Introdução - enquadramento histórico
A história da regulação de sexo3 no desporto moderno teve inicio nas competições femininas nos anos 1930s, visando travar as designadas “fraudes de género” -termo utilizado para designar atletas suspeitas de não serem “verdadeiramente” mulheres-. O facto de alguns atletas terem passado por processos de afirmação de sexo4, como Mark Weston (Inglaterra) e Zdenek Koubek (Tchecoslováquia), contribuiu para o International Olympic Committee (em diante COI na sigla em português) instituir a verificação de sexo no atletismo. Entre os anos 1930s e o início dos anos 2000s, mulheres que não correspondessem aos critérios médicos e culturais vigentes de definição sexual -que foram mudando ao longo do tempo- eram liminarmente afastadas da carreira desportiva.
Este paradigma sofreu alterações quando, em 2003, o COI emitiu as primeiras regras de inclusão de pessoas trans. Assim, ao invés de serem afastadas pelo facto de a sua identidade não corresponder ao sexo atribuído à nascença, as pessoas podiam competir caso se submetessem aos procedimentos médicos decretados. Foi numa declaração designada de Statement of the Stockholm consensus on sex reassignment in sports, que se estabeleceu que mulheres que tivessem passado por uma afirmação de sexo pós-puberdade teriam de realizar cirurgias externas (genitais) e internas (gónadas) acompanhadas de terapia de hormonal durante dois anos antes da competição (COI, 2003). Caso essa transição de sexo tivesse ocorrido antes da puberdade, não haveria constrangimentos. Foi preciso passar mais de uma década para o COI admitir, no Consenso que se seguiu, que a exigência de cirurgias era desnecessária e poderia violar leis nacionais e internacionais dos direitos humanos: “Requerer mudanças anatómicas cirúrgicas como pré-condição à participação é desnecessário à preservação da competição justa e pode ser inconsistente com o desenvolvimento da legislação e noções de diretos humanos” (COI, 2015, p. 2).
Neste Consenso de 2015, o COI manteve a ausência de regras para homens trans,5 retirou a obrigatoriedade de cirurgias em mulheres e instaurou um limite máximo de testosterona total no sangue de 10 nmol/ L. Em 2021, esta instituição voltou a alterar as regras, desta vez dando liberdade para que cada federação internacional emitisse as suas próprias normas (COI, 2021). Esta tomada de posição abriu um precedente para que um conjunto de federações estabelecessem as suas próprias regras trans-exclusionárias, como foi o exemplo da FINA (Federação Internacional de Natação) em 2022 (FINA, 2022), da World Athletics (Federação Internacional de Atletismo) em 2023 (WA, 2023) ou da Basketball Australia, que embora não tenha critérios de inclusão universalmente definidos, proibiu, em 2023, a jogadora Lexi Rodgers de competir (Basketball Australia, 2021).
Atualmente, várias organizações estabelecem um limite hormonal -sendo a tendência cada vez mais restritiva- e outras regulam de forma ainda mais circunscrita, com políticas exclusivistas que não permitem a inclusão de mulheres trans (com afirmação de sexo pós-puberdade) nas suas competições, como é o caso da Word Rugby de que trata este artigo.
Neste texto serão apresentadas as regras de admissão de pessoas trans no rugby que, sob o argumento de competição justa e proteção da integridade física de mulheres cisgénero, excluem mulheres com processos de afirmação de sexo pós-puberdade. Após uma análise crítica a essas mesmas regras, são oferecidos exemplos de resistência à transfobia institucional através de entrevistas semi-estruturadas a pessoas relacionadas com o fenómeno desportivo em Portugal. Foi elaborado um guião de entrevista individualizado para cada uma das pessoas entrevistadas de acordo com a sua história de vida e/ou experiência profissional. As entrevistas foram analisadas tematicamente e os dados relativos a duas das pessoas trans foram anonimizados, uma vez que se tratavam de entrevistas com enfoque na história de vida. As restantes entrevistas foram realizadas com pessoas especialistas e por esse motivo não se procedeu à anonimização.
As pessoas especialistas entrevistadas foram: Cláudia Pinheiro, coordenadora do Observatório Nacional da Violência contra Atletas e ex-atleta de ginástica; Carlos Nolasco, sociólogo especialista em sociologia do desporto; Sacha Montfort, ativista do movimento trans e intersexo, ex-atleta de roller derby e atualmente árbitro principal na mesma modalidade. Embora a conversa com Sacha tenha tido um enfoque duplo, enquanto ativista perito em questões trans e intersexo e enquanto pessoa trans não binária envolvida no universo desportivo, os dados relativos à sua história de vida não foram anonimizados após acordo com o próprio.
As regras de admissão de pessoas trans na World Rugby (2020)
Atualmente existem cinco variantes de rugby: tag rugby, touch rugby, quad rugby, rugby de praia e o rugby tradicional. A variante tradicional é a mais conhecida e única que se profissionalizou. A sua entidade máxima reguladora é a World Rugby (WR) federação responsável pela organização de competições internacionais. Depois de oito anos a exigir cirurgias de afirmação sexual a atletas trans, em 2019 a WR permitiu finalmente que mulheres trans competissem sem obrigatoriedade de cirurgia, estipulando um limite máximo de testosterona no sangue de 5nmol/L, e autorizou que homens trans competissem sem obrigatoriedade de qualquer alteração físiólogica. Em 2020, depois de considerar que a supressão de testosterona em mulheres trans não reduz suficientemente a massa muscular, potência e força, as regras foram radicalmente alteradas e as atletas proibidas de participar.
A WR teve um forte empenho na reescrita destas regras, com a organização de workshops e reuniões com representantes da comunidade trans, atletas, profissionais da medicina e pessoas peritas em investigação e rugby6. Com base nas evidências recolhidas, a WR emitiu novas regras em 2020: Transgender Guidelines (World Rugby, 2020b). A acompanhar estas linhas orientadoras, emitiu também uma secção de FAQs e um resumo sobre biologia e performance (World Rugby, 2020a; 2020c).
Este novo documento da WR assume-se como uma norma que visa “facilitar a participação de jogardores/as transgénero no rugby quando é possível fazê-lo de forma segura e justa” (World Rugby, 2020b, p. 1). Uma vez que o rugby se desdobra em diversas variantes e tendo em consideração que os processos trans são diversos, as regras aplicadas dependem da variante da modalidade e do momento em que o processo da afirmação de sexo ocorreu. Nas variantes sem contacto e de equipas mistas, podem participar pessoas trans e intersexo. Acresce que a WR está a considerar a hipótese de uma “categoria aberta” na qual qualquer atleta possa participar independentemente do género (World Rugby, 2020b, p. 6). A limitação deste tipo de competições é que, apesar de inclusivas, são atividades recreativas que não permitem a progressão interna visando a profissionalização.
Contrariamente às outras variantes, o rugby tradicional é alvo de uma política restrita. Apenas mulheres que realizaram afirmação de sexo antes da puberdade “e que não experienciaram os efeitos biológicos da testosterona durante a puberdade e adolescência” podem participar em competições internacionais mediante apresentação de documentos médicos, ao passo que mulheres cujo processo de afirmação de sexo tenha iniciado após puberdade não podem participar em competições internacionais femininas (World Rugby, 2020b, p. 8). A WR considera que tamanho, força e potência conferidos ao corpo durante a puberdade pela testosterona se prolongam por vários anos.
No que respeita à inclusão de homens trans, as políticas são radicalmente diferentes. A WR considera que, embora a terapia hormonal possa atenuar algumas diferenças biológicas, atletas trans não são tão pesados, tão fortes nem tão rápidos quanto os seus colegas cisgénero, o que implica um risco reduzido de lesão para estes últimos. O atleta trans deverá, contudo, ter conhecimento de que jogar contra homens cisgénero acarreta um risco acrescido de lesão para si e, por isso, deverá apresentar uma declaração médica que ateste a sua capacidade física para praticar rugby masculino. Caso faça reposição hormonal, o atleta deverá apresentar um TUE (therapeutic use exemption), que consiste numa autorização especial da Agência Mundial Anti-Doping (WADA) para uso externo de testosterona, uma vez que a toma desta substância é proibida.
No documento regulador também são listadas vantagens biológicas conferidas pela testosterona entre pessoas cisgénero, bem como as diferenças em termos de força, velocidade e força/ potência, que variam entre uma diferença mínima de 10% na velocidade e máxima de 60% na força quando comparados homens com mulheres (cisgénero). No que respeita a mulheres trans, apesar de após 12 meses de terapia hormonal de afirmação de género (THAG) haver uma diminuição de volume muscular, não se verifica uma diminuição de força que seja considerada pela WR como significativa (após três anos de THAG), pelo que o grupo considera estes resultados contrários à proposta de que a supressão de testosterona por doze meses seja suficiente para eliminar as vantagens listadas. Os estudos citados pela WR centramse na força de preensão palmar e força de coxa (extensão e flexão, com séries de 3 repetições e repetições máximas durante 5 segundos) de mulheres trans não atletas. A força palmar diminuiu 9% ao fim de dois anos de THAG (Van Caenegem et al., 2015), ao passo que a força da coxa manteve-se estável durante um ano de terapia, apesar de volume do músculo ter diminuído 5% (Wiik et al., 2020). Por seu turno, homens trans apresentam um aumento de massa muscular e de força mais relevante que as perdas das mulheres trans.
Embora estes estudos não tenham sido realizados com atletas, caso os trabalhos futuros corroborem os resultados apresentados pela WR, os quais indicam que a redução dos valores da testosterona depois da puberdade não exerce influência significativa na performance das mulheres trans, poderemos estar diante de uma nova e mais restrita reforma dos regulamentos. Em 2023, os limites máximos de testosterona, nas diversas federações, estão situados entre os 10nmol/L e os 2nmol/L, embora a maioria se situe entre os 5 e os 2,5nmol/L. Considerando a tendência observada, é possível que o limite de 2,5nmol/ L seja amplamente adotado.
Os regulamentos vindouros poderão afetar não apenas as diretrizes direcionadas para pessoas trans, mas também para mulheres com hiperandrogenia7, debido ao efeito de contágio que temos vindo a observar neste tipo de políticas, como já aconteceu com a FINA e a WA. No entanto, será importante que os novos estudos sejam realizados com pessoas que sejam atletas, com planos de treino similares e com medições não só de força, mas também de resistência. A par disso, é importante que, independentemente dos resultados, se garanta o direito à competição e à carreira desportiva. Em contrapartida, esta posição da WR poderá no futuro influenciar positivamente a Agência Mundial Anti-Doping a abrir um TUE de uso de testosterona para mulheres trans, já que até ao ano de escrita deste artigo esta permissão não existia. Mulheres que fizeram remoção de gónadas estão numa posição de desvantagem em relação a mulheres cisgénero no que respeita a produção de andrógenos, já que estas têm produção de testosterona nos ovários.
Apesar de os estudos que fundamentam a decisão da WR poderem levar a mais uma mudança de paradigma na regulamentação das competições, eles comportam muitas limitações. Uma dessas limitações é não trabalharem com atletas e a própria WR faz-se valer dessa limitação para reforçar a sua política, argumentando que se em mulheres trans não atletas não existe uma perda significativa de volume e força, então, em atletas essa perda seria ainda menor, uma vez que o treino atenuaria o declínio das variáveis, e que, mesmo que a perda fosse significativa, o valor basal seria sempre muito superior. Por outro lado, ao focar-se apenas em variáveis relacionadas com a força, a WR desconsidera a variável relacionada com a resistência e a capacidade aeróbica, que apresentam perdas consideráveis em mulheres após os 12 meses de THAG, conforme se pode verificar no estudo sobre força em pessoas trans (Wiik et al., 2020) que circulou nos workshops e que a WR optou por não mencionar nos documentos finais. Igualmente, não foi mencionado o aumento de massa gorda.
Como podemos observar num outro estudo (Roberts et al., 2020) que fundamenta a decisão da WR, ao fim de um ano de terapia hormonal, as 84 mulheres que participaram no dito estudo tiveram em média um aumento de 2,4kg de massa gorda e ao fim de dois anos esse ganho já tinha atingido os 3,7kg. No que concerne à massa magra, ao fim de um ano a perda foi de 2,4kg e ao fim de dois anos 4,2kg. Após decorridos 8 anos, estas mulheres apresentavam 20% menos massa magra e 30% mais massa gorda que a média dos homens cisgénero.
De acordo com a WR, uma das “vantagens biológicas” que homens cisgénero possuem no desempenho desportivo é a produção reduzida de massa gorda e a sua distribuição diferenciada pelo corpo. Esta vantagem é mencionada pela WR ao discutir as “grandes diferenças no desempenho desportivo entre homens e mulheres” (World Rugby, 2020b, pp. 8-9). No entanto, quando esta suposta vantagem tem potencial de passar a desvantagem em mulheres trans, a WR não se pronuncia a respeito. Apesar de o estudo supracitado não ter sido conduzido com mulheres atletas, estes dados -que não foram citados pela WR embora estivessem incluídos nos estudos apresentados- dão conta de uma evidente perda de potencialidade física após a terapia hormonal. Inclusive, este estudo foi um dos raros realizados com pessoas trans praticantes regulares de exercício físico (embora não atletas). A investigação referida teve lugar nos EUA com um grupo de 29 homens e 46 mulheres da Força Aérea. Para além dos resultados mencionados, este estudo de Roberts, Smalley e Ahrendt evidenciou perdas de performance significativas nas mulheres trans. Foi comparado o número de repetições máximas por minuto de alguns exercícios (flexões e abdominais) e o tempo de corrida para 1.5milha em mulheres e homens trans antes e depois da THAG, com os tempos de mulheres e homens cisgénero.
Observou-se que as mulheres trans, antes da terapia hormonal, faziam 31% mais flexões e 15% mais abdominais por minuto, e corriam as 1.5milha com tempo 21% mais rápido que as mulheres cisgénero. Ao fim de um ano de terapia hormonal, continuavam a realizar mais flexões e o tempo de corrida desceu para os 9% de vantagem, mas depois de dois anos o número de repetições no trabalho de flexões e abdominais igualou-se ao das mulheres cisgénero, e o tempo de corrida subiu para uma diferença de 12% (provavelmente fruto de uma maior intensidade de treino). Ao contrário da maioria dos estudos realizados, este concentrou-se num número de repetições máximas por minuto, acabando por reproduzir de forma mais eficiente, embora não perfeita, o que acontece na maioria dos desportos, em que os movimentos são repetidos ao longo do jogo ou demonstração, ou seja, em que a acompanhar a força, o fator resistência assume um importante papel no desempenho ao longo do tempo.
Por outro lado, os estudos que têm sido desenvolvidos tomam como fator de comparação a repetição única ou repetições que não trabalham para a resistência, centrando-se exclusivamente na força, estudos esses que seriam mais úteis para observar o grau de vantagem ou desvantagem em modalidades como o powerlifting e weighlifting. O desconhecimento acerca dos hábitos e metodologias de treino destas pessoas deixa por explicar questões como o facto de mulheres trans antes da terapia hormonal terem à partida já menos força que homens cisgénero, ou o facto de homens trans terem ao fim de dois anos ultrapassado os homens cisgénero nas repetições de abdominais, evidenciando a necessidade de estudos rigorosos de acompanhamento com atletas trans (Roberts et al., 2020).
Os dados biomecânicos que a WR apresenta são baseados em dados gerais. Por exemplo, é comparada a força ou o peso do “homem típico” cisgénero com a “mulher típica” cisgénero. Em desportos de equipa, as várias composições corporais são valorizadas e cada atleta tem uma função de acordo com a posição ocupada em campo. No rugby existem fundamentalmente duas posições: avançados e recuados. Atletas avançados têm a função de recuperar a bola e, portanto, força e estatura corporal assumem importância na disputa da bola em bloco. Recuados são atletas responsáveis por avançar no campo e marcar ponto.
Vários estudos de comparação antropométrica e fisiológica de atletas de rugby têm demonstrado que avançados são atletas mais pesados/as, mais altos/as e com maior percentagem de gordura, e recuados, atletas com maior capacidade aeróbia máxima. Por exemplo, um estudo com jogadores séniores de Portugal demonstrou que os avançados têm em média 96,02kg e os recuados 76,84kg, ou seja, uma média de 20kg de diferença de peso entre os jogadores (Da Cruz-Ferreira e Ribeiro, 2013). Por seu turno, respeitante a atletas de elite, a WR informa que o percentual mais baixo de mulheres mais pesadas (109kg) na posição de avançadas é menor que a média do jogador homem cisgénero na mesma posição (112kg), e na posição recuada o 1% de mulheres mais pesadas é menor que a média dos homens (89kg vs 92kg). Em contrapartida, a percentagem relativa a 1% dos homens mais leves aproxima-se da percentagem relativa a 10% das mulheres na posição avançada, enquanto na posição recuada sobe para 2% nos homens. Podemos observar que, mesmo quando se desmonta a hegemonia do grupo e se dá visibilidade a diferentes fatores, como o peso, dentro de uma mesma categoria, o ponto de comparação é sempre uma média, não havendo visibilidade de possíveis exceções à regra, como seria uma comparação entre o peso das atletas mais pesadas com os atletas mais leves.
Entrando no mesmo jogo de comparação de médias, se confrontarmos o peso das atletas de elite mais pesadas com os séniores mais pesados de Portugal, elas têm uma diferença positiva de 7kg em relação a eles e de quase 10kg em relação aos jogadores mais leves, deitando por terra a divisão impenetrável que a WR transparece. A acentuada diferenciação de valências em diferentes posições é algo que acontece muito por conta da profissionalização (Da Cruz-Ferreira e Ribeiro, 2013). A profissionalização exige que o treino ultrapasse o propósito recreativo; os fins competitivos assentam numa lógica financeira que premeia quem vence e, portanto, a aposta nas condições de treino dentro e fora de campo é bastante diferente, com consequências a nível corporal e de performance.
Portugal é um país onde o rugby feminino está “longe dos níveis exigíveis” (Federação Portuguesa De Rugby [FPR], 2020), portanto longe de se tornar profissional, com apenas 511 atletas em todo o país em 2019 (FPR, 2020). Com uma tradição de participação de mulheres tão curta, o fosso entre os sexos espera-se grande e só um investimento na formação das camadas jovens pode atenuá-lo. Neste sentido, o sociólogo Carlos Nolasco prevê que nos próximos anos se dê mais atenção ao tópico da sexualidade no desporto devido ao desafio que as mulheres estão a colocar ao fenómeno desportivo ao aproximaremse dos resultados dos homens. Nas palavras de Nolasco:
Há uma aproximação cada vez mais evidente do desempenho das mulheres ao desempenho dos homens. Nós verificamos isso, por exemplo, no atletismo, em que no final do século XX havia um fosso enorme naquilo que eram os tempos feitos por mulheres e tempos feitos por homens. Vinte anos passados, esses tempos estão, para algumas pessoas, assustadoramente a ser esbatidos. […] Em determinadas modalidades desportivas, as metodologias de treino que são aplicadas e seguidas pelas mulheres estão a fazer com que elas tenham desempenhos técnicos, táticos e físicos muito semelhantes ao dos homens. (Entrevista realizada a 20/10/2020)
No início dos Jogos Olímpicos modernos, as mulheres foram proibidas de competir e, durante os Jogos de 1928, algumas atletas desmaiaram no final da prova de 800 metros (Rubio e Simões, 1999). Naquela época, não se imaginava que as mulheres pudessem ter habilidades físicas igualmente meritórias às dos homens. De acordo com a apreciação de Nolasco, compreendemos que a convergência dos resultados obtidos por mulheres e homens torna-se “assustadora” porque desmonta uma estrutura ideológica social e médica que foi sustentada ao longo de muitos anos. Esta estrutura delegou às mulheres um estatuto de inferioridade física, cujos corpos serviam essencialmente à gestação e ao trabalho doméstico, e jamais ao exercício físico vigoroso. As competições femininas foram colocadas numa posição de inferioridade, com escassos incentivos por parte das federações e patrocínios, condições de treino precárias, salários baixos, pouca visibilidade ou visibilidade manipulada nos media8.
Por outras palavras, a aproximação aos resultados dos homens é “assustadora” porque desmonta a lógica binária patriarcal do sucesso e do fracasso (Halberstam, 2011). Segundo esta lógica, a definição de sucesso é masculina porque ao longo da história o poder tem sido exercido por homens cisgénero através de características como força física, competição e liderança. Esta definição exclui mulheres, sejam elas cisgénero, trans e/ou intersexo. Quando uma destas mulheres desafia as expectativas desportivas e tem uma performance excecional, dá-se uma subversão da lógica patriarcal do sucesso. O aumento gradual da participação das mulheres na atividade física planeada evidencia o seu potencial desportivo e aproxima-as do sucesso embora não lhes garanta libertação dos desafios adicionais que enfrentam por serem mulheres. É expectável que com treino e dieta adequados, as habilidades corporais se aprimorem. As melhorias na performance ao longo dos anos são visíveis tanto nas competições de mulheres como de homens, mas enquanto as vitórias deles são exaltadas, as delas são tornadas suspeitas. A crescente visibilidade do potencial desportivo das mulheres pode justificar o alastramento da regulação de corpos sexualmente não normativos a outras modalidades que temos vindo a observar.
Também Cláudia Pinheiro, ex-atleta de ginástica e co-fundadora do Observatório Nacional da Violência Contra Atletas (de Portugal), notou a evolução das mulheres não apenas em termos de performance, mas também de composição física:
Hoje em dia, quando eu olho para uma Simone Biles eu não sei se ela não será mais potente e mais forte que muitos homens que estão a competir […]. Basta olhar para o corpo delas e aquilo que elas fazem. Deram um salto brutal comparativamente há 20 anos. Ainda que neles se verifique uma evolução, acho que nelas há uma evolução muito maior. (Entrevista realizada a 28/10/2020)
O excerto de Cláudia Pinheiro vai de encontro à reflexão de Carlos Nolasco: a evolução dos corpos e das capacidades físicas das mulheres nas últimas décadas aproximou o desempenho desportivo dos dois reconhecidos sexos. É preciso admitir, contudo, que sendo a ginástica um desporto praticado a solo, sem contacto físico, não coloca em questão a segurança das atletas que se coloca no rugby. Por outro lado, o panorama desportivo avança para aquilo que designo por “democratização do músculo”, consequência do avançado grau de exigência dos treinos necessário para atingir um alto nível de competição. Quando esta democratização do músculo aliada à democratização da formação e profissionalização chegar ao rugby, talvez o fosso entre o rugby masculino e o feminino sofra um esbatimento, tal como aconteceu em desportos tradicionalmente praticados por mulheres, como a ginástica e o atletismo.
Resposta, resistência e conciliação com o desporto: estratégias emergentes
Alguns grupos desportivos permitem a inscrição na categoria relativa ao sexo com que as pessoas foram designadas à nascença, caso não sejam elegíveis para competir na categoria correspondente ao sexo com que se identificam. Este tipo de políticas não pode ser considerado inclusivo, uma vez que condiciona as pessoas a competirem numa prova que representa um sexo com o qual não se reconhecem. Recordese o conhecido caso do atleta de luta livre, Mack Beggs, que ao ser-lhe recusado o direito a lutar contra rapazes (regras da University Interscholastic League), foi obrigado a competir contra raparigas, tendo sido alvo de humilhação pública9.
Com uma política menos discriminatória opera o roller derby, com normas baseadas numa auto-definição de género (Women’s Flack Track Derby Association [WFTDA], s.f.). O percurso de Sacha Montfort, ativista nos movimentos trans e intersexo, enquanto homem trans praticante de roller derby em equipas constituídas maioritariamente por mulheres cisgénero, é revelador dos constrangimentos pelos quais pessoas trans são submetidas quando participam numa competição maioritariamente cisgenderizada:
Ganhámos com 200 pontos de diferença e eu fui eleito o melhor jogador porque eu tinha mais experiência que as outras. Já era o meu terceiro ano e tinha mais experiência que qualquer outra pessoa no campo nesse dia e também tinha uma excelente condição física na altura. Mas depois do jogo uma adversária foi falar comigo a perguntar-me coisas sobre cenas trans. Ela suspeitou de eu ser melhor porque eu era um homem e começou a perguntar-me se eu tomava testosterona e se isso era uma vantagem. E tive que lhe explicar que não, era natural, não tomava testosterona, não tinha nenhuma vantagem biológica e não era por isso que era melhor; era experiência. (Entrevista realizada a 17/09/2020)
Este excerto evidencia a suspeita colocada a priori em pessoas com identidades de género ou características sexuais não normativas. A biopolítica (Foucault, 1994) que controla os corpos de atletas é exercida pelos órgãos de poder que através dos dispositivos médicos inscrevem as suas regras e limites diretamente na matéria viva com bisturis e hormonas, que punem a extra-ordinariedade destes corpos não normativos para que, submissos, encaixem no sistema. Esta função de punir pertence às federações e aos tribunais, mas a função de vigiar é exercida por vários agentes desportivos, começando por atletas que tantas vezes suspeitam da performance daquele/as que sobressaem, como aconteceu também com Sacha.
Com situações semelhantes a acontecer quotidianamente, mesmo em níveis de competição inferiores, muitas pessoas trans abandonam a competição e passam a dedicar-se ao desporto recreativo, seja na rua, em ginásios ou em casa, quase sempre a título individual. Sacha confirmou que não conhece pessoas trans que pratiquem desportos de equipa:
Todas as pessoas trans que conheço e que fazem desporto, e muitas não fazem desporto porque não estão confortáveis com o próprio corpo, mas aquelas que fazem desporto fazem quase todas individualmente, ou vão num ginásio. Ninguém está num desporto de equipa porque acho que ninguém se sente seguro. Conheço homens trans que organizam encontros para jogar futebol entre si. Há muito receio de entrar numa equipa cheia de pessoas cis. (Entrevista realizada a 17/09/2020)
A discriminação transfóbica quotidiana somada à transfobia institucionalizada com o decreto de regras de admissão que as impede de praticar desporto na categoria com que se identificam, ou a existência de regras obsoletas que exigem alterações anatómicas não desejadas, leva as pessoas transgénero a desviarem-se do desporto de competição.
O caso apresentado de seguida relata a vulnerabilidade por que passam adolescentes durante fase de afirmação de sexo. Rui10 é um jovem adolescente trans ex praticante de boxe que, na ausência de regras por parte da sua federação, acabou por abandonar a prática desportiva quando iniciou a afirmação social de sexo. Conforme explica a sua mãe:
Como ele tinha de concorrer com as meninas, houve ali alguns torneios um bocadinho difíceis porque ele tinha de ir... Era um rapaz que ia concorrer com as meninas e isso deixava-o sempre desconfortável. Até que ele a certa altura, mas já mais tarde, deixou de querer competir. E deixou de querer competir quando se assumiu como Rui, porque não queria ir aos torneios e ser chamado Ana. Entretanto, iniciando alguma terapia hormonal, ele próprio não queria estar a competir com raparigas […]. A [competição] dos rapazes ainda não podia, ainda não tinham essa abertura para que ele pudesse concorrer na categoria dos rapazes. (Entrevista realizada a 14/11/2016)
Rui competiu sob o nome de Ana nas provas femininas durante algum tempo antes da afirmação legal de sexo, mas o desconforto que isso lhe causava levou a que colocasse em pausa o después desporto. Os entraves burocráticos para que pudesse competir na categoria masculina fizeram-no pausar aos 16 anos, em 2016. Por esta altura vigorava em Portugal a lei da identidade de género de 2011 (Assembleia Da República, 2011) que apenas permitia a mudança legal de sexo a maiores de idade. O impacto que esta obrigatoriedade teve em atletas é evidente: sem um documento legal que declare o sexo com que se identificam, atletas trans têm apenas duas hipóteses: praticam desporto numa categoria de sexo com o qual não se identificam ou abandonam o desporto. Com poucas opções de escolha, foi a segunda que Rui tomou. No follow up que fiz com a sua mãe em 2020, esta explicou-me que Rui deixara de competir devido aos constrangimentos referidos, aliados à pausa necessária para procedimentos médicos. Embora Rui tenha deixado de ser atleta, passou a exercer funções de treinador.
A mobilidade para o exercício de outras funções parece ser a alternativa a pessoas que, na falta de acolhimento enquanto atletas, encontram outras vias de ligação ao universo desportivo, seja pelo desporto recreativo, seja por assumirem outras funções, como no caso de Rui que se dedicou a treinar atletas mais jovens, ou no caso de Sacha, que se tornou árbitro, como será demonstrado em seguida.
Após algum tempo a praticar a modalidade em que encontrou acolhimento enquanto pessoa trans, o roller derby, Sacha começou a sentir desconforto por jogar numa equipa constituída apenas por mulheres cisgénero e optou por mudar de funções. Conforme o próprio explica, “com o tempo começava a ficar desconfortável numa equipa de mulheres, todas se identificavam como mulheres e eu o único que não se identificava assim, e foi uma das razões pelas quais passei para a arbitragem”. O papel de Sacha foi de suma importância para o desenvolvimento da arbitragem no roller derby em Portugal, uma vez que não existiam equipas de arbitragem no país até então. O sentimento de não pertença associado à ausência de perspetivas de evolução enquanto atleta naquela equipa fomentou a decisão de enveredar por uma ocupação em que teria melhores expectativas de futuro enquanto profissional do desporto.
Este tipo de deslocamento entre funções no universo desportivo pode ser uma resposta à vulnerabilidade enquanto atleta trans que, não tendo uma estrutura nem de evolução competitiva nem de pertença identitária, lhe permite prosseguir enquanto profissional do desporto, nomeadamente em posições com maior autoridade, onde possa fazer cumprir valores de respeito pela diversidade. A pessoa que arbitra é responsável por assegurar que as regras do jogo são cumpridas, incluindo em termos éticos. Na qualidade de arbitro, Sacha assegura que as regras sejam cumpridas: “ajudo a criar um safe space para todas as expressões de género no desporto. A discriminação não é permitida no roller derby e enquanto árbitro eu faço com que isto seja respeitado”. Assumir novas funções passa por uma alternativa ao mesmo tempo que contribui para a representatividade noutros órgãos constituintes dos grupos desportivos. Da mesma forma que é essencial ter representatividade dentro de campo, é igualmente importante que exista representatividade fora dele, em instâncias como a arbitragem, órgãos de decisão, comités médicos, entre outros.
Os constrangimentos não se ficam pelo sentimento de pertença ou de deslocamento. Existem também fatores materiais que influenciam a experiência desportiva, como veremos no desenrolar do caso que se segue. Vítor explica como foi a sua relação com o desporto durante o processo de afirmação de género:
Eu sempre pratiquei desporto toda a minha vida, aliás, quando eu comecei o processo, o desporto para mim foi a loucura, completamente. Eu fiquei super contente, eu tinha muito mais vontade de praticar desporto, eu tinha muito mais resistência. […] O desporto para mim sempre foi um escape […] era algo que me aliviava. (Entrevista realizada a 20/12/2019)
Vítor sentiu os efeitos da toma de testosterona no corpo, não só a nível físico, mas também mental, com maior disposição e motivação para treinar. No entanto, essa expansão de disposição não o motivou a continuar no desporto coletivo de competição como sempre fizera até ao momento da transição. No passado ele fizera parte de equipas femininas de desportos coletivos, dos quais teve de desistir devido a constrangimentos de tempo no período que antecedeu a transição. No momento de realização da entrevista, Vítor praticava desporto a título individual e recreativo, mas partilhou as experiências de balneário vividas na escola:
Eu partilho balneário com rapazes da escola, não é só da turma mesmo, da escola inteira. No início senti mais [olhares]. Hoje em dia acabo por ir vestido já do trabalho e depois vou à casa de banho e mudo, por exemplo. Comecei a ver ali truques para eu próprio não me martirizar. Não é que esteja a fugir do balneário, mas é uma questão de me proteger também. (Entrevista realizada a 20/12/2019)
Vítor sentiu os olhares dos colegas no balneário e desenvolveu estratégias de evitamento para lidar com esse desconforto, como ir para as aulas já equipado do trabalho ou trocar de roupa dentro do cubículo da casa de banho. Para além de não usar o espaço para se vestir, Vítor também não usufrui do banho, uma vez que os chuveiros não têm divisórias e ele não se sente à vontade com a exposição do seu corpo, nem se sente seguro em fazê-lo:
O meu complexo é de serem banhos abertos. Eu como tenho complexo com o meu próprio corpo, eu não consigo estar à vontade a mostrá-lo, mesmo que seja com roupa interior, ainda por cima a eles. Se calhar se fosse ali com aquelas cabines, ok pronto uma pessoa levava a toalha, está mais à vontade, mas naquele ambiente nem eu próprio me sinto seguro para isso, neste momento ainda não. (Entrevista realizada a 20/ 12/2019)
O que se verifica na experiência de Vítor é que a sua vontade não encontra harmonia com a segurança da sua intimidade e singularidade. Frequentar o balneário correspondente à sua identidade de género não é seguro e por esse motivo Vítor não pode usufruir de um banho depois das aulas. Fornecer a estudantes trans um balneário separado, por exemplo um balneário para docentes, pode ser uma alternativa, mas implica um comingout forçado a pessoas que não pretendam revelar a sua identidade de género. A solução poderia passar por modificar as instalações já existentes no sentido de oferecer maior privacidade no momento dos banhos, através, por exemplo, de cubículos fechados, conforme mencionou Vítor. Este tipo de constrangimentos contribui para o afastamento das pessoas trans do desporto, nomeadamente pessoas como o Vítor que poderiam gozar de forma mais competitiva dos efeitos da toma de testosterona. Ainda relativamente a este tópico dos balneários, num estudo realizado pela ILGA-Portugal sobre ambiente escolar no ano letivo 2016-2017, envolvendo 663 estudantes LGBTI entre os 14 e os 20 anos, 33,6% das pessoas participantes admitiram evitar balneários por insegurança ou desconforto e 25,5% admitiram evitar casas de banho pelo mesmo motivo (Intervenção Lésbica, Gay Bissexual, Trans e Intersex), 2018, p. 7). Apenas 7% das pessoas respondentes se identificava com identidade de género trans, pelo que entendemos que o “problema da casa de banho” (Halberstam, 1998) afeta não apenas pessoas trans, mas todas aquelas que são percebidas enquanto desviantes de género, aquelas que se afastam do paradigma estético ou fenotípico cisnormativo. O maior grau de exposição tanto na partilha de espaço como na partilha de nudez deixa evidente que os balneários assumem um peso emergencial acrescido. Trabalhos recentes sobre as casas de banho ou balneários como lugar de regulação de sexualidades, nomeadamente estudos feitos com mulheres lésbicas (Cicconetti e Magalhães, 2019) e pessoas trans (Jones et al., 2017), identificaram estes espaços como locais de policiamento de género e cuja arquitetura funciona enquanto prótese de género como tão bem Preciado demonstrou num texto sobre casas de banho (Preciado, 2013). Estes espaços reforçam as normas de género ao estabelecerem, nomeadamente através da sua arquitetura, diferenças entre homens e mulheres.
A existência de atletas trans após afirmação legal de sexo é relativamente recente. Isso deve-se não apenas às barreiras que as pessoas trans enfrentam para ter acesso ao desporto, mas também às dificuldades que enfrentam para a afirmação legal de sexo (transfobia estrutural). Além disso, há constrangimentos a nível de relações interpessoais, que podem ser designados como transfobia relacional. Os benefícios do engajamento no exercício físico são inúmeros para qualquer pessoa independentemente da identidade de género ou características sexuais, mas para pessoas trans são reconhecidos benefícios particulares, como por exemplo o facto de a participação numa modalidade coletiva prover uma forma de validação da identidade de género através da interação entre colegas de equipa (Buzuvis, 2012, p. 25). Outro facto relevante decorre da condição física; muitas pessoas consideram que a ausência de exercício físico poderia afetar negativamente o seu processo de transição (Hargie et al., 2017, p. 234). Por exemplo, a atividade física pode contribuir para que se atinja o peso necessário à realização de cirurgias (Jones et al., 2017, p. 702).
Considerações finais
Este artigo procurou, a partir de uma análise das regras de admissão de pessoas trans na World Rugby, dar conta dos impactos que este tipo de regulamentos tem na vida desportiva das pessoas trans. Os aspetos contestáveis das normas e os dados que ficaram por explorar por parte da WR dão pistas sobre a insuficiência dos estudos realizados para determinar fatores de vantagem atlética, nomeadamente a escassez de estudos com pessoas trans que sejam atletas.11 Dos aspetos contestáveis ressaltou que, na generalidade das regras de admissão de pessoas trans, é possível observar uma evidente distinção entre os sexos designados à nascença. Regra geral, homens trans são elegíveis para competir na categoria masculina sem restrições, apenas com a salvaguarda de que não se submetam a terapia hormonal para vantagem atlética. Mulheres trans têm de cumprir com uma série de procedimentos, tais como declaração de identidade de género, estabilização de valores hormonais, para além dos extensos controles médicos a que são submetidas.
Estas políticas são baseadas na crença de que as mulheres trans estão expostas a uma vantagem atlética proporcionada pela testosterona, como maior resistência e massa muscular, especialmente inevitável quando a afirmação de sexo é realizada após a puberdade. Um aspeto que parece ter sido descurado em nome da competição justa é que, enquanto as entidades desportivas estão preocupadas com a possível vantagem de mulheres trans nas competições femininas, não existe qualquer apreensão pela potencial vantagem de homens cisgénero sobre homens trans nas competições masculinas, ou sequer entre homens cisgénero que possam ter níveis de testosterona dissonantes, criando uma assimetria nas prioridades do fair play.12 Também a discriminação entre pessoas trans com afirmação de sexo antes da puberdade e depois da puberdade com critério de admissão, estabelece uma hierarquia dentro do espectro trans.
Através dos relatos das entrevistas foi possível perceber a resistência das pessoas que, não encontrando um ambiente de acolhimento enquanto atleta em competições formalmente organizadas, encontraram um lugar alternativo com funções relevantes que não estão sujeitas ao tipo de escrutínio sexual que uma posição enquanto atleta tem.
Não só a transfobia relacional, mas também a transfobia institucionalizada no desporto permitem-nos compreender o motivo pelo qual apenas duas atletas competiram numa categoria de género diferente daquela que lhes fora designado à nascença nos Jogos Olímpicos de 2020: Laurel Hubbard, atleta de halterofilismo da Nova Zelândia, e Chelsea Wolfe, atleta de BMX dos Estados Unidos da América. As participações destas atletas são exemplos que refutam a tese de que mulheres trans têm indiscutivelmente vantagem sobre mulheres cis: Laurel Hubbard não conseguiu fazer nenhum arremesso e ficou em último lugar na sua categoria; e Chelsea Wolfe foi para as olimpíadas como atleta suplente.
A história do desporto mostra-nos que atletas trans não são uma ameaça às competições cisfemininas. Será essencial que novos estudos sejam realizados com atletas, com planos de treino similares e com medições não só de força, mas também de resistência. É igualmente fundamental ressaltar que, mais importante que comparações de volume de músculo ou capacidade anaeróbica ou aeróbica, porque todos os corpos são diversos, é imprescindível garantir uma inclusão plena, que ofereça não apenas permissão para competir, mas também de incentivos para o fazer, garantindo desta forma um acolhimento pleno e respeito pela diversidade.