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Estudios sociales (Hermosillo, Son.)
versión impresa ISSN 0188-4557
Estud. soc vol.20 no.40 Hermosillo jul./dic. 2012
Artículos
Resolução de conflitos ambientais no Brasil: do patriarcal ao fraternal
Resolución de conflictos ambientales en Brasil: de lo patriarcal a lo fraternal
Resolution of Environmental Conflicts in Brazil: From the Patriarchal to the Fraternal
Paulo Renato Ernandorena*
*Doctorante, Universidad de Santa Catarina, Brasil
Dirección para correspondencia:
horema@terra.com.br
Fecha de recepción: septiembre de 2011
Fecha de aceptación: marzo de 2012
Resumo
O presente estudo, tendo como pano de fundo os conflitos que envolvem o meio ambiente, examina o princípio da fraternidade, sob a ótica da teoria proposta por Baggio,1 concluindo que o modelo oficial de composição dos litígios ambientais existente no Brasil -consubstanciado no anacrônico monopólio do Poder Judiciário-, calcado no positivismo do Direito e numa visão competitiva da sociedade, não contempla a fraternidade como valor jurídico. Em contraponto, o trabalho passa a focalizar a mediação, evidenciando que este método alternativo de resolução de disputas não apenas se amolda com justeza à conflagrada questão ambiental, mas -notadamente por suas características de agir comunicativo e verdade compartilhada- é visceralmente animado pela ideia de fraternidade. A matéria foi pesquisada na literatura especializada, constatando-se a precária sistematização da mediação como mecanismo de gestão de conflitos ambientais, bem como uma lacuna na abordagem da fraternidade como categoria jurídica de potencial incidência na arena ambiental. O ensaio conclui, ao final, que a ecomediação pode propiciar a inserção do componente fraternidade nas discussões relativas aos bens ambientais, geralmente pautadas pela radicalização e por uma visão representacionista do mundo, quiçá contribuindo para a coconstrução de uma epistemologia sistêmica novo-paradigmática na solução de conflitos, que passe a assegurar papel destacado ao fraternal como imperativo de conduta.
Palavras-Chave: conflitos, princípio da fraternidade, mediação Ambiental, direito, cooperação, consenso.
Abstract
This study, holding as background the conflicts that involve the environment, analyzes the fraternity principle, from the perspective of the theory proposed by Baggio,2 concluding that the official pattern of environmental litigations composition that exist in Brazil -solidified by the obsolete monopoly of Judiciary-consolidated on a Law's positivism and on a competitive point of view of the society, does not contemplates the fraternity as a legal value. In other hands, the paper starts to focus the mediation, making clear that this alternative way of contest's solution not only disposes with justness to the environmental conflicted issue but -remarkably by its communicative characteristic acting and shared true- deeply excited by the fraternity idea. The subject has been researched in the specialized literature, making sure about the precarious systematization of the mediation as management way of environmental conflicts, as well as a lack on the approach of the fraternity as juridical category of potential incidence at the environmental field. In the end, the analysis concludes that the eco mediation may appease the insertion of the fraternity component on arguing related to environmental estates, generally ruled by the radicalization and a vision of world's representationalism, contributing perhaps to the co-operation construction of a new para-digmatical systemic epistemology for conflicts solutions, that insures the emphasized roll to fraternal as imperative of conduct.
Key words: conflicts, fraternity principle, environmental mediation, law, cooperation, consensus.
O restabelecimento da fraternidade universal não pode ser
o resultado dos esforços apenas dos juristas; no entanto, a contribuição
deles para a realização dessa tarefa é algo específico
e indispensável. Faz parte de sua responsabilidade e missão.
João Paulo II, mensagem aos participantes do Congresso
de juristas católicos, 24 de novembro de 2000
Introdução
Paralelamente à crença de que o progresso ilimitado resolverá todos os problemas da humanidade, vive-se, como desde o auge da guerra fria não se tinha registro, o medo da extinção do planeta em decorrência da degradação ambiental sem precedentes e das mudanças climáticas que já ameaçam a vida na terra.
Entre os efeitos ainda não mensurados da descomunal evolução científico-tecnológica do final do Século XX -que gerou uma perplexidade existencial- e do triunfo do capitalismo sobre o socialismo -conduzindo à hegemonia neoliberal e globalizante-, está a exacerbação das desigualdades e, consequentemente, dos conflitos, quer entre os indivíduos e/ou organizações, quer de natureza social, aí incluídos os conflitos ambientais, que segundo Henri Acselrad:
[...] constituem uma realidade que tende a ocupar cada vez mais espaço na agenda pública, tanto nacional como internacional, à medida em que se aprofunda o processo de transformação econômica e social dos territórios. É a emergência dos conflitos ambientais que põe em evidência a disputa por hegemonia entre distintas concepções sobre as formas de incorporação da natureza para satisfazer necessidades materiais, simbólicas e espirituais de indivíduos e de comunidades. O seu estudo representa uma necessidade urgente, tanto para a academia quanto para a comunidade política e para os atores sociais (Acselrad, 2004, p. 02).
Contudo, as regras e sanções jurídicas mostram-se incapazes de acompanhar e abranger o dinamismo do comportamento social, na proporção dos novos direitos e necessidades advindas. Nada obstante, a resolução dos conflitos de interesses difusos, no Brasil, segue, ainda, o arcaico modelo do monopólio do Poder Judiciário que, com suas históricas mazelas -como demonstrado no trabalho elaborado pelo Banco Mundial em 1996, intitulado O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe: Elementos para Reforma, conhecido como Documento Técnico n° 319 (Dakolias, 1996) -, não consegue dar conta do novo panorama eclodido, expondo a sua atual incapacidade para servir de sustentação a um sistema político verdadeiramente democrático e humanista.
Assim, o atual momento histórico exige outras perspectivas, não só frente aos conflitos emergentes, mas também em relação às maneiras ortodoxas de resolução, de onde se extrai a necessidade da concepção de estruturas que conduzam a novas reflexões e atitudes, assoalhando um caminho no qual possa prevalecer o diálogo e a construção de consensos, e não um obsoleto, autoritário, ineficaz, e por vezes tendencioso, regramento estatal.
Contribuir para a criação dessas novas estruturas, caracterizadas por instâncias de discussões mais amplas, hábeis a internalizar as implicações sociais, culturais e econômicas no processo de solução de controvérsias, notadamente as ambientais, inclusive viabilizando e potencializando a participação pública, levando-se em conta os interesses dos atores sociais envolvidos e a realidade como ela é sentida pelos sujeitos (multiverso), e não como a lei diz que deve ser -como ocorre na mediação- é o escopo do presente artigo.
Destarte, a investigação acerca da possibilidade e conveniência da utilização da ecomediação nas questões ambientais -intrinsecamente confliti-vas-, cada vez mais presentes no cotidiano do cidadão, revela-se oportuna e impostergável,
Pois não se trata apenas de configurar uma "engenharia ambiental", capaz de olhar os fenômenos sob a lente de um quadro pré-construído de possibilidades institucionais de equacionamento e resolução de conflitos, mas, sim, de reconstituir a sociologia relacional que dá historicidade aos mesmos. Nesse sentido, merece particular atenção o esforço crescentemente generalizado de criação, em inúmeros países da América Latina, de projetos voltados para a disseminação de tecnologia de resolução de conflitos ambientais (Acselrad 2004, p. 9).
Para que tal desiderato possa ser alcançado, é de vital importância resgatar-se a fraternidade como categoria jurídico-constitucional, de molde a que os valores que ela expressa e representa não fiquem apenas em nível de consciência moral, visto que, conforme Antonio Maria Baggio:
A fraternidade possui uma finalidade em si mesma, se é realmente espaço em que se realiza um encontro de consciências e de culturas, uma partilha de interioridades e uma deliberação intersubjetiva em torno da vida que compartilhamos, e que por isso se torna "nossa" e não apenas de "cada um". É na fraternidade, então, que se encontram o "tempo presente", a condição humana que compartilhamos neste instante, e o "tempo justo", o kairós em que a palavra que cada um sabe dizer ao outro e dele ouvir é a revelação do segredo de cada um guardado pelo outro (Baggio 2009, p. 130).
1. A Ideia de fraternidade no mundo jurídico
Quando se fala em fraternidade geralmente vem à mão um ideal de filosofia ou mesmo um valor religioso. No mundo do Direito -caracterizado pelo uso da coação- é escassa a análise da fraternidade como categoria jurídica, vista, muitas vezes, como uma virtude que se desenvolve espontaneamente, uma espécie de moral, que escaparia às injunções dos ordenamentos estatais.
Hão obstante, a fraternidade - que assenta suas raízes no evangelho cristão - começou a galgar uma dimensão política quando passou a integrar a famosa divisa da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.
De lá para cá, muito se perquiriu acerca desses princípios, notadamente a posição de ostracismo relegada à fraternidade em relação aos outros dois valores da tríade francesa, que embalaram fortemente a nova era, impondo-se destacar o papel relevante desempenhado por Antonio Maria Baggio, um dos expoentes na pesquisa histórica da matéria.
Abstraindo-se, por ora, as conclusões a que chegaram autores dos mais diversos campos do conhecimento -cuja síntese última aponta para a es-sencialidade e indispensabilidade do princípio da fraternidade para a plena realização da liberdade e da igualdade- impende retornar ao objetivo do tópico, a fim de verificar se a fraternidade, para além de um traço humano, de um fundamento religioso, de uma utopia filosófica ou de uma classe política, alcança a dimensão de categoria jurídica, logo, podendo ser alvo de observância compulsória como norma de conduta.
De partida, a Constituição da República Federativa do Brasil não arrola a fraternidade entre os princípios fundamentais insculpidos no artigo 1°, mas isso não significa que ela não atinja o status de princípio constitucional, porquanto estes, no dizer de Paulo Bonavides (1999, p. 265):
[...] Daqui já se caminha para o passo final da incursão teórica: a demonstração do reconhecimento da superioridade e hegemonia dos princípios na pirâmide normativa; supremacia que não é unicamente formal, mas sobretudo material, e apenas possível na medida em que os princípios são compreendidos e equiparados e até mesmo confundidos com os valores, sendo, na ordem constitucional dos ordenamentos jurídicos, a expressão mais alta da normatividade que fundamenta a organização do poder (sem grifo no original).
Nesse sentido o preâmbulo da Constituição de 1988 não deixa margem de dúvida ao referir expressamente o propósito de instituir os "valores supremos de uma sociedade fraterna", afirmando textualmente:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Hacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (Brasil, 1988).
Nem é necessário realizar grandes esforços hermenêuticos para constatar-se que o princípio da fraternidade pode ser inferido do inciso III, do artigo 1°, da Lei Maior, ao estabelecer como um dos fundamentos da República a "dignidade da pessoa humana",3 verbis:
Art. 1° A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]
III - a dignidade da pessoa humana;
[...] (Brasil, 1988).
Também entre os objetivos fundamentais, encontra-se, na expressão "sociedade livre, justa e solidária" (art. 3°, inciso I), um canal de comunicação explícito e direto com a idéia de fraternidade.
Com a publicação do livro O humanismo como categoria constitucional (2007), de autoria do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, o tema recebeu insipiente sistematização no Direito pátrio, a ponto de despertar outras consciências para a importância de se refletir sobre a fraternidade nos dias atuais em geral e, na realidade brasileira, no particular.
O Promotor de Justiça em Sergipe, Carlos Augusto Alcântara Machado, no Congresso "Direito e Fraternidade",4 publicou um trabalho intitulado A fraternidade como categoria jurídico-constitucional (2008),5 no qual apresenta a seguinte conclusão:
De tudo o que foi exposto, penso que é perfeitamente possível concluir que no constitucionalismo contemporâneo, a fraternidade, de fato, é uma categoria jurídica.
Nesse sentido é o entendimento do Procurador de Justiça em São Paulo, Munir Cury (2008) Munir Cury, no artigo denominado "Direito e Fraternidade",6 que vai ainda mais longe ao afirmar:
Como pudemos observar, toda a ordem jurídica positiva, assim como cada norma ou instituição jurídica, deve se inspirar em determinados valores sociais e procurar assegurar o respeito efetivo àqueles valores que os membros da sociedade consideram necessários à convivência social, tais como a justiça, o bem comum, a segurança, o interesse público, entre outros. O homem é o fim último de toda e qualquer atividade jurídica, social e política. [...] Parece-nos, no entanto, que para alcançar esse desejável e nobre ideal de convivência humana, a opção por valores e virtudes individuais ou sociais deve estar radicada no princípio da fraternidade, cuja regra básica de "fazer ao outro aquilo que gostaria que fosse feito a si próprio", é fundamental e imprescindível, sob pena de fragilizar essas mesmas opções (Cury, 2008).
Embora timidamente, começam a surgir no cenário jurídico nacional esporádicas decisões dos Tribunais que fazem menção à fraternidade como princípio jurídico, como é o caso da ADI n° 3.768/DF,7 em cujo julgamento o Supremo Tribunal Federal (STF) garantiu a gratuidade dos transportes públicos para os idosos.
Em declaração de voto, o Ministro Carlos Ayres Britto asseverou que o direito em discussão seria um "direito fraternal", a exigir do Estado "ações afirmativas, compensatórias de desvantagens historicamente experimentadas por segmentos sociais como os dos negros, dos índios, das mulheres, dos portadores de deficiências e dos idosos".
Como se observa, embora ainda sem atuação concreta destacada - e muitas vezes confundida com o princípio da solidariedade -, a ideia de fraternidade vem ganhando terreno no mundo jurídico nacional.
É possível concluir, portanto, que a fraternidade dá seus primeiros passos para se afirmar, no Brasil, como categoria jurídico-constitucional, conclamando a construção de uma nova teoria jurídica que terá tanto maior expressão quanto mais puder contribuir para operar o deslocamento do Direito autoritário para o Direito fraterno.
2. O representacionismo como visão de mundo antagônica à fraternidade
O conhecimento, ao longo da história, tem sido visto como uma representação fiel de uma realidade independente do sujeito cognoscente. Em outras palavras, as produções intelectuais não seriam construções da mente humana, mas descrições de realidades externas objetivas e transcendentes. Com algumas exceções, a ideia de que o mundo é pré-constituído em relação à experiência humana é hoje predominante.
Segundo essa visão de mundo, conhecida como representacionismo, nosso cérebro recebe passivamente informações vindas já prontas de fora. O conhecimento é apresentado como o resultado do processamento de tais informações. Em consequência, quando se investiga o modo como ele ocorre, prevalece a objetividade, em detrimento da subjetividade, vista como algo que poderia comprometer a exatidão científica.
Tal modo de pensar, conforme Mariotti (2001), se constitui no marco epistemológico prevalente na atualidade em nossa cultura - e isso talvez mais por motivos filosóficos, políticos e econômicos do que propriamente por causa de descobertas científicas de laboratório. Sua proposta central é a de que o conhecimento é um fenômeno baseado em representações mentais que fazemos do mundo. A mente seria, então, um espelho da natureza. O mundo conteria "informações" e nossa tarefa seria extraí-las dele por meio da cognição.
Essa concepção também produziu consequências práticas e éticas, reforçando, por exemplo, a crença de que o mundo é um objeto a ser explorado pelo homem em busca de benefícios. O representacionismo é um dos fundamentos da cultura patriarcal sob a qual vive hoje boa parte do mundo, gerando um modelo mental fragmentador, que produz a separação sujeito-objeto, principal característica da noção representacionista, fundamentalmente geradora de competição e conflitos.
3. Noção de conflito
O humano, ser de natureza multidimensional e que se vai construindo em relação, é uma confluência de intrincados fatores em movimento, entre eles o biológico, o psicológico e o social; protagonista de pensamentos racionais e simbólicos, que se mesclam e convivem mutuamente, é produtor e produto de suas circunstâncias, que o distinguem e revelam sua singularidade (Muller, 2007). Essa singularidade, por sua vez, propicia que os acontecimentos sejam vivenciados ou percebidos de forma única. A isso se denomina idiossincrasia. Se por um lado os torna de uma complexidade infinita e de um fascinante mistério, por outro, acaba ensejando diferentes visões de mundo e formas de conduta, o que em muitos casos gera antagonismo, ou ainda, o conflito.
O conflito é, portanto, um fenômeno onipresente na interação humana, e pode ser definido como uma colisão de interesses decorrente do conjunto de condições psico-socioculturais únicas que integram cada ser.
Os conflitos são, ainda, resultados da vida de relação, ou seja, quando o homem se contrapõe a seus semelhantes em função da necessidade inata de realização da vontade/necessidade de cada um, estando esta em oposição à vontade/necessidade do outro. São ínsitos à natureza humana e pertencem à fisiologia da vida social, não sendo em si mesmos bons ou ruins, importando mais a forma como os indivíduos lidam com eles; tanto podem conduzir à degradação dos relacionamentos, como a transformações positivas e ao crescimento.
Conflito também pode ser entendido como qualquer forma de oposição de forças antagônicas. Significa diferenças de valores, "escassez de poder, recursos ou posições, divergências de percepções ou ideias, dizendo respeito, então, à tensão e à luta entre as partes" (Breitman; Porto, 2001, p.93).
Pode-se dizer que os conflitos ocorrem, nas relações, quando ao menos duas pessoas independentes percebem seus interesses como incompatíveis (Hoker; Vilmot apud Fonkert, 1999).
O conflito pode ser manifesto ou latente, ou seja, o primeiro é conhecido e trabalhado de forma aberta, enquanto o segundo ocorre quando as pessoas não o percebem ou o evitam. Para Warat (1999), são justamente os desejos, as intenções e os quereres que são evocados quando se desvela o material subjacente aos conflitos.
Conforme Moore (1998), existe uma outra espécie de conflito, os emergentes, isto é, ambas as partes reconhecem que existe uma disputa surgindo e ensejando uma troca de tons severos entre elas, mas não sabem como resolver o problema.
Leciona Moré (2003) que em nossa sociedade o conflito se associa à rivalidade, à oposição e à diferença, sendo estas mal vistas em nosso sistema de crenças. Muitas vezes se vive as diferenças como uma agressão. Porém o antagonismo não é destrutivo em si, nem bom em si, mas pode ser entendido como um elemento da evolução, e mais, um dos elementos da própria vida. Portanto, os antagonismos são parte integral do meio onde nascemos, nos criamos e morremos; de forma que não podem ser extirpados, já que fazem parte de nossos sistemas de interação.
A definição chinesa para a expressão conflito é composta por dois sinais superpostos: um quer dizer perigo e, o outro, oportunidade. O perigo é permanecer um impasse que retire as energias individuais; a oportunidade é considerar as opções e abrir-se a ocasiões que permitirão novas relações entre os indivíduos e inventar meios de solucionar os problemas cotidianos.
Warat (2001) explica que o conflito, não sendo nem negativo nem positivo em si mesmo, mas parte da existência humana, remete a uma questão essencial concernente à forma como manejá-lo, de tal maneira que ambas as partes possam sair ganhando.
Na perspectiva psicanalítica, o conflito pode ser ilustrado quando no indivíduo se opõem exigências internas contrárias. Grosso modo, a luta do desejo e da interdição. A psicanálise considera o conflito como constitutivo do ser humano, e isto em diversas dimensões: conflito entre desejo e defesa, conflito entre os diferentes sistemas e instâncias, conflito entre as pulsões e, finalmente, conflito edipiano, no qual não apenas desejos opostos se defrontam, mas onde estes enfrentam a interdição.
Atualmente, uma percepção positiva do conflito pode ser encontrada em Warat, (2001); Fonkert (1999); Folger, (1999); Vezzula, (2001), entre outros.
Tanto que para Schnitman (1999) o conflito é uma oportunidade de crescimento e desenvolvimento; Bush e Folger (1999) entendem que o conflito é potencialmente transformativo, ou seja, "a argúcia oferece aos indivíduos a capacidade de desenvolver e integrar suas capacidades de força individual e empatia pelos outros".
A maneira de encarar e de gerenciar os conflitos mostra-se como uma questão essencial quando se pensa em estabelecer entendimento nas relações.
4. Conflitos ambientais
De maneira geral, os conflitos ambientais podem ser conceituados como tipos de conflitos sociais que expressam lutas entre interesses opostos que disputam o controle dos recursos naturais e o uso do meio ambiente comum (Alexandre, 1999a, p. 23)
Ou ainda, "o jogo de interesses opostos que emergem no contexto da disputa pela apropriação e uso do meio ambiente comum" (Alexandre, 1999b. p. 18).
O conflito ambiental pode ser entendido, também, como resultado de uma pretensão à exploração de um bem ambiental, surgido no momento em que outrem busca impedir ou regulamentar essa iniciativa.
Ainda, conforme Alexandre existe uma:
capacidade crescente da sociedade civil organizada de impedir que projetos empresariais de desenvolvimento sejam implementados à revelia de um processo efetivo de discussão pública e democrática junto às comunidades envolvidas. Isso parece comprovar que, ao longo dos últimos anos no Brasil, tem-se percebido, como característica muito própria e marcante, a maturação política gradual de setores sociais sensíveis aos problemas sócio-ambientais, cuja conseqüência é o incremento desses conflitos na sociedade. (Alexandre, 1999b, p. 14).
A existência de conflitos ambientais, conforme acentua Fink (2002, p. 113), decorre da "continuidade de um complexo modelo de exploração econômica, caracterizado pela ação predatória, e da evidente necessidade de preservarem-se os recursos naturais ainda existentes". Ou, como sustenta Milaré (2000, p. 33), emergem de um fenômeno elementar, segundo o qual "os homens, para satisfação de suas novas e múltiplas necessidades, que são ilimitadas, disputam os bens da natureza, por definição limitados".
Os conflitos ambientais podem ser subdivididos em duas vertentes: (a) os conflitos de uso, nos quais ocorre uma disputa entre particulares ou destes com o Poder Público, em relação a determinado bem ou recurso ambiental; e (b) os conflitos entre empreendedores, públicos ou privados, que intentam a exploração dos recursos naturais, e a sociedade civil, que defende sua preservação ou conservação.
Em termos ambientais, portanto, pode-se dizer que os conflitos são multilaterais, sendo uma das partes necessariamente a sociedade, titular do direito de fruição de um ambiente natural livre de degradação.
O conflito ambiental pertence ao gênero do conflito social, do qual é espécie, verificando-se que naqueles também ocorrem enfrentamentos sociais e confrontos de forças organizadas contra o Estado (Reynaud, 2001).
De acordo com Fink (2002), a visível e permanente degradação ambiental sugere que os meios tradicionais de solução de conflitos precisam ser utilizados em maior escala, mas, sobretudo, que novas formas, como a negociação e a mediação, sejam estimuladas e implementadas.
Não obstante a profusão em que ocorrem os conflitos ambientais no cenário nacional, revestindo-se o tema, só por essa circunstância, de especial relevância, verifica-se que o assunto ainda é pouco trabalhado no âmbito científico. A maioria dos doutrinadores satisfaz-se com a abordagem do dano ambiental, praticamente abstraindo que a degradação ao meio ambiente, antes de se concretizar, tem subjacente a realização de um interesse resistido, potencialmente em condições de ser harmonizado por um processo de composição prévia entre as partes envolvidas.
É provável que a falta desse embasamento contribua para que até hoje a sociedade brasileira não tenha ainda desenvolvido uma cultura negocial em matéria ambiental. Por outro lado, a falta de foros próprios para o diálogo voltado à solução de controvérsias que tenham por objeto o patrimônio ambiental, bem como a ausência de estímulo à utilização dos meios alternativos de resolução de disputas, como a negociação e a mediação, fazem com que as demandas surgidas no contexto ambiental acabem desaguando no Poder Judiciário, através das ações civis públicas cuja eficácia é predominantemente reparadora, e não preventiva.
5. Resolução de conflitos
Nos tempos remotos os conflitos eram resolvidos por meio da autotutela ou autodefesa, isto é, pela lei do mais forte. Quem pretendesse algo que outrem impedisse de obter, haveria de, com sua força e na medida dela, conseguir por si mesmo a satisfação de sua pretensão. Era a vitória do mais dotado, mais astuto ou mais ousado, sobre o mais fraco ou mais tímido (Ernandorena, 2003).
Ainda nos sistemas primitivos surgiu a autocomposição, compreendida pela desistência (renúncia à pretensão), submissão (renúncia à resistência oferecida à pretensão) e transação (concessões recíprocas).
Posteriormente, com a criação do Estado moderno, delegou-se ao Poder Judiciário a exclusividade para dirimir os conflitos interpessoais, predominantemente por meio da aplicação do Direto, que é um sistema de coação organizado através de proposições legais que imputam essencialmente deveres à conduta humana, limitando sua liberdade.
Dito de outra forma, o Direito é técnica de resolução de litígios que utiliza regras impostas - leis -, derivadas de outros poderes (v.g. o legislativo), que não as partes em conflito, e que se lhe impõem quando buscam uma solução estatal.
No entanto, a lei nada mais faz do que aplicar sobre os comportamentos humanos - complexos e imprevisíveis - um gabarito abstrato, com o único propósito de dotar essas condutas de decidibilidade, sem reconhecer qualquer autonomia aos cidadãos (Bisol, 1999).
6. A resolução dos conflitos ambientais
A Constituição Federal, em seu art. 225, alçou o meio ambiente a bem de uso comum do povo.8
Cuida-se, portanto, de um direito difuso e, como tal, indisponível.
A Magna Carta também atribuiu ao Ministério Público a função institucional de exercer "a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos" (art. 129, III).
Já a Lei n° 7.347/85, que instituiu a ação civil pública - instrumento por excelência para a tutela dos direitos coletivos -, ao lado do Ministério Público, estabelece outras legitimidades para a defesa dos interesses difusos, que recaem sobre a União, os Estados, os Municípios, as autarquias, as empresas públicas, as fundações, as sociedades de economia mista e as associações da sociedade civil (art. 5°).
6.1 Transação
Prescreve o art. 840 do Código Civil que "É lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas".
De outro tanto, o mesmo Diploma Legal dispõe no art. 841 que "Só quanto a direitos patrimoniais de caráter privado se permite a transação", ou seja, concessões mútuas só podem ser realizadas por quem pode dispor do direito em litígio ou ameaçado.
Já a Lei n° 9.307/96 (Lei da Arbitragem) estabelece em seu art. 1° que "As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis".
Sob este prisma, em princípio, seria inadmissível qualquer transação em matéria ambiental (Machado, 2000).
6. 2 Transação em matéria ambiental
A transação em matéria ambiental, conquanto seja tachada de impossível, vem ocorrendo de forma velada nos licenciamentos ambientais e nos Termos de Compromisso de Ajustamento de Condutas.
Efetivamente, um número cada vez maior de doutrinadores têm se posicionado favoravelmente à celebração de compromissos de ajustamento de condutas, argumentando que o seu objeto não é propriamente o meio ambiente, mas a forma de adoção das medidas destinadas à recuperação ou prevenção de danos ambientais, ou ainda, o estabelecimento de certas regras e comportamentos a serem observados pelo interessado.
À escassez de estatísticas, os dados empíricos e a experiência evidenciam que os ajustamentos de conduta celebrados pelos entes legitimados, na realidade, extrapolam em muito esses limites meramente formais, invocados pelos autores para não admitirem a possibilidade de transação com os bens ambientais - o que de resto frequentemente ocorre -, sustentando, na contramão dos acontecimentos, a inadmissibilidade da prática de dano ao meio ambiente com o aval do Estado.
No que tange às transações celebradas sob a égide da Lei dos Juizados Especiais, estas se mostram ainda mais grotescas, acobertando situações ilegais e muitas vezes de grave impacto ao meio ambiente, em troca de migalhas aos agentes públicos.
Os próprios órgãos ambientais fazem concessões contrárias à lei em contrapartida de restrições oferecidas pelos empreendedores em projetos submetidos ao licenciamento, tudo isso sem qualquer participação ou fiscalização da sociedade civil.
Implicitamente, portanto, admite-se a compensação por danos permitidos ao meio ambiente.
Não é outra a razão de ser das medidas compensatórias que estão previstas no Direito pátrio através da Resolução COHAMA n. 02/96, de 18 de abril de 1996, que dispõe:
Art. 1° - Para fazer face à reparação dos danos ambientais causados pela destruição de florestas ou outros ecossistemas, o licenciamento de empreendimentos de relevante impacto ambiental, assim considerado pelo órgão ambiental competente com fundamento no EIA/RIMA, terá como um dos requisitos a serem atendidos, pela entidade licenciada, a implantação de uma unidade de conservação de domínio público e uso indireto, preferencialmente, uma Estação Ecológica, a critério do órgão licenciador, ouvido o empreendedor.
Acerca das medidas compensatórias, Fernando Reverendo Vidal Akaoui, Promotor de Justiça em São Paulo, em sua Tese aprovada no 3° Congresso Internacional de Direito Ambiental,9 assevera:
Com efeito, a doutrina tem admitido como forma de reparação do dano a denominada compensação, consistente em uma prestação positiva (obrigação de fazer), e que reverta em prol das questões ambientais.
E argumenta no seguinte sentido:
Com a compensação, garante-se que os recursos a serem empregados serão destinados diretamente à aquisição de bens ou realização de atos de valor ambiental, garantindo-se assim, e ainda que indiretamente, a efetivação de uma política ambiental, seja preventiva, seja de recuperação de áreas degradadas.
A admissão do fato de que, apesar de ser conceituado como bem indisponível de uso comum do povo, a agressão ao meio ambiente é alvo de constantes autorizações dissimuladas por parte daqueles que detêm a exclusividade de sua defesa, permitindo-se até mesmo privatizações de bens públicos ambientais, sem nenhuma participação da sociedade civil ou contrapartida aos interesses comunitários, precisa ser considerada.
Nesse contexto, parece irrecusável que sejam criadas instâncias de participação popular, que possam servir de verdadeiras salvaguardas ao equilíbrio ambiental e de espelho aos reais interesses da população.
Aliás, na esteira do Princípio 10, da Declaração do Rio de 1992, que assim dispõe:
Princípio 10 - A melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo deve ter acesso adequado às informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar em processo de tomada de decisões. Os Estados devem facilitar e estimular a conscientização e a participação pública, colocando a informação à disposição de todos. Deve ser propiciado acesso efetivo a mecanismos judiciais e administrativos, inclusive no que diz respeito à compensação e reparação de danos.
7. Competição e cooperação
A Biologia do Conhecer é uma das críticas mais avassaladoras à noção de que capturamos, através dos sentidos, um mundo já pronto e acabado, cujo conhecimento se dá através de descoberta, desvendamento, revelação do que está oculto (representacionismo). Humberto Maturana, de forma revolucionária, introduz a ideia de que o mundo é construído pelo sujeito, ou seja, não é anterior às suas experiências, mas decorrente de sua trajetória de interação.
A partir de sua construção teórica, Maturana questiona as explicações correntes sobre a natureza competitiva do ser humano, seja nas suas formas hard (do tipo das hipóteses urdidas pelos sociobiólogos e pelos socialdar-winistas), seja nas suas formas mais soft (do tipo das hipóteses celebradas por economistas, sociólogos, antropólogos e biólogos da evolução que trabalham, baseados na teoria dos jogos, com o nonzero, ou melhor, com a non-zero-sumness, com a rational choice, enfim, com a combinação otimizada entre competição e colaboração ou com a prevalência da relação "olho por olho" a longo prazo) (Franco, 2008).
A refutação é simples: se o que nos torna humanos é a linguagem, e se a linguagem é uma coisa que, definitivamente, não pode surgir na competição, então a competição não pode ser constitutiva do ser humano, nem individual nem socialmente falando. O primata bípede que antecedeu ao homem não se teria humanizado se tivesse vivido num ambiente predominantemente competitivo.
Maturana sustenta ainda que o fenômeno da competição que se dá no âmbito cultural humano e que implica contradição e negação do outro, não se dá no âmbito biológico. Os seres vivos não humanos não competem, deslizam uns sobre os outros e com os outros em congruência recíproca ao conservar sua autopoiesis e sua correspondência com um meio que inclui a presença de outros e não os nega.
Disso decorre que não é a competição que caracteriza a essência do ser humano, mas a cooperação, que emerge como um componente biológico e nasce com o homem
O que ocorre, sim, é que nós, seres humanos, somos o presente de uma linhagem de primatas bípedes cujo devir evolutivo se produziu em torno da conservação de um conviver no amar, na ternura e na sensualidade num espaço relacional que surgiu com a constituição da família como um âmbito pequeno de colaboração no linguajear. (Maturana, 2009, p. 84)
Estudos demonstram que antes da nossa civilização patriarcal, guerreira e dominadora, existia um outro tipo de sociedade. Uma sociedade na qual os seres humanos viviam em regime social de parceria, em relativa harmonia entre si e com a natureza. Para uma parte de tais pesquisadores foi a cultura patriarcal de algumas hordas seminômades de guerreiros (indo-europeus) que destruiu uma cultura uniforme e pacífica que se estendia por toda a Europa Antiga, durante vinte mil anos, do paleolítico ao neolítico (Eisler, 2007).
8. A mediação como alternativa de resolução de conflitos
A mediação é universalmente conhecida entre os grupos humanos desde as sociedades mais primitivas. É frequentemente utilizada como alternativa ao sistema judiciário para solucionar as disputas intersubjetivas.
Atualmente a mediação é aplicada em diversos domínios, seja pessoal, comunitário, nacional ou internacional. Em sentido amplo, é a intervenção de uma terceira pessoa neutra para favorecer a resolução de litígios nos conflitos de trabalho, familiares, comerciais ou sociais.
A mediação pode ser definida como um processo de gestão de conflitos no qual os desavindos solicitam ou aceitam a intervenção confidencial de uma terceira pessoa, qualificada e de sua confiança, para que encontrem por si mesmos as bases de um acordo duradouro e mutuamente aceitável, que contribuirá para a reorganização da vida pessoal (Warat, 2001).
Diversamente do processo contraditório/dialético judicial, a mediação não procura determinar quem está certo ou quem está errado, quem ganha e quem perde, mas tende a estabelecer uma solução sensata e justa em função das necessidades das partes envolvidas.
Em 1996 o advento da Lei da Arbitragem (Lei n. 9.307/96) fez com que a mediação, assim como as demais formas alternativas de resolução de conflitos, tomasse impulso no Brasil.
Presentemente tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que instituirá a denominada mediação "paraprocessual"' como fase preliminar das ações judiciais, introduzindo o instituto, de forma irreversível, em nosso sistema jurídico.10
9. A mediação ambiental
A mediação ambiental teve seu início nos Estados Unidos em 1970, por esforços de um pequeno grupo, entusiastas da matéria. Atualmente a prática encontra-se arraigada, existindo lei federal que encoraja o seu uso.
No Brasil, o princípio constitucional da indisponibilidade do meio ambiente tem afastado o emprego da mediação para a resolução dos conflitos ambientais, nada obstante esta ferramenta não implicar, por si só, em concessões sobre bens de uso comum do povo.
Ao revés, longe de preconizar uma flexibilização da proteção ambiental, a mediação gera espaços propícios - pautados pelo diálogo assistido e transparência procedimental - para a tomada de decisão em matéria ambiental, buscando soluços, dentro das regras vigentes, porém com novas estratégias, vislumbrando encontrar alternativas não simplistas para o balanceamento entre o desenvolvimento sócio-econômico e a preservação do meio ambiente, valores igualmente relevantes e tutelados em nível de igualdade pela Constituição Federal, mas que experimentam severo desequilíbrio no seio da sociedade.
Dessa forma, a reflexão acerca da possibilidade e conveniência da utilização da eco-mediação às questões ambientais - intrinsecamente conflitivas -, revela-se oportuna e impostergável,
Pois não se trata apenas de configurar uma 'engenharia ambiental', capaz de olhar os fenômenos sob a lente de um quadro pré-construído de possibilidades institucionais de equacionamento e resolução de conflitos, mas, sim, de reconstituir a sociologia relacional que dá historicidade aos mesmos. Nesse sentido, merece particular atenção o esforço crescentemente generalizado de criação, em inúmeros países da América Latina, de projetos voltados para a disseminação de tecnologia de resolução de conflitos ambientais. (Acselrad 2004:9)
E, nesse sentido, Funtowicz e Ravetz alertam que
Os novos problemas relacionados a riscos e ao meio ambiente têm aspectos comuns que os distinguem dos problemas científicos tradicionais: os fatos são incertos, os valores, controvertidos, as apostas elevadas e as decisões urgentes. Chamamos de ciência pós-normal a estratégia de resolução de problemas adequada a esse contexto. A função essencial de controle de qualidade e avaliação crítica não pode mais ser desempenhada por um corpo restrito de especialistas. O diálogo sobre a qualidade e a formulação de políticas devem ser estendidos a todos os afetados pela questão, que formam o que chamamos de 'comunidade ampliada dos pares' (Funtowicz & Ravetz, 1997:1).
Considerações finais
Desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, nascida sob a influência dos valores da Revolução Francesa, os direitos fundamentais passaram a ser o núcleo do constitucionalismo moderno.
Com o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pelas Nações Unidas em 1948, a fraternidade, definitivamente, deixa de ser apenas um ideário revolucionário, ou mero comportamento espontâneo ínsito à natureza humana, para se tornar mandamento universal, conforme proclamado em seu artigo 1°: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidades e direitos. Dotados de razão e consciência devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade".
No Brasil, enquanto a administração da Justiça - cada vez mais massiva e impessoal - caminha, de uma maneira geral, para uma insensibilidade cruel, assiste-se, afortunadamente, ao afloramento de uma nova cultura jurídica que realça o ser humano como fim em si mesmo, a partir do paradigma emergente da fraternidade, assentando as bases para um novo constitucionalismo, cujo embrião já se divisa na Magna Carta de 1988.
Efetivamente, o Poder Judiciário reflete, em sua essência, o lado competitivo e patriarcal da sociedade, ao consagrar como parâmetros às suas decisões o maniqueísmo do bem e do mal, do certo e do errado, do culpado e do inocente, do vitorioso e do derrotado etc. Esta prática, que está centrada na desconfiança e no controle, na autoridade e na subjugação, na apropriação e na cegueira perante o outro, nega o amar.
Já a mediação, ao perseguir não apenas a eliminação do litígio posto, mas a pacificação dos desavindos, supõe que os indivíduos quando se encontram com seus pontos de vista divergentes ou excludentes, não devem buscar na realidade o critério de validade de qual deles é verdadeiro, mas reconhecer que se tratam de domínios explicativos diferentes, e que os argumentos que aí parecem equivocados ou ilusórios não são senão proposições escutadas em domínios explicativos diferentes. Consequentemente, todo desacordo, teórico ou não, poderia ou deveria resultar em um convite à reflexão responsável sobre em que mundo se deseja viver com o outro.
Ora, essa perspectiva nada mais é do que a concretude do princípio da fraternidade, conferindo-lhe operacionalidade.
Não por outro motivo que Antonio Maria Baggio afirma que "o elemento fraterno desempenha um papel destacado nos processos de mediação e superação dos conflitos", resultando ainda em "ações de grande relevo [...] como exemplo a obra de mediação de conflitos realizada pela Comunidade de Santo Egídio em vários lugares" (Baggio, 2009, p. 19-20).
Hessa toada, é secundado Munir Cury (2008), que aponta "a Justiça Restaurativa e a mediação de conflitos" como "dois campos em que o princípio da fraternidade pode também ter grande incidência".
Todavia, viver a fraternidade implica em sair da cultura patriarcal-matriarcal que a nega, e de resto se constitui na matriz do sistema legal que orienta a administração da Justiça.
A mediação apresenta-se como um novo espaço relacional e reflexivo, abrindo o caminho para conversações liberadoras que, livre das amarras da realidade objetiva desenhada pela lei e do autoritarismo que vem caracterizando seus aplicadores, enseja a busca de soluções mais consentâneas com o bem-estar dos indivíduos e, consequentemente, para a consolidação da fraternidade enquanto categoria jurídico-constitucional, tendo em vista a iminente incorporação do instituto no ordenamento jurídico brasileiro.
Especialmente quando aplicada à solução dos conflitos ambientais, a mediação se mostra um campo de experimentação fecundo e replicante para a materialização do princípio da fraternidade, porquanto o objeto das disputas que envolvem o meio ambiente supõem interesses magnos de toda a sociedade, cujo risco de perecimento contribui para despertar uma conduta menos egoísta e mais receptiva a novos padrões de comportamento.
Em suma, os conflitos ambientas têm características específicas que os distinguem dos outros conflitos, exigindo estratégias de resolução próprias, que não encontram respaldo no modelo patriarcal, donde concluir-se que o aprofundamento do estudo da mediação como meio capaz de potencializar o desenvolvimento de uma cultura de pacificação na sociedade mostrase relevante e inadiável.
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1 Antonio Maria Baggio é professor extraordinário de filosofia política do Instituto Universitário Shofia, na Itália, autor, dentre outros, do livro O Princípio Esquecido. Vol. 1 (2008) e vol. (2009).
2 Antonio Maria Baggio is extraordinary professor of political philosophy at the Graduate Institute Shofia, Italy, author, among others, the book The Forgotten
3 A interpretação não apenas sistêmica, mas, sobretudo, história, conduz à patente admissão do princípio da fraternidade no âmbito constitucional, na medida em que a Constituição de 1988 veio a lume após longo período de ditadura militar, no qual exacerbou-se, na sociedade, a ideia de fraternidade, notadamente em função da violação dos direitos humanos
4 Promovido pelo Movimento Comunhão e Direito, em 26 de janeiro de 2008, em Vargem Grande Paulista, São Paulo.
5 Conferência proferida no citado Congresso Nacional - "Direito e Fraternidade", em 26 de janeiro de 2008.
6 Este artigo está disponível em <http://www.pjpp.sp.gov.br/2004/artigos/39.pdf>. Acessado em 30 ago. 2011.
7 Publicada no DJU 26 out. 2007, ementário n°. 2295-4.
8 "Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações."
9 Conforme publicado na Revista de Direito Ambiental (2001, v.18, p. 198).
10 Aliás, não são de hoje os esforços para introduzir mecanismos de conciliação no Direto brasileiro. A Lei n°. 8.952/94, que alterou, entre outros, os artigos 125 e 331 do Código de Processo Civil, reforçou os poderes conciliatórios do juiz estimulando sua atividade mediadora no curso da lide. Todavia não foi o bastante, já que a conciliação conduzida pelos magistrados sofre consideráveis limitações, a maioria delas provenientes da falta de tempo ocasionada pelas pautas sobrecarregadas. Essas dificuldades procuraram ser mitigadas pela lei que implantou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei n°. 9.099/95), valorizando e consolidando a posição dos conciliadores, também chamados juízes leigos.