Sumario:
I. Introdução. II. Um fenômeno comum com distintas posturas: a Pandemia da Covid-19 em Portugal e no Brasil. III. Uma análise positivista das soluções legais em cada país para a realização de assembleias gerais virtuais. IV. Um passo adiante: as razoes de soluções distintas para um mesmo problema. V. Considerações Finais. VI. Referências.
I. Introdução
Assim como outros grandes eventos da história contemporânea, a corrente história do coronavírus (Covid-19) restará marcada para a humanidade, notadamente a partir do emblemático dia 11 de março de 2020, data na qual o diretor geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou que o mundo se depararia com uma nova Pandemia sem precedentes recentes. Ao final daquele mesmo mês, segundo dados Agência AFP (2020), aproximadamente 4 bilhões de pessoas em todo o mundo estavam em suas casas para evitar a disseminação de um vírus até então desconhecido e de consequências imprevisíveis.
Não obstante o avanço da história e as cicatrizes deixadas, as medidas de distanciamento e isolamento social transformaram a sociedade global, impondo e/ou acelerando transformações socioeconômicas até então inimagináveis, como a quase que completa paralização da economia global e o fechamento das fronteiras nacionais ao redor do globo. Prova disso é que ainda não se pode mensurar os reais efeitos causados pela Pandemia às relações pessoais, empresariais, de trabalho e emprego, nos vínculos e obrigações contratuais, de consumo, entre outras.
Em relação às sociedades cooperativas, objeto do presente estudo, seus efeitos foram igualmente transformadores, dado que se tornou imperativo sobreviver aos desafios econômico-sociais, como também adotar novas formas telemáticas de interação. A primeira expressão desse desafio veio, ao redor de todo mundo e ao mesmo tempo, de inopino: como realizar as assembleias gerais das cooperativas, essência da participação democrática dos membros desde a fundação da primeira cooperativa moderna, em 1844, de forma virtual? Como alcançar -tendo como partida um pensamento jurídico ainda hoje concebido sobre uma racionalidade essencialmente lógico-formal e centrado na relação entre realidade e Direito do século XIX-, um conjunto normativo ideal que responda rapidamente a uma desordem real de tamanha monta? Como conciliar a incompatibilidade da dogmática jurídica insistentemente tradicional às agilidades demandadas pela Covid-19 em todo mundo, ao mesmo tempo? Foram essas perguntas que motivaram esta investigação.
Ciente de que todas essas respostas não seriam possíveis e que cada país buscou, ao seu modo, responder a todas essas perguntas, este estudo comparativo analisou como os ordenamentos jurídicos português e brasileiro -vinculados pela língua e uma racionalidade jurídica semelhantes-, responderam às demandas dos seus respectivos movimentos cooperativos em relação à necessária realização das assembleias gerais das cooperativas.
Para tanto, cuidou-se de analisar comparativamente não apenas o teor dos seus textos legais em busca de apresentar, a partir de uma visão funcionalista como proposta por Konrad Zweigert e Hein Kötz, as praesumptio similitudinis de cada ordenamento jurídico, quer dizer, descobrir na vida legal de um determinado sistema estrangeiro semelhanças e substitutos que justifiquem uma harmonização da sua interpretação e aplicação. O presente artigo preocupou-se em ir além para, a partir da visão culturalista de Pierre Legrand, também contextualizar, mediante levantamento documental, análise descritiva de notas oficiais e reportagens, as razões jurídico-culturais que levaram cada país a adotar, como adotaram, distintas soluções para o mesmo problema.
Essa postura tem como única razão estabelecer uma forma de aprendizagem sobre as diferentes culturas jurídicas, as quais, para além da simples comparação, permitem a compreensão e o respeito às realidades distintas. E neste aspecto, preocupou-se o presente estudo em trabalhar as perspectivas das realidades jurídica-culturais brasileira e portuguesa a partir de autores que vivenciaram essas transformações em ambos os países.
II. Um fenômeno comum com distintas posturas: A pandemia da covid-19 em Portugal e no Brasil
Nada obstante a contemporaneidade da Pandemia parecer afetar a noção do tempo hoje vivido, é necessário reportar que, apesar do primeiro caso oficial de Covid-19 ter sido reconhecido e comunicado pelas autoridades chinesas à OMS, no dia 30 de dezembro de 2019, pesquisas atuais revelam que a data mais provável para o surgimento do Sars-Cov-2 foi o dia 17 de novembro de 2019, desencontros estes que não elidem a fato de que já em janeiro de 2020, o vírus estava espalhado globalmente (David Roberts et al., 2021).
Prova disso foi que no dia 30 de janeiro de 2020, o diretor geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, declarou que os novos casos de coronavírus, então chamados de 2019-nCoV, seriam tratados como emergência de saúde pública de interesse internacional ante os sinais de disseminação da doença. Segundo dados contidos em seu discurso, naquele momento 98 casos, em 18 países, além da China, eram monitorados, como Alemanha, Japão, Vietnam e Estados Unidos, em sua grande maioria casos relacionados a um histórico de viagens ao local considerado como de início da Pandemia: a cidade de Wuhan, na Província de Hubei (WHO, 2020).
Como bem analisado por Cary Coglianese e Neysun Mahboubi (2021, p. 2), o fato de muitos países diferentes estarem ao mesmo tempo sujeitos essencialmente às mesmas dificuldades e incertezas da Covid-19 trouxe diferentes respostas regulatórias, com oportunidades de aprendizado, as quais estavam ligadas à capacidade de resposta de cada nação ao período de emergência. Para os autores, fatores como liderança e comunicação de risco se transformaram em peças fundamentais para o enfrentamento da crise, especialmente quando os sistemas legais e burocráticos vigentes foram pensados para rotinas que desconsideram a emergência.
Ao compararem as respostas internacionais à Covid-19 à luz do direito administrativo, e mesmo reconhecendo que nenhuma explicação definitiva poderia ser apresentada, Cary Coglianese e Neysun Mahboubi (2021, p. 8-17) concluíram que pelo menos quatro lições poderiam ser refletidas em plena Pandemia. Para eles, além das pandemias globais exigirem governança nacional e local integradas e eficazes, é necessária uma legislação regulatória que se adapte rapidamente também de forma a permitir supervisões e limites aos poderes de emergência. Além disso, ponderam o exercício de uma liderança honesta, ativa e baseada na ciência, o que se apresenta como fundamental, tanto para uma coordenação forte e confiável das autoridades governamentais regionais e locais como para assegurar a cooperação entre os setores públicos e privados.
Trazendo essas percepções ao presente estudo comparativo, pretendemos ponderar que distintas posturas foram adotadas pelo Brasil e por Portugal nas ações de enfrentamento à Covid-19, especialmente no exercício de suas lideranças nacionais. Isso porque apesar de ambas as nações apresentarem rapidamente suas primeiras respostas legais e normativas à Pandemia, conforme esmiuçado a seguir, foram as posturas de seus líderes políticos que determinaram os rumos de cada sociedade na compreensão dessas normas e de suas reais necessidades.
Não obstante as suas reconhecidas diferenças populacionais e territoriais, enquanto Portugal imediatamente adotou um amplo pacote nacional de restrição de mobilidade organizado pela autoridade nacional, em coordenação com as autoridades locais, por meio de um decreto presidencial ainda quando diante do baixo número de casos (Ana Santos Rutschman, 2020, p. 5), o Brasil mergulhou numa miríade de discussões políticas e judiciais sobre a competência da União, Estados e Municípios para a regulação das restrições sanitárias então necessárias, sempre insuflados por decretos e discursos presidenciais que turvavam os esforços de comunicação em torno da saúde pública (Cary Coglianese e Neysun Mahboubi, 2021, p. 16).
No caso de Portugal, dois dias após a OMS declarar a Pandemia da Covid-19, a Presidência do Conselho de Ministros do país publicou, no dia 13 de março de 2020, o Decreto-Lei No. 10-A (2020), voltado a estabelecer “medidas execionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus-COVID 19”. Como indica o próprio texto de justificação do Decreto-Lei, seu objetivo central foi considerando tanto a emergência de saúde pública de âmbito internacional quanto a declaração de Pandemia como razões, a fim de “assegurar o tratamento da doença COVID-19 no Serviço Nacional de Saúde (SNS), através de um regime legal adequado a esta realidade excecional, em especial no que respeita a matéria de contratação pública e de recursos humanos.”
Além disso, o referido Decreto-Lei foi claro em estabelecer medidas “que aumentem as possibilidades de distanciamento social e isolamento profilático”, estabelecendo em seus artigos medidas como a suspensão, em todo do país, de atividades letivas, não letivas e formativas (artigo 9o.), limitação de acesso a estabelecimentos (artigo 12o.), serviços e edifícios públicos (artigo 13o.), entre outros. Insta destacar que esta medida do Governo foi logo ratificada pela Assembleia da República, que por meio da Lei No. 1-A (2020a), de 19 de março de 2020, aprovou as medidas excepcionais adotadas pela Presidência do Conselho de Ministros de modo a tornar o texto do Decreto-Lei No. 10-A (2020) como parte integrante da agora lei (artigo 2o.).
É importante ainda salientar que essas medidas de interação entre Presidência da República, Primeiro-Ministro e Assembleia da República foram fundamentais para uma integração nacional em torno do combate à Pandemia. A grande demonstração disso, pondera Ana Santos Rutschman (2020, p. 5), foi a rápida aprovação da decretação do estado de emergência em Portugal já no dia 18 de março de 2020, o que foi validado pela Assembleia da República e renovada por diversas vezes, sempre sob um discurso de renúncia às celebrações e viagens em respeito ao necessário distanciamento social.
Com efeito, o que se estabeleceu inicialmente em Portugal foi um consenso de ações e medidas restritivas que permitiram à Presidência da República declarar o estado de emergência no país, centrando as ações coordenadas nas lideranças nacionais em integração com os governos regionais e locais.
Embora posteriormente criticada por certos relaxamentos ao longo da Pandemia, o que se viu nos primeiros meses em Portugal foi o sucesso no controle do avanço da doença, reconhecido também no Brasil por manter taxas de internação e mortalidade próximas à Alemanha (Folha de São Paulo, 2020). Enquanto isso, como dito, as guerras de discursos políticos sobre a competência dos seus entes federados levaram o Brasil a uma tensão entre os poderes da República, com uma profusão de decretos e medidas judiciais que turvaram a percepção social sobre os riscos e a importância das medidas de enfrentamento.
Embora desde o dia 06 de fevereiro de 2020, já vigesse a citada Lei No. 13.979 (2020), inclusive com os conceitos legais de isolamento e quarentena postos no artigo 2o., os quais admitiam ao texto legal as definições estabelecidas no artigo 1o. do Regulamento Sanitário Internacional (Parágrafo único do artigo 2o.), o que se percebeu foi que a lei quedava silente quanto a qualquer disposição sobre as definições de serviços públicos e atividades essenciais, nada dispondo o artigo 3o. dessa lei sobre a competência da União, Estados e Municípios para adotar as medidas.
Com a chegada definitiva da Covid-19 ao Brasil, a partir do final do mesmo mês de fevereiro, e os precedentes internacionais de rápido contágio, proliferação e letalidade da doença, diversos Governadores de entes federados -especialmente aqueles onde vieram a ser confirmados casos da doença em seus territórios-, passaram a anunciar medidas de quarentena, a partir dos conceitos e autorizações garantidos pela Lei nº 13.979.1 Não bastassem esses decretos estaduais, com espeque na competência comum para regulamentar, em caráter suplementar ações de saúde (CFRB/88, art. 23, inciso I c/c art. 30, inciso VII), diversos municípios brasileiros também editaram os seus decretos para ratificar o estado de calamidade pública e a situação de emergência na saúde.2
Provavelmente como resposta a essa multiplicidade de decretos estaduais e municipais, que buscavam regulamentar os efeitos locais da decretação do estado de calamidade pública e emergência na saúde, no dia 20 de março de 2020, a Presidência da República edita concomitantemente duas normas voltadas a alterar e regulamentar a Lei No. 13.979, especialmente para ampliar os poderes da Presidência no combate à Pandemia.
Invocando urgência e relevância,3 a Medida Provisória No. 926 (2020), alterou a cabeça do artigo 3o. da Lei No. 13.979/2020, para, em seus parágrafos finais, acrescer e estabelecer que caberia ao Presidente da República, mediante decreto, dispor sobre os serviços públicos e as atividades essenciais (§9o.), os quais que não poderiam ser a afetados por qualquer tipo de restrição de circulação de trabalhadores e cargas (§11). E, de forma concomitante, a Presidência da República fez publicar o Decreto No. 10.282 (2020), que sob o pretexto de regulamentar a Lei No. 13.979, já a partir das alterações insertas pela Medida Provisória No. 926, definiu os serviços públicos e as atividades essenciais como aquelas “indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população” (artigo 3o.), exemplificando algumas atividades essenciais em seus incisos.
Conforme explicitado por José Gomes et al. (2020, p. 194), porém, essas medidas tomadas pela Presidência da República levaram a União, Estados e Municípios a um litígio quanto aos limites das medidas sanitárias a serem aplicadas naquele momento de crise epidemiológica, notadamente junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). Por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) No. 6341, no dia 23 de março de 2020, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) buscou ver declarada a incompatibilidade parcial da Medida Provisória No. 926, especialmente em relação aos acréscimos dos parágrafos 8o., 9o., 10 e 11, ao artigo 3o. da Lei No. 13.979. Na visão dos autores da ação, ante o fato do combate à Covid-19 tratar de temáticas atinentes à vigilância sanitária e epidemiológica, a competência para cuidar da saúde pública é comum à União, aos Estados e aos Municípios, como disposto no artigo 23, inciso II da Carta Magna brasileira, requerendo assim a concessão de tutela liminar pelo STF para afastar a aplicabilidade das alterações legais insertas na Medida Provisória No. 926, e, por arrastamento, do então vigente Decreto No. 10.282. Tal pedido liminar foi parcialmente deferido pelo Relator, Ministro Marco Aurélio Mello, sendo posteriormente confirmado em julgamento final em abril daquele ano (José Gomes et al., 2020, p. 194 y 195).
Como se percebe, não obstante a Constituição Federal brasileira determinar em seu artigo 23 que as leis devem fixar normas que propiciem a cooperação entre os entes federativos como ideário do federalismo equilibrado (Janaína Medina e José Miguel Medina, 2020, p. 2), o que poderia, portanto, ser coordenado por uma ação de cooperação conjugada para o combate à Pandemia, como ocorreu em Portugal, o que se viu -inclusive pelo julgamento da ADI No. 6341-, foi uma constante confrontação pública da autoridade do STF e dos governadores pela Presidência da República, somada à “flagrante situação de divergência política entre o Executivo federal e os demais entes quanto à intensidade do isolamento social e à natureza das medidas administrativas a serem tomadas” (José Gomes et al., 2020, p. 213).
Portanto, na prática, não obstante a comum existência de legislações regulatórias foi que rapidamente se compreendeu a gravidade da Pandemia e ser estabeleceram as medidas recomendadas pela ciência e pela OMS -como refletido por Cary Coglianese e Neysun Mahboubi (2020) e bem absorvido tanto pelo texto original da Lei No. 13.979/2020, no Brasil, quanto pelo Decreto-Lei No. 10-A (2020) e a Lei No. 1-A (2020), em Portugal-, a grande diferença entre as posturas de cada país esteve essencialmente ligada ao exercício da liderança de seus governantes.
Neste contexto, este trabalho pretende compreender, a partir de uma análise dos textos legais promulgados ao longo da Pandemia, como cada país enfrentou os efeitos do distanciamento social nas assembleias gerais virtuais, fazendo-a, porém, a partir de distintas abordagens, tais quais discutidas no âmbito do Direito Comparado.
III. Uma análise positivista das soluções legais em cada país para a realização de assembleias gerais virtuais
Analisar comparativamente distintos ordenamentos jurídicos é uma tarefa que, por si só, encontra desafios doutrinários sobre o método de abordagem dessas comparações - e até mesmo se há a necessidade de um determinado método, como pondera Pierre Legrand (1988. p. 789). E se fala em método aqui, propositadamente, por também se adotar neste estudo as reflexões de Simone Glanert (2012, p. 61), a qual discorre sobre as correntes positivistas que convergem para a noção de que o direito comparado em si é um método de pensamento e de trabalho.
Neste sentido, Konrad Zweigert e Hein Kötz (1996, p. 34) enfatizam que o princípio metodológico básico de todo direito comparado é o da funcionalidade, ou seja, colocar em comparação distintos sistemas jurídicos em função de um problema previamente formulado, problema este que, para os autores, deve estar estabelecido sem qualquer referência aos conceitos do próprio sistema jurídico, produzindo assim a sua hipótese de trabalho. Não obstante as críticas quanto à sua eventual superficialidade (Ralf Michaels, 2019, p. 345), ao propor uma análise descontextualizada dos entendimentos doutrinários nacionais em busca de meras similaridades (Pierre Legrand, 2018, p. 53), o fato é que as abordagens funcionais -a partir de uma lógica positivista-, são a base para alguns dos mais famosos estudos em direito comparado por serem factuais, ou seja, concentrados em eventos comparáveis (Ralf Michaels, 2019, p. 347).
Este introito é essencial para argumentar que, não obstante a consciência quanto às críticas existentes, o presente artigo admite uma abordagem funcionalista na comparação entre as legislações portuguesa e brasileira, em função de um fato comum posto no direito positivo: a possibilidade legal de realização de assembleias gerais virtuais nas cooperativas ante as medidas de distanciamento social impostas em ambos os países, em decorrência da pandemia de Covid-19. Noutros termos, concebe-se aqui buscar nessas diferentes jurisdições a proposta de Konrad Zweigert e Hein Kötz (1996, p. 44) de iniciar um processo positivista de comparação sem considerar os contextos de seu próprio sistema para comparar puramente à luz da sua função.
Isso porque além de ambos os países enfrentarem simultaneamente os efeitos da Covid-19 sobre os seus atos e negócios jurídicos, outras similaridades como a língua, a estruturação de suas leis e a existência de regulação específica das sociedades cooperativas, a partir das mesmas premissas internacionais do movimento cooperativo estruturado pela Aliança Cooperativa Internacional (ACI), permitem que uma análise positivista das soluções legais com menores chances de distorção do fenômeno observado.
1. A gestão democrática das cooperativas por meio das assembleias gerais
Antes de analisar comparativamente as soluções legais apresentadas em Portugal e no Brasil para a realização das assembleias gerais virtuais em cooperativas durante a pandemia de Covid-19, é necessário compreender a essencialidade dessas reuniões societárias para as cooperativas em ambos os países, estruturados a partir das premissas gerais internacionais. A partir do seu conceito globalmente definido pela ACI e absorvido pela Recomendação No. 193 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), núcleo do direito público internacional cooperativo, as cooperativas são compreendidas como uma associação autônoma de pessoas que se unem voluntariamente para satisfazer suas necessidades e aspirações econômicas, sociais e culturais comuns através de uma empresa de propriedade comum e gerida democraticamente (Hagen Henrÿ, 2012, p. 88 y 89).
Como visto, as cooperativas em seu conceito internacional são caracterizadas pela integração de elementos de associação e empresa, as quais possuem como aspecto de fundamental distinção em relação às demais sociedades o fato de serem de propriedade comum e gerida democraticamente. Isso significa dizer, na prática, que ao contrário das empresas de capital, o funcionamento das cooperativas está necessariamente vinculado à efetiva participação dos associados com capacidade para influenciar nos assuntos da organização, participação esta que exige uma organização interna e de distribuição de competências que reflita essa natureza (Hagen Henrÿ, 2012, p. 88 y 89).
Neste sentido, para a ACI as assembleias gerais dos associados são a forma de garantir o efetivo exercício democrático-participativo dos membros, desde a concepção da primeira cooperativa moderna, devendo, portanto, não apenas ser protegidas e fomentadas pelos sistemas jurídicos nacionais, mas também para considerar e garantir os direitos e responsabilidades dos seus associados (ACI, 2016, p. 17).
Tais percepções são amplamente absorvidas pelos plexos normativos de Portugal e do Brasil, países que, como dito, possuem legislações específicas que regulam as sociedades cooperativas em alinhamento às premissas internacionais. No caso de Portugal, a Lei No. 119 (2015) aprovou o novo Código Cooperativo, aplicável às cooperativas de todos os graus e às organizações afins (artigo 1o.). Nele, tanto o conceito de cooperativa (artigo 2o., 1o.) quanto os princípios cooperativos (artigo 3o.) declarados pela ACI são absorvidos no texto legal português, destacando Deolinda Meira e Maria Elisabete Ramos (2015, p. 8) que, além desse reconhecimento já ocorrer pelo acolhimento dos princípios cooperativos na Constituição da República Portuguesa, o Código Cooperativo de 2015, na senda dos Códigos Cooperativos anteriores (Código Cooperativo de 1980 e o Código Cooperativo de 1996), “associa a noção de cooperativa (art. 2o., do CCoop) à necessária obediência aos princípios cooperativos”, como é o princípio da gestão democrática, transcrevendo-o no seu artigo 3o.
No Brasil, a Lei No. 5.764 (1971), embora mais antiga, também está estruturada sobre as premissas da ACI. Seguindo o desenvolvimento de legislações cooperativistas na América Latina, Dante Cracogna (2019, p. 57) explica que após a realização do Primeiro Congresso Continental de Direito Cooperativo no ano de 1969, em Mérida, Venezuela, o qual buscava traduzir em legislações as revisões principiológicas realizadas pela ACI no Congresso da entidade em Viena, em 1966, a lei brasileira reconheceu de forma ampla e irrestrita o regime jurídico próprio das cooperativas, a partir dos modelos internacionais e com conceituações até então inéditas em legislações em todo o mundo, como explicou Waldírio Bulgarelli (1973, p. 136). Prova da absorção dos princípios vigentes é que ao conceituar as sociedades cooperativas (artigos 3o. e 4o.), cuidou a Lei No. 5.764 (1971) de tratar os princípios como aspectos identitários das cooperativas em comparação às demais sociedades da época, reconhecendo ser próprio das cooperativas a definição das regras democráticas de gestão pelos membros (artigo 4o., V e VI).
Outrossim, não obstante os tempos distintos de vigência das leis em Portugal e no Brasil, tanto o Código Cooperativo português quanto a Lei Geral das Sociedades Cooperativas brasileiras reconhecem que as assembleias gerais são o órgão supremo das cooperativas. Em outros termos, seja no artigo 33 da Lei No. 119 (2015), de Portugal, ou no artigo 38 da lei brasileira 5.794 (1971), é na assembleia geral que as deliberações dos sócios ocorrem a partir dos limites estabelecidos pela lei e pelo estatuto social, decidindo sobre os negócios relativos ao objeto da sociedade e vinculando todos os associados. No caso específico das assembleias gerais ordinárias, sua realização anual é obrigatória também em ambos os diplomas legais (artigo 34, 2, do Código Cooperativo e artigo 44 da Lei No. 5.764/1971), devendo ser realizadas nos três primeiros meses de cada ano.4
Efetivamente, a obrigatoriedade da realização das assembleias gerais em Portugal e no Brasil não apenas revelam a sua essencialidade para seus respectivos regimes jurídicos, como também e principalmente dão efetividade à gestão democrática pelos sócios enquanto característica axio-principiológica das sociedades cooperativas. Contudo, justamente em março de 2020, último mês para a realização das assembleias gerais ordinárias nas cooperativas portuguesas e brasileiras, a declaração de pandemia da Covid-19 e as medidas de distanciamento social já narradas impediram a realização dessas assembleias obrigatórias, levando cada país, a seu modo, buscar na virtualidade uma alternativa viável para a gestão democrática das sociedades cooperativas.
2. A redescoberta das assembleias gerais virtuais para as cooperativas portuguesas
Diante das incertezas sobre o tempo de duração e os efeitos da pandemia, a primeira medida tomada em Portugal -notadamente pelo artigo 18 do Decreto-Lei No. 10-A (2020)- foi postergar o prazo para a realização das assembleias gerais “das sociedades comerciais, das associações ou das cooperativas que devam ter lugar por imposição legal ou estatutária”. Assim, no caso das cooperativas, o que o dispositivo legal excepcional permitiu foi inicialmente relativizar a necessidade do Código Cooperativo de realizar as assembleias gerais ordinárias até o dia 31 de março, permitindo então a sua realização até o dia 30 de junho de 2020.
Dias depois, com a promulgação da Lei No. 1-A (2020), o artigo 5o. (1) estabeleceu expressamente que as reuniões em órgãos colegiais, como são as assembleias gerais das cooperativas, poderia considerar “[a] participação por meios telemáticos, designadamente vídeo ou teleconferência de membros de órgãos colegiais de entidades públicas ou privadas nas respetivas reuniões”, a qual além de considerar o respeito ao quórum e deliberações já estabelecidos, deveria “ficar registrado na respectiva ata a forma de participação”.
Conforme destacado por Deolinda Meira (2021, p. 503-506), o que as autorizações legais apresentadas trouxeram para as cooperativas foi a possibilidade de adotar um caminho alternativo à impossibilidade dos encontros presenciais, muito embora a utilização de meios telemáticos para a realização de assembleias gerais, não utilizados até a pandemia, não seja uma novidade no sistema jurídico português, inclusive para as cooperativas. Isso porque, acrescenta Deolinda Meira, não obstante a possibilidade das assembleias gerais telemáticas não estar expressamente prevista no Código Cooperativo português (CCoop), a aplicação subsidiária do Código das Sociedades Comerciais (CSC) às cooperativas5 remete à possibilidade, prevista no artigo 384. (9) do CSC, dos cooperados participarem por meio eletrônico para o exercício do seu voto, desde que garantida a autenticidade da sua manifestação (Deolinda Meira, 2021, p. 506).
Além disso, Paulo de Tarso Domingues (2020, p. 296) acrescenta que o mesmo CSC, em seu artigo 377 (6, b), “consagra, hoje, para as AG, a possibilidade de realização de assembleias pelo modelo tradicional (a AG presencial num local determinado), bem como a possibilidade de, em alternativa, a AG ser realizada com recurso a meios telemáticos.” Não obstante pontuais críticas quando à generalidade da Lei No. 1-A/2020, o referido autor reconhece que o seu artigo 5o. (1) trouxe maior amplitude à possibilidade de assembleias gerais telemáticas, fato que permitiu a redescoberta sobre a utilização das tecnologias da informação e comunicação (TIC’s) para suas realizações. E o termo redescoberta é utilizado por Paulo de Tarso Domingues (2020, p. 276) porque “apesar de já se encontrar consagrado e em vigor desde 2006, manteve-se, na nossa práxis societária, quase que completamente na penumbra.”
O que se observa, na prática, é que apesar de haver previsão legal subsidiária do Código das Sociedades Comerciais ao Código Cooperativo português para permitir a realização de assembleias gerais virtuais, o seu desuso no âmbito das cooperativas não permitiu uma rápida transformação digital das assembleias gerais durante os primeiros meses da pandemia. Demonstração disso é que, por meio do Decreto-Lei No. 24-A (2020), o artigo 18 do Decreto-Lei No. 10-A (2020) foi alterado para mais uma vez prorrogar o prazo de realização das assembleias gerais de cooperativas ou associações com mais de 100 cooperados, agora para o dia 30 de setembro de 2020.
Convém destacar que, por oportuno, em decorrência da persistência da pandemia ainda em 2021, por meio do Decreto-Lei No. 22-A (2021), foram estabelecidas as mesmas regras excepcionais de prorrogação dos prazos de realização das assembleias gerais nas sociedades cooperativas ocorridas em 2020. De acordo com artigo 18, mesmo diante da “possibilidade de realização de assembleias gerais através de meios telemáticos nos termos legais”, as assembleias gerais das cooperativas poderiam ser realizadas até 30 de junho de 2021, sendo para as cooperativas com mais de 100 cooperados, “as assembleias gerais que devam ter lugar por imposição estatutária podem ser realizadas até 30 de setembro de 2021.”
Como refletido por Paulo de Tarso Domingues (2020, p. 297), mesmo com a generosidade do Código das Sociedades Comerciais quanto à utilização das TIC’s para a realização de assembleias gerais puramente virtuais e ainda que diversas plataformas permitam a participação dos sócios em reuniões, a realidade desse tipo de assembleia será mais fácil para sociedades com menor estrutura. Para além dessa percepção, Deolinda Meira (2021, p. 504) destaca que a relevância das assembleias gerais para o exercício da gestão democrática nas cooperativas demonstra que a sua implementação de forma a garantir a participação virtual ainda encontra possíveis dificuldades que devem ser mitigadas, especialmente por ações educativas e formativas voltadas a treinar os associados para essa participação virtual. Quer dizer, a educação e formação não são apenas princípios cooperativos para a ACI, como o é a gestão democrática, mas são reconhecidos como tais, também, pelo artigo 3o. do Código Cooperativo, portanto de caráter vinculante às assembleias gerais virtuais de hoje no âmbito das sociedades cooperativas.
Deolinda Meira (2020, 71-94), esclarece que em Portugal, este princípio cooperativo projeta-se no estatuto jurídico dos cooperadores, mediante o reconhecimento de um direito de participar nas atividades de educação e formação cooperativas (al. f do No. 1 do artigo 21 do Código Cooperativo), com a consequente obrigação de as cooperativas organizarem tais atividades de educação, formação e informação, devendo para o efeito constituir obrigatoriamente uma reserva, a qual se apresenta com caráter absolutamente irrepartível, constituindo uma das maiores especificidades do regime jurídico das cooperativas portuguesas (art. 97 do Código Cooperativo).
3. A pandemia como justificativa para inclusão das assembleias gerais virtuais na Lei Geral das Sociedades Cooperativas brasileiras
No caso brasileiro, com a Covid-19 caracterizada como pandemia, tratou a Presidência da República de publicar Medidas Provisórias voltadas a regular uma série de demandas da sociedade. Entre elas, foi editada, no dia 30 de março de 2020, a Medida Provisória No. 931 (2020), destinada a alterar dispositivos do Código Civil relativos à sociedade limitada (Lei No. 10.406/2002), da Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404/1976) e a Lei das Sociedades Cooperativas (Lei No. 5.764/1971). Na exposição dos motivos apresentada pelo Ministério da Economia, a necessidade de isolamento social foi o fator determinante para a medida (Ricardo Lupion, 2020, p. 310).
Assim como em Portugal, as primeiras medidas excepcionais determinadas pela Medida Provisória No. 931 (2020), foram no sentido de garantir às sociedades anônimas (artigo 1o.), às sociedades limitadas (artigo 4o.) e às sociedades cooperativas (artigo 5o.) a prorrogação dos prazos para a realização das suas respectivas assembleias gerais de sócios, ficando estabelecido de forma uníssona a possibilidade de prorrogação do prazo para os primeiros sete meses após, contado do término do seu exercício social. Insta destacar, porém, que com a conversão da referida Medida Provisória No. 931 na Lei No. 14.030 (2020), o prazo excepcionalmente permitido de sete meses foi ampliado, no caso específico das sociedades cooperativas, para nove meses, podendo as cooperativas brasileiras, então, realizar as suas assembleias gerais até o dia 30 de setembro de 2020.
O que chamou a atenção, porém, foi que apesar da autorização excepcional de realização das assembleias nos primeiros nove meses de 2020, tanto a Medida Provisória No. 931 (2020) quanto a Lei No. 14.030 (2020), em seu artigo 8o., estabeleceram o acréscimo do artigo 43-A à Lei No. 5.764/1971, para autorizar o cooperado, para além do período de pandemia, a “participar e votar a distância em reunião ou assembleia, do regulamento do órgão competente do Poder Executivo federal.”
Embora sem maiores reflexões sobre as capacidades tecnológicas para a realização de assembleias gerais virtuais em tão curto espaço de tempo, como pondera Oksandro Gonçalves (2020, p. 219), assim como sem bem considerar os efeitos da participação frente a baixa interação à distância, como explorado por Ricardo Lupion (2020, p. 327), o que se teve de concreto foi uma rápida regulação das assembleias gerais à distância pelo Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI).
Por meio da Instrução Normativa DREI No. 79 (2020), logo incorporada pela Instrução Normativa DREI No. 81 (2020), o referido departamento regulamentou a participação e a votação a distância em reuniões e assembleias autorizadas pela Medida Provisória No. 931 (2020), dispondo que elas poderiam ser semipresenciais (art. 1o., §1o., inciso I); quer dizer, com a possibilidade de participação dos cooperados tanto presencialmente como à distância, ou; digitais (art. 1o., §1o., inciso II), assim consideradas quando realizadas sem a existência de um local físico. Além disso, aos mesmos associados restou garantida a possibilidade de registro de votos de forma antecipada por meio de boletins de voto (art. 1o., §2o.); para tanto, ressaltou, a iniciativa deveria garantir para todos os associados o exercício dos direitos sociais postos.
Como se percebe, então, a pandemia não apenas relativizou os prazos para a realização das assembleias gerais como inaugurou também para o Direito Cooperativo brasileiro a perene possibilidade do seu processo de virtualização, antecipando abruptamente um processo de digitalização dos eventos assembleares. Entretanto, tal processo de digitalização não representa a necessária transformação digital a ser enfrentada pelas assembleias gerais. Estas precisam ser pensadas e estruturadas não a partir da lógica de simples reprodução digital das já teatralizadas assembleias gerais presenciais, mas sim como um novo paradigma de participação e interação entre os sócios no bojo da sociedade informacional de hoje.
IV. Motivos para soluções distintas em um mesmo problema: Um passo adiante
Não obstante a abordagem funcionalista, de cunho positivista, na comparação entre as legislações portuguesa e brasileira quanto à realização das assembleias gerais virtuais em cooperativas, nos termos adrede propostos, há que se admitir as reflexões de Pierre Legrand (2018, p. 71) no sentido de que para os positivistas, “o Direito ‘posto’ é ao mesmo tempo o ponto de partida e o ponto de chegada da pesquisa comparativa, ao passo que para o culturalista, o Direito ‘posto’ nunca pode significar algo além de um ponto de partida e certamente não será um ponto de chegada.” Em assim sendo, a dogmática positivista extrai a norma jurídica do próprio texto da lei, literalmente; por sua vez, a culturalista extrai a mesma norma do contexto da lei.
Noutros termos, esclarece Pierre Legrand (2018, p. 72), admitir uma postura culturalista significa perseguir o que o direito “posto” omite, afinal, para “o culturalista, cada texto contém vestígios culturais que cabe a ele revelar, trazer à luz, elucidar, a fim de situá-lo em sua autenticidade (...). Assim, esse texto legislativo contém vestígios políticos, sociais, econômicos, históricos e outros” (Pierre Legrand, 2018, p. 72), podendo as comparações tornarem-se expressivas tão somente se compreendidas em um contexto que considere os pontos de vista do qual esses textos legais emanam (Pierre Legrand, 2014).
Este pensamento em muito se alinha a importantes doutrinadores de Direito Comparado, como James Gordley (2006, p. 1074 y 1075), que, ao comparar a proteção da privacidade na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, alertou que embora na maioria das vezes os problemas de análise sejam os mesmos, para o comparatista as respostas não serão necessariamente as mesmas. Isso indica, na visão do autor, que a análise da lei estrangeira é, acima de tudo, uma forma de aprendizagem sobre as diferentes culturas jurídicas que, por vezes, sequer permitem uma comparação, como ocorre entre a common law estadunidense e o direito civil francês e alemão.
Sobre tema semelhante e neste mesmo sentido de uma análise culturalista, James Whitman (2004, p. 1219 y 1220) considerou que analisar comparativamente as leis de privacidade não pode criar um produto lógico e de realidades compartilhadas em todas as sociedades, pois, afinal, tais fenômenos são distintamente reconhecidos a partir de ideais e ansiedades locais que não permitem um verdadeiro universal, mas sim perscrutar quais valores fundamentais estão em jogo.
É, portanto, a partir da provocação de Pierre Legrand (2018, p. 74) que o presente artigo busca dar um passo adiante, quer dizer, identificar e compreender as razões que levaram Portugal e Brasil a adotarem as medidas analisadas, ou como indica o autor, superar o explícito, descobrir aquilo que não está escrito no texto. Para isso, desvelar as características do movimento cooperativo de cada país e identificar possíveis nuances políticas e da cultura cooperativista que envolveram as demandas pelas leis promulgadas e as soluções por estas apresentadas, poderão compor um quadro de aprendizado e compreensão das distintas visões legais que cada cultura jurídica dá às suas cooperativas.
Em assim sendo, o primeiro aspecto a ser enfrentado é compreender o desenvolvimento legal do movimento cooperativo em Portugal e no Brasil, questão estruturante do Direito Cooperativo em ambos os países. A importância da comparação entre essas distintas histórias e a culturas jurídico-cooperativas está no fato de que embora ambos os países expressamente reconheçam e estimulem o cooperativismo em seus textos constitucionais, suas origens possuem distintas raízes que interferem diretamente na forma como hoje as entidades de representação do movimento cooperativo em Portugal e no Brasil atuam junto ao Estado na proposição das suas demandas - e no caso das legislações sobre as assembleias virtuais isso não foi diferente, conforme será mostrado a seguir.
Rui Namorado (2013, p. 635 y 636) pontua que a primeira lei cooperativa portuguesa tem origem em 1867, a qual surgiu não como uma iniciativa isolada, mas sim a partir da difusão de uma ideia de liberdade associativa ocorrida em Portugal após a intensificação de movimentos operários organizados em associações na década de 1850 (Rui Namorado, 2000, p. 37).
Somado a isso, a discussão do seu texto expressamente reconhecia o desenvolvimento das cooperativas na Europa, reportando-se o seu projeto à The Industrial and Provident Societies Act,6 de 1852, e as leis prussiana e francesa (Rui Namorado, 2000, p. 41). Assim, embora o autor reconheça que a lei de 1867 não tenha surgido pela sedimentação jurídica de uma prática anterior, mas sim consequência de iniciativas políticas -embora Portugal já tivesse iniciativas cooperativas-, o fato é que o seu ânimo assumiu o “enraizamento nos grandes problemas sociais da época, a confiança na força da associação e o vigor com que se exalta o princípio cooperativo emergente” (Rui Namorado, 2000, p. 42).
Na mesma linha, Sérvulo Correia (1970, p. 60) destaca que, ao contrário do que aconteceu na Grã-Bretanha, em que a cooperação foi uma “criação popular espontânea, não de todo alheia à influência do pensamento de alguns intelectuais”, na experiência portuguesa “a cooperação recebeu (…) o seu primeiro impulso dos meios possidentes e cultos.” De fato, mais do que o resultado de uma aspiração social que reclamasse uma lei dedicada ao enquadramento das cooperativas, a Lei de 2 de julho de 1867 radica na vontade política de dotar a ordem jurídica portuguesa de um instrumento de cooperação à disposição das “classes laboriosas” que pudesse, por um lado, minorar as graves condições de vida por elas experimentadas e, por outro, contribuísse para pacificar ou minorar as reivindicações operárias. 7
Em 1888, as cooperativas passam a ser regidas pelo Código Comercial de Veiga Beirão, que trata as sociedades cooperativas como sociedades de direito especial e retira-lhes a autonomia formal, integrando-as no Livro II, Título II, o capítulo V do Código, intitulado “Disposições especiais às sociedades cooperativas” (arts. 207 a 233.) (Deolinda Meira e Maria Elisabete Ramos, 2017).
Segundo Rui Namorado (2000, p. 46), esta incorporação das cooperativas no Código Comercial português de 1888 acontece porque embora a difusão de cooperativas na década de 1870 tivesse provocado um “surto de desenvolvimento cooperativo” ante a criação do Partido Socialista e a presença em Portugal da Associação Internacional de Trabalhadores, por exemplo, fortes entre 1867 e 1888, o desenvolvimento de uma pequena burguesia autóctone fez com que as cooperativas fossem entendidas para além do associativismo operário.8 Resultado disso foi uma regulação que não negou os preceitos cooperativos de 1867, mas os tornaram mais burocráticos.
Em 1935, Raul Barbosa Tamagnini (1935, p. 6 e 21) manifesta a aspiração de que seja publicado em Portugal um Código Cooperativo. Mais tarde, António Sérgio (1956) manifesta a preocupação pela necessidade de ser em Portugal publicado o Código Cooperativo, “com cláusulas definidoras dos direitos e deveres das cooperativas e dos auxílios que lhes prestaria o Estado”.
Tal aspiração só aconteceria após a Revolução de abril de 1974, mais especificamente em 1980, com o Decreto-Lei No. 454/80, de 9 de outubro, que aprovou o Código Cooperativo. Iniciou-se então uma nova etapa legislativa em que o regime das cooperativas foi formalmente autonomizado da disciplina jurídico-societária. As cooperativas deixam de ser consideradas sociedades de direito especial. Esta autonomia formal mantém-se no Código Cooperativo de 1996 e no Código Cooperativo (CCoop) em vigor, aprovado pela Lei No. 119 (2015).
Um outro marco relevantíssimo na história do cooperativismo português e que muito contribuiu para a consolidação da identidade cooperativa em Portugal tem a ver com o acolhimento jurídico-constitucional das cooperativas. Este acolhimento aconteceu desde logo na versão de 1976 da “Constituição da República Portuguesa” (doravante CRP), consolidando-se nas revisões constitucionais de 1989 e de 1997. Assim, em Portugal, aprofundou Rui Namorado (2005, p. 81), as cooperativas são objeto de um tratamento jurídico autônomo por parte da CRP, que as protege através de um conjunto de princípios, como o princípio da coexistência dos três setores (público, privado e cooperativo e social), o princípio da liberdade de iniciativa cooperativa, o princípio da proteção do setor cooperativo e social, o princípio da obrigação do Estado estimular e apoiar a criação de cooperativas, o princípio da conformidade com os princípios cooperativos da ACI.
O Princípio da coexistência dos três setores, consagrado no artigo 82., é considerado um dos preceitos-chave da “constituição econômica” configurada na CRP. Esta norma garante a coexistência de três setores económicos -o setor público, o setor privado, e o setor cooperativo e social-, no mesmo plano e com a mesma dignidade constitucional, enquanto estruturas necessárias de um modelo económico consagrado constitucionalmente e que podemos caracterizar como sendo de uma economia social de mercado. Nos termos do no. 4 do artigo 82. da CRP, o setor cooperativo e social reparte-se por quatro subsetores, que correspondem a duas vertentes: a cooperativa (que engloba o subsetor cooperativo) e a social (que abrange os subsetores autogestionário, o comunitário e o solidário).
O Princípio da Proteção do setor cooperativo e social fundamenta quer as discriminações positivas deste setor relativamente aos restantes quer a previsão de medidas materiais que permitam o seu desenvolvimento. Na decorrência deste princípio, o artigo 85. afirma, no seu No. 1, que “o Estado estimula e apoia a criação e a atividade de cooperativas” e, no seu No. 2, garante que “a lei definirá os benefícios fiscais e financeiros das cooperativas, bem como condições mais favoráveis à obtenção de crédito e auxílio técnico”. O “estímulo” decorrerá, sobretudo, de medidas de natureza legislativa que suscitem o interesse pelo exercício da atividade cooperativa, enquanto o “apoio” decorrerá, essencialmente, de medidas de natureza administrativa que visem, em concreto, facilitar esse mesmo exercício (Rui Namorado, 2010).
Por sua vez, o artigo 61., No. 2, da CRP dispõe que “a todos é reconhecido o direito à livre constituição de cooperativas, desde que observados os princípios cooperativos”. Na mesma linha, o art. 82., No. 4, al. a), da CRP consagra que o subsetor cooperativo “abrange os meios de produção possuídos e geridos por cooperativas, em obediência aos princípios cooperativos”.
A CRP não identifica os princípios cooperativos, sendo feita uma remissão expressa para os princípios definidos pela ACI e que estão descritos no artigo 3o. do Código Cooperativo português: adesão voluntária e livre; gestão democrática pelos membros; participação económica dos membros; autonomia e independência; educação, formação e informação; intercooperação; e interesse pela comunidade.
Segundo Rui Namorado (1999, p. 20) esta posição adotada na CRP pôs à mercê das decisões da ACI a conformação do setor cooperativo português, pelo que quando a ACI alterar os princípios será a nova opção que passará a vigorar na ordem jurídica portuguesa. Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (2007, p. 793) “As ‘cooperativas’ que não respeitem estes princípios cooperativos não são verdadeiras cooperativas no sentido constitucional, não podendo gozar, portanto, das respetivas garantias”.
No plano da legislação ordinária, o Código Cooperativo (2015) associa a noção de cooperativa (art. 2o. do CCoop) à necessária obediência aos princípios cooperativos. Assim, nos termos do No. 1 do art. 2o. do Código Cooperativo, serão cooperativas as “pessoas coletivas autónomas, de livre constituição, de capital e composição variáveis, que, através da cooperação e entreajuda dos seus membros, com obediência aos princípios cooperativos, visam, sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles”.
Outro ponto que merece destaque na evolução histórica e cultural do cooperativismo português é a harmoniosa compreensão das cooperativas como empreendimento social. Com as revisões constitucionais de 1989 e 1997, somado ao desenvolvimento e reconhecimento da economia social no ambiente comum Europeu, o Governo português criou, com o Decreto-Lei No. 282/2009, a Cooperativa António Sérgio para a Economia Social (CASES), “cooperativa de interesse público que congrega o Estado e diversas organizações de economia social.”
Neste sentido, o regime jurídico das cooperativas de interesse público (ou régies cooperativas) consta de um diploma próprio, o Decreto-Lei No. 31 /84, de 21 de janeiro.9 O No. 1 do artigo 1o. deste diploma define as cooperativas de interesse público como pessoas coletivas, nas quais, para a prossecução dos seus fins, se associam o Estado ou outras pessoas coletivas de direito público e cooperativas ou utentes dos bens e serviços produzidos ou pessoas coletivas de direito privado, sem fins lucrativos.
No caso de Portugal, a CASES assumiu-se como uma peça central de um sistema de relações entre o Estado e as cooperativas, desenvolvendo importantes funções de supervisão do setor cooperativo em Portugal. Assim, tendo em conta o disposto nos artigos 115. a 118. do Código Cooperativo, compete à CASES fiscalizar, nos termos da lei, a utilização da forma cooperativa, com respeito pelos princípios cooperativos, e normas relativas à sua constituição e funcionamento. Para o efeito, as cooperativas estão obrigadas a remeter à CASES cópia dos atos de constituição e de alteração dos estatutos, dos relatórios anuais de gestão, dos documentos anuais de prestação de contas e do balanço social.
O apoio técnico e financeiro às cooperativas por parte das entidades públicas, decorrente do princípio da discriminação positiva consagrado constitucionalmente, está dependente de uma credencial, comprovativa da legal constituição e regular funcionamento das cooperativas, emitida pela CASES. No exercício das suas competências de supervisão do setor cooperativo, a CASES deve requerer, através do Ministério Público, junto do tribunal competente, a dissolução das cooperativas que não respeitem, no seu funcionamento, os princípios cooperativos, que utilizem sistematicamente meios ilícitos para a prossecução do seu objeto e que recorram à forma de cooperativa para alcançar indevidamente benefícios fiscais (Deolinda Meira, 2016). No entanto, estes mecanismos de supervisão não poderão pôr em causa a autonomia das cooperativas face ao Estado. Do princípio cooperativo da autonomia e independência decorre que as relações das cooperativas com o Estado não podem conduzir à sua instrumentalização. Em suma, em Portugal o Estado deve estimular o setor cooperativo e, nessa decorrência, apoiá-lo e supervisioná-lo, mas não o poderá tutelar (Deolinda Meira e Maria Elisabete Ramos, 2019).
Como se pode concluir, portanto, o Direito Cooperativo português é marcado por um histórico reconhecimento associativo da sua atividade, a qual culmina com o reconhecimento constitucional do setor cooperativo -em harmonia com os setores social e solidário- pelo Estado. Além disso, sua vinculação a um Código Cooperativo que vige com pontuais mudanças desde 1980, faz com que a sua natureza jurídica própria seja histórica e reconhecidamente distinta das demais sociedades comerciais, admitindo a aplicação subsidiária destas em tópicos específicos, como no caso das assembleias virtuais por meios telemáticos, objeto deste estudo.
Talvez por essas razões foi que com a declaração da Covid-19 como Pandemia pela OMS, já no Decreto-Lei No. 10-A (publicado dois dias depois), o seu artigo 18 previu, como visto, a imediata prorrogação para realização das assembleias gerais para o dia 30 de junho daquele ano. Além disso, a já prevista possibilidade de realização de assembleias gerais por meios telemáticos pela Lei das Sociedades Comerciais, aplicáveis subsidiariamente às cooperativas, não trouxe dificuldades legais já para pensar a realização das assembleias virtuais.
Demonstração disso foi que no mesmo dia 13 de março de 2020, a CASES (2020) limitou-se a expedir um comunicado às cooperativas sobre o referido Decreto-Lei, dando imediata ênfase à possibilidade de realização das assembleias gerais virtuais “desde que a cooperativa assegure a autenticidade das declarações e a segurança das comunicações e proceda ao registo do seu conteúdo e dos respetivos intervenientes.” Ademais, alertou, a segurança e a confidencialidade do voto, esta quando necessária, eram condição para realização dessas assembleias por meios telemáticos, assegurando o princípio cooperativo da gestão democrática.
Esta mesma aparente tranquilidade de Portugal -tanto em relação à resposta legal sobre a realização das assembleias gerais na pandemia quanto pela postura meramente informativa do seu órgão de representação cooperativo-, não foi a realidade enfrentada pelo movimento e pelo Direito Cooperativo brasileiros. Como em tantas outras demandas do setor, o que ocorreu no Brasil foi uma batalha política do seu movimento cooperativo organizado para permitir a realização das assembleias gerais virtuais ainda em 2020.
Isso porque, como ora tratado, a primeira medida a dispor sobre a prorrogação das assembleias gerais de 2020, foi editada tão somente no dia 31 de março daquele ano, por meio da Medida Provisória No. 931. Todavia, entre o reconhecimento da Covid-19 como pandemia mundial e as medidas tomadas pela Presidência da República, o movimento cooperativo brasileiro foi tomado por uma absoluta insegurança jurídica, mitigada pelas iniciativas do seu órgão de representação no Brasil, a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB).
Por meio de constantes audiências com órgãos públicos do país e comunicações com o setor cooperativo, tratou a OCB de organizar as demandas das cooperativas e comunicar à sua comunidade o andamento de suas medidas políticas, afinal, pelos termos do artigo 105 da Lei No. 5.764 (1971), cabe à entidade a representação e a organização das cooperativas brasileiras, sendo reconhecida como “órgão técnico-consultivo do Governo.”
Dentre as medidas tomadas em relação às assembleias gerais, com o apoio da Frente Parlamentar do Cooperativismo (FRENCOOP),10 a OCB (2020) “sugeriu a adoção de medida normativa para postergar os prazos de realização das AGOs, bem como o envio de informações originadas nestes atos, evitando possíveis sanções por eventual descumprimento do prazo.” E como mostra o mesmo documento, no dia 30 de março de 2020, “o pleito da OCB foi acatado, através da edição de Medida Provisória 931/2020”, ou seja, a norma que autorizou tanto a prorrogação das assembleias gerais como a sua realização virtual, foi resultado da ação política da OCB, deputados federais e senadores junto à Presidência da República.
Insta acrescentar que essa mesma ação política se manteve ativa para a conversão da Medida Provisória na Lei No. 14.030/2020. Segundo reconheceu a própria OCB (2020a), quando da promulgação da lei, “[d]epois de forte atuação da OCB e da Frencoop no Congresso Nacional, a matéria foi votada e encaminhada para a sanção presidencial”, acrescentando que essa “forte atuação” foi fundamental para alterar junto ao deputado relator do projeto a ideia inicial de permitir as assembleias gerais virtuais apenas durante a pandemia. Disse a entidade (OCB, 2020b): “[a]pós reunião com a OCB, o deputado decidiu mudar seu relatório que, inicialmente, autorizava as assembleias virtuais apenas durante a pandemia. Agora, com a alteração na Lei 5.764/71 fica permitida a participação e votação virtual de forma permanente.”
Como se percebe, portanto, a possibilidade de realização das assembleias gerais virtuais de forma permanente no Brasil não decorreu de uma anterior reflexão do movimento cooperativo sobre a transformação digital vivida pela atual sociedade, mas foi resultado de uma efetiva ação institucional que compreendeu os desafios impostos pela pandemia para, de maneira eficaz, exercer uma ação política integrada no estrito interesse de suas representadas. Demonstração disso, diga-se, foi o fato da atuação política da OCB para a promulgação da Lei No. 14.030/2020, ficar restrita às sociedades cooperativas, não abrangendo outras organizações da economia social.11
Esta realidade vivida pela OCB para acrescer à Lei No. 5.764/1971, a permanente possibilidade de realização das assembleias virtuais, muito revela sobre a história e a cultura jurídica da evolução do Direito Cooperativo brasileiro em relação à evolução do cooperativismo em si. Isso porque embora a história legal das cooperativas brasileiras remonte ao século XIX, como em Portugal, sua evolução normativa demonstra uma recorrente dificuldade do Estado brasileiro em bem compreender os aspectos próprios das sociedades cooperativas. Prova disso, diz Adriano Campos Alves (2013, p. 272), é que até os dias atuais um dos entraves ao desenvolvimento do cooperativismo no Brasil é a falta de compreensão dos seus Governos sobre o propósito mutualístico de uma cooperativa, condição que limita o desenvolvimento legal do cooperativismo às iniciativas políticas organizadas do movimento cooperativo.
Observando especificamente seus aspectos históricos, a primeira iniciativa normativa relacionada a uma sociedade cooperativa no Brasil remonta de 1890. Criada por iniciativa do Marechal Deorodo da Fonseca, então presidente da República, o Decreto No. 796 (1890) não possuía qualquer vinculação ao surgimento das cooperativas Europeias, mas sim e tão somente autorizava a criação de uma sociedade cooperativa, sob a forma de sociedade anônima, destinada à prover aos sócios melhores artigos de uso militar ou civil pelos menores preços, além de permitir concessões de créditos a militares a juros módicos.
E como explicitam José Eduardo de Miranda e Leonardo Rafael de Souza (2019, p. 124), o Decreto No. 796/1890, tão somente inaugura o surgimento de legislações cooperativas que não compreendem a cooperativa como um fato social e solidário, formada essencialmente por pessoas. Foi assim que ocorreu com o Decreto No. 979/1903 e o Decreto No. 1.637/1907, os quais, respectivamente, compreenderam as cooperativas como vinculadas aos movimentos sindicais ou a definiram como sociedades anônimas, em nome coletivo ou em comandita, qualificações societárias também aplicáveis às cooperativas de crédito pelo Decreto No. 17.339/1926.
A compreensão das sociedades cooperativas como sociedades de pessoas, portanto distinta das sociedades de capital, respeitando a singularidade do voto e a distribuição proporcional dos resultados, vai ocorrer apenas 43 anos depois, com a promulgação do Decreto No. 22.239/1932, o qual também pela primeira vez se aproxima dos preceitos cooperativos da ACI (José Eduardo de Miranda e Leonardo Rafael de Souza, 2019, p. 125). Entretanto, já na década de 1930, a crítica de Luis Amaral (1938, p. 107) é contundente ao afirmar que o desenvolvimento do cooperativismo brasileiro incorre “sempre com o mesmo erro: dando favores pecuniários para o fomento do Cooperativismo, em vez de procurar esse fomento por meio da boa assistência.” Consequência disso, do ponto de vista legal, acrescenta Luis Amaral (1938, p. 112), é que “o Cooperativismo no Brasil não póde ser fomentado a golpes de leis. É de mister promover-se a educação cooperativista, mostrar como é facil a pratica do systema, assistir directamente o povo.”
Em outros termos, o que a histórica crítica de Luis Amaral revela é que o desenvolvimento legal do cooperativismo brasileiro do início do século XX é mais resultado das ações políticas e assistencialistas do Estado do que fruto do agir cooperativo. Além disso, importante notar que as mais importantes legislações específicas destinadas às cooperativas desde 1932, até a redemocratização consolidada pela Constituição Federal de 1988, ocorreram vinculadas a momentos políticos autoritários, os quais apesar de manterem os aspectos particulares próprios das sociedades cooperativas -fruto dos esforços de alguns doutrinadores e idealistas como Walmor Franke e Waldírio Bulgarelli-, revelaram um acentuado controle do Estado para o cumprimento de políticas públicas para além do real interesse dos sócios (José Eduardo de Miranda e Leonardo Rafael de Souza, 2019, p. 125 y 126).
Exemplo dessa realidade jurídico-cultural do cooperativismo brasileiro é a própria Lei No. 5.764 (1971) que, não obstante ainda estar em vigência e por ser uma legislação doutrinariamente moderna, incorpora os preceitos fundamentais do movimento cooperativo - como ocorre, por exemplo, com a integral admissão dos então princípios cooperativos da ACI pelo seu artigo 4o. -, foi promulgada sob o regime da Ditadura Militar instalada em 1964, perpetuando-se “uma casuística forma de controle e fiscalização da ação coletiva historicamente praticada pelas sociedades cooperativas (José Eduardo de Miranda e Leonardo Rafael de Souza, 2019, p. 126).” Esta crítica, acrescente-se, não apenas foi objeto de ponderação quando da sua promulgação (Carlos Marques Pinho, 1973, p. 124), como também tem origem nas históricas divergências doutrinárias do cooperativismo e da economia social no Brasil (José Antônio Peres Gediel e Lawrence Estivalet de Mello, 2016, p. 201).
Não obstante isso, foi apenas com o advento da Constituição Federal de 1988, quase cem anos depois da primeira legislação, que o cooperativismo finalmente passou a exercer sua atividade com liberdade e estímulo do Estado (artigo 174, §2o.), o qual agora consolida as cooperativas como modelo de negócio capaz de equalizar as grandes distorções socioeconômicas do país (José Eduardo de Miranda e Leonardo Rafael de Souza, 2019, p. 127). Contudo, o que estou enraizado na cultura jurídica do Direito Cooperativo e do próprio cooperativismo brasileiro foi a sua relação de interdependência com o Estado, traduzida na constante busca de reconhecimento legal de suas demandas. E com a busca de autorização para a realização das assembleias gerais virtual o caminho não foi diferente: agiu-se de modo eficaz à situação da Pandemia, contudo, de forma reativa e sem maiores reflexões sobre como será a transformação digital das assembleias a partir de agora.
V. Considerações finais
Embora os desafios impostos pela Pandemia de Covid-19 tenham sido contemporâneos e similares em todo o globo, especialmente diante das medidas de isolamento e distanciamento social indicados pela ciência e pela OMS, diversas posturas nacionais foram determinantes para os dessemelhantes índices de contaminações e mortes. No caso específico de Portugal e do Brasil, as diametralmente opostas condutas praticadas em cada país tiveram como consequência também soluções legais distintas em seus ordenamentos jurídicos, as quais influenciaram a conduta de cada sociedade e, aqui analisado, às cooperativas.
Em Portugal, os poderes constituídos admitiram um discurso uníssono de combate à pandemia, a partir das premissas científicas então existentes, as quais quase que imediatamente culminaram num plexo normativo que, entre outras respostas, garantiu às cooperativas a imediata prorrogação das suas assembleias gerais e ratificou a possibilidade da realização destas mesmas de forma virtual ante a aplicação subsidiária da Lei das Sociedades Comerciais ao Código Cooperativo. Já no Brasil, o que se viu foi um intenso conflito de discursos e normas que deram azo à judicialização das ações públicas de combate à Covid-19. Às cooperativas, organizadas em sua entidade de representação, restou a ação política, revelando mais uma vez uma cultura jurídico-cooperativa de interdependência com Estado, típico da história legal do Direito Cooperativo brasileiro.
Ao realizar este estudo comparativo desses ordenamentos jurídicos, desde uma visão funcionalista, ou seja, dos aspectos estritamente dogmático-positivos da norma em busca de compreensões comuns, percebeu-se que tanto em Portugal quanto no Brasil, a pandemia foi capaz de ratificar e produzir normas eficientes que hoje permitem a realização de assembleias gerais virtuais com aderência ao princípio cooperativo da gestão democrática. Entretanto, o que uma análise comparada, a partir da perspectiva culturalista de Pierre Legrand, demonstrou foi que não obstante a aparente harmonia de resultados, estes foram alcançados de formas muito distintas. Enquanto no Brasil mais uma vez a interdependência do movimento cooperativo com o Estado mostrou-se latente, em Portugal a consciência social quanto à importância do setor cooperativo e da economia social trouxeram uma resposta legal rápida, precisa e factual, aparentemente sem influência política do movimento cooperativo português.
Em conclusão, foi possível identificar que, de fato - e como indica Pierre Legrand -, a perseguição ao que os direitos postos em ambos os países “omitem” revelou vestígios jurídico-culturais próprios de cada movimento cooperativo, auxiliando, assim, a revelar o Direito Cooperativo de cada país em sua autenticidade.