidos para países em desenvolvimento. A composição das regras procedimentais com as regras materiais estabelecidas por meio desses tratados é que compõe esse sistema internacional de proteção investimentos.
As repúblicas bolivarianas apresentadas neste artigo aderiram a esse sistema, em especial, na década de 90. Os tratados celebrados seguiam esse ,§ padrão internacional de estabelecer regras materiais e também o recurso a tribunais arbitrais internacionais (sejam no âmbito do ICSID, em outras instituições ou mesmo em arbitragens ad hoc). No entanto, como apresentamos, o desenrolar dos casos e algumas condenações marcantes contra g elas geraram um movimento de crítica e de retirada do sistema, em especial a partir da segunda metade dos anos 2000.
Não se pode dizer, no entanto, que a resposta das repúblicas bolivarianas tenham sido coesas visando retirar-se do sistema como um todo, o que seria realizado mediante a denúncia tanto da Convenção de Washington, como dos tratados bi e multilaterais. O movimento unânime de Bolívia, Equador e Venezuela foi o de denunciar a Convenção de Washington, retirando seu consentimento à jurisdição do ICSID, e manter ou renegociar os acordos bilaterais de proteção ao investimento, inclusive com as previsões de recurso a arbitragens investidor-Estado.
A limitação à utilização do recurso à arbitragens investidor-Estado não se deu no âmbito internacional, mas no âmbito do direito interno, a nível constitucional. A Constituição da Bolívia proibiu o recurso a cortes estrangeiras e a arbitragens investidor-Estado de forma genérica. A Constituição do Equador seguiu linha parecida, excepcionando disputas envolvendo cidadãos da América Latina e entidades regionais. Por sua vez, a Constituição da Venezuela limitou o uso da arbitragem investidor-Estado a casos que não envolvam interesse público.
Há, portanto, um descompasso entre as obrigações assumidas internacionalmente por estes países e suas constituições. A opção de criação de um centro regional de resolução de disputas entre investidores e Estado, como aquele discutido no âmbito da UNASUL não nos parece ser uma alternativa efetiva para resolver este problema ou mesmo para constituir uma alternativa viável ao ICSID no âmbito mundial.
O escopo proposto, segundo os relatos de que se tem conhecimento, é limitado ao âmbito regional e, em termos de matérias, a questões que não se relacionem a saúde, impostos e energia. Há, ainda, o risco de que este centro surja com o estigma de protetor aos Estados, afugentando investidores e que não conte com o apoio de países importantes para a América Latina, como é o caso do Uruguai e do Brasil.39
Portanto, os rumos da América Latina com relação à proteção de inves-ê timento se mostram incertos. Se, por um lado, as Repúblicas Bolivarianas u lideram o movimento de crítica ao sistema internacional de proteção de investimentos e, especialmente, ao ICSID, por outro, países como o Uruguai e Chile parecem ter receio de seguir esta linha e perder oportunidades de receber investimentos. Parece-nos, portanto, difícil, que se chegue a um consenso regional sobre a política e os mecanismos de proteção do investimento no âmbito da América Latina.
Retomando nossas três hipóteses iniciais, a análise dos casos em que 5 Bolívia, Equador e Venezuela participaram não nos permite concluir que haja um viés arbitral contra os Estados, existiram decisões contrárias fortes contra esses países, mas também houve decisões favoráveis. Por outro lado, o movimento de denúncia da Convenção de Washington não acompanhado da denúncia de outros acordos internacionais de investimento nos permite ao menos refletir se há um efetivo questionamento aos acordos internacionais de investimento. Por fim, as proposições de que a denúncia da Convenção de Washington seria um mandamento constitucional, parece-nos um apoio retórico, de natureza muito mais política do que jurídica, conforme apresentamos na sessão anterior.