I
Se partimos de uma separação entre espírito e natureza, é a própria natureza que fica impossibilitada de ser compreendida. Eis o vaticínio de Schelling. Seu alvo aqui é notadamente a doutrina da ciência de Fichte, que, na sua interpretação, faria da natureza um objeto morto, já que, ao ser mero produto da consciência, algo constituído por esta última, não teria aquela produtividade que justamente lhe caracteriza. "Se vocês afirmam que apenas transferimos uma tal ideia para a natureza, então nunca chegou na alma de vocês uma suspeita daquilo que para nós é e deve ser uma natureza" (Schelling, 1976,1/5:107). A cura dessa doença especulativa que deturpava a verdadeira filosofia já estaria prescrita a partir dessa própria crítica. Schelling conclui no mesmo texto: "a natureza deve ser o espírito visível, o espírito, a natureza invisível. Aqui, portanto, na identidade absoluta do espírito em nós e da natureza fora de nós, tem de se resolver o problema de como é possível uma natureza fora de nós" (Schelling, 1976,1/5:107). E sabemos que tal concepção da identidade de natureza e espírito levará o jovem Schelling à sua filosofia da identidade e àquela concepção teleologica própria, na qual a natureza constitui um momento primeiro no desenvolvimento gradual de uma razão única e cujo término se dá precisamente com o surgimento da consciência consciente, isto é, do eu de cada um, cuja possibilidade, portanto, pressupõe essa produtividade anterior da própria natureza, esse seu "passado transcendental".1 Guardadas as diferenças, tal crítica fez escola e não foram poucos que continuaram a maltratar a doutrina da ciência a partir dessa perspectiva - talvez a mais contunde delas depois de Schelling, seja a de Hegel.2 E de fato, algumas formulações fichteanas parecern dar ensejo e razão a tais críticas. Na Nova Methodo, por exemplo, Fichte não deixa dúvidas. Ele mesmo escreve: "o mundo inteligível é a condição do mundo dos fenômenos <Erscheinungen>; o último é construído sobre o primeiro" (Fichte, 1962, GA IV/3: 424); e mais adiante ainda: "o inteligível <das Intelligible> é o único originario, o mundo dos sentidos <Sinnenwelt> é urna determinada perspectiva do primeiro" (Fichte, 1962, GA IV/3: 468). Pior que levar água ao moinho desses detratores adoradores da natureza, Schelling e companhia, tais formulações ainda levantam a suspeita de que Fichte assumiria uma posição pré-crítica: os conceitos ontológicos, os noumena, determinariam o que é o mundo, o que existe e, por conseguinte, o que é um fenómeno. Situação embaraçosa esta a da doutrina da ciência: ela não só seria incapaz de compreender o que é a natureza, como também teria retornado à acepção de que o que aparece encontra seu fundamento nos princípios ontológicos e nas coisas em si que, com Kant, mostraram-se incognoscíveis, quando justamente ela mesma havia se proposto a transformar a vereda aberta pela crítica em uma estrada real. Mas será mesmo que tais críticas e suspeitas são válidas? Teria a doutrina da ciência aniquilado a natureza e tido uma recaída dogmática? Tais são os problemas que gostaríamos de enfrentar aqui, nesta contribuição.
Ora, o local e momento exatos a serem analisados para dissolver esses problemas e reconduzir a linguagem fichetana à sua significação plena encontram-se naquela estrutura que, segundo a doutrina da ciencia, empreende a passagem do fundamento de todo saber, o Absoluto, para o saber e a consciência fáticos, esta última entendida como forma na qual todo saber em geral tem lugar. E isso porque, na medida em que essa estrutura faz o Absoluto sair de si e da sua pura transparência do mesmo, para se abrir a um outro diferente da mera afirmação de si, isto é, a uma multiplicidade, ela é absolutamente constituinte de todo saber, fornecendo a própria gênese da consciência, a forma como ela se estrutura e, por conseguinte, seus respectivos domínios <Gebiete> de ação.3 Quer dizer, ao nos situarmos nesse não-lugar ou limbo de penumbra e balbucio, no qual ainda não somos a consciência empírica que somos na vida comum e ordinária, nem estamos encerrados no Absoluto, que se, decerto, é pura transparência, não tem nada de múltiplo e, por conseguinte, não é nenhum saber, só ali, pois, ao nos situarmos na exata passagem da plenitude da significação para a carência da linguagem e da nomeação que seremos capazes de estabelecer o caráter geral da razão, suas determinações as mais gerais, incluindo aí as razões de por que ela tem tais e tais domínios, como a natureza e o espírito, e exatamente estes e não outros; isto é, estaremos naquele momento do nascimento primeiro das significações mais primitivas da razão. É assim, então, que poderemos compreender textos como aqueles que dizem que o sensível é derivado do inteligível e que tantos mal-entendidos causaram nos leitores da doutrina da ciência, acusando-a de aniquilamento da natureza e recaída dogmática. Ao final, veremos que não se trata de nada disso. Ao contrário, tal dedução do mundo dos sentidos a partir do inteligível é a exata formulação transcendental para a tarefa da doutrina da ciencia de deduzir a priori todos os domínios do saber tão somente a partir da razão, de modo que mesmo a concepção de natureza de um Schelling é, de um ponto de vista fichteano, rigorosamente pré-crítica.
Mas, então, como Fichte descreve essa estrutura?4
II
Para entender a dita estrutura, faz-se necessário elucidar seu papel constituinte de passagem e, desta feita, compreender o que é o Absoluto e por que ele traz consigo essa exigência de passagem. Com efeito, se ha saber de objetos e verdade em geral, independentemente de qual seja esse saber, é preciso que o saber esteja fundado em um principio absoluto que funde a si mesmo, do contrário não seria possível falar em verdade, mas tudo seria relativo: uma proposição estaria fundada em outra, que estaria fundada em outra e assim ao infinito - não haveria um fundamento último do saber que daria a ele unidade e objetividade. Ora, o saber para Fichte, assim como para о pròprio Schelling, se define especificamente pelo seu caráter genético, a partir do quai se mostra que o saber é sempre o reconhecimento daquilo que ele proprio já produzira -nisto, aliás, ambos levam ao extremo o lema kantiano de que: a razão só compreende aquilo que ela mesma produz segundo seu projeto" (Kant, 1974, BXIII). Sem produção do objeto, não há inteligibilidade dele, não há saber. Assim, se, de um lado, admite-se que há saber e verdade, e se, de outro, o saber se caracteriza pela gênese e pelo seu caráter de produção, então no fundamento do saber tem de se encontrar uma gênese absoluta, o que significa precisamente: um agir que produz a si mesmo. Ao contrário de toda outra posição predicativa e mesmo de toda posição predicativa em geral, na qual há sempre uma distância entre sujeito e predicado - "algo como algo" -, esse agir sobre si mesmo que produz a si mesmo tem de ser uma "posição" que encontra sua verdade em si mesma, a partir de si mesma e por si mesma, onde, portanto, não há hiato entre sujeito e predicado (objeto) - é uma posição absoluta. Daí a denominação de "eu puro" para o Absoluto: o eu "é ao mesmo tempo o agente e o produto da ação; o ativo e aquilo que é produzido pela atividade; ação <Handlung> e feito <Tat> sao um e o mesmo" (Fichte, 1984: 46 (GA 1/2: 258-9)). A Tathandlung, em suma, é expressão de uma gênese absoluta: uma ação que faz a si mesma; ela designa, nesse sentido, o núcleo duro de toda racionalidade em geral, independentemente de qualquer objeto e coisa conhecida; nela, portanto, há transparência plena e, por isso, é fundamento de toda outra posição e de todo outro agir da razão.5 Quer dizer, a Tathandlung não e uma verdade material ou a constatação de um fato da consciência, mas, por ser gênese absoluta, é pura e simplesmente a essência mais íntima de toda verdade. Fichte dirá em 1804: "saber puro em e para si, por isso saber de nada ou, caso a seguinte expressão devesse lembrá-los melhor, (...) verdade e certeza em e para si, que não é a certeza de algo, na medida em que, através disso, já seria posta a disjunção entre Ser e saber" (Fichte, 1986:14).
Todavia - e isso é fundamental -, enquanto agir que produz a si mesmo, o eu absoluto (ou o Absoluto) está fechado em si mesmo, ele é tudo em tudo e, por isso, não é nada para si, isto é, ele não tem nenhum outro conteúdo que si mesmo, logo, não há nele ainda nenhum saber de algo. Para haver saber e saber de algo, o eu tem de sair de si mesmo e como que abrir-se para o advento da multiplicidade (do não-eu). Para tanto, ele precisa ao mesmo tempo e necessariamente apreender-se a si mesmo, ser para si, já que não há saber se não há, ao mesmo tempo, saber do próprio saber que é sabido.6 - Não há consciência de objeto, se não há uma auto-referência nesse saber, isto é, a consciência dessa própria consciência- aquilo que já está anunciado na Dedução transcendental das categorias da Crítica da razão pura e que fez história no idealismo alemão, a saber, a autoconsciência. Sem essa passagem, o Absoluto permaneceria encerrado em si mesmo, não haveria nada de múltiplo, nada de oposto a ser sintetizado e, por conseguinte, nada a ser sabido - não haveria, em suma, consciência. A importância dessa estrutura de passagem, portanto, deve-se ao fato de ela fazer o Absoluto sair de si e se projetar diante de si mesmo e, nessa projeção, procurar determinar a si mesmo tal como ele é, isto é, como absoluto ou genese absoluta. Ora, entre a miríade de nomes que Fichte faz uso a cada exposição da doutrina da ciência, talvez o termo mais utilizado por ele para designar essa estrutura que dá a gênese da consciência, seja o de "reflexão" ou "reflexo fundamental", e cujo sinônimo, no mais das vezes, é o termo "faculdade prática".7 Essa ação pela qual o eu absoluto põe a si mesmo para si mesmo, deve ser descrita, portanto, como uma ação de reflexão: na reflexão sobre si, o eu é como que duplicado, cindido em reflexionante e refletido, cabendo ao reflexionante exigir do refletido que ele seja conforme a certeza primeira, isto é, como autoprodução infinita - nas palavras de Fichte: o eu deve <soll> refletir sobre si como <als> preenchendo a infinitude, isto é, ele deve pôr-se como posto por si mesmo, esforçando-se pela gênese de si mesmo enquanto objeto. Se, pois, o Absoluto é uma gênese absoluta, essa reflexão sobre si, então, deve ser descrita como uma "exigência de gênese": o refletido deve ser idêntico ao Absoluto, isto é, todo objeto para a consciência só é no interior dessa exigência de racionalização de todo múltiplo, de todo não-eu. Toda compreensão, portanto, toda realidade e, sobretudo, a própria consciência têm surgimento tão somente a partir dessa reflexão sobre si do eu e sobre a exigencia que ela traz consigo.
Um texto central de Fichte que descreve esse movimento de passagem encontramos na primeira exposição da doutrina da ciência. Ali, Fichte diz:
assim que o eu está posto, está posta toda realidade; no eu deve estar posto tudo; o eu deve ser pura e simplesmente independente, e tudo deve ser dependente dele. Portanto, é exigida a concordância <Ubereinstimmung> do objeto com o eu; e é o eu absoluto, exatamente em virtude de seu ser absoluto, que a exige. (...) -Y [atividade do eu, FG] está em um mundo em que toda atividade igualaria efetivamente a do eu, e é ideal. - Ora, Y [atividade do objeto, FG] não concorda <übereinkommt> com -Y, mas sim é-lhe oposta.
Por isso é conferida a um objeto; e, sem essa referência e sem a exigência absoluta que a funda, não haveria nenhum objeto para o eu, e este seria tudo em tudo, e, exatamente por isso, não seria nada (Fichte, 1984:140-1 (GA 1/2: 396)).
Ou seja, para que essa reflexão sobre si do eu se realize e este não fique fechado em si mesmo, encerramento no qual ele é tudo em tudo e, por isso, não é nada - é pura transparência, mas sem nenhuma consciência ou saber de algo ou de si -, o eu tem de projetar um mundo ideal, que exprime justamente um mundo absolutamente produzido pelo proprio eu, isto é, um ideal de gênese, que serve para medir aquilo que e refletido. Todo refletido, dessa maneira, deve concordar com o ideal do eu reflexionante e só no interior desse ideal é algo para o eu, isto é, é um objeto. Ao mesmo tempo, no entanto, se o refletido concordasse plenamente com o ideal, ambos se identificariam, não haveria diferença entre eles, reflexionante e refletido seriam um e o mesmo e, novamente, não haveria saber de algo, mas pura transparência. Como diz o texto, a concordância não tem lugar e é precisamente porque o refletido não concorda com o reflexionante que há algo para o eu, um objeto. Daí a gênese de toda consciência fatica e de toda compreensão a partir dessa estrutura de passagem.
Texto central este agora citado, dizíamos, e no entanto, ele foi igualmente fonte da leitura dos detratores da doutrina da ciência, adoradores da natureza. Schelling e companhia viram ali o claro signo da moralização do saber, da redução do saber a uma mera ética. Em carta a Fichte, Schelling é claro: "o idealismo transcendental só vale para aquele (...) que parte unicamente do ponto de vista prático, mas não para aquele que parte do ponto de vista puramente íeónco"(Fichte, 1962, GA III/4: 365).8 Tudo se passa como se esse ideal da reflexão sobre si fosse o ideal moral e prático da razão, sendo, portanto, todo não-eu ou, se quisermos, toda natureza algo oposto a esse desiderato da razão, cabendo ao eu aniquilar toda oposição a ele, isto é, tornar nula toda a natureza: o querer teria diante de si a esfera do objetivo, a natureza, sobre a qual ele pode e deve atuar livremente conforme seus fins. Com o que, todavia, já estaria pressuposta pela doutrina da ciência, nessa sua interpretação moralista, a definição das significações "espírito" e "natureza". (Não espanta, por conseguinte, a exigência schellinguiana de retornar a uma natureza anterior ao advento do eu consciente, deduzindo a consciência da própria produtividade da natureza).
É inegável que há elementos práticos nessa reflexão sobre si do eu e que remetem, segundo os próprios termos de Fichte, ao prático tal como pensado por Kant. Aliás, o mesmo Fichte, em seus textos iniciais, impregnados pelo jargão kantiano, batizou essa estrutura de passagem de "faculdade prática 9. Há, não obstante, um outro elemento presente ali nessa reflexão sobre si do eu, nessa estrutura fundamental de gênese da consciência, que Fichte também retoma da filosofia kantiana e que é igualmente determinante para a sua devida compreensão. Sua desconsideração, na verdade, está na base de toda leitura moralizante da doutrina da ciência e da sua fundamentação do saber, interpretação como aquela de Schelling e de Hegel. Tal é o elemento reflexionante que Fichte retira de alguns textos kantianos sobre o juízo estético, sobretudo aqueles sobre o sublime matemático, conjugando-o de modo sintético com o elemento prático já referido. Por não perceberam que ali se trata do momento ainda anterior ao surgimento da consciência e dos seus domínios, aquele grau zero e mudo do saber e da racionalidade em geral, os detratores da doutrina da ciência não notaram tal elemento reflexionante. Se queremos, portanto, compreender a gênese do saber e, com ela, a gênese dos domínios natureza e espírito, afastando, de vez, a leitura à la Schelling que vê na doutrina da aência a nulidade de toda natureza e um mero moralismo, vale a pena então, por um lado, explicitar mais uma vez essa espontaneidade própria a causalidade da razão em seu uso prático e, por outro, elucidar em definitivo esse elemento reflexionante descrito por Kant nos juízos estéticos. Veremos que essa estrutura de passagem do Absoluto para o saber fatico pode ser mais claramente definida pelo conceito de finalidade <Zweckmaßigkeit>, nesses seus sentidos prático, enquanto colocação do fim da razão, e reflexionante, enquanto finalidade da natureza, de modo que, no fundo, a noção de "finalidade" é um comentário para a noção de "racionalidade".
III
Quando, pois, nas primeiras exposições da doutrina da ciência, Fichte denomina essa estrutura de passagem do Absoluto para a consciência fatica de "faculdade prática", não há dúvida de que ele está ali retomando o elemento prático da filosofia kantiana, apropriando-se daquilo que, de imediato, havia lhe proporcionado tanto interesse. Isso porque o "prático" obtém com Kant um caráter inédito em relação à tradição. Esta sempre pensara o prático, diz Kant, a partir dos conceitos da natureza ou de um objeto em geral - a felicidade, o sentimento, a perfeição, etc. -, logo, sempre a partir da faculdade teórica da razão, onde, portanto, é a determinação do objeto (um fenômeno <Erscheinung>) que define o valor da ação, tendo-se apenas, por conseguinte, imperativos hipotéticos, pois relativos a fins dados pelo objeto da vontade.10 Em uma palavra, heteronomia. A natureza, pois, pode mostrar somente o que as coisas são, mas nunca o que elas devem ser - e a própria noção de dever não tem, para Kant, nenhuma significação, se se tem diante dos olhos somente o fluxo da natureza: "o dever, diz Kant já na Crítica da razão pura, exprime uma espécie de necessidade e ligação com princípios <Gründen> que não aparecem em nenhuma natureza" (Kant, 1974, А547/ B575).11 Para pensar um dever é preciso estabelecer uma capacidade da razão que, extrapolando todo teórico, designa um sentido inédito de causalidade, porque não é uma causalidade eficiente, mas uma tal inscrita na propria razão (sua vontade), que a permite criar por si mesma uma ordem do dever-ser, um ideal, a partir do qual as ações são julgadas. A razão, diz Kant, "cria para si mesma <macht sich selbst>, com completa espontaneidade, uma ordem segundo ideias, às quais ela adapta as condições empíricas e segundo as quais ela considera como necessárias ações que ainda não ocorreram e que talvez não venham a ocorrer" (Kant, 1974, A547/B575). Tal espontaneidade, sabe-se, tem seu fundamento na "liberdade", como propriedade inerente a todo ser racional em geral: é por ela que "a razão tem de considerar a si mesma como autora <Urheberin> de seus princípios independentemente das influências externas" (Kant, 1902, IV: 448). Daí a delimitação inédita desse domínio chamado "moral" ou "prático": o que determina a ação por dever e o seu valor moral não pode estar no efeito desejado, em um objeto da vontade, mas na própria razão, nessa sua capacidade de dar leis a si mesma e ser universalmente legisladora, isto é, na sua autonomia.12 E se a lei moral é produto da razão em sua autonomia e, por isso, sua própria lei, então ela é a lei fundamental de todo ser racional finito em geral, expondo como que a essência mesma da racionalidade, seu caráter genético, é a razão mesma que se apresenta como autora e como fim da ação, de modo que o próprio ser racional pode ser fim em si mesmo -seu conteúdo é a própria forma da racionalidade e da espontaneidade que lhe é inerente.13
Portanto, na reflexão sobre si do eu da doutrina da dência, já está compreendida aquela espontaneidade própria à causalidade que Kant coloca no fundamento de todo uso prático da razão e que se revela na construção das ideias da razão. De um lado, porque para refletir sobre si mesmo, o eu tem de produzir um Ideal, que, então, deve servir de padrão de medida para determinar se ele realiza ou não o que é exigido pela reflexão sobre si, isto é, se o que é refletido preenche o ideal colocado no fundamento da reflexão, ou não. - É um ideal, pois, no qual toda realidade estaria posta meramente pelo eu e por nenhum não-eu - "a ideia de um eu, dirá Fichte, cuja consciência nao fosse determinada por nada fora dele mas que, pelo contrário, determinasse tudo fora dele por sua mera consdência" (Fichte, 1984: 59 (GA 1/2: 277)). Ora, nenhuma atividade teórica poderia produzir esse ideal, já que esta está drcunscrita a determinar o que é, não o que deve ser. Revela-se aqui, por conseguinte, uma espontaneidade da razão de criar absolutamente a partir de si mesma um "mundo ideal" que remete, sem dúvida, àquela causalidade da razão que Kant definia como prática.14 Mais adiante, nessa mesma exposição da doutrina da dênda, Fichte fala do "esforço livre e fundado no eu, e que se dirige ao criar <Erschaffen> e, por atividade ideal, cria <erschafft> efetivamente" (Fichte, 1984: 164 (GA 1/2: 432)). Referindo-se ao ato originário da liberdade presente na base de toda representação e de todo saber, as outras exposições da doutrina da ciência descreverão esse caráter absolutamente espontâneo de criação da faculdade prática como "um criar a partir do nada <Erschaffen aus dem Nichts>, um fazer daquilo que não era, um inidar absoluto" (Fichte, 1962, GA IV/ 3: 360).15 É uma criação, porque é uma produção da razão e, aliás, da imaginação na sua função criadora schaffende Einbildungskraft; e é a partir do nada, porque não só não é determinada por nada fora da própria imaginação, mas também, já podemos adiantar aqui, porque é o ato incondicionado que está no fundamento de todo saber determinado, anteriormente a todo objeto e a toda consciência e saber fáticos.16
Por outro lado, o elemento prático kantiano também se faz presente, digamos, no conteúdo desse ideal que está na base da reflexão sobre si do eu. Assim como a lei moral em Kant é uma "lei fundamental do ser racional em geral", assim também aqui com o ideal projetado pela imaginação criadora na doutrina da ciência: o ideal colocado no fundamento da reflexão sobre si é mera expressão da essência mesma de toda racionalidade, aquilo com o que o refletido e tudo o mais devem concordar para alguma vez serem compreendidos. A ideia, portanto, "de um eu, cuja consciência não fosse determinada por nada fora dele mas que, pelo contrário, determinasse tudo fora dele por sua mera consciência" (Fichte, 1984: 59 (GA 1/2: 277)), este fim essencial de toda razão finita, é justamente a expressão desse caráter fundamental de toda racionalidade, tudo o que deve ser compreendido deve ser genetizado, produzido pela própria razão, e cujo fundamento, evidentemente, só pode ser uma gênese absoluta.17 "Preencher a infinitude", portanto, significa realizar o conteúdo mesmo do eu absoluto, da gênese absoluta. Nesse sentido, a racionalidade em geral é impulsionada, do começo ao fim, pelo interesse de um fazer, que não deixa de ser um racionalizar de todo não-eu, isto é, de genetizar tudo aquilo que ela tem diante de si.
Só o elemento prático, todavia, mostra-se limitado para compreender esse operador especulativo que faz a passagem do Absoluto para o saber fatico. Afinal, essa espontaneidade em questão é anterior a toda consciência e a todo objeto, anterior mesmo à distinção entre natureza e moral, enquanto o "prático" em Kant, definindo o domínio da filosofia moral, tem por objeto as ações dos seres racionais em geral, cujo efeito, evidentemente, deve aparecer na natureza, o próprio Kant declara na Introdução à Crítica da faculdade de julgar, que "entendimento e razão têm duas legislações diferentes sobre um e o mesmo território da experiência" (Kant, 1902, V: 175). Logo, se o "prático" na doutrina da ciência se refere a uma atividade anterior a toda consciência empírica, a todo objeto, não se trata de pura e simplesmente acolher a espontaneidade pratica kantiana e instila-la ali na reflexão sobre si do eu - o "prático", em Kant, já se inscreve como que depois da consciência. Caso isso seja feito, seria inevitável a rasura schellinguiana de que a doutrina da ciência não compreende a natureza e sua produtividade, faz dela um objeto morto, mero obstáculo à realização dos fins da razão, que, desta sorte, deveria ser superado ou, se quiserem, aniquilado. Ha uma carta de Fichte justamente a Kant, todavia, que fornece a pista para o desvendamento do problema colocado. No dia 17 de junho de 1794, Fichte declara a Kant: "descobri particularmente na sua Crítica da faculdade de julgar uma harmonia com minhas convicções particulares sobre a parte prática da filosofia" (Fichte, 1962, GA ІІІ/ 2: 138).18 É no juízo reflexionante, portanto, enquanto ele contém um princípio da reflexão que aponta para uma raiz comum ao suprassensível e ao sensível, onde se deve encontrar um novo elemento para a compreensão dessa estrutura responsável pela passagem do Absoluto para o saber fatico.
Mas que fique claro: é somente em uma forma particular do juízo reflexionante que esse elemento deve ser encontrado, a saber, somente no juízo reflexionante estético. Pois se é verdade que o juízo teleológico fornece uma determinada "pré-compreensão" do mundo - anterior a ele, por conseguinte, - mediante a representação de uma finalidade da natureza em vista do fim último <Endzweck> da razão, expressando justamente uma certa concordância entre liberdade e natureza, uma certa finalidade da natureza em vista da liberdade, essa sua concordância, entretanto, não deixa de se dar, do ponto de vista genético, posteriormente ao próprio domínio da natureza e, portanto, da consciência empírica. Afinal, é uma representação da razão que, para realizar seu fim último, pressupõe uma síntese entre natureza e liberdade em um autor moral do mundo, que se, decerto, enquanto autor moral do mundo, tem de vir antes de sua cisão entre natureza e liberdade, enquanto representação mesma da razão é posterior a ela e, por conseguinte, pressupõe a propria cisão. Nas palavras de Fichte, ela e uma síntese post factum. Nao é à toa que Kant denomina essa concordancia de "finalidade objetiva", já que ela se resolve a partir dos fenômenos, para fazer eles concordarem com o agir moral do ser racional e com a sua esperança <Hojfnung> na realização do Sumo Bem. Sucede que, para além dessa finalidade, Kant fala também de uma finalidade subjetiva entre um objeto e a mente, na qual não há nenhum conceito anterior ao objeto que o determinasse, mas a faculdade de julgar, de um modo ainda mais radical, dá a si mesma a lei ou regra do julgamento. Estamos falando, evidentemente, do juízo estético.
Como diz Kant, para as leis e formas particulares empíricas, deixadas indeterminadas pelas leis universais do entendimento, a faculdade de julgar tem um princípio transcendental para refletir sobre elas, pressupondo nelas uma unidade que é projetada justamente através de uma representação da natureza, na qual um outro entendimento -uma razão suprema - teria como que organizado a natureza nessas suas formas particulares empíricas para nossa razão, quer dizer, "como se um entendimento (embora não o nosso) as tivesse dado em vista <zum Behuf> da nossa faculdade de conhecimento para tornar possível um sistema da experiência segundo leis naturais particulares" (Kant, 1902, V: 180). -Essa representação da natureza não e nenhum conceito determinado de objeto, e este "em vista de" já denota a relação de finalidade entre essa representação da natureza pressuposta pela faculdade de julgar e a mente, na qual é admitida, pura e simplesmente, uma concordância dessas formas particulares com a razão. "Essa concordância <Zusammenstimmung> da natureza com nossa faculdade de conhecimento é pressuposta a priori pela faculdade de julgar em vista <zum Behuf> da sua reflexão sobre ela segundo suas leis empíricas" (Kant, 1902, V: 185); e como ela é contingente, ela tem de ser vista como final <zweckmäßig> para a razão, isto é, como algo em vista dela e do seu uso. Quando ha a concordância do propósito do sujeito e suas condições de um conhecimento em geral com a forma do objeto, tem-se então um sentimento de prazer - este se refere ao sujeito e é, assim, a expressão dessa relação de um objeto com a mente, que não passa pela consciência determinada do objeto, mas por essa concordância final do objeto em vista da mente e da sua pressuposição transcendental. Por isso, é uma finalidade subjetiva da natureza, isto é, o objeto é julgado em vista da razão, antes mesmo que esta tenha algum conceito determinado do objeto, e daí a satisfação que essa concordância final proporciona. Por outras palavras, quando o objeto causa em nós essa satisfação e como que preenche o princípio da faculdade de julgar da "adequação <Angemessenheit> da natureza à nossa faculdade de conhecimento", ele é julgado "belo".
Ora, já encontramos aqui, no juízo estético do belo, a relação de um princípio transcendental que, anterior a qualquer conceito de objeto, o torna possível, sendo ele, no fundo, o decalque da própria racionalidade do sujeito. Os textos da Dialética da faculdade de julgar estética expõem ainda mais decisivamente esse caráter próprio do juízo estético, no qual o objeto só é reconhecido como objeto - no caso, "belo" - porque ele é como que uma expressão ou efeito da própria constituição da razão e seu princípio transcendental de reflexão. Trata-se, decerto, da natureza, mas, na verdade, "ela contém para nós a ocasião de percebermos a finalidade interna na proporção das nossas forças da mente no julgamento de certos objetos dela" (Kant, 1902, V: 350). Mas o que seria, no fundo, essa proporção interna das faculdades do sujeito com a qual o objeto belo deve concordar e cuja concordância se expressa em um sentimento do próprio sujeito? Tal proporção, diz Kant, tem um fundamento prático e reconduz ao substrato suprassensível do sujeito. Quando Kant, pois, se pergunta: qual é o conceito que está no fundamento de todo juízo estético, já que ele pretende ser universalmente válido, mas não possui nenhum conceito determinado de objeto, a resposta só pode ser aquilo que designa essa "finalidade interna" no sujeito, isto é, o suprassensível no sujeito". Quer dizer, o objeto belo, aquele que concorda com a mente e seu princípio reflexionante, é um fenômeno <Erscheinung> que só é reconhecido enquanto tal, porque em seu fundamento se encontra uma finalidade interna do próprio sujeito, logo, algo suprassensível, que, como dito, é anterior ao próprio fenômeno e, mesmo, sua condição de possibilidade, já que é princípio transcendental. Por isso, Kant pode dizer: "o conceito puro da razão do suprassensível se encontra no fundamento do objeto, enquanto objeto dos sentidos, por conseguinte, como fenômeno <Erscheinung>" (idem). Por aqui, ]á começa a se vislumbrar em que sentido Fichte podia dizer sem nenhum embaraço que "o mundo inteligível é a condição do mundo dos fenômenos <Erscheinungen>; o último é construído sobre o primeiro" (Fichte, 1962, GA IV/3: 424). Nada mais kantiano do que tal explicação, nada mais distante do dogmatismo ou de qualquer recaída dogmática, portanto.
E no entanto, se é verdade que essa reflexão sobre si do eu, estrutura de passagem do Absoluto para o saber fatico, fonte geradora da consciência empírica, contém em si essa finalidade subjetiva, tal como a encontramos no juízo estético kantiano, resta que o texto base de que partimos em nossas análises nos diz que o objeto só surge para o eu na sua discordância com o ideal, e não na sua concordância. Relembremos: só há objeto para a razão e, por conseguinte, consciência de objeto, porque o refletido não concorda com o ideal do reflexionante. Ora, tais características encontramos no juízo estético do sublime e, particularmente, do sublime matemático, justamente aquele que expressa uma finalidade não "do objeto em relação à faculdade de julgar reflexionante conforme o conceito da natureza, mas do sujeito em relação aos objetos, segundo sua forma, quer dizer, segundo sua não-forma <Unform>, conforme o conceito da liberdade" (Fichte, 1962, GA IV/3: 192).19 Para compreendermos em definitivo, então, essa estrutura de passagem do Absoluto para o saber fatico, vale a pena retomar, mesmo que sucintamente, aquilo que nos interessa nos delineamentos gerais do sublime matemático da Crítica da faculdade de julgar.
Como se sabe, o sublime matemático, para Kant, ocorre diante de certos fenômenos da natureza que, com sua grandeza, levam a capacidade de compreensão da imaginação ao seu limite e mesmo à sua nulidade e, através disso, conduzem o conceito da natureza a um substrato suprassensível, que deve se encontrar no fundamento dela, natureza, e, ao mesmo tempo, da própria razão. Para avaliar esteticamente a grandeza de um objeto da natureza são necessárias duas ações da imaginação: a apreensão <Auffassung> e a compreensão <Zusammenfassung> - pela primeira, a imaginação acolhe os elementos do objeto a ser medido; pela segunda, ela tem de unificá-los sucessivamente, para que a avaliação de grandeza do objeto a ser medido possa ocorrer. Se na avaliação matemática, nunca há conflito entre essas duas ações, já que a compreensão pode acompanhar a apreensão ao infinito, tal como em uma série numérica, quando se trata, contudo, de uma avaliação estética, sensível, da grandeza, esse conflito pode ter lugar, a saber, quando na apreensão progressiva, a razão se interpõe e exige a totalidade da compreensão em uma única intuição, emergindo um conflito entre o infinito e o finito, o conflito surge porque o infinito está para além de toda medida - "é pura e simplesmente grande (não apenas comparativamente)" e "ultrapassa todo padrão de medida <Maßstab> dos sentidos" - e, por conseguinte, não pode ser compreendido pela imaginação como um todo em uma intuição. Para isso, seria preciso uma compreensão que fornecesse um padrão de medida que tivesse com o infinito uma relação determinada e referível a números, o que, para a imaginação, é impossível (Kant, 1902, V: 254). Nesse conflito, por conseguinte, revela-se ao mesmo tempo a inadequação <Unangemessenheit> da imaginação e de toda medida sensível em relação ao infinito e à exigência de compreendê-lo, mas também uma faculdade suprassensível, a própria razão, única fonte possível da capacidade de poder pensar o infinito e das ideias que lhe são devidas.20 E claro, o reconhecimento dessa inadequação só pode ter lugar sob a condição de que haja ali uma relação final do objeto com a mente, em que a concordância entre imaginação e razão é exigida e pressuposta como tal, mas que, justamente porque não acontece, revela-se como discordância entre elas:
nossa imaginação mostra mesmo em seu maior esforço <Anstrengung> em vista da compreensão exigida dela de um objeto dado em um todo da intuição (por conseguinte, para a exposição da ideia da razão) seus limites e inadequação, ao mesmo tempo, contudo, sua destinação <Bestimmung> à efetuação da adequação da mesma como uma lei (Kant, 1902, v: 257).
Quer dizer, o fenómeno, que é dito sublime, é novamente um decalque da própria racionalidade e designa, na verdade, o momento em que diante de um objeto é revelada para a própria razão a sua destinação suprassensível.21 E como em toda finalidade subjetiva, aqui também tal concordância e discordância se revelam através de um sentimento: um sentimento ao mesmo tempo de desprazer, resultante da inadequação da imaginação para com a avaliação exigida pela razão, e de prazer, oriundo da revelação, através dessa inadequação, da infinitude da razão e da concordância que sua lei exige. Em outras palavras, a razão sente ao mesmo tempo o limite de toda compreensão diante do infinito, mas também sua capacidade de pensar o infinito, isto é, a causalidade das ideias que vai além de todo sensível.
É o juízo reflexionante estético, sobretudo aquele do sublime, portanto, que fornece a Fichte o subsídio para estabelecer uma atividade anterior a todo objeto e, por conseguinte, anterior a toda consciência, atividade na qual uma concordância do objeto com a mente é pressuposta, sendo, pois, unicamente sob esse pano de fundo que torna-se possível o próprio objeto para a razão, o que dizia mesmo nosso texto base de análise? Ele dizia.
assim que o eu está posto, está posta toda realidade; no eu deve estar posto tudo; o eu deve ser pura e simplesmente independente, e tudo deve ser dependente dele. Portanto, é exigida a concordância <Ubereinstimmung> do objeto com o eu; e é o eu absoluto, exatamente em virtude de seu ser absoluto, que a exige (...). -Y [atividade do eu, FG] está em um mundo em que toda atividade igualaria efetivamente a do eu, e é ideal. - Ora, Y [atividade do objeto, FG] não concorda <übereinkommt> com -Y, mas sim é-lhe oposta. Por isso é conferida a um objeto; e, sem essa referência e sem a exigência absoluta que a funda, não haveria nenhum objeto para o eu, e este seria tudo em tudo, e, exatamente por isso, não seria nada (Fichte, 1984:140-1 (GA 1/2: 397)).
Assim, quando é dito que "tudo deve concordar com o ideal", já está introduzido sintética e necessariamente o momento reflexionante dessa estrutura de passagem do Absoluto para a consciência fatica, em que é postulada uma certa adequação de todo refletido com o eu, antes mesmo de todo objeto e de toda consciência empírica. Se é através dessa reflexão que o eu sai da mera posição absoluta de si mesmo e torna possível o advento da multipliadade e do outro, instaurando essa relação de concordância do outro (o refletido) com o mesmo (o eu), então, isso significa que todo esse múltiplo, esse outro, só é para o eu na medida em que estiver nessa relação final com ele, no qual há um plano - uma pressuposição transcendental - anterior a todo objeto e a todo não-eu, com o qual todo refletido deve concordar, o ideal - lembremos: expressão fundamental de toda racionalidade - é justamente esse plano, aquilo que deve ser para que seja compreendido, racionalizado - do contrário, o eu nem mesmo poderia reconhecer para si mesmo o que é um objeto. Uma concordância de todo refletido com a gênese é exigida, e todo saber só tem lugar a partir dessa exigência de gênese, porque só ela abre como que o campo transcendental de todo objeto para a razão. - Logo, trata-se de uma finalidade subjetiva, tal como Kant a determina para os juízos estéticos, porque não há aqui nenhum conceito determinado do objeto, mas somente essa pressuposição transcendental da reflexão, o ideal de que todo refletido deva ser produzido pelo eu. É uma ação incondicionada, que institui, portanto, absolutamente e sem fundamento, o campo de toda objetividade e de toda consciência empírica, porque instaura esse pano de fundo - o ideal enquanto pressuposição transcendental, conteúdo de toda racionalidade - no interior do qual todo objeto para a consciência pode ter lugar, já que pode ser medido através desse "padrão de medida"22 (o ideal). Não é à toa que Fichte descreveu a criação desse ideal como "absoluta" e "a partir do nada".23
Nesse sentido, a abertura desse campo transcendental da objetividade é traduzível, justamente, como a abertura de toda a determinabilidade da razão. Afinal, todo objeto, tudo o que é determinado, só o é no interior de uma determinabilidade, isto é, de uma esfera, da qual ele é uma parte. Tal esfera da determinabilidade é o ideal de que todo não-eu seja determinado pelo eu. É nesse mesmo sentido que, no §13 da Nova Metkodo, depois de ter deduzido a faculdade prática, como o princípio fundamental de toda dedução da consciência, e seu determinável, a racionalidade em geral, Fichte pode retomar o esquema de exigência de gênese (o Soli) e seu ideal como campo de todos objetos, dizendo que "a partir desse determinável a ser posto necessariamente nós derivaremos todos objetos da consciência, como algo mediato, trazido pela consciência imediata do dever <Sollen>" (Fichte, 1962, GA IV/3: 442). Não se trata, é claro, da derivação factual e empírica de todos os objetos, mas da ideia de que todos objetos da consciência só o são para ela porque estão nessa relação de finalidade subjetiva, na qual, antes mesmo de qualquer conceito delas, está posto um campo em relação ao qual - concordando ou discordando - eles têm sua existência para a razão.
Mas por que há, afinal, objeto, consciência e saber fatico e não, antes, o puro eu absoluto, que é tudo e, por isso, nada? É que, de fato, a exigência da gênese não é cumprida e sua não realização se exprime, como dito, pela posição de um objeto e da consciência do objeto. Por que ela não e cumprida? Precisamente porque se trata de uma reflexão, que, como tal, não consegue satisfazer a essa exigência. Toda reflexão, afinal, é uma determinação, e toda determinação, por sua vez, algo finito e limitado.24 Quer dizer, a forma mesma da reflexão já é refratária à exigência nela inscrita pela gênese absoluta, na medida em que a determinação do eu como algo institui aquele hiato entre a gênese absoluta projetada e exigida e o que é refletido, o eu como objeto: a exigência da gênese não é satisfeita, o refletido não concorda com o padrão de medida da reflexão e, justamente por isso, há um objeto, um Gegenstand. Ao mesmo tempo, contudo, não podemos nos esquecer que só há limitação porque há a exigência do infinito, a própria infinitude oriunda da capacidade criadora da razão, que, por isso, não pode ceder mesmo que a reflexão não tenha satisfeito a exigência, mas se recoloca, então, como exigência permanente, instituidora do saber. É nesse sentido que Fichte fala de uma limitação originária do próprio eu, inscrita na própria forma-reflexão, mas simultaneamente da sua permanente infinitude ínsita a essa sua causalidade criadora, responsável pelo ideal do eu, enquanto padrão de medida da reflexão. Nisto, aliás, se mostra nessa estrutura de gênese do saber fatico, a unificação sintética de limite e ilimitação, de finitude e infinitude, na qual ambos estão em uma determinação recíproca: sem infinitude não ha limite para o eu e, por conseguinte, não há consciência, nem saber e objeto; ao mesmo tempo, sem limite, não há consciência nem consciência da própria capacidade criadora do eu. Como diz Fichte, "sem uma infinitude, não há uma delimitação: sem uma delimitação, não há uma infinitude: infinitude e delimitação são um e o mesmo termo sintético" (Fichte, 1984: 113 (GA 1/2: 214)). Exatamente como se passava com o sublime matemático kantiano: não é possível à razão tomar consciência do limite da imaginação e da finitude em geral senão através da exigência da infinitude, ao mesmo tempo é pela limitação da imaginação que ela toma consciência de sua destinação suprassensível.
Querem um exemplo, por certo, derivado e distante, mas que pode ajudar a elucidar o que está sendo dito? Ele está aqui, bem diante de nós. Ao 1er o título deste texto mesmo - "Da gênese do sensível a partir do inteligível" -, essas palavras, o leitor, antes mesmo que tenha início a leitura, ja formulou para si mesmo uma série de suposições sobre aquilo que sera tratado - todas elas calcadas em sua experiência intelectual e cultural, a começar pela própria língua portuguesa: o texto, dizem essas suposições, deve ser sobre isso, ou sobre aquilo; o sensível deve significar as sensações ou as paixões ou o que é da natureza; o inteligível deve designar o mundo das ideias, um ideal, ou o espírito; o texto, enfim, deve falar da origem disso a partir daquilo ou daquilo a partir disso etc. Todas essas suposições não foram claramente formuladas pelo leitor, elas não são o conceito determinado de um objeto e elas nem mesmo se configuram como uma hipótese que poderia se comprovar ao fim da leitura do texto, já que não se trata de uma única tese clara e distinta que recebe ou não comprovação das palavras do texto. Mas essas suposições criaram um campo de expectativas, uma pré-compreensão do objeto em questão, portanto, anterior ao objeto, somente no interior da qual, todavia, cada leitor está a compreender o que está lendo agora: o tema aqui dissertado é interpretado em concordância ou discordância com essa rede trançada a partir dessas suas suposições iniciais. Quer dizer, sem esse campo de expetativas e exigências - exigências porque deve ser assim, deve ser assado, deve ser isso, deve ser aquilo -, o que chamamos de campo transcendental, não poderia nem mesmo haver inteligibilidade das palavras aqui lidas. Não é uma representação determinada do que vem a ser dito, não é o conhecimento de um objeto, é uma mera criação da razão, e no entanto, seu uso está na base da compreensão do tema agora dissertado, está posto em vista disso. Ora, todo esse procedimento que teve lugar na cabeça de cada um dos leitores, é precisamente uma formação derivada, bem pálida e longínqua da estrutura de passagem do Absoluto para a consciência fatica. Sem o campo de expectativa, não há objeto inteligido para o leitor, mas sem o próprio tema agora dissertado, essas exigências não se realizariam.
IV
Por tudo isso, é hora de voltarmos à questão inicial de que partimos e avaliarmos se a crítica de Schelling e companhia tem sua razão ou não. Afinal, é por aqui que podemos compreender em toda a sua amplitude o que está em jogo quando se dizia que a abertura do campo transcendental significa a abertura de toda objetividade para a razão. E neste momento, pois, em que o saber começa a se instaurar, a determinabilidade tem lugar e em que contemplamos o nascimento da consciência, que podemos compreender a gênese dos domínios do saber, reconduzindo-os cada um deles a essa estrutura de passagem, a reflexão sobre si do eu, esta sendo, pois, a raiz comum de natureza e espírito. A saber, se a reflexão só considera o objeto refletido, então ele terá de aparecer necessariamente determinado e, dada a inconsciência do eu de seu produzir, como algo dado e independente da própria reflexão: ele aparece a consciência, portanto, como o que a limita e está "contraposto a ela, isto é: Gegenstand. Temos aí a perspectiva teórica do saber, seu domínio é o da natureza. Esta surge, por conseguinte, não pela consideração do que deve ser, mas daquilo que é, portanto, referente ao objeto determinado, que, como vimos, só existe porque não há concordância com o ideal da gênese, mas negação da gênese. Isso significa, todavia, que não existe uma "natureza" fora do saber, que aquilo que chamamos de "natureza" é tão somente uma significação que encontra sua origem na estrutura da razão, resultado de uma determinada perspectiva sua. Sem a exigência de gênese, sem a não realização da gênese e sem a consideração daquilo que é, não haveria natureza. "Pela doutrina da ciência, conclui Fichte, está dada, como necessária, uma natureza a ser considerada, segundo seu ser e suas determinações, como independente de nós" (Fichte, 1984: 25 (GA 1/2:135) - trecho da segunda edição).
Mas, como já vimos, não há igualmente limitação sem a infinitude da razão e sua capacidade criadora do ideal. Assim, se a reflexão considera não o que aparece determinado a ela, mas a exigência de gênese que está em seu fundamento, abre-se a ela a ordem do dever-ser, dos fins que a razão pode se colocar independentemente daquilo que é, o eu podendo agir em concordância com o ideal. Depois de ter deduzido essa exigência de gênese como fonte de toda objetividade, dizendo que "é exigida a concordância do objeto com o eu", Fichte puxa uma nota, na qual identifica essa exigência com o "imperativo categórico de Kant". Mas, notemos: essa identificação só se verifica segundo a forma da ação, porque, enquanto mandamento moral, ela só aparece à consciência mais tarde, quando o eu já tomou consciência dos objetos e de si mesmo, o que está em questão, afinal, nesse momento anterior da dedução é a origem dessa ação. Fichte escreve ali:
se em alguma parte se torna claro que Kant colocou como fundamento de seu procedimento crítico, embora tacitamente, exatamente as premissas que a doutrina da ciência estabelece, é aqui. Como teria ele jamais podido chegar a um imperativo categórico, como postulado absoluto de concordância com o eu puro, sem partir da pressuposição de um ser absoluto do eu, pelo qual tudo estaria posto, e que, na medida em que nao é, ao menos deveria ser (Fichte, 1984:140 (GAI/2: 396) - nota).25
Logo, há moral e um "domínio do conceito da liberdade", como dizia Kant, porque no fundamento da razão em geral está inscrita uma exigência de gênese que, quando aplicada às ações, determina o agir moral e exige que tais ações sejam conformes o seu mandamento. Sem, portanto, essa exigência de genese, não haveria essa significação que chama pelo nome de "espírito": se falamos de espírito e, em geral, da liberdade, é porque a razão se estrutura dessa maneira.
Ora, mas assim como não há limitação sem infinitude e viceversa, assim também não há natureza sem espírito e vice-versa: ambos conceitos constituem um todo único, no qual cada termo remete ao outro reciprocamente. Não é possível pensar na capacidade criadora sem ter ao fundo aquilo que é, isto é, sem a natureza, não há espírito; por sua vez, é só na oposição à atividade criadora, enquanto padrão de medida, que é possível compreender isso que está aí diante de nós e que foge a essa atividade: sem espírito, não ha natureza - figura e fundo, portanto, estão em determinação recíproca e um não é possível sem o outro, podendo cada uma ser o fundo da outra conforme a perspectiva adotada. É como se ambos os conceitos, natureza e espírito ou, se quiserem, natureza e cultura, possuíssem na doutrina da ciência um estatuto "funcionalista", em que o saber se realiza única e exclusivamente através desse par de domínios, quer dizer, a consciência empírica é perpassada por essas duas significações e só pode ter lugar circundada por elas, tudo isso deduzido geneticamente da estrutura de passagem do Absoluto para o saber.
Muito longe, portanto, da doutrina da ciência pressupor o conceito de natureza, tal como pretendia Schelling e companhia, ela fornece, na verdade, a gênese da sua significação, o fundamento de por que há algo como a natureza para a razão; e ao contrário do que acusava Schelling, se o termo que aparece nessa dedução do domínio da natureza seja o de "oposição" - o objeto está "oposto à exigência de gênese -, tal termo deve ser entendido a partir do caráter reflexionante dessa estrutura de passagem do Absoluto para a consciência, isto é, como algo que é decalcado do campo transcendental naquela relação de finalidade subjetiva. Em hipótese alguma tal termo deve ser entendido materialmente, segundo uma causalidade eficiente, como uma oposição que deva ser aniquilada, mas é objeto porque está em oposição à exigência de gênese da razão e só por isso é algo compreendido pela razão ou simplesmente é. Na verdade, determinar esse domínio como produtividade anterior ao advento do eu, como seu "passado transcendental", identificando, por conseguinte, espírito e natureza, já é admiti-lo como objeto, ao qual cabe estas tais determinações; já é, por conseguinte, uma ação posterior, fruto de uma determinada representação positiva e teleologica da natureza, vale dizer, de uma determinada "visão de mundo", que, por isso mesmo, pressupõe necessariamente o prévio estabelecimento desse domínio ou dessa significação originária e, a fortiori, a própria gênese da consciência e do saber fatico - nao sem razão Kant chamava o juízo teleológico de finalidade objetiva, que se dá, por conseguinte, depois da consciência; é uma síntese post factum, dizia Fichte. Quer dizer, a filosofia da identidade de Schelling ainda fica presa à consciência empírica, fatica, tal como faz todo dogmatismo e toda filosofia pré-crítica. Por fim, fica claro em que sentido Fichte pode dizer que "o mundo inteligível é a condição do mundo dos fenómenos; o último é construido sobre o primeiro" (Fichte, 1962, GA IV/3: 424): o mundo inteligível designa o ideal da reflexão sobre si do eu e está no fundamento do mundo sensível e, claro, de toda consciência empírica, na medida em que tais têm sua existência apenas em função da exigência de realização desse fim inscrito na razão, o conceito de mundo, por conseguinte, é deduzido da própria estrutura da razão e, mais particularmente, daquela que opera a passagem do Absoluto para a consciência empírica. Enfim, essa dedução do mundo sensível a partir do mundo inteligível não implica em uma recaída pré-crítica por parte da doutrina da ciência.26 Ao contrário, ela se realiza justamente para executar a contento o programa de dedução genética de tudo aquilo que aparece na consciência. E se voltarmos ao nosso exemplo dado anteriormente, há de se perguntar se o texto foi inteligível para o leitor, o que significa: se ele, em alguma medida, pôde corresponder ou concordar com as expectativas e exigências feitas pelo leitor no início da sua leitura e, caso tenha concordado, se ele tenha desperto nele, quem sabe?, um sentimento de prazer. Oxalá!