SUMARIO: I. Introdução. II. A evolução dos direitos das crianças e dos adolescentes e do seu modo de tratamento. III. Incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos sobre direito penal juvenil no direito doméstico. IV Mecanismo interamericano de direitos humanos: perspectivas e seus reflexos na justiça juvenil. V. Considerações finais. VI. Referências.
I. Introdução
Os direitos das crianças e dos adolescentes, ainda em constituição, são caracterizados pela constante mudança no panorama normativo internacional. Historicamente, principalmente no Brasil, tais direitos ocupam posição de moeda de "barganha política" e toda transformação positiva de garantias para a infância na esfera jurídica e institucional que seguiu de encontro com os interesses corporativos esbarrou em diversas pressões e ameaças de retrocessos. Dentro dessa realidade de (des) avanços, a logística dos sistemas de responsabilidade penal juvenil na América Latina se apresenta justamente como uma dessas reviravoltas políticas, constantemente enfrentadas por ações de um Poder Legislativo conservador.
A ótica humanista do direito e a internacionalização dos direitos humanos passaram a ganhar espaço globalmente apenas no período Pós Segunda Guerra Mundial, de modo a influenciar nas mudanças dos direitos das crianças e dos adolescentes. Uma vez aprovada a Carta Internacional dos Direitos Humanos, a infância ganhou maior espaço na discussão de necessidade de concretização da própria essência de sujeito dotado de direitos. Em 1959, surgia a Declaração Universal dos Direitos da Criança, pela Organização das Nações Unidas (ONU), primeiro importante documento na esfera dessa temática. Contudo, o mero reconhecimento dos direitos humanos das crianças e dos adolescentes de forma genérica parece extremamente vago. É preciso não apenas notar a existência desses sujeitos e as violações que sofrem, mas também reconhecer as suas especificidades, pois uma verdadeira resposta elaborada implica a concepção da efetiva igualdade1 de tais sujeitos nos parâmetros da sociedade. As crianças e os adolescentes são indivíduos que requerem o reconhecimento de suas especificidades na esfera de seus direitos e a compreensão da trajetória de conquistas- e constantes ameaças de retrocesso -pela qual eles vêm passando se faz imprescindível.
Assim, este artigo busca identificar não apenas a evolução dos direitos das crianças e dos adolescentes, como também o modo de tratamento conferido a essa parcela da população que está envolvida com os sistemas de responsabilidade penal juvenil. Ou seja, o intuito é verificar a efetividade dos direitos humanos dos jovens envolvidos com a justiça juvenil para além da previsão normativa. Para tanto, será realizada uma pesquisa bibliográfica, seguida de uma análise comparada dos dados acerca das leis específicas sobre a temática nos países latino-americanos.
II. A Evolução Dos Direitos Das Crianças E Dos Adolescentes E Do Seu Modo De Tratamento
O Brasil, até então, cumpriu um trajeto que é possível denominar "normativamente evolutivo" dentro da escala de ascensão e constituição de direitos dos jovens privados de liberdade. O "menorismo" cedeu lugar às garantias normatizadas e diversos diplomas legais foram elaborados a seu tempo, atribuindo um grau de reconhecimento maior às crianças e aos adolescentes. Cabe um primeiro alerta acerca do fato de que a juventude e a infância sobre as quais esta pesquisa retrata englobam uma parcela da população mais pobre, marginalizada e de um recorte racial que em muitos momentos da história parece despercebida, desfavorecida ou até mesmo invisível quan-£ to aos avanços e reconhecimento como sujeitos de direito. No entanto, essa mesma juventude parece ganhar espaço com efervescência quando se trata principalmente da sua livre associação com a criminalidade e a violência.
Ao realizar uma pequena travessia histórica, é possível identificar a constituição dos direitos dessas crianças e adolescentes. No contexto brasileiro de urbanização e criação das metrópoles, à procura de trabalho nas indústrias, o índice populacional das cidades aumentou significativamente. Enquanto os pais trabalhavam nas indústrias, as crianças ficavam nas ruas, a fomentar na mídia um interesse massivo por essa quantidade de crianças pobres "largadas nas alamedas". Assim, realizava-se a associação do abandono familiar (moral e material) com a criminalidade, tornando as crianças de rua um problema de segurança pública -e não de desigualdade social-. A solução trazida, à época, foi a criação de instituições para recolher essas crianças das ruas.2
Em 1890, o Decreto n° 8473 promoveu a inserção dos jovens na sociedade brasileira meramente por razões econômicas: através do mercado de trabalho, entender os jovens como indivíduos dotados de direitos interessava em respeito à parte lucrativa do capitalismo: possuir maior número de mão de obra (barata) disponível. Momentos como esse evidenciam em que medida a visibilidade dessa população interessa(va) esporadicamente -seja através do viés econômico ou da procura pela coletivização de um inimigo comum, nos termos explicitados por Zaffaroni-.4
No que concerne à esfera regional, o caminho que a América Latina perpassou iniciou com uma época menorista, cujo contexto econômico era, em geral, agroexportador.5 No Brasil, tal época foi expressa principalmente pelo Decreto n° 17.943-A,6 diploma legal que se centrava, sobretudo, na proteção e no assistencialismo das crianças. Tal Código era baseado na Doutrina da Situação Irregular, "aquela em que os menores passam a ser objeto da norma quando se encontrarem em estado de patologia social".7 O reconhecimento das crianças e dos jovens, contudo, era apenas parte do "discurso da piedade assistencial junto às exigências mais urgentes de ordem e de controle social".8 Em paralelo, faz-se imprescindível notar o recorte racial reforçado com o passar dos anos através da brutalidade policial -que se dá especialmente em bairros desfavorecidos e de comunidades de cor- e do encarceramento massivo, os quais são validados pelos Tribunais que, a despeito de sua suposta imparcialidade, mostram-se como verdadeiros reprodutores de um racismo estrutural cuja punição é determinada essencialmente pela raça e não pelo delito cometido.9
Em total descompasso com a Declaração Universal dos Direitos das Crianças da ONU de 59, o Brasil viveu uma época em que a tutela estatal dos pobres era clamada pelos militares da ditadura militar para manter a ordem social.10 Nesse sentido, em 1964, criou-se a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem)11 com o objetivo de implementar a Política Nacional do Bem-Estar do Menor (Pnbem).12 Portanto, o processo de criminalização sempre foi relacionado à marginalização social. O abandono das crianças mais pobres pelos pais, que tinham de trabalhar, e a consequente desestruturação familiar eram tidos como fatores preliminares para o desenvolvimento da criminalidade. Ainda, no ano de 1976, eram criados o Quadrilátero do Tatuapé e o Complexo Imigrantes da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor de São Paulo (Febem-SP). As instituições, com o objetivo correcional, eram marcadas pela superpopulação e a cética crença de que o trabalho dos técnicos deveria substituir a atuação da família, assinalada pela constante alegação de falta de estrutura. Sob a retórica assistencialista e o pretexto humanista, as funções parentais eram sub-rogadas ao Estado em diversos países latino-americanos.13 No ano de 1979, foi promulgado o I Código de Menores, uma clara resposta conservadora ao movimento social que vinha se desenvolvendo na luta pela defesa dos direitos desses jovens.
Assim, foi apenas no final dos anos 80, época de crescentes movimentos sociais em favor das crianças e do processo de redemocratização no país, que o Brasil esteve em harmonia, a respeito da temática, com o contexto global. As Regras Mínimas das Nações Unidas para administração da Justiça, da Infância e da Juventude (Regras de Beijing),14 delinearam o plano de fundo internacional, no ano de 1985. Em 1988, os artigos 227 e 228 da então promulgada Constituição Federal (CRFB/88) passavam a introduzir a Doutrina da Proteção Integral dos Direitos da Criança, antecedendo à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (CDC) na sua aderência. Além disso, importante destacar a atuação da sociedade civil no espaço de redemo-cratização do Brasil. Ainda nos anos 80, os movimentos de defesa dos direitos de crianças e adolescentes -dentre os quais se destacam a Igreja Católica, através de suas pastorais (Pastoral da Criança), bem como as entidades assistenciais de cunho filantrópico e as instituições sem fins lucrativos (Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua)- tiveram um significativo papel, articularam os conceitos de pobreza e a própria ação social e buscaram introduzir as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos.15
Nesse mesmo contexto de tensões sociais do processo de redemocratização, o então Presidente da República, Fernando Collor de Mello, sofria a pressão internacional da mídia sobre a problemática dos "meninos de rua". Alguma medida política precisava ser adotada para garantir a abertura econômica do Brasil e, portanto, foi diante desse quadro econômico-social que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi aprovado, por unanimidade. Foi também em razão desse cenário que a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 89 foi assinada, em janeiro de 1990, e ratificada pelo país, em setembro de 1990.16 Destaca-se, ainda, que alguns representantes dos movimentos sociais dos direitos das crianças e dos adolescentes estiveram nas discussões da implementação da Doutrina da Proteção Integral e, até mesmo, no debate sobre a promulgação da Convenção de 89. A sociedade civil, portanto, possuiu um desempenho de destaque e força na defesa e promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes.
Nesse sentido, a onda das reformas na Justiça Juvenil na América Latina durante os últimos vinte anos teve o Brasil como importante referência para as suas mudanças normativas. O processo de transição para regimes democráticos pelo qual diversos países latino-americanos estavam passando, a promulgação da Convenção sobre os Direitos das Crianças (CDC) e outros mecanismos de direitos humanos -principalmente internacionais- oportunizaram a mudança legislativa desses países.17 Observa-se, pois, a tabela abaixo, que ilustra justamente os países da região da América Latina que ratificaram a CDC no período de um ano (à exceção do Haiti, que ratificou em dois anos). Importante frisar que tais dados não abarcam os países angló-fonos, em razão do critério adotado de similaridade do processo de socialização e urbanização dos países latino-americanos.
País | Assinatura | Ratificação | Vigência |
Argentina | 29 de Junho de 1990 | 04 de Dezembro de 1990 | 03 de Janeiro de 1991 |
Bolívia | 08 de Março de 1990 | 26 de Junho de 1990 | 02 de Setembro de 1990 |
Brasil | 26 de Janeiro de 1990 | 24 de Setembro de 1990 | 24 de Outubro de 1990 |
Chile | 26 de Janeiro de 1990 | 13 de Agosto de 1990 | 12 de Setembro de 1990 |
Colômbia | 26 de Janeiro de 1990 | 28 de Janeiro de 1991 | 27 de Fevereiro de 1991 |
Costa Rica | 26 de Janeiro de 1990 | 21 de Agosto de 1990 | 20 de Setembro de 1990 |
Cuba | 26 de Janeiro de 1990 | 21 de Agosto de 1991 | 20 de Setembro de 1991 |
Equador | 26 de Janeiro de 1990 | 23 de Março de 1990 | 02 de Setembro de 1990 |
El Salvador | 26 de Janeiro de 1990 | 10 de Julho de 1990 | 02 de Setembro de 1990 |
Guatemala | 26 de Janeiro de 1990 | 06 de Junho de 1990 | 02 de Setembro de 1990 |
Haiti | 20 de Janeiro de 1990 | 08 de Junho de 1995 | 08 de Julho de 1995 |
Honduras | 31 de Maio de 1990 | 10 de Agosto de 1990 | 09 de Setembro de 1990 |
México | 26 de Janeiro de 1990 | 21 de Setembro de 1990 | 21 de Outubro de 1990 |
Nicarágua | 06 de Fevereiro de 1990 | 05 de Outubro de 1990 | 04 de Novembro de 1990 |
Panamá | 26 de Janeiro de 1990 | 12 de Dezembro de 1990 | 11 de Janeiro de 1991 |
Paraguai | 04 de Abril de 1990 | 25 de Setembro de 1990 | 25 de Outubro de 1990 |
Peru | 26 de Janeiro de 1990 | 04 de Setembro de 1990 | 04 de Outubro de 1990 |
República Dominicana | 08 de Agosto de 1990 | 11 de Junho de 1991 | 11 de Julho de 1991 |
Uruguai | 26 de Janeiro de 1990 | 20 de Novembro de 1990 | 20 de Dezembro de 1990 |
Venezuela | 26 de Janeiro de 1990 | 13 de Setembro de 1990 | 13 de Outubro de 1990 |
Fonte: Beloff, Mary e Langer, Maximo, "Myths and Realities of Juvenile Justice in Latin America", em Zimring, Franklin E. ; Langer, Maximo e Stanenhaus, David (coords.), Juvenile Justice in Global Perspective, NewYork, New York Press, 2015, p. 205.
Ao analisar os dados e as questões supramencionadas, é preciso remontar ao fato de que a construção política da CDC foi um processo extremamente complexo e lento. Da implementação do Ano Internacional da Criança, em 1979, foi criado um comitê para desenvolver a Convenção das Crianças, que levou cerca de dez anos para efetivamente aprovar o diploma legal.18 A Convenção, portanto, não se deu como uma ruptura, mas como uma consequência de um processo que já vinha se remontando nos países latino-americanos.
Na esfera brasileira, por mais que a Carta Magna tenha introduzido direitos imprescindíveis na legislação do país, o documento normativo nacional mais impactante no âmbito das garantias e dos direitos da infância foi o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/1990). O ECA, em consonância com a Convenção de 89, complementou o que preconizavam os artigos 227 e 228 da Constituição Federal de maneira detalhada e trouxe mudanças paradigmáticas, tornando-se, inclusive, referência mundial na garantia de proteção às crianças e aos adolescentes. O Estatuto ressignificou | a pobreza e inovou, em diversos aspectos, o modelo de responsabilização penal das crianças e dos adolescentes. Paralelamente, no panorama internacional, o Brasil adotou um importante passo na proteção dos direitos humanos e ratificou o Pacto de São José da Costa Rica, no ano de 1992, garantindo uma gama de direitos imprescindíveis às crianças e aos adolescentes, principalmente na figura dos seus dispositivos 4 e 19.
Em 2012, o ECA foi complementado no âmbito doméstico pela Lei n° 12.594 (Lei do SINASE-Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), que buscou suprir as diversas lacunas existentes e sofisticar ainda mais a legislação referente aos adolescentes envolvidos com o Sistema Socioeducativo brasileiro. A adoção da Lei do SINASE e sua recomendação normativa a todos os entes federativos, de elaboração e implementação dos Planos de Atendimento Socioeducativo decenais, fez com que o Brasil passasse por um importante processo de reformulação na Justiça Juvenil.19 Tanto o ECA como o SINASE são diplomas legais importantíssimos para a referência normativa dos países da América Latina e a maior problemática a se enfrentar não é, pois, a falta de previsão legal dos direitos e garantias, mas justamente o descumprimento reiterado das legislações ou, ainda, a racionalidade punitiva20 carregada de um "moralismo menorista-tutelar" por detrás dos operadores jurídicos na Justiça Juvenil.
Observa-se que, no cenário normativo latino-americano, a mudança na legislação penal também influenciou diretamente a discussão penal juvenil. Dentre os principais argumentos para as diversas reformas sobre a Justiça Juvenil, centrava-se o apontamento de que as antigas legislações, além de ineficientes e inquisitórias, não respeitavam os parâmetros dos direitos humanos internacionais previstos nos instrumentos internacionais.
Even if the new Latin American juvenile laws adopted the principles of the CRC and of other international instruments, these laws did not follow one single coherent theory or model. Leaving aside the Costa Rican legislation, which was heavily influenced by German law, Latin American countries generally drafted their laws using their own legislative models, which evolved based on the experience of other countries of the region that had already made changes to their legislation area.21
Ainda assim, a América Latina rompia com a lógica anteriormente influenciada pelas cortes juvenis americanas "tutelaristas" e passava a seguir a onda de reformas engatilhadas pela referência brasileira. Não havia uma coerência teórica ou um modelo específico a ser seguido, como referem Beloff e Langer, mas a existência de um conjunto de países que se referenciavam nas experiências vizinhas e estavam inspirados pela Convenção das Nações Unidas, em busca de uma maior preservação das garantias e direitos dos jovens. O princípio da legalidade, a existência de medidas alternativas à internação e restaurativas, uma idade mínima de responsabilização penal definida, um devido processo legal garantido, a responsabilização penal dos jovens e a internação como a última medida foram as principais reformas a serem destacadas como garantidoras da proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes envolvidos com o Sistema Socioeducativo. No entanto, ressalta-se que são diversas as diferenças traçadas nos sistemas de responsabilidade penal das crianças e dos adolescentes pela América Latina, o que torna complexa a comparação das realidades de países diferentes. Propõe-se, pois, a leitura da evolução das reformas legislativas na Justiça Juvenil e nos Direitos das Crianças nos países latino-americanos conforme a esquematização da tabela abaixo.
País | Estatuto | Data | Tipo de legislação |
Brasil | Estatuto da Criança e dos Adolescentes. Lei n° 8069, que depois foi complementada pela Lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioedu-cativo (SINASE). Lei n° 12594, aprovada em 18 de janeiro de 2012. | Aprovada em 13 de junho de 1989. | Legislação geral concernente aos direitos das crianças |
El Salvador | Lei do Menor Infrator (Ley del Menor Infractor). Lei n° 863. | Aprovada em 27 de abril de 1994, alterada pelo Decreto 395, em 28 de junho de 2004, mantendo seu nome e alguns artigos. | Legislação especial sobre Justiça Juvenil |
Costa Rica | Lei da Justiça Penal Juvenil (Ley de Justicia Penal Juvenil). Lei n° 7576. | Aprovada em 6 de fevereiro de 1996, promul gada em 8 de março de 1996; publicada e entrou em vigor em 30 de abril de 1996. | Legislação especial sobre Justiça Juvenil |
Honduras | Código da Infância e do Adolescente (Código de la Niñez y de la Adolescencia). Lei n° 73-96. | Publicado em 5 de setembro de 1996. | Legislação geral acerca dos direitos das crianças |
Nicarágua | Código da Infância e da Adolescência de Nicarágua (Código de la Niñez y de la Adolescencia de Nicarágua). Lei n° 287. | Aprovado em 24 de março de 1998. Publicado em 27 de maio de 1998. | Legislação geral acerca dos direitos das crianças |
Panamá | Regime Especial de Responsabilidade Penal para a Adolescência (Regi-mén Especial de Responsabilidad Penal para la Adolescencia). Lei n° 40. | Aprovada em 26 de agosto de 1999; alterada pela Lei n° 46, aprovada em 6 de junho de 2003. | Legislação geral acerca dos direitos das crianças |
Bolívia | Código da Criança e do Adolescente (Código del Niño, Niña y Adoles cente). Lei n° 2026. | Aprovada em 27 de outubro de 1999. | Legislação geral acerca dos direitos das crianças |
Peru | Novo Código das Criança e dos Ado lescente (Nuevo Código de los Niños y de los Adolescentes). Lei n° 27337. | Aprovado em 21 de julho de 2000; promulgado em 2 de agosto de 2000; publicado em 7 de agosto de 2000. | Legislação geral acerca dos direitos das crianças |
Paraguai | Código da Infância e a Adolescência (Código de la Niñez y la Adolescencia). Lei n° 1680/01. | Aprovado em 8 de maio de 2001. | Legislação geral acerca dos direitos das crianças |
Equador | Código da Infância e Adolescência (Código de la Niñez y Adolescencia). Lei n° 2002-100. | Aprovado em 23 de dezembro de 2002; publicado em 3 de janeiro de 2003. | Legislação geral acerca dos direitos das crianças |
Guatemala | Lei de Proteção Integral da Infância e Adolescência (Ley de Protección Integral de la Niñez y Adolescencia). Lei n° 27-03 | Aprovada em 4 de junho de 2003; promulgada em 15 de julho de 2003; publicada em 18 de julho de 2003. | Legislação geral acerca dos direitos das crianças |
República Dominicana | Código para o Sistema de Proteção e Direitos Fundamentais das Crianças e Adolescentes (Código para el Sistema de Protección y los Derechos Fundamentales de Niños, Niñas y Adolescentes). Lei n° 136-03. | Aprovado em 22 de julho de 2003; promulgado em 7 de agosto de 2003. | Legislação geral acerca dos direitos das crianças |
Uruguai | Código da Infância e da Adolescência (Código de la Niñez y la Adoles cencia). Lei n° 17823. | Promulgado 7 de setembro de 2004; publicado em 14 de setembro de 2004. | Legislação geral acerca dos direitos das crianças |
Costa Rica | Lei de Execução das Sanções Penais Juvenis. (Ejecución de Sanciones Penales Juveniles). Lei n° 8460. | Aprovada em 20 de outubro de 2005; entrou em vigor em 28 de novembro de 2005. | Legislação especial sobre Justiça Juvenil |
Colombia | Código da Infância (Código de la Niñez e Infancia). Lei n° 1098. | Aprovado e publicado em 11 de agosto de 2006. | Legislação geral acerca dos direitos das crianças |
México (Oaxaca) | Lei de Justiça para Adolescentes do Estado de Oaxaca (Ley de Justicia para Adolescentes del Estado de Oaxaca). Decreto n° 306. | Publicada em 9 de setembro de 2006. | Legislação especial sobre Justiça Juvenil |
México (Nuevo Leon) | Lei do Sistema de Justiça para Adolescentes do Estado de Nuevo Leon (Ley del Sistema de Justicia Especial para Adolescentes del Estado de Nuevo Leon). Decreto n° 415. | Publicado em 10 de setembro de 2006. | Legislação especial sobre Justiça Juvenil |
México (Chihuaha) | Lei de Justiça Especial para Adolescentes Infratores do Estado de Chihuahua (Ley de Justicia Especial para Adolescentes Infractores del Estado de Chihuahua). Decreto n° 618/06 | Publicada em 16 de setembro de 2006. | Legislação especial sobre Justiça Juvenil |
México (Zacatecas) | Lei de Justiça para Adolescentes no Estado de Zacatecas (Ley de Justicia para Adolescentes em el Estado de Zacatecas). Decreto n° 311. | Publicada em 30 de setembro de 2006. | Legislação especial sobre Justiça Juvenil |
Chile | Lei do Sistema de Responsabilidade Penal dos Adolescentes (Ley de Sistema de Responsabilidad Penal de los Adolescentes). Lei n° 20.084. | Promulgada em novembro de 2005; publicada em 7 de dezembro de 2005; entrou em vigor em 8 de junho de 2007. | Legislação especial sobre Justiça Juvenil |
México (D. F.) | Lei de Justiça Para Adolescentes para o Distrito Federal (Ley de Justicia Para Adolescentes para el Districto Federal). | Publicada em 14 de novembro de 2007; entrou em vigor em 6 de outubro de 2008. | Legislação especial sobre Justiça Juvenil |
Venezuela | Lei Orgânica para a Proteção das Crianças e Adolescentes (Ley Orgánica para la Protección de Niñas, Niños y Adolescentes). | Promulgada em 14 de agosto de 2007; publicada em 10 de dezem bro de 2007. | Legislação geral acerca dos direitos das crianças |
México | Lei Federal de Justiça Para Adolescentes (Ley Federal de Justicia Para Adolescentes). | Publicada em 27 de dezembro de 2012; entrou em vigor em 27 de dezembro de 2014. | Legislação especial sobre Justiça Juvenil |
Fonte: Beloff, Mary e Langer, Maximo, "Myths and Realities of Juvenile Justice in Latin America", em Zimring, Franklin E. ; Langer, Maximo e Stanenhaus, David (coords.), Juvenile Justice in Global Perspective, NewYork, New York Press, 2015, pp. 206-208.
Observa-se que a América Latina interpretou a CDC pautada pelo redu-cionismo legal e penal, que ingeriu todas as leis sobre Justiça Juvenil sem a devida preocupação de concretização de outros direitos fundamentais aos jovens envolvidos com o direito penal. Ou seja, ocorreu uma transição de sistemas cujos territórios eram repletos de punitivismo arraigado e denominado inquisitório a intitulados sistemas acusatório; todavia, tal mudança restringiu-se meramente à discussão penal e se olvidou de abarcar os direitos de proteção. O exame dos dados elencados permite observar que houve: em alguns casos, a aprovação de um Estatuto próprio dos direitos das crianças e adolescentes, como no Brasil; em outros, o modelo de adoção de um Código com normas penais; e, por fim, a aprovação de leis e direitos penais exclusivos aos adolescentes nos demais.
Nessa caminhada de intensas e constantes mudanças legislativas que envolvem o entendimento dos jovens como sujeitos de direitos e especificidades, tem-se as diversas variações progressistas confrontadas pelas ameaças ט retrógradas. Ainda que o caminho traçado tenha sido evolutivo, isto é, direm cionado desde uma lógica de indiferença penal de crianças e de adultos, que passou por uma etapa tutelar e, por fim, evoluiu à situação atual de caráter penal juvenil,22 o Poder Legislativo segue apresentando -se resistente às mudanças progressivas e demonstra- se politicamente maleável. Segue a reproduzir conservadorismos em seus discursos e desenvolve, como resposta à sociedade que transborda um medo social, Projetos de Lei e de Emenda Constitucional que pleiteiam, entre outras pautas, o aumento do tempo da medida socioeducativa de internação e a redução da idade penal. Sob o pretexto de uma maior proteção social, a hipocrisia é coberta pelo punitivismo, ganha espaço em nossas Casas Legislativas e desconsidera todos os estudos sociais e criminológicos ao apresentar respostas populistas e simplistas ao crescimento da violência urbana. O caráter pedagógico da medida socioeducativa e a excepcionalidade da medida privativa de liberdade são ignorados, respaldados no discurso da falsa impunidade que objetiva desmoralizar o Estatuto da Criança e do Adolescente,23 e a mentalidade tutelarista dos magistrados corroboram com a superpopulação das unidades socioeducativas.
A idade penal não é apenas assegurada pela Constituição Federal, como também pode ser tida como cláusula pétrea expressa no artigo 228 da CRFB/88, que garante a preservação da peculiaridade da condição de sujeito em desenvolvimento (art. 6o. do ECA), conforme explicita Shecaira.24 A previsão normativa também está resguardada pelos tratados internacionais ratificados pelo país. Conforme mencionado, a existência de convergência atual do Brasil com os parâmetros internacionais reflete tal realidade. Nas Regras de Beijing, refere-se à necessidade de preservação do princípio da proporcionalidade e proteção das crianças e adolescentes ao se fixar a idade de responsabilidade penal. A Convenção sobre os Direitos da Criança, por sua vez, estabelece que 18 anos seria a idade mínima desejável de responsabilidade penal e que os países signatários não poderiam ter uma legislação interna mais gravosa ou contraditória com o referido nesse diploma legal. Ainda, determina que abaixo de 18 anos a criança necessita de atendimento especializado. Os Princípios Orientadores de Riad25 explicitam a inviabilidade de adoção de normas conflitantes com os instrumentos de proteção dos direitos humanos. O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,26 bem como a Convenção Americana dos Direitos Humanos (CADH),27 estabelecem a cláusula/princípio de vedação ao retrocesso social ou da evolução reacionária, sendo imprescindível a manutenção da progressividade das medidas,28 da idade penal, bem como do tempo de internação. Sob a mesma ótica, o artigo 19 da Convenção Americana afirma que "toda criança tem direito às medidas de proteção que sua condição de menor requer, por parte da família, da sociedade e do Estado" e, nesse mesmo sentido, a Corte IDH em uma decisão proferida referente ao caso Villagran Morales e outros mencionou a necessidade de o Estado garantir todos os cuidados especiais para o sujeito menor de idade privado de liberdade, devido às especificidades em que se encontra, especialmente a sua vulnerabilidade.29
Conforme o exposto, evidencia-se que o panorama normativo nacional brasileiro se encontra em perfeita simetria com a orientação internacional e seus princípios referentes aos direitos humanos das crianças e adolescentes. Ainda, para além das previsões normativas nacionais vigentes, possui um leque de tratados e pactos internacionais dos quais é signatário e que são compreendidos como um conjunto normativo internacional constitutivo da Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral dos Direitos da Criança.30 Por óbvio, é sabido que a mera ratificação dos tratados internacionais não gera a implementação dos direitos por eles reconhecidos, assim como a simples aprovação da lei não consegue implementar as garantias e os direitos que dispõe. O ECA está vigente há 26 anos no Brasil e ainda não foi possível contemplar tudo que a legislação prevê. Resta extremamente presente g a cultura do "menorismo" nas entrelinhas, respaldada em um paternalismo jurídico, enraizado na atuação dos magistrados das Varas da Infância e daJu-ventude. As decisões, muitas vezes, centram-se em justificar as internações maciças com o pretexto de "proteção" dos adolescentes, tanto da família -causa majoritariamente mencionada, principalmente através dos argumentos de falta de estrutura familiar ou de referência paternal- como da inexistência de políticas públicas da sociedade suficientemente capazes de auxiliar a vida do adolescente sob a condição de liberdade. Por consequência, mecanismos apropriados para efetivar a legislação de tamanho peso são imperiosos. Por fim, ainda, é preciso resistir, pois as mudanças propostas g pelo conservadorismo jurídico-corporativo31 apresentam-se na contramão do movimento internacional e também podem trazer graves consequências no aumento da violência.
III. Incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos sobre direito penal juvenil no direito doméstico
Ao tratar acerca das diretrizes dos direitos humanos, é preciso sublinhar os principais instrumentos normativos de proteção dos direitos humanos no plano internacional. Dentre o panorama normativo das Nações Unidas, destacam-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948),32 o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966),33 o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1966),34 a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979),35 Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas e Degradantes (1984).36 No âmbito americano, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) possui maior destaque para a contribuição na região. Ainda, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil (Diretrizes de Riad), as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores (Regras Mínimas de Beijing), as Regras Mínimas das Nações Unidas para a elaboração de Medidas Não Privativas de Liberdade ou Regras de Tóquio (1990), bem como as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade (1990) são os principais diplomas legais internacionais a se destacar sobre a temática em questão.
Uma vez analisados os documentos supramencionados, observa-se a primeira questão que salta aos olhos: a Convenção sobre os Direitos da Criança não menciona, em momento algum, a temática do direito penal juvenil. Ou seja, o instrumento dito como de maior importância no âmbito dos direitos das crianças não faz menção à questão penal que as envolve e não elenca a previsão de direitos dos jovens privados de liberdade. Nesse sentido, destacam-se como diplomas legais de maior importância na esfera temática da proteção das crianças e dos adolescentes privados de liberdade a Convenção Americana (ao abarcar a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), competente para julgar violações dos direitos dos jovens privados de liberdade), as Regras Mínimas de Beijing, as Diretrizes de Riad, as Regras de Tóquio e as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade.
No momento em que se trabalha com a existência de tratados internacionais, faz-se de importância verificar algumas questões prévias acerca da hierarquia de tais documentos legais. No art. 102, III, "b" da Constituição Federal, está disposto o controle de constitucionalidade dos tratados internacionais pelo Supremo Tribunal Federal. No entanto, quando diz respeito a tratados internacionais, a incorporação é diferenciada -haja vista a previsão do rito especial, no §3° do art. 5o. da CRFB/88, que foi adicionada pela Emenda Constitucional (EC) n° 45/2004- e esses documentos ganharam status de Emenda Constitucional no Brasil. Tendo em vista a inovação proveniente dessa EC, o Supremo Tribunal Federal atualizou o seu corpo jurisprudencial a respeito da temática, determinando o seu entendimento com o julgamento do Recurso Especial n° 466.343, de dezembro de 2008. O voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes fundamentou a natureza supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos, dotando a eles a força normativa no direito interno. Portanto, a sua hierarquia seria espe cial e privilegiada, uma vez que a sua natureza normativa supralegal torna inaplicável qualquer legislação infraconstitucional que seja com eles conflitantes. Em contrapartida, a tese vencida, levantada pelo Ministro Celso de Mello, fundamentava a constitucionalidade dos tratados internacionais sobre os direitos humanos e consequente status de hierarquia constitucional. Seu posicionamento segue sendo defendido por diversos autores na doutrina.
Observa-se, pois, que o Brasil -diferentemente do Peru, da Argentina, da Nicarágua e da Venezuela, os quais são países que atribuem hierarquia constitucional aos tratados de direitos humanos- apresenta uma barreira significativa à concretização da supremacia dos Direitos Humanos e sua ampla proteção, ao definir que tais diplomas legais não seriam hierarquicamente equivalentes a sua Constituição Federal. Em face à problemática de internalização dos direitos humanos, a prática do controle de convencio-nalidade vem sendo utilizado frequentemente nas Cortes Internacionais de Direitos Humanos, tais como a Corte IDH e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), como uma proposta de diálogo com a perspectiva de concretização dos standards internacionais no âmbito doméstico que se faz imprescindível no território brasileiro.
Por fim, cabe referir que o controle de convencionalidade é um mecanismo processual de filtragem dos diplomas legais que tem como parâmetro a CADH. O controle de constitucionalidade, por sua vez, é o controle de compatibilidade realizado tendo como parâmetro de controle dos atos a Constituição. Para Luiz Flávio Gomes, o controle de supralegalidade seria um sinônimo do controle difuso de convencionalidade, enquanto que Valério Mazzuoli dispõe o controle de convencionalidade como uma espécie de controle vertical entre as leis domésticas e os tratados internacionais de direitos humanos37 e controle de supralegalidade como compatibilização das leis domésticas com os tratados internacionais gerais. O autor afirma, ainda, que pode haver tanto o controle de convencionalidade difuso (por meio de um juiz ou pelo tribunal), como concentrado (apenas realizado por um tribunal que seja responsável pela preservação da Constituição, no caso do Brasil, o STF).
No âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a doutrina do controle de convencionalidade busca que os países signatários da Convenção Americana se comprometam com a interpretação de qualquer norma nacional em conformidade com o diploma legal. A partir de 2013, com o caso GelmanVs. Uruguai,38 passou-se a averiguar a compatibilidade entre uma lei interna e o corpus iuris interamericano, de modo que, a partir da adoção desse sistema de controle jurisdicional de convencionalidade das normas, surgiu a figura do "bloco de convencionalidade".39 No entanto, Jânia Saldanha e Lucas Vieira defendem que a primeira vez que o controle de conven-cionalidade teria sido realizado pela Corte IDH, ainda que sem utilizar tal expressão, foi no caso Loayza TamayoVs. Peru.40
Realizadas tais considerações, questiona-se: seriam os tratados internacionais de direitos humanos realmente influentes no sistema normativo interno brasileiro? Será que o controle de convencionalidade é um instrumento processual capaz de possibilitar a efetividade dos direitos humanos? Evidenciou-se, durante o trajeto de evolução legislativa, que por maior que tenham sido as incontáveis e necessárias mudanças normativas, o comportamento estatal seguiu (e segue) reproduzindo a institucionalização dos adolescentes que internava. Ainda, as mudanças que surgiram no país não pareceram ser fruto de um trabalho de conscientização normativa brasileira acerca do panorama internacional, tampouco "absorção" doméstica da legislação internacional, mas sim um caminho -aos tropeços- que o Brasil seguiu devido aos intensos embates internos impulsionados pelo movimento da sociedade civil.
Além disso, por maiores que tenham sido os avanços legislativos, ainda parece existir uma base tutelar no âmago do sistema da Justiça Juvenil, pois os magistrados seguem reproduzindo seu paternalismo jurídico, a retórica de reabilitação ainda está viva em diversos discursos desses sistemas na América Latina,41 e unidades de internação seguem sendo superlotadas com o pretexto de ressocializar e educar adolescentes. As consequências, contudo, nos âmbitos criminológico e social, acabam por ser justamente contrárias.
É através da dinâmica institucional que se fabrica, quase sempre, o delinquente juvenil. A instituição ao invés de recuperar, perverte; ao invés de reintegrar e res-socializar, excluí e marginaliza; ao invés de proteger, estigmatiza. Isto configura a perversidade institucional, por produzir o efeito contrário ao proposto.42
A Justiça Juvenil, no contexto latino-americano e, principalmente, brasileiro, segue institucionalizando adolescentes provenientes da mesma classe e realidade social. Esses sujeitos seguem sendo os mesmos, oriundos de famílias com o "clássico" caráter de abandono ou risco de violência e recorte ra cial. Através de seu discurso de reeducação e socialização, os operadores de direito justificam a continuidade de medidas de internação a qualquer custo, excluindo os jovens de sua realidade social como se, "milagrosamente", ao retornarem a essa mesma realidade estivessem finalmente "corrigidos" e inseridos socialmente pelo sistema. A superpopulação das unidades de inter nação do Brasil e a carência de maior capacitação sobre Direitos Humanos dos policiais e dos técnicos envolvidos com o Sistema Socioeducativo são fatores que contribuem para os constantes casos de abusos, de maus tratos, bem como de violência institucionalizada e reproduzida por esses agentes.
Assim, busca-se compreender por que os tratados internacionais de direitos humanos sobre a temática de justiça juvenil, apesar de devidamente incorporados e com força normativa supralegal, não são apreciados na fundamentação da maioria das sentenças de internação dos jovens no sistema socioeducativo. E, por fim, questiona-se: por qual motivo o cumprimento das previsões dos diplomas internacionais, sobre direitos e garantias aos jovens privados de liberdade, não é exigido frente ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos com a mesma frequência que se apresentam as barbáries no cotidiano das instituições socioeducativas do Brasil?
IV. Mecanismo interamericano de direitos humanos: perspectivas e seus reflexos na justiça juvenil
O Direito Internacional possui historicamente um caráter elitizado, tanto na academia, como na prática jurídica. Atrelado a essa realidade, tem-se um Poder Judiciário brasileiro que tradicionalmente não se dispõe a dialogar com a sociedade -com um linguajar próprio, o que respalda o seu caráter elitista-. O surgimento do movimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos trouxe um aspecto da humanização da disciplina internacional, contrapondo a premissa maior de soberania dos Estados com o princípio da dignidade da pessoa humana. Portanto, não há falar em passividade decorrente do respeito maior à nação diversa, mas em possíveis intervenções internas no Estado violador de direitos, o que rompe com a lógica clássica das normas internacionais.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos desenvolveu um panorama normativo próprio, com aparatos de controle específicos e análogos aos existentes no direito interno. Nesse sentido, tal sistema é dotado de instâncias judiciais competentes para denunciar violações ao seu panorama normativo de proteção aos direitos humanos, tanto no âmbito das Nações Unidas, como na esfera regional.43 A realidade de internacionalização dos direitos não esteve sempre emparelhada com a preservação dos direitos humanos. A noção de coletivização de responsabilidade de cuidados e proteção dos sujeitos por todos os Estados veio apenas com o fim da Segunda Guerra Mundial. Nesse quadro, como bem define Richard B. Bilder,44 o direito internacional dos direitos humanos delineia-se como um sistema de normas, procedimentos e instituições internacionais desenvolvidos para implementar a concepção de que toda nação possui um dever para com a preservação dos direitos humanos no seu âmbito interno, bem como um compromisso de re querer, externamente, a responsabilização do Estado que cometer violações.
Em paralelo, o tema de responsabilidade penal da criança e do adolescente também é assunto recente e constrói seu espaço gradativamente na pauta da sociedade contemporânea. Reitera-se que, no âmbito da problemática de seu reconhecimento como sujeitos de direitos, os avanços legais encontramse menos concretizados quando se tratam de jovens privados de liberdade. Nesse sentido, constantes são as violações nos cotidianos das unidades do Sistema Socioeducativo no Brasil, mas ainda se demonstra escassa a atuação i brasileira empenhada na denúncia desses abusos aos órgãos interamericanos de direitos humanos.
Dito isso, enfoca-se na realidade do continente americano. A abordagem da Organização dos Estados Americanos (OEA) envolve, no presente caso, o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, com destaque à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e à Corte IDH, bem como ao Instituto Interamericano da Criança e do Adolescente (IIN). Os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos surgem ao lado do sistema global, a fim de consolidar uma complementação à preservação efetiva desses direitos fundamentais e consagrar o binômio da igualdade e da não discriminação.45 Não há falar em incompatibilidade dos sistemas global e regional, mas em uma complementaridade necessária, com amplitude da preservação dos direitos humanos, capaz de contribuir para a influência na atuação nacional dos Estados-membros. Ainda, o diferencial dos sistemas re gionais é o fato de que eles contribuem no momento em que possuem instrumentos conforme as especificidades econômico-sociais, culturais e jurídicas da sua região,46 auxiliando na complementação do sistema global para a real efetividade da proteção dos direitos humanos. A regionalização também é um fator importante, no que diz respeito à união dos países para lutar na mesma trajetória contra violações que ocorrem de um modo culturalmente próximo, por diversas razões consequentes de fatores regionais -como é o caso da América Latina-.
Victor Abramovich47 faz um apanhado histórico geral acerca do papel do Sistema Interamericano de Direitos Humanos na América Latina e suas mudanças, ao percorrer o tempo e os cenários políticos dos países. Identifica que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) surgiu em um contexto de conflitos armados internos, bem como de abusos estatais cometidos sistematicamente e em massa. Assim, o período ditatorial nos países y latino-americanos teve o sistema regional como um importante instrumento de última instância, capaz de auxiliar, entre outras questões, na busca pelos desparecidos durantes tais regimes, bem como na denúncia e exposição à grande mídia sobre as atrocidades cometidas pelos governantes ditatoriais. O período final da década de 80 e início da década de 90 foi marcado pela reestruturação democrática em alguns países latino-americanos, ressalvando-se aqueles que ainda viviam regimes totalitários. O cenário era de um conjunto de sociedades latino-americanas em busca fugaz pela liberdade e pela proteção dos direitos humanos, no movimento de abertura de regime. Uma transição democrática, em que a atuação do SIDH foi principalmente no auxílio ao processo de anistia e ao exercício dos direitos à verdade, memória e justiça. Os anos 90 também tiveram uma expressão significativa da atuação do SIDH, principalmente nos conflitos armados internos da Colômbia.
Atualmente, o contexto político enfrenta fragilidades em uma América Latina que é palco de exclusões, desigualdades e instabilidades econômi-co-sociais. Os países desenvolveram as suas democracias com importantes conquistas em diversos âmbitos, como da liberdade individual, da transparência coletiva eleitoral e da violência política, mas ainda sofrem de males institucionais que são, em verdade, problemas estruturais, como a atuação truculenta policial, um sistema de justiça falido e um sistema penitenciário desumano. Portanto, cabível ressaltar:
O SIDH se encontra num período de fortes debates, que procuram definir suas prioridades temáticas e sua lógica de intervenção, num novo cenário político regional de democracias deficitárias e excludentes, que é diferente do cenário político que o viu nascer e dar seus primeiros passos.48
O Brasil é exemplo desse cenário repleto de problemas estruturais, e está o atualmente em um momento de instabilidade e fragilidade democrática. A título exemplificativo da violência estrutural existente tem-se casos como o do Wallace de Almeida, de 2009, cuja responsabilização do Estado brasileiro foi requerida pela CIDH em razão do padrão repetitivo de violência policial brasileira dirigido a uma parcela específica da população do Rio de Janeiro: jovens negros das periferias. Foi reconhecido pelo órgão que a execução extrajudicial do jovem Wallace seria apenas a expressão de uma tendência racista e ostensiva da atuação da polícia brasileira.49 Quannto ao ponto, inúmeras pesquisas respaldam a ideia de que o racismo estrutural é fundante na atuação seletiva policial.50
É preciso admitir que o direito é resultado de uma construção social, extremamente suscetível à influência da política e interesses de uma classe influente e que "resulta de la confrontación entre las normas y princípios de los que está compuesto y las situaciones de hecho que van a determinar tanto su legitimidade como sus potencialidades de realización".51 Estar suscetível à política implica estar vulnerável às tensões sociais e às pressões de setores conservadores que, através de seu poder de influência elitista, insistem na implementação das pautas retrógradas. Justamente por esse fator, que a ideia da proteção dos direitos humanos não pode ficar restrita apenas às decisões do Estado, pois se trata de temática de derradeira importância internacional. Atualmente, a lógica da soberania estatal com a consequente prevalência da jurisdição doméstica deve ser questionada e relativizada, ao ser contraposta com o "mínimo ético irredutível",52 que é o consenso proveniente da universalização dos direitos humanos. Ou seja, deve haver uma sobreposição dos direitos humanos, bem como uma rediscussão acerca dos procedimentos que garantem a sua preservação.
V. Considerações finais
Nesse sentido, cabe mencionar que a jurisprudência do Sistema Interamericano vem surtindo maiores efeitos em alguns países da América Latina, colaborando com mudanças legislativas dentre as quais se destaca, para os fins deste trabalho, a determinação de padrões para um sistema penal diferenciado para os menores de idade. Contudo, nem todos os países são efetivamente influenciados da mesma forma, como é o caso do Brasil.
Em suma, observou-se que o panorama normativo em âmbito nacional seguiu um paralelo harmônico com o movimento internacional, no aspecto garantidor de direitos às crianças e aos adolescentes privados de liberdade e no quis diz respeito às mudanças legislativas evolutivas. No entanto, tal processo não se revelou como fruto de uma conscientização coletiva, mas sim oriundo de pressão exercida pela sociedade civil, que atuava -e segue atuando- em prol da defesa daqueles que tinham (têm) os seus direitos violados pelas instituições estatais e seus próprios agentes.
Assim sendo, apesar dos avanços legislativos, muitas das conquistas normativas não conseguiram ser efetivadas, a lógica "menorista" segue nas entranhas do Judiciário brasileiro e o tratamento nas instituições socioeducativas muito se assemelha a certos aspectos negativos das instituições prisionais.
Nessa seara, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos surge como uma alternativa às violações que ocorrem na Justiça Juvenil. Todavia, o sistema regional ainda não foi capaz de aperfeiçoar a supervisão internacional do cumprimento de suas decisões nos territórios dos Estados-partes, tampouco mensurou a real efetividade de suas regras processuais e sistemas de garantias. No Brasil, ainda, o SIDH enfrenta a dificuldade da força normativa dos tratados internacionais, os quais encontram resistência no Judiciário brasileiro ao serem apresentados abaixo da hierarquia constitucional.
Por fim, em razão da falta de mecanismos fiscalizadores, da existência de estruturas deficitárias na incorporação dos tratados internacionais, dos entraves da constituição da força normativa dos tratados internacionais de direitos humanos, bem como da ausência de cultura de demanda à Corte, a legitimidade do Sistema Interamericano de Direitos Humanos parece estar em jogo no Brasil.