Introdução
O cenário atual, condicionado pela grande quantidade de informações, imerso em tecnologias de informação e comunicação (TIC) e com a ampla difusão da web, exige novas reflexões acerca do papel da docência. Assim, uma sala de aula que não esteja conectada a essa nova e complexa realidade, dificilmente provocará no estudante o interesse pelo aprendizado.
De acordo com Goulart e Baccon (2016), a escola enfrenta um grande desafio de formar cidadãos para esse novo mundo, no qual as informações são acessadas em um instante, por meio dos mais diversos dispositivos tecnológicos. Nesse contexto, além de se pensar no processo de escolarização, é primordial focar a atenção em como os futuros docentes estão sendo preparados para atuar nessa sociedade informacional (Castells, 2000). Surgem, portanto, importantes questionamentos sobre a formação inicial de professores, a identidade desses profissionais e o papel social da escola na educação dos jovens do presente século (Goulart e Bacon, 2016).
Segundo Valente (2019), a propagação das tecnologias móveis sem fio que, quando conectadas à web, permitem acesso a informações em qualquer horário e local, possibilitou a construção de novas estratégias de ensino e de aprendizagem. Desse modo, Borba (2002) afirma que a forma como se produz conhecimento em aula vem sofrendo modificações em virtude da utilização desses novos recursos tecnológicos, em sintonia com práticas pedagógicas inovadoras.
Cabe ressaltar, no entanto, que a construção de conhecimento não se limita ao acesso à informação, proporcionado pelas TIC conectadas à web. De acordo com Llosa (2013: 193), “deixar por conta dos computadores a solução de todos os problemas cognitivos reduz a capacidade do cérebro de construir estruturas estáveis de conhecimento”. Conforme destaca Pimentel (2016), utilizar as TIC no ensino impõe a necessidade de trabalho de professores capazes de colocar em perspectiva as informações acessadas, pois as tecnologias digitais são meios pelos quais são apresentados dados, mas não constituem isoladamente um sistema de conhecimento e cultura.
Ciente da relevância das mídias digitais para a transformação da educação, com vistas a acompanhar a “metamorfose no nosso tempo” (Pimentel, 2016: 476), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) publicou em 2019 a terceira versão do marco de competências docentes em matéria de TIC. Nesse documento está especificado que é papel do professor atual estabelecer a utilização eficaz e inovadora desses recursos para a aprendizagem de seus estudantes, de modo a combinar adequadamente tecnologia e pedagogia, desenvolvendo atividade social em aula e fomentando a cooperação, a construção de conhecimentos e o trabalho em grupo (UNESCO, 2019).
Nessa perspectiva, esta pesquisa tem por objetivo responder de que maneira professores universitários atuantes na formação de futuros docentes de Matemática percebem o uso das TIC em suas aulas. Assim, este estudo buscou investigar, a partir de uma abordagem qualitativa, à luz do documento proposto pela UNESCO (2019), de que forma um grupo de 27 educadores, responsáveis pela formação de professores de Matemática, descreve a utilização das TIC em suas práticas de aula. Tais profissionais trabalham em instituições de ensino superior, públicas e privadas, do Brasil e da Espanha.
Marco Teórico
Nesta seção serão apresentadas e discutidas algumas das ideias de John Dewey, sobre o interesse e a possibilidade de erro do estudante, bem como a teoria Construcionista, de Seymour Papert. Serão apresentadas, ainda, as três facetas que compõem o marco teórico de competências docentes em relação às TIC, divulgadas pela UNESCO (2019), as quais se organizam em níveis sucessivos de desenvolvimento dos professores quanto ao uso pedagógico dessas ferramentas.
Possibilidade de erro e construção do conhecimento pelo estudante
Em oposição às práticas de ensino consideradas tradicionais, predominantes nas últimas décadas, destacam-se discussões atuais, no campo de pesquisa em Educação Matemática, que buscam refletir sobre o papel do contexto educacional formal na construção da cidadania, indispensável para o desenvolvimento do sujeito enquanto ser social. Considera-se fundamental, portanto, oferecer aos jovens atuais uma formação que os transforme em ativos pesquisadores e não os veja como simples recipientes de informação (Kenski, 2012).
De acordo com Valente (2019), o jovem atual:
certamente terá muita dificuldade em assistir uma aula expositiva por mais de 30 minutos. Ele vai acessar seu tablet ou smartphone, podendo inclusive encontrar informação que complementa o que o professor está discutindo. De todo modo, sua atenção não está mais no professor, mas em algo que está relacionado com o seu interesse (Valente, 2019: 3).
Dewey (1979) destaca, então, que a questão primordial da educação intelectual é alcançar o verdadeiro interesse do estudante, para buscar transformar a curiosidade natural humana, mais ou menos casual, em atitude de investigação, capaz de catalisar a aprendizagem. Esse interesse, que está vinculado a algo relevante para o discente, traz à tona uma iniciativa motriz, dinâmica, que se contrapõe a um sentimento inerte, caracterizado pela passividade receptiva e copiadora (Dewey, 1978).
Estudos da natureza cognitiva humana evidenciam o valor fundamental das tendências inatas de explorar, manipular materiais e expressar emoções. Quando situações educacionais fomentadas por esses instintos fazem parte do programa escolar, o estudante tende a se envolver integralmente nos estudos e o vácuo artificial entre a vida na escola e a realidade exterior é reduzido (Dewey, 2001).
Outra questão fundamental capaz de intensificar os processos de ensino e de aprendizagem se concentra no fato de dar ao estudante a oportunidade de cometer erros, aceitando-os a uma etapa natural do processo de aprendizagem. Nesse sentido, Dewey (2001) ressalta que o excesso de zelo em selecionar atividades e materiais que praticamente impedem qualquer possibilidade de erro, restringe a iniciativa do aluno, reduz seu julgamento crítico ao mínimo e acaba incentivando o uso de métodos que se distanciam das situações complexas da vida.
Essas ideias de John Dewey, junto a uma reconfiguração feita a partir do construtivismo de Jean Piaget, que vê o jovem como construtor de suas estruturas cognitivas a partir da sua interação com o universo, fazem parte da base fundamental que inspirou Seymour Papert a propor, em 1987, o construcionismo. Essa teoria foi concebida a partir da suposição de que os estudantes aprendem quando são ativos no processo de construção de conhecimento, com o auxílio das TIC e orientados pelo professor.
Sendo assim, o estudante aprende quando ele próprio “ensina” o computador a partir de um processo natural de acertos e erros, e não o contrário, como usualmente ocorre nas salas de aula tradicionais. Esse “ensinar” pode ser feito por meio da construção de um texto, de uma apresentação ou até mesmo de um vídeo. Esse contexto é ressaltado por Papert (1994), que afirma, apoiado em Piaget, que cada ato de ensino pode acabar por privar o estudante de uma oportunidade autônoma de descoberta. O construcionismo apresenta, então, como principal característica a ideia de construção mental, atribuindo atenção especial às construções no mundo, com objetos externos ao estudante, que subsidiam o que ocorre no plano do seu pensamento. Nesse contexto, refletindo sobre a educação, Papert (1994: 13) afirma que: “Com muito mais poder persuasivo do que a filosofia de um pensador até mesmo tão radical como Dewey, a informática, em todas as suas diversas manifestações, está oferecendo aos inovadores novas oportunidades para criar alternativas”.
Segundo essa teoria, é importante que os estudantes construam conhecimento a partir de atividades nas quais acreditem e que despertem seu interesse genuíno. Sendo assim, Dewey (1979) afirma que o problema fundamental do educador é utilizar para fins intelectuais a curiosidade orgânica de seus estudantes. De acordo com Papert (1999), pode-se caminhar nesse sentido aceitando-se o fato de que os novos recursos digitais devem ser incorporados à realidade educacional para possibilitar novos tipos de aprendizagem, de acordo com a complexidade da realidade contemporânea.
Marco de competências docentes da UNESCO em relação às TIC
De acordo com o marco proposto pela UNESCO (2019), a formação docente e o seu aperfeiçoamento profissional, adaptados às novas tecnologias, são essenciais para que os estudantes da educação básica possam usufruir dos benefícios proporcionados pelas TIC. Sendo assim, Ponte (2000) ressalta que o professor atual deve entender que, com o advento das mídias digitais, deixa de ser aquele que ensina para ser aquele que (co)aprende e promove a aprendizagem. Além disso, o autor destaca que:
O problema com que nos defrontamos não é o simples domínio instrumental da técnica para continuarmos a fazer as mesmas coisas, com os mesmos propósitos e objetivos, apenas de uma forma um pouco diferente. Não é tornar a escola mais eficaz para alcançar os objetivos do passado. O problema é levar a escola a contribuir para uma nova forma de humanidade, onde a tecnologia está fortemente presente e faz parte do cotidiano, sem que isso signifique submissão à tecnologia (Ponte, 2000: 89).
Com as TIC incorporadas à sala de aula, determinados problemas mais abstratos e difíceis de serem acessados podem se tornar palpáveis e transparentes e alguns projetos, que antes pareciam interessantes, mas complexos para empreender, podem se tornar manejáveis. Assim, características do que Piaget identifica como concreto, que estão no âmago de importantes empreendimentos cognitivos, podem ser trazidas ao cotidiano escolar, realizando uma inversão epistemológica para formas mais corpóreas de desenvolvimento intelectual (Papert, 1994). Nesse contexto, pode-se transformar a pedagogia e, enfim, empoderar os alunos, construindo-se uma nova relação entre os atores educativos e o conhecimento (UNESCO, 2019).
A partir da iminente necessidade de alcançar tais anseios e sabendo que, de acordo com Papert (1994), se os estudantes realmente querem aprender algo e têm a oportunidade de aprender em uso, com o auxílio das novas tecnologias, eles o fazem, a UNESCO (2019) construiu um marco de competências docentes em relação às TIC. Nesse, são trazidos três níveis sucessivos de desenvolvimento dos professores quanto ao seu uso pedagógico, a saber: aquisição de conhecimentos, aprimoramento de conhecimentos e criação de conhecimentos.
No estágio de aquisição de conhecimentos, os educadores ainda estão desenvolvendo competências e conhecimentos básicos de alfabetização digital, de forma que começam a aplicá-los nos seus contextos curriculares de forma tímida. Passam, então, a selecionar e usar programas educativos existentes, jogos, sites de exercícios e outros conteúdos buscados na web para complementar os métodos tradicionais de ensino, as formas de avaliação já utilizadas e os planos de aula. Além disso, o marco destaca que, nessa fase, os docentes também são capazes de utilizar as mídias digitais para seu próprio desenvolvimento profissional (UNESCO, 2019).
O segundo nível, denotado de aprimoramento de conhecimentos, é caracterizado pelas competências dos professores que lhes permitem, com o auxílio dos recursos digitais, criar ambientes colaborativos de aprendizagem centrados no educando. Neste estágio, os docentes são capazes de desenvolver, utilizando as TIC, atividades investigativas baseadas em projetos, que auxiliam os estudantes a resolver problemas complexos da vida cotidiana e a refletir sobre o trabalho realizado. Ademais, ressalta-se que, nesta fase, os professores utilizam a tecnologia para acessar redes de profissionais da educação, visando a evolução das suas práticas (UNESCO, 2019).
O terceiro estágio, denominado de criação de conhecimentos, distingue-se dos outros pelo fato de os docentes passarem a realizar, experimentar e compartilhar inovações pedagógicas continuamente, buscando determinar de que forma as TIC podem trazer influências positivas para a escola. Nesta fase entende-se que, com o auxílio das mídias digitais, é possível contribuir para que os estudantes criem os tipos de conhecimentos necessários para serem ativos no desenvolvimento de sociedades mais harmônicas e prósperas. Os educadores também passam a criar comunidades de conhecimento com estudantes, colegas e pesquisadores, buscando promover a aprendizagem permanente (sua e dos estudantes) (UNESCO, 2019).
Para Tavares e Scheller (2019: 63), o trabalho docente “é um retrato dos fundamentos teórico-metodológicos apreendidos ao longo dos estudos realizados e seu planejamento e concretização refletem as características e ideologias da sua formação acadêmica”. Considera-se, com isso, a relevância de uma análise sobre como profissionais que atuam na graduação dos futuros professores de Matemática utilizam as TIC no seu contexto de trabalho. Nesse sentido, conforme ressaltam Marin e Penteado (2011), há a necessidade de uma discussão maior a respeito dos cursos universitários, visando a investigar como se dá o contato dos futuros educadores com as TIC na sua formação inicial.
Procedimientos metodológicos
Caracteriza-se este estudo como qualitativo, o que leva essa pesquisa, segundo Borba (2004), a dar preferência a procedimentos descritivos, à medida que a interpretação criada admite interferência subjetiva e percebe o conhecimento emergente como uma compreensão contingente, negociada e não como uma verdade absoluta. Dessa forma, busca-se analisar por meio das respostas de um grupo de docentes, responsáveis pela formação de professores de Matemática, como está ocorrendo a utilização das TIC nas suas aulas.
Para tanto, enviou-se um questionário para 20 professores do Brasil, atuantes em cursos de Licenciatura em Matemática do Instituto Federal Farroupilha (IFFar), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS) e Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), e para 22 professores da Espanha, que trabalham no departamento de Didática da Matemática, na Universidade de Granada (UGR). O critério para a escolha de tal grupo se concentrou no fácil acesso a esses docentes em decorrência da trajetória acadêmica e profissional dos pesquisadores. A participação dos entrevistados foi voluntária.
Por meio da ferramenta gratuita para criação de pesquisas SurveyMonkey, elaborou-se um questionário com nove perguntas, sendo três questões iniciais, para a caracterização do grupo, sucedidas por quatro questões objetivas e duas dissertativas. O sistema disponibilizou, desta forma, um link que foi enviado por e-mail para que os professores pudessem acessar e responder o questionário.
Essa ferramenta, além do português e espanhol, está disponível em outros 15 idiomas. Nela é possível estruturar questionários que utilizem perguntas abertas e fechadas, de múltipla escolha e com caixas de seleção (nas quais o indivíduo pode selecionar mais de uma opção). O site oficial1 enfatiza que os dados armazenados mediante as pesquisas feitas estão seguros, isto é, não são divulgados a outras pessoas.
Todos os questionários enviados foram analisados nessa pesquisa e escolheu-se as perguntas oito e nove (ambas dissertativas) para uma análise mais aprofundada. Tais questionamentos estão relacionados aos benefícios e às dificuldades observados pelos educadores quanto à utilização das TIC no ensino e na aprendizagem dos futuros professores de Matemática. Para interpretar os argumentos dos docentes trazidos nessas duas questões, utilizou-se a Análise Textual Discursiva (ATD) que, conforme propõem Moraes e Galiazzi (2007), é uma metodologia de análise de natureza qualitativa, que tem por finalidade produzir novas compreensões sobre fenômenos e discursos.
Resultados e discussões
As nove perguntas propostas aos docentes foram analisadas e serão descritas, nesta seção, em três tópicos: caracterização do grupo (questões 1, 2 e 3), com o objetivo de construir um panorama geral sobre os educadores; questões iniciais (4, 5, 6 e 7), que buscaram verificar tendências sobre o uso das TIC na formação de professores de Matemática, a partir dos estágios propostos pelo marco da UNESCO (2019); e benefícios e dificuldades do uso das TIC (questões 8 e 9), que trata das categorias emergentes resultantes da ATD, que foram construídas a partir da análise das argumentações trazidas pelos participantes sobre introdução das TIC no contexto de ensino e aprendizagem que vivenciam.
Caracterização do grupo
As três primeiras perguntas estavam relacionadas ao gênero, idade e tempo de docência. Dos 42 profissionais que receberam as questões propostas pelos pesquisadores, 27 responderam a todas as perguntas. Desses, oito são de instituições de ensino brasileiras e 19 da universidade de Granada, na Espanha.
Desses docentes, que efetivamente participaram da pesquisa, 12 são mulheres e 15 são homens. Suas idades variam entre 26 e 70 anos e o tempo de docência, que caracteriza experiência em sala de aula, começa em três e vai até 47 anos.
Pode-se perceber, por esses dados iniciais, a heterogeneidade do grupo investigado, sobretudo em relação à ascendência das TIC nas suas vidas. Enquanto o professor de 26 anos e todos aqueles nascidos na década de 1990 provavelmente cresceram cercados por computadores, notebooks e smartphones, há aqueles outros profissionais que agregaram as TIC ao seu cotidiano já na fase adulta, ou mesmo após anos de trabalho, o que pode gerar perspectivas diferentes sobre essas ferramentas e o seu uso na prática pedagógica.
A partir desse panorama geral dos sujeitos da pesquisa, na próxima seção serão analisadas as respostas desses professores às questões objetivas 4, 5, 6 e 7.
Questões iniciais
As questões 4, 5, 6 e 7 buscaram mapear, de acordo com as respostas dadas pelos docentes, em quais estágios propostos pelo marco da UNESCO (2019) eles poderiam ser classificados, de acordo com o uso das TIC em suas aulas. Realizando-se a análise dessas questões objetivas, é possível perceber certas tendências no que se refere ao uso das TIC na formação de professores de Matemática. Entende-se que algumas características relevantes acerca do grupo estudado podem ser notadas e serão discutidas a seguir.
A primeira questão solicitou que, dentre uma lista de recursos, os docentes marcassem aqueles que são usados com frequência em suas aulas. Assim sendo, mais de uma opção poderia ser assinalada. Conforme apresenta-se na Figura 1, pode-se observar a diversidade de recursos digitais utilizados pelos docentes. É válido destacar a recorrência do uso de softwares de apresentação, como o PowerPoint, por exemplo, que foi citado por todos os sujeitos. Além disso, pode-se notar que outros recursos, como vídeos e softwares de geometria dinâmica, como o Geo-Gebra, por exemplo, também são usados por grande parte dos entrevistados.
A segunda pergunta pediu aos docentes que relatassem a frequência com que adotam as TIC em suas aulas e na terceira questionou sobre o principal objetivo do uso dessas ferramentas. Sabendo-se que apenas uma opção de resposta pôde ser escolhida, é interessante observar que, apesar de 21 educadores afirmarem que utilizam as TIC de forma muito frequente em suas aulas (enquanto 6 informam que as usam ocasionalmente), o grupo também aponta, conforme ressaltado na Figura 2, a apresentação de slides como a finalidade mais recorrente para o uso das TIC em suas práticas pedagógicas. Enquanto isso, o trabalho autônomo do estudante é destacado por apenas dois professores.
Sublinha-se que o elemento de maior frequência no gráfico da Figura 2 está diretamente relacionado ao estágio de aquisição de conhecimentos, primeiro nível descrito pela UNESCO (2019). Essa afirmação leva em conta que, dentre os objetivos descritivos nesse estágio, encontram-se “utilizar programas de apresentação e recursos digitais em apoio ao ensino e criar apresentações simples” (UNESCO, 2019: 27-28).
Cabe enfatizar que, de acordo com Papert (1999), é fundamental que as TIC possam permitir que os alunos se engajem, de forma efetiva, em trabalhos desafiadores. Nesse sentido, Marin e Penteado (2011) afirmam que, apesar da grande quantidade de conteúdo proposto para o ensino superior sugerir aulas com um ritmo acelerado, é necessário que o futuro professor possa acessar as TIC desde a sua formação inicial, vislumbrando oportunidades de estudar Matemática de forma diferenciada.
Na sequência da pesquisa, questionou-se os participantes sobre como visualizam sua atuação, oferecendo alternativas de resposta construídas com base na perspectiva dos estágios sugeridos pela UNESCO (2019). Assim, perguntou-se o que poderia ser afirmado sobre a utilização das TIC no contexto das suas práticas pedagógicas, oferecendo três opções de resposta.
Nesse sentido, pode-se perceber, conforme a Tabela 1, que a maior parte dos educadores se relaciona com o segundo nível, denotado de aprimoramento de conhecimentos. Também é relevante destacar o número considerável de docentes que se identificou com o estágio mais avançado, denominado de criação de conhecimentos, etapa na qual o docente se transforma também em um pesquisador e passa a contribuir com investigações que podem, inclusive, servir de inspiração para a evolução da prática de outros colegas.
Níveis | Número de professores |
---|---|
Está aprendendo a utilizar as TIC, portanto as incorpora pouco a pouco em sua prática docente. As TIC são usadas para aquisição de conhecimento. | 4 |
Renova pouco a pouco seu planejamento de ensino para integrar as TIC no seu plano de estudos, avaliando quando e como utilizá-las. As TIC são usadas para aprofundamento de conhecimentos. | 14 |
Utiliza as TIC de maneira habitual no ensino e sempre está se atualizando sobre os novos recursos para o ensino e a aprendizagem. As TIC são usadas para criação de conhecimentos. | 9 |
Vale destacar que, de acordo com a UNESCO (2019), um docente não precisa ser, necessariamente, classificado em somente um nível. Com isso, é possível que em alguns momentos sua prática e/ou conhecimentos estejam adequados a determinado nível e, em distinta ocasião, possam ser identificados em outro. Desta forma, seria interessante avaliar com regularidade o professor no intuito de determinar seu perfil e, a partir disso, possa buscar recursos para aprimorar seus conhecimentos frente às TIC e, consequentemente, a sua prática (UNESCO, 2019).
Benefícios e dificuldades do uso das TIC
Os dois últimos questionamentos (8 e 9) são perguntas abertas, nas quais os entrevistados responderam sobre os principais benefícios observados e as principais dificuldades enfrentadas no uso das TIC na formação de professores de Matemática. Para analisar as respostas trazidas pelos sujeitos investigados, utilizou-se a ATD, na perspectiva de Moraes e Galiazzi (2007), que a definem como um método qualitativo de análise de informações, em que se busca produzir novas compreensões a partir de uma imersão dos pesquisadores nos discursos analisados.
Nesse contexto, percorrendo três momentos ordenados, ideias são construídas a partir dos textos construídos pelos sujeitos da pesquisa, das concepções prévias dos investigadores e do forte amparo nos referenciais teóricos destacados. Inicia-se o trabalho pela unitarização, caracterizada pela desconstrução dos discursos, passa-se pela categorização, na qual busca-se estabelecer relações entre as unidades, e chega-se à construção de metatextos, que consiste na comunicação das novas compreensões.
Traçando esse caminho, do particular em direção ao geral, inicialmente as respostas foram lidas e fragmentadas em unidades de significado. Dessa forma, os discursos foram segmentados em pequenas unidades constituintes, às quais receberam títulos para representar a ideia central de cada trecho e um código de identificação. Neste processo foram identificadas 54 unidades de significado.
Na sequência, buscou-se agrupar as unidades de significado de acordo com ideias semelhantes. Esta junção pode ser feita em mais de uma etapa, até que se consiga unificar ao máximo tais ideias, para que possam originar metatextos que, de acordo com Moraes e Galiazzi (2007), expressam a compreensão dos pesquisadores sobre os significados e sentidos construídos a partir da leitura dos argumentos trazidos pelos sujeitos da investigação.
Inicialmente definiu-se, então, 12 grupos que, ao serem relidos e analisados, foram organizados, finalmente, em três grandes tópicos. Assim, foram estruturadas três categorias emergentes, que são denotadas por Moraes e Galiazzi (2007) de pontes que possibilitam a auto-organização da compreensão do fenômeno pesquisado. São elas: 1) Contextualização e pesquisa; 2) Interesse do estudante, e 3) Implicações no trabalho docente.
Contextualização e pesquisa
Na busca por trazer significado ao que se estuda, é relevante que o professor procure contextualizar o conhecimento que almeja que seus estudantes construam, fazendo com que os discentes possam se engajar na sua formação intelectual. Nesse sentido, as TIC podem, segundo a UNESCO (2019), ajudar a desenvolver ambientes investigativos de aprendizagem, que auxiliam os estudantes a criar, aplicar e seguir planos de pesquisas para resolver problemas vinculados ao seu contexto.
Corroborando essa ideia, o docente P22 afirma que os recursos digitais potencializam “novas pesquisas e a interação entre os alunos, contribuindo com uma aprendizagem com mais significado, devido à experiência”. Nesse sentido, conforme ressalta Dewey (1978), a educação formal não ignora ou combate as particularidades e as vivências individuais, que são fundamentais para a evolução cognitiva.
No que tange ao estudo de Matemática, as TIC trazem transparência praticamente instantânea às pesquisas realizadas em sala de aula, pois com o seu uso, segundo P12, é possível “ver o efeito de cada variável no resultado do experimento”, trazendo, de acordo com P1, “agilidade, dinamismo e precisão” ao trabalho investigativo. Nesse sentido, o erro passa a fazer parte do aprendizado, sem causar traumas ou desconfortos, pois, com o auxílio das TIC, manipulações algébricas ou construções geométricas são transcritas imediatamente nas telas dos dispositivos utilizados, fazendo com que possíveis equívocos sejam facilmente detectados e corrigidos. Com alguns poucos comandos, pode-se, então, refazer as operações mais recentes ou iniciar novamente o processo. Segundo Papert (1994: 147): “O estado normal do pensamento é estar fora de curso o tempo inteiro e fazer correções que retrocedem o suficiente para continuar andando numa direção globalmente satisfatória. Esse tipo de pensamento está sempre vagamente certo e vagamente errado”.
Ademais, com as TIC é possível aproximar o aluno aos entes matemáticos com os quais trabalha e, assim, segundo destaca Dewey (1978), significado e símbolo acabam se tornando mais palpáveis, servindo ao método de descoberta e constituindo-se em instrumentos com os quais o discente avança com mais segurança na conquista de fatos novos. Nesse sentido, Papert (1994: 50) afirma que o “computador derruba barreiras que tradicionalmente separam o concreto do abstrato, o corpóreo do incorpóreo”.
Assim, a utilização das TIC, conforme salienta P20, “facilita a contextualização da aprendizagem” o que, de acordo com P24, “permite a participação ativa do estudante” na construção do seu conhecimento, tornando “as aulas mais interativas” (P2). Além disso, conforme destaca Papert (1994), trabalhando dessa forma o conhecimento escolar, assim como acontece na vida cotidiana, acaba sendo construído para ser utilizado em alguma situação concreta e deixa de ser tratado como um tipo de moeda, que é depositada em um banco para possivelmente ser utilizada no futuro.
Nesse contexto, colabora-se para o desenvolvimento da “autonomia do estudante” (P6), característica que, conforme destaca a UNESCO (2019), faz-se presente no trabalho dos docentes que dominam as competências do nível de criação de conhecimentos. Dessa forma, segundo o marco, contribui-se para que o aluno construa a capacidade de resolver problemas, refletindo criticamente sobre eles. Utilizando-se as TIC para realizar pesquisas contextualizadas em salas de aula, percorre-se, então, um caminho que pode levar a “uma pedagogia centrada na pessoa em formação, que não perde de vista a autenticidade dos objetivos formativos visados” (UNESCO, 2019: 87).
Interesse do estudante
Com o auxílio dos dispositivos digitais atuais, no contexto do estudo de Matemática, segundo P3, pode-se “deixar o ambiente de aprendizagem mais prazeroso e motivador para o discente” fazendo com que, de acordo com P8, “os alunos se interessem bem mais pelo conteúdo estudado”. Sendo assim, conforme salienta Dewey (1978), transcende-se o sentimento de receptor inerte ou passivo, levando-se o estudante a uma atitude motriz, a partir da identificação entre o que se aprende e o agente inserido nesse contexto de desenvolvimento intelectual.
Estudando-se conceitos científicos a partir da análise de características de problemas autênticos, examinando e gerando exemplos com o apoio das TIC (UNESCO, 2019), pode-se fazer com que, de acordo com P3, os processos de ensino e de aprendizagem se tornem “mais interessantes para os estudantes”. Nesse sentido, cabe ao docente, inserido no estágio denominado de aprimoramento de conhecimentos, incentivar seus alunos a, conforme ressalta o marco da UNESCO (2019: 34), “identificar tecnologias que podem ser úteis para essas atividades, como tecnologias móveis e grupos de redes sociais para fomentar o debate e o acesso a competências exteriores”.
Dessa forma, P23 afirma que se pode contribuir para aumentar “a motivação e o interesse por determinados assuntos”. Nesse contexto, Papert (1994) enfatiza que, se os estudantes realmente anseiam por aprender algo, e têm a oportunidade de aprender em uso, por meio das novas tecnologias, eles o fazem.
Outro aspecto relevante possibilitado pela inserção das TIC no contexto educacional e que, de acordo com P3, “motiva e auxilia a promoção da aprendizagem, fazendo com que o discente se interesse”, diz respeito ao acesso a conceitos matemáticos por meio de diversas representações. Nesse contexto, Papert (2005) ressalta que se pode oferecer aos estudantes uma forma de ver a Matemática por um ângulo que eles podem gostar, o que se diferencia da “tendência dominante de supervalorizar o abstrato” (Papert, 1994: 123).
A UNESCO (2019), inclusive, ressalta esse aspecto de aplicação de competências docentes no estágio aprimoramento de conhecimentos, quando afirma que professores que se encontram nessa etapa de desenvolvimento profissional devem utilizar ferramentas digitais “adequadas à disciplina e que propiciem visualização” (UNESCO, 2019: 35) capaz de contribuir para uma reflexão de ordem superior. Dessa forma, P15 afirma que as TIC “permitem construir conhecimentos mais profundos graças à visualização de diferentes representações” para situações-problema concretas.
Implicações no trabalho docente
Consciente de que a inclusão de ferramentas digitais na educação busca alcançar “uma perspectiva de encarar a formação que alia as possibilidades multifacetadas das TIC com as exigências de uma pedagogia centrada na atividade exploratória, na interação, na investigação e na realização de projetos” (Ponte, 2000: 87), torna-se crucial compreender como essa mudança de paradigma afeta o trabalho docente. Nesse contexto, de acordo com P24, é importante que o professor saia “da zona de conforto” em busca, conforme ressaltam Flores et al., (2018), de um redimensionamento das suas ações pedagógicas para que as TIC não acabem se constituindo em um novo suporte para a reprise dos antigos cenários. Dessa forma, Dewey (1979) ressalta que não se deve tratar as novidades, nesse caso as TIC, como um fim em si mesmas, ou como um disfarce para reprisar o já conhecido, pois são, de fato, ferramentas capazes de auxiliar na construção de ocasiões estimulantes para o exercício da observação e da investigação.
Essa realidade também é destacada por P3, ao afirmar que “enquanto o docente apenas ‘der’ aulas, a escola permanecerá distante do mundo tecnológico”. Dessa forma, P21 afirma que “falta formação” para que o professor consiga se manter atualizado, o que se caracteriza no “maior desafio do docente contemporâneo” (P3). Considerando esses aspectos, Ponte (2000: 76) ressalta que “mais complicado que aprender a usar esse ou aquele programa, é encontrar formas produtivas e viáveis de integrar as TIC no processo de ensino e aprendizagem”. Nesse sentido, de acordo com o marco de competências da UNESCO (2019: 9): “os professores precisam utilizar métodos pedagógicos adequados à sociedade de conhecimentos em rápida evolução. Devem empoderar os educandos não apenas para adquirir conhecimentos completos das disciplinas que estudam, mas também para que saibam utilizar as TIC como ferramentas para gerar novos conhecimentos”.
Na busca por alcançar esse ideal, para a “utilização das TIC em aula, é necessária a formação em uso das mesmas” (P24) e saber que “a compreensão técnica das TIC leva tempo” (P10). Essa formação continuada, em muitos casos, é dificultada em virtude da alta carga horária em sala atribuída aos docentes, fazendo com que “não tenham tempo nem para refletir sobre suas práticas, quem dera para se atualizar diante dessas novas tecnologias que se transformam a cada dia” (P3).
Nesse contexto, sublinha-se que, além da compreensão das funcionalidades técnicas das ferramentas digitais faz-se necessária, de acordo com Papert (1994), uma inversão epistemológica para formas mais concretas de progresso intelectual. Assim, dando eco às características atribuídas ao estágio de desenvolvimento profissional denominado pela UNESCO (2019) de criação de conhecimentos, Ponte (2000) afirma que os professores:
Mais do que intervir na esfera bem definida de conhecimentos da natureza, passam a assumir uma função educativa primordial. E têm de o fazer mudando profundamente a sua forma dominante de agir: de (re)transmissor de conteúdos, passam a ser co-aprendizes com seus alunos, com seus colegas, com outros atores educativos e com elementos da comunidade em geral.
Ciente da relevância dessa mudança de postura pedagógica e dos possíveis benefícios que essa alteração pode trazer aos estudantes, P25 afirma que “falta tempo para o professor aprofundar seu conhecimento” em termos de aplicação diferenciada das TIC em sala de aula, o que se agrava à medida que “as TIC estão em constante transformação” (P3). Assim, de acordo com P4, torna-se difícil “dominar as novas tecnologias e softwares”.
Ademais, há docentes que receiam que os dispositivos digitais possam dispersar a atenção da turma, pois “às vezes os alunos se deixam levar pelo visual, o bonito e nem sempre analisam o objeto de estudo de um ponto de vista didático” (P10). Essa ideia é corroborada por P17 que destaca que as TIC podem, em algumas ocasiões, “desviar a atenção do conteúdo para aquilo que o contém”, o que pode acarretar uma distração em relação “aos objetivos principais” da aula (P13). Além disso, de acordo com P23, o “uso de dispositivos como smartphones facilita a desconcentração” pelo fato desses aparelhos estarem permanentemente conectados às redes sociais e receberem notificações constantemente.
Refletindo sobre essas questões que levam o discente a dispersar sua atenção, mesmo que as TIC estejam envolvidas nas atividades propostas, Papert (2005) enfatiza que um dos efeitos negativos do engajamento no estudo, permeado pelo uso de computadores, está nos próprios computadores. O autor afirma que todo aluno é capaz de perceber quando as formas como as TIC são utilizadas na escola estão muito distantes de como a sociedade digital as usa. Esse hiato pode acabar gerando um crescente desafeto dos educandos pelos seus estudos.
Sendo assim, percebe-se a necessidade de um redimensionamento das concepções epistemológicas nas quais se fundamentam as práticas pedagógicas do professor atual. É preciso saber que os alunos que navegam na world wide web, cruzando diversas informações, nem sempre seguem uma linearidade escolar pensada e planejada pelo professor (Flores et al., 2018). Nesse sentido, de acordo com Pais (2006: 16), deve-se entender que “a cognição não flui com a mesma linearidade com que o texto científico” é escrito, publicado e, normalmente, utilizado em sala de aula.
Considerações finais
A conexão entre inovações tecnológicas e metodológicas para auxiliar docentes e discentes no processo de atribuição de significados às mais distintas ideias, conceitos e informações é necessária (Valente, 2019). Dessa forma, Papert (1999) destaca que as TIC devem ser incorporadas à realidade dos estudantes não para seguirem um currículo tradicional e estático, mas para que cada um possa ter acesso a uma aprendizagem personalizada e criativa. Além disso, as informações por si só não proporcionam um exercício da capacidade intelectual (Dewey, 1979) e, portanto, cabe ao professor auxiliar seus estudantes no processo de transformar tais informações em conhecimento.
Respondendo aos questionamentos inicialmente propostos, os professores entrevistados se relacionam com o segundo ou terceiro nível do marco teórico proposto pela UNESCO, isto é, percebem-se com características profissionais de aprimoramento ou criação conhecimento em relação às TIC. No entanto, mediante uma análise dos recursos utilizados em sala de aula, bem como de suas justificativas frente aos benefícios e às dificuldades, verificou-se um outro possível cenário, que se caracteriza com uma prática situada no marco de aquisição de conhecimentos, segundo a UNESCO.
Ainda que alguns docentes afirmem que o uso de recursos digitais contribua na visualização, participação ativa e autonomia do estudante, pôde-se observar que a maioria utiliza as TIC, prioritariamente, para facilitar a exposição de conteúdos mediante softwares de apresentação. Portanto, embora a maioria dos docentes tenha defendido os benefícios da utilização dessas ferramentas, na prática não se percebe que o seu uso diferenciado ocorra com tanta frequência. Ademais, em relação às dificuldades encontradas, muitos relatam a falta de (tempo para) formação e algumas falhas técnicas. É relevante ressaltar também que, apesar de relatarem que o uso de TIC desperta o interesse nos alunos, afirmam que alguns estudantes perdem o foco na aula em virtude delas.
Considera-se que os professores entrevistados mostram disposição em aprender mais sobre recursos tecnológicos e compreendem as mudanças que as TIC têm introduzido na sociedade atual. Sugere-se, portanto, para estudos futuros, realizar investigações com mais docentes, ou in loco, observando sua atuação, com o intuito de verificar se os resultados se mostram similares. Também se considera interessante realizar pesquisas sobre como os educadores universitários buscam sua formação continuada em matéria de TIC, pois a escassez de oportunidades nesse sentido foi citada como um dos problemas mais relevantes pelos sujeitos desse trabalho.