Sumário: I. Introdução. II. Metodologia. III. Movimento social: teorias e articulações. IV. Movimento feminista na América Latina: desenho do feminismo no Brasil e no Uruguai. V. Dinâmica atual do direito ao aborto no Brasil e no Uruguai: diálogo com a formação histórico-política de ambos os países. VI. Considerações finais. VII. Referências.
I. Introdução
O presente artigo pretende realizar um estudo comparativo sobre o aborto no Brasil e no Uruguai, a partir da perspectiva do movimento feminista, sendo este entendido como um movimento social. Nesse sentido, a escolha dos países destacados para o estudo proposto guarda relação com a ideia de comparar a atuação do movimento feminista em ambos, para avaliar a consequência de tal atuação na posição que cada país adota quanto à permissividade legal e social do aborto.
Apesar de representarem extremos no âmbito da permissividade referida, os países eleitos para a comparação feita acabam se aproximando sob o ponto de vista das disputas territoriais que envolveram seus respectivos colonizadores, fato que também justifica a escolha daqueles, pois o estudo comparativo se baseia, de um modo geral, no estudo das diversidades, não obstante a comparação simultânea de semelhanças e contrastes seja o tipo de comparação possível, pois não se comparam duas situações absolutamente idênticas, nem duas inteiramente diferentes.
No aspecto, o texto desenvolvido busca testar a seguinte hipótese: o modo como o Brasil e o Uruguai encaram o aborto tem uma ligação direta com a diferença na atuação dos movimentos feministas dos dois países. A hipótese levantada dialoga com a pesquisa das raízes dessa diferença, a partir das características distintas relativas aos processos histórico-políticos de formação do Brasil e do Uruguai, que tenham exercido algum nível de influência nas especificidades quanto à atuação dos movimentos feministas de ambos os países.
A respeito da perspectiva utilizada a título comparativo, na pesquisa, pode ser justificada a escolha pelo movimento feminista pois é de causar estranhamento o fato de que, embora os dois países tenham um movimento dessa estirpe em seu seio social, isto não garantiu o direito ao aborto nos dois. No Brasil, o ato é, em regra, criminalizado, enquanto no Uruguai é legalizado.
Sobre o aborto em si, é importante destacar que a abordagem da pesquisa diz respeito ao ato praticado de forma voluntária por parte da gestante ou de um terceiro por ela autorizado a fazê-lo, pois todo conflito de posições em torno do assunto se dá majoritariamente nessa seara. Assim, as situações de aborto, para Diniz (2001, 134-135), são reduzidas a quatro grandes tipos, quais sejam, a interrupção eugênica da gestação (IEG), a interrupção terapêutica da gestação (ITG), a interrupção seletiva da gestação (ISG), e, por fim a interrupção voluntária da gestação (IVG).1
A estrutura do artigo foi dividida em três itens além da introdução e das considerações finais, sendo o primeiro, movimento social: teorias e articulações, o segundo, movimento feminista na América Latina: desenho do feminismo no Brasil e no Uruguai; e, por fim, o terceiro item, dinâmica atual do direito ao aborto no Brasil e Uruguai: diálogo com a formação histórico-política de ambos os países.
Já as considerações finais retomam a proposta introdutória do artigo, fundada na ideia de comparar o tratamento dado ao aborto no Brasil e no Uruguai, sendo a hipótese levantada tida como parcialmente verdadeira, tendo em vista que a dinâmica dos movimentos sociais normalmente atua com a resistência de contramovimentos, e, no caso específico de ambos os países, a formação históricao-política deles e o grau de secularização de cada um influenciou na força de atuação do movimento feminista quando do atendimento ou não de suas demandas.
II. Metodologia
O caminho escolhido para a escrita do artigo foi trilhado a partir de uma pesquisa bibliográfica, com base na concepção de Arruda Filho e Farias Filho (2015, 64) de que esse tipo de pesquisa se fundamenta em materiais já publicados, sejam livros ou artigos de periódicos científicos, sendo o método eleito meio e fim desta pesquisa, pois partindo da própria bibliografia consultada pretende-se chegar a algumas respostas que possibilitem a testagem da hipótese suscitada, assim como é de tal bibliografia que serão retirados dados para análise como forma de apresentar resultados.
Assim, a divisão do texto nos tópicos a seguir explicados acaba dialogando com o método bibliográfico, porque o objetivo geral do estudo é compreender a evolução do que já foi publicado a respeito da permissividade do aborto, no contexto da atuação do movimento feminista no Brasil e no Uruguai.
Desta forma, o primeiro item, ao tratar das teorias e articulações dos movimentos sociais, traz o substrato para a posterior localização do movimento feminista nesse âmbito, uma vez que o segundo item traz considerações sobre a atuação deste na América Latina, e, de forma mais específica, nos países comparados, sobretudo na época da redemocratização de ambos, justamente o período em que feminismo ganha fôlego quanto à sua atuação.
Já no segundo item, quando o movimento feminista latinoamericano é colocado, trazendo o modo como esse movimento foi se construindo no Brasil e no Uruguai, há questionamentos importantes sobre a origem do feminismo ocidental, tendo em vista que este pouco se relaciona a situação da América Latina, da década de 1980, quando a maior parte dos países da região enfrentava regimes políticos autoritários, o que resultou numa dupla militância do movimento, o qual findou marcado pelo entrecruzamento das suas próprias pautas com a política.
Por fim, o terceiro item busca explicar de que modo a formação histórico-política de ambos os países contribuiu para a atual dinâmica prática deles com relação à permissividade do aborto, trazendo dados atuais sobre a confiabildiade que cada um imprime à igreja e ao sistema político enquanto instituições.
III. Movimento social: teorias e articulações
Traçando importantes considerações sobre a suposta estagnação da teoria do movimento social, Jasper (2010, 965) afirma que as ideias sobre tal estagnação estão ligadas às grandes teorias que relacionam movimentos à história e à sociedade, tendo em vista que a marca de toda uma geração, a partir da década de 1960, nasce de várias dessas teorias, sendo três2 delas associadas a um nome específico,3 com duas macrossociológicas, a americana e a francesa, influenciadas pelo marxismo; e a terceira, baseada na microeconomia.4
Assim, destaca-se que um movimento social, considerado uma forma de ação coletiva oriunda de um conflito pré-existente, surge, de modo geral, devido à existência de tensões estruturais geradoras de violação a determinados interesses - sendo estes muito concretos em algumas situações, e difusos em outras; também porque nenhum dos outros atores coletivos, sejam eles partidos ou grupos de interesse, assumiu o propósito de enfrentar a violação em questão; e, por fim, pelo fato de que os indivíduos sujeitos às violações as quais aludem sofrer não vislumbram a solução de tais conflitos da forma como gostariam que eles fossem resolvidos5 (Grau, Güel 2000, 9-10).
Voltando-se para as ideias de Jasper (2010, 965-966), ele afirma que os paradigmas das teorias dos movimentos sociais, no início deste milênio, atingiram seus limites por diversas razões, seja por uma questão de mudanças históricas, seja pela acumulação de anomalias, também por motivos relacionados à parcialidade das metáforas centrais das abordagens, explicando o autor que a concepção predominante na teoria e pesquisa dos movimentos sociais americanos, por 30 anos, guardou relação com a mobilização de recursos, sendo depois absorvida pela teoria do processo político.6
Para Della Porta e Diani (2006, 16), as teorias do processo político têm como centro de debate a relação entre os atores políticos institucionais e o protesto, pois com o desafio a uma dada ordem política, acaba ocorrendo a interação dos movimentos sociais com os atores que gozam de uma posição consolidada na política. Hoje, considera-se que o estudo dos movimentos sociais se estabeleceu de modo sólido, o que não significa que os eventos políticos e sociais das últimas quatro décadas tornaram o ativismo popular algo menos relevante ou urgente, pelo contrário, tal ativismo, traduzido nas ações de protesto, nos movimentos sociais e nas disparidades entre organizações políticas ou sindicatos, tornou-se um elemento permanente das democracias ocidentais (Della Porta, Diani 2006, 1).
Desta forma, pontua Alonso (2009, 51) que, nos anos 1970, três famílias de teorias dos movimentos sociais foram desenvolvidas, a teoria de mobilização de recursos (TMR), a teoria do processo político (TPP) e a teoria dos novos movimentos sociais (TNMS). Na TMR, existe a partilha instrumental de recursos por parte dos atores, a fim de alcançar objectivos específicos, não sendo desenvolvido, porém, nenhum sentimento particular de pertença e de um futuro comum durante o processo (Della Porta, Diani 2006, 24).
A TMR faz a avaliação dos movimentos sociais igualando-os a um fenômeno social como outro qualquer, como os partidos políticos, por exemplo, sendo pautada na faceta racional e estratégica da ação coletiva, reservando à cultura um lugar residual, tendo em vista a relevância que imprimiu à explicação do processo de mobilização em detrimento de identificar as razões deste.7 Havia, na TMR, um olhar privilegiado para a racionalidade e organização8 (Alonso 2009, 52-53).
Já a TPP e a TNMS, para Alonso (2009), nasceram da exaustão dos debates marxistas sobre as possibilidades da revolução, tendo as duas teorias em comum o fato de se insurgirem contra a concepção de um sujeito histórico universal, e também contra explicações deterministas e economicistas da ação coletiva, tudo isto a partir de explicações macro-históricas avessas à ideia da economia como chave explicativa, além de combinarem política e cultura na explanação acerca dos movimentos sociais, diferenciando-se as duas teorias no sentido de que a TPP investe numa teoria da mobilização política, enquanto a TNMS se sustenta numa teoria da mudança cultural.
Nesse sentido, tomando como foco as teorias culturalistas e identitárias dos movimentos sociais, uma outra denominação para a TNMS, é relevante pontuar o mérito delas a respeito da busca que empreenderam pela complexidade simbólica e de orientação política dos agrupamentos coletivos formadores dos referidos movimentos, de acordo com o princípio da diversidade sociocultural, a qual pode ser exemplificada pela questão de gênero, étnica, ecológica, dentre outras (Scherer-Warren 2011, 18).
Para Alonso (2009, 60-61), a TNMS tem por característica a ausência de demarcação de uma base social, pois seus atores não se definiriam mais por uma atividade ou pelo trabalho, mas por formas de vida, reforçando a autora o que foi dito sobre os novos sujeitos fazerem parte de grupos marginais quanto aos padrões de normalidade sociocultural. Esses novos movimentos recorrem a formas de ação direta, atuando como agentes de pressão social, com o objetivo de persuadir a sociedade civil, dispensando a organização voltada para o combate ao Estado ou a finalidade de conquistá-lo, sendo os movimentos ambientalista e feminista seus principais exemplos (Alonso 2009, 60-61).
Com isto, o caráter complexo e multicultural das sociedades globalizadas desperta uma tendência de pluradidade das identidades, com a consequente formação de redes de movimentos sociais, tendo em vista a aproximação de atores sociais diversificados. Um exemplo emblemático de luta transversal de direitos para a América Latina e para a sociedade global é a Marcha Mundial das Mulheres (MMM), originada do movimento de mulheres,9 sendo a característica dessa marcha atuar como um projeto de mobilização social do qual participam organizações não governamentais (ONG) feministas, mas também comitês e organismos mistos de mulheres e homens que se identificam com a causa do projeto (Scherer-Warren 2006, 115-116).
Diante da articulação dos movimentos sociais, a partir da complexidade cuja tendência se liga às suas redes, localiza-se o movimento feminista, a princípio, na TNMS, sendo um fato de destaque que as ativistas que o compõem enfrentam questões estruturais as quais ultrapassam barreiras políticas ou de categorias de análises, tendo em vista a constituição milenar das sociedades a partir da sistemática do patriarcado,10 responsável por se apropriar, em maior ou menor grau, dos corpos das mulheres.
A respeito dessa apropriação do corpo da mulher, a realização do aborto como uma decisão puramente desta representa, para Rostagnol (2016, 34), a quebra da dominação masculina sobre o controle dos corpos femininos e da reprodução, porém, isto não significa que a legalização do procedimento abortivo tenha por consequência relações mais equitativas em si mesmas, uma vez que estas permeiam um plano mais profundo, estrutural, formando parte do habitus11 de gênero.
Ainda sobre a atuação dos movimentos sociais, desta vez com foco na América Latina, registra-se que essa atuação esteve intrinsecamente ligada, na primeira década do século XXI, ao processo democrático em alguns países da região, havendo o ressurgimento de lutas sociais que não eram novidade e já tinham acontecido décadas atrás, como é o caso de movimentos étnicos, em especial os indígenas, na Bolívia e no Equador; os piqueteiros, na Argentina; os coaleiros, na Bolívia e no Peru; os zapatistas, no México; além dos movimentos que se articulam às redes de movimentos sociais globais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil e a Via Campesina (Gohn 2014, 74).
No contexto do Brasil e o Uruguai, países comparados neste artigo, é imprescindível citar a afirmação de Gohn (2014, 79) a respeito dos caracteres dos movimentos sociais, no processo de redemocratização brasileira, os quais acabaram se fragmentando, nas décadas de 1970 e de 1980, restando menos articulados com sindicatos, pastorais ou partidos, de modo que, após o grande debate sobre a crise dos mesmos movimentos, nos anos 1990, demonstrou-se que além da fragmentação destes, eles passaram a conviver com múltiplas identidades -negro, idoso, mulher- sendo destaque, nos anos 1990, a participação das mulheres em movimentos no campo da organização alimentar e cooperativas solidárias.
Quanto ao Uruguai, diversos movimentos podem ser visualizados, a partir da onda democrática do período 1985-1989, surgindo uma série de mobilizações políticas e culturais, com uma certa autonomia diante do sistema político, quais sejam, os de bairro, comunidades, da juventude, dos direitos humanos, que findaram por desaparecer ou ser absorvidos “perversamente”12 pelos partidos de esquerda devido à falta de imaginação, bem como a uma prática política que aparenta ser admitida somente pelos canais institucionais de expressão13 (Krischke, Gadea 2000, 16).
Sobre o Brasil, consideram Monteiro, Moura e Lacerda (2015, 175) que a promulgação da Constituição Federal Brasileira, de 1988, foi o marco da transição democrática no país. O processo constituinte de elaboração do documento contou, em 1985, com a participação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) responsável pela campanha Mulher e Constituinte, a qual buscou debater e discutir questões de interesse das mulheres, em todo o país, resultando na entrega, ao Congresso Nacional, em 26 de agosto de 1986, da Carta das Mulheres aos Constituintes,14 numa atuação publicamente caracterizada como o lobby do batom, cujos frutos foram convertidos em direitos constitucionais15 (Silva 2011, 42).
Além dos direitos referidos no parágrafo anterior, também foi intensificado, no contexto da transição democrática brasileira, o debate relativo ao aborto, havendo, em grande parte da década de oitenta, uma participação mais ampla dos atores políticos na discussão sobre o tema, sendo a década de noventa considerada o período de consolidação do debate pontuado, pois existiam várias iniciativas parlamentares identificadas com as concepções do movimento feminista, apesar das iniciativas no sentido contrário e muitos protestos de congressistas vinculados a religiões16 (Rocha, Rostagnol, Gutiérrez 2009, 221).
Com relação ao Uruguai, Lopez (1995, 96) afirma que a realização das primeiras eleições livres, em novembro de 1984, marcou o processo da democratização do país citado, embora tal processo somente tenha ocorrido na prática com a posse do novo governo, em março de 1985.17 A participação político-social da mulher, para Silva (2018, 90), representa um caso mais antigo no Uruguai do que no Brasil, pois já na década de setenta do século XIX, com a reforma da educação do primeiro país, marcada pela incorporação do princípio do modelo laico de ensino, as raízes do feminismo começavam a brotar na região com o envolvimento da mulher no debate sobre a educação pública18 (Johnson et al. 2011, 26-27).
Ainda, sobre o Uruguai, é relevante destacar que, para Johnson et al. (2011, 14-15), a recuperação da democracia no país, a partir de 1985, reavivou o debate social e parlamentar sobre a despenalização do aborto, o qual ganhou densidade e se fez mais intenso, sendo o referido debate uma consequência que acompanhou o processo de recuperação e aprofundamento da vida democrática uruguaia, fazendo parte das tensões inerentes aos processos de transformação cultural profunda vivenciados por uma sociedade.19
Com isto, tomando como base as características do movimento feminista latinoamericano, em especial, quanto à onda das reivindicações sobre direitos reprodutivos, estando o direito ao aborto incluído nesse rol de direitos, é relevante pontuar o caráter intrinsecamente político do citado movimento, principalmente no Brasil e no Uruguai, países contemporâneos em termos de redemocratização, sendo necessária a breve explanação feita sobre os movimentos sociais para que se localizasse o movimento feminista nesse universo, ocupando o feminismo o quadro das articulações em rede dos movimentos sociais do século XXI.
Então, o item a seguir trará explanações sobre a formação do movimento feminista na América Latina, partindo da formação do mesmo movimento desde as suas raízes ocidentais, com a posterior busca do diálogo desse contexto com as realidades específicas do Brasil e do Uruguai, para que a hipótese suscitada neste artigo seja passível de ser testada e avaliada.
IV. Movimento feminista na América Latina: desenho do feminismo no Brasil e no Uruguai
Sobre a análise do feminismo como movimento social, ele é estudado didaticamente a partir das chamadas ondas, com a primeira configurada no final do século XIX, suscitando pautas relativas aos direitos políticos -como o de votar e ser votada-, bem como aos direitos sociais e econômicos -como o direito ao estudo, à herança, o de trabalho remunerado e o de propriedade (Pedro 2005, 79)-. Ainda sobre a primeira onda do feminismo, Narvaz e Koller (2006, 649)20 afirmam que ela foi marcada pelo movimento sufragista, estruturado na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos e na Espanha.
Já a segunda onda do feminismo, a qual surgiu, sobretudo, nas décadas de 1960 e 1970, nos Estados Unidos e na França, tem por marca a denúncia da opressão masculina pelas norteamericanas, bem como a busca da igualdade, enquanto as francesas reivindicavam a necessidade de serem valorizadas as diferenças entre homens e mulheres, chamando a atenção para a questão da visibilidade, sobretudo no que diz respeito à especificidade da experiência feminina, geralmente negligenciada, sendo este viés conhecido como feminismo da diferença,21 ao passo que o viés das norteamericanas era conhecido como feminismo da igualdade (Narvaz, Koller 2006, 649).
Para Fraser (2009, 15), a segunda onda surgiu no contexto do capitalismo organizado pelo Estado, entendida tal expressão como a formação social hegemônica na era do pós-guerra, caracterizada pelo exercício, por parte dos estados, de um papel ativo quanto à condução de suas economias nacionais. No aspecto, o feminismo de segunda onda é considerado um movimento político, pois objetivava modificar as condições das mulheres a partir de um projeto abertamente político, do qual derivou um projeto intelectual -a teoria feminista, cuja pretensão visava a facilitar a mudança das condições das mulheres (Keller 2006, 15)-.
Com relação à terceira onda, também chamada de pós-feminismo, esta ocorreu a partir dos anos 1980, tendo por marca a emergência das teorias críticas à segunda onda, havendo duas mudanças significativas: a categoria unificadora mulher acaba sendo preterida pela categoria gênero; foi levada em conta uma demarcação das fronteiras de classe, localidade, raça e sexualidade (Gonçalves, Pinto 2011, 30).
Narvaz e Koller (2006, 649) destacam que a terceira onda é marcada pela influência às feministas francesas do pensamento pós-estruturalista predominante na França, em especial o de Michel Foucault e de Jacques Derrida, existindo uma proposta costurada a partir da análise das diferenças, da alteridade, da diversidade e da produção discursiva da subjetividade.
No aspecto das ondas feministas e da configuração do movimento, questiona Schild (2017, 100), a partir da pesquisa das experiências próprias do feminismo latinoamericano, se o argumento trazido por Nancy Fraser, em O feminismo, o capitalismo, e a astúcia da história,22 a respeito da tripla periodização23 das ondas, seria aplicável aos Estados desenvolvimentistas ex-coloniais do então chamado Terceiro Mundo, trazendo a seguinte indagação: Em que medida esse modelo é aplicável à América Latina?
Para responder ao seu próprio questionamento, Schild (2017, 101) faz uma crítica contundente a Fraser pelo fato de que o Estado capitalista de 1970, na região latinoamericana, não foi a burocracia despolitizada que a segunda autora descreve, tendo em vista a vivência da região, no período, de regimes fortemente repressivos, emergindo os movimentos feministas da década de setenta no contexto de lutas revolucionárias contra tais regimes.24
Borges (2009, 35-36) endossa o argumento sobre o quanto as décadas de 1960, 1970 e 1980 foram expressivas na história do feminismo latinoamericano, tendo em vista que ele apresentava, à época, a peculiaridade de desenvolver, por vezes, uma dupla militância, pois combinou a militância política contra os regimes militares com reivindicações de defesa dos direitos humanos.
No contexto do Brasil e do Uruguai, é relevante frisar que o Brasil firmou as raízes do seu movimento feminista ainda no século XIX, a partir da articulação de mulheres que eram professoras (como Ana Aurora Lisboa), artistas (Chiquinha Gonzaga) e escritoras (Nísia Floresta), cuja luta era baseada em causas abolicionistas, nos direitos civis e políticos, com fundamento na democracia liberal.
Além disso, somente no início do século XX, as campanhas sufragistas ganharam força, de modo que, sob o ponto de vista institucional, em 1910, foi criado o Partido Republicano Feminino, e em 1922, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, com a finalidade de apoiar direitos políticos das mulheres (Rangel 2012).
A respeito do Uruguai, é imprescindível pontuar que o feminismo uruguaio foi organizado no contexto de sua própria inserção no debate público,25 sobre tudo quando se trata da cidadania, bem como da tensão entre liberalismo e clericalismo, de modo que cabe citar o protagonismo da Professora María Abella, que fundou, em 1902, a Revista Nosotras, dedicada a promover reflexões e reivindicações sobre os direitos das mulheres, o que colaborou de forma decisiva para a criação de centros feministas no país em destaque (Silva 2018, 95).
Ainda, sobre o Brasil, o feminismo entra em efervescência na época da redemocratização, em 1980, havendo inúmeros coletivos e grupos tratando de temas como violência, sexualidade, direito ao trabalho, igualdade no casamento, direito à saúde materno-infantil, luta contra o racismo, sendo tais grupos organizados muito próximos aos movimentos populares de mulheres, o que caracterizou as novas percepções, discursos e ações no contexto do feminismo, que se originou na classe média intelectualizada brasileira mas acabou por dialogar com as classes populares (Pinto, 2010).
Para Johnson et al. (2011), as feministas uruguaias questionavam a organização da sociedade, e pleiteavam, muito antes da democratização, o que era considerado “a pedra angular de todos os direitos”, o sufrágio, sendo incluída na luta por direitos individuais, a modificação dos papéis sexuais dentro da instituição familiar, o que acarretou na adoção, em 1933, de um novo Código Penal responsável por despenalizar o aborto e admitir a eutanásia, voltando o procedimento a ser penalizado, em 1938, em virtude da pressão de diversos grupos como juristas, médicos, políticos e bispos católicos26 (Johnson et al. 2011, 21-26).
Nesse sentido, explica Ávila (2003) que, no contexto do movimento feminista, os direitos reprodutivos,27 entendidos como aqueles referentes à igualdade e à liberdade na esfera de vida reprodutiva, são reconhecidos como valores democráticos e fazem parte da agenda política dos contextos nacionais e internacionais. Assim também é o entendimento, no Brasil e no Uruguai, do movimento feminista como um todo, o que não significa que ambos os países garantam o direito ao aborto às mulheres.
Desta forma, quanto ao aspecto político do movimento feminista, Ruibal (2014, 111-112) destaca que a influência histórica, nos sistemas latinoamericanos, da Igreja Católica, e, mais recentemente das igrejas evangélicas, tem logrado êxito no sentido de influir diretamente na temática do aborto, havendo reformas na última década que têm liberalizado o procedimento em distintos graus, não escapando o Brasil e o Uruguai dessas reformas.
Assim, deparando-se com a questão do direito ao aborto nos dois países cotejados, a forma como esse procedimento era encarado pelo movimento feminista de ambos tinha a sua raiz, tanto no Brasil, para Barsted (1992, 104), como no Uruguai, na concepção de Rostagnol (2016, 35), na interferência do Estado no corpo da mulher. O acesso ao aborto significa uma referência aos graus de liberdade ou restrição reprodutiva das mulheres, sendo levantada a interessante questão sobre o procedimento abortivo sempre revelar uma prática sexual, e, no caso das mulheres, muitas vezes é essa prática que se reprime, e não a realidade em si do aborto (Rostagnol 2016, 35).
No Brasil, ao longo da década de oitenta, houve a articulação da problemática do aborto com outras questões que lhe deram legitimidade, a partir de diferentes discursos, sendo o procedimento defendido, a princípio, como um direito inerente à autonomia da vontade do indivíduo28 quanto a questões que dizem respeito a seu corpo; num segundo momento, como um quesito de proteção à saúde da mulher, sendo evidenciada a ideia de que proteger a saúde desta por meio da eliminação do aborto clandestino era um valor maior do que a proteção a uma vida em potencial; colocando-se, por fim, a necessidade de desvinculação do aborto da questão exclusivamente religiosa, devendo o Estado assumir uma posição laica a esse respeito (Barsted 1992,105-106).
Já no Uruguai, a temática do aborto esteve em alta, para Rostagnol (2016, 87), a partir do primeiro encontro sobre a saúde da mulher, em 1987, com declarações das participantes em voz alta sobre terem realizado o procedimento citado, representando essa atitude das mulheres a reinvidicação da apropriação dos seus próprios corpos. No mesmo ano foi criado o Gabinete Local das Católicas pelo Direito de Decidir, uma entidade cujo papel foi muito relevante até o fim do século passado, tendo esse processo como ápice o Movimento das Mulheres pela Legalização do Aborto.
No entanto, a mídia uruguaia não registrava a reivindicação das mulheres pela legalização referida, fato que não as calou, é tanto que, em 1989, foi publicado pelo Coletivo Feminista Cotidiano Mulher uma série de relatos de mulheres que abortaram, constituindo essa publicação um marco responsável por estabelecer uma posição política feminista clara no país em destque (Rostagnol 2016, 88).
Assim, nos diferentes âmbitos institucionais do sistema político e da estrutura estatal, para Ruibal (2014, 115), existe uma dinâmica entre mobilização e contramobilização que influi no contexto de oportunidades que se abrem ou se fecham, explicando a autora que a relação de um movimento com o Estado é afetada pela presença de um contramovimento, e a interação entre movimento e contramovimento se reflete muitas vezes no interior da estrutura estatal. Dito isto, é de extrema relevância pontuar essa dinâmica, tendo em vista a atual situação do Brasil com relação ao aborto, bem como a situação em que o Uruguai se encontra hoje.
Sobre o sentido político do debate a respeito do aborto, a etapa de consolidação de tal discussão, no Congresso Nacional brasileiro, abarca duas fases, a primeira abrangendo as duas legislaturas da década de noventa,29 com várias iniciativas parlamentares identificadas com as concepções do movimento feminista, e algumas de congressistas vinculados a religiões; enquanto a segunda fase se estende desde o final da década de noventa até a atualidade,30 sendo caracterizada pela ênfase da participação dos setores religiosos31 (Rocha, Rostagnol, Gutiérrez 2009, 221-222).
No Uruguai, afirma Rostagnol (2016, 61) que a primeira iniciativa parlamentar pós-ditadura para que o aborto voltasse a ser despenalizado (como era em 1934) foi apresentada por deputados do Partido Colorado, não prosperando, no entanto, o debate sobre o tema. Em 1993-1994, o Projeto de Lei de Regulação da Interrupção voluntária da gravidez foi apresentado por um deputado da Frente Ampla, o qual elaborou o projeto referido com a advogada feminista Graciela Dufau. O projeto contou com várias instâncias de discussão com grupos feministas, também com importantes acordos interpartidários, havendo nele a assinatura de representantes de todos os partidos políticos32 (Rostagnol 2016, 61).
Voltando-se para o Brasil, a pesquisa de Rocha, Rostagnol e Gutiérrez (2009, 223) explica que, nas três legislaturas -de 1999-2003, 2003-2007, e 2008- até o período pesquisado pelas autoras, 31 de maio de 2008, foram apresentados 55 projetos sobre a temática do aborto. Ao contrário da fase de consolidação de debate, quando cerca de 70% das propostas era favorável, em algum nível, à permissão do aborto, o período aqui avaliado teve cerca de 78% das proposições, conforme levantamento feito, contrárias, de alguma maneira, à permissão da prática abortiva.
Enquanto no Uruguai, o Projeto de lei de Regulação da Interrupção voluntária da gravidez, de 1993, foi apresentado novamente ao Parlamento, em 1998, com leves mudanças na sua exposição de motivos, não prosperando, apesar disso, a discussão do projeto. Ocorre que, partindo do aumento de mortes de gestantes por complicações pós-aborto, em 2001, uma parcela da comunidade médica se mobilizou para buscar alternativas com o fim de diminuir essa mortalidade, fazendo com que, entre 2002 e 2004, a Bancada Feminina reagisse com o desarquivamento do antigo projeto de lei (Rostagnol 2016, 61).
Diante desse cenário, que ilustra de forma breve os movimentos e contramovimentos que atuam na questão do aborto, no Brasil e no Uruguai, tem-se, no primeiro país, a previsão do Código Penal33 no sentido de penalizar o aborto provocado por terceiro e o aborto praticado pela própria gestante (autoaborto) como crime, considerando o mesmo Código como exceções os casos de gravidez decorrente de estupro, o chamado aborto sentimental, e quando há risco de morte para a gestante, ocasião em que pode ser realizado o aborto necessário.
Nesses casos, entre a vida da mãe e a do embrião/feto, o legislador brasileiro optou por privilegiar a vida materna, havendo uma previsão, sob o aspecto do Poder Judiciário, de não criminalização do aborto de feto anencéfalo, derivando esse entendimento da decisão do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54.34
Chamou a atenção releitura que ministro que proferiu a decisão fez da concepção kantiana sobre o homem não ser um meio para o fim,35 explicando o ministro que essa ideia também se aplicava à mulher, pois ela não deveria ser obrigada a gestar um filho que fatalmente morreria depois, somente para viabilizar a doação de órgãos desse filho para crianças vivas, tendo em vista que esse era o maior argumento dos que se diziam contrários à interrupção da gravidez.
No Uruguai, o aborto foi legalizado em outubro 2012, a partir da Lei 18.987, quando a interrupção voluntária de gravidez foi aprovada,36 desde que as mulheres cumpram um procedimento estipulado (Rostagnol 2016, 237). Em 2015, o Ministério da Saúde daquele país divulgou em seu relatório informações sobre a prática do aborto em 2014: 6.676 interrupções e nenhuma morte. Ou seja, houve redução das mortes maternas. A única morte registrada em decorrência de aborto foi praticada clandestinamente (Machado 2017, 16).
Enquanto no Brasil, com a pesquisa nacional de Diniz, Medeiros e Madeiro (2017, 658-659) sobre a temática, o problema das consequências da criminalização do aborto não só persiste nos país, como é um assunto negligenciado politicamente, quando os dados mostram que, em termos aproximados, aos 40 anos, quase uma em cada cinco das mulheres brasileiras já fez um aborto. Assim, somente no ano de 2015 ocorreram cerca de meio milhão de abortos. Considerando que grande parte dos abortos é ilegal, portanto, feito fora das condições plenas de atenção à saúde, essas magnitudes colocam, indiscutivelmente, o aborto com um dos maiores problemas de saúde pública do Brasil (Diniz, Medeiros e Madeiro 2017, 658-659).
Com as perspectivas colocadas, embora existam obstáculos na América Latina a respeito dos avanços do direito ao aborto, sobretudo pela influência de fatores religiosos como contramobilização aos citados avanços, esta demanda é legalizada37 no Uruguai, desde 2012, tendo em vista o caráter de alto grau (senão o maior) de secularismo38 da região, enquanto no Brasil, o aborto ainda é proibido como regra, sendo, inclusive, criminalizado, havendo exceção, conforme já dito, somente nos casos de risco de morte para a gestante, gravidez decorrente de estupro e gestação de feto anencéfalo (Ruibal 2014, 122).
Ante o exposto, a partir da hipótese levantada neste artigo no sentido de que o modo como o Brasil e o Uruguai encaram o aborto tem uma ligação direta com a diferença na atuação dos movimentos feministas dos dois países, já foi dada uma breve pista a respeito da importância de ser levada em consideração a forma como os contramovimentos atuam na dinâmica dos movimentos sociais, o que leva à conclusão preliminar sobre a hipótese ser parcialmente verdadeira, pois em todo caso onde existem forças digladiando politicamente, o lado mais forte, por uma questão lógica, é o que se organiza melhor e tem mais influência.
Diante disto, com as distinções pinceladas sobre a diferença entre o secularismo no Brasil e no Uruguai, e a articulação política, como é o caso do Congresso Nacional, no Brasil, e do Parlamento, no Uruguai, outra distinção que deve ser levada em conta diz respeito à formação histórico-política dos dois países. Assim, para que a resposta preliminar à hipótese seja confirmada, o item a seguir fomentará um diálogo entre a dinâmica atual do direito ao aborto nos países comparados com a formação histórico-política de ambos.
V. Dinâmica atual do direito ao aborto no Brasil e no Uruguai: diálogo com a formação histórico-política de ambos os países
Com a articulação teórica feita quanto ao aborto e a atuação do movimento feminista, no Brasil e no Uruguai, este tópico traz pontos sensíveis relativos à formação histórico-política dos países em destaque, tendo em vista o pressuposto do texto no sentido de que tal formação determina a dinâmica política atual deles, e, consequentemente, o peso exercido por um contramovimento religioso na dinâmica que envolve a questão do aborto atrelada ao movimento feminista.
Nesse sentido, tendo em vista a secular rivalidade que envolveu Portugal e Espanha na divisão territorial que engloba as regiões delimitadas, hoje, como Brasil e Uruguai, é importante pontuar que, embora Portugal tenha fundado a Colônia do Sacramento, em 1680, região hoje correspondente ao Uruguai, o domínio da referida colônia oscilava, não sendo inteiramente de Portugal, de modo que nos primeiros anos do século XIX esta região passou a pertencer Espanha, e ocupava, já à época, a área que, em termos gerais, corresponde atualmente ao Uruguai (Ferreira 2012, 22).
Sobre as disputas territoriais referidas, a historiografia brasileira desenhada no século XIX, por vezes romantizada, que envolve o projeto de construção do Estado Nacional Brasileiro e a diferenciação, após a separação do Brasil de Portugal, do que é ser brasileiro e do que é ser português, é interessante destacar uma lacuna que facilmente é esquecida, pois advém de um contexto de fracasso desse projeto: a atual região do Uruguai pertenceu efemeramente ao corpo da nação brasileira, representando a perda daquela região (chamada de Cisplatina, à época) uma cisão dentro do território imperial português, tendo esse fato reflexos na configuração territorial do Brasil quando este passou do status de colônia para Império (Ferreira 2012, 28).
Com essa mudança de configuração, os territórios delimitados no século XIX correspondem, ainda hoje, às fronteiras do Brasil e do Uruguai, sendo a diferença da dimensão39 territorial entre os dois países um dos fatores que influencia, por exemplo, a disparidade entre eles no que tange à atuação do movimento feminista em cada um, tendo em vista que o Brasil é notoriamente conhecido por suas dimensões continentais, que ultrapassa 8 milhões de Km², fato que dificulta a articulação do referido movimento, enquanto o Uruguai é tão menor quando comparado àquele, alcançando a marca dos 176.215 Km², que, dos 26 estados brasileiros, somados ao distrito federal, 15 estados40 têm, de modo individual, dimensão territorial em Km² maior do que toda a extensão uruguaia.
Ainda sobre alguns aspectos socias que caracterizam os países estudados, pontuam-se os seguintes:
País | Capital | Língua | População absoluta | PIB |
Brasil | Brasília | Português | 210 milhões (2019) | 2,056 trilhões USD41 (2017) |
Uruguai | Montevidéu | Espanhol | 3,4 milhões (2019) | 56,16 bilhões USD (2017) |
Fonte: Elaboração própria, com dados extraídos do Banco Mundial, do CEIC e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Além dos pontos acima em destaque, cabe citar a grande diferença entre os países cotejados no que diz respeito à separação entre Estado e Igreja, tendo em vista que, no caso do Brasil, a legitimidade religiosa e política dessa instituição resulta de um longo processo que caminha ao lado da própria história do país, desde 1500, quando foi promovido, no período colonial, um modelo de Catolicismo conhecido como Cristandade, caracterizado pela subordinação da religião ao Estado, e pelo estabelecimento de uma religião oficial cuja função era ser utilizada como instrumento de dominação social, política e cultural (Azevedo 2004, 111).
Já o Uruguai tem por marca uma evangelização tardia, devido ao caráter escasso de metais preciosos na região, o que tornou a região sem atrativos para a Coroa espanhola e a Igreja católica, por isso, não havia um alto clero na região, além de que, durante todo o período colonial, os poucos missionários presentes no território tinham baixa formação teológica, e, por força de questões idiomáticas, também passavam por dificuldades de comunicação com a população local (Silva 2018, 87).
No Brasil, entre 1891 e 1920, a Igreja católica brasileira promoveu transformações internas, com o objetivo de acentuar sua presença na sociedade como instituição autônoma, sendo a interação entre a Igreja católica e a política no país uma constante, nas primeiras décadas do século XX, denotando as iniciativas da Igreja um certo poder de reação frente a possíveis ameaças à sua hegemonia enquanto provedora de um estatuto moral e religioso à sociedade. O exemplo mais emblemático dessa situação foi a criação da Liga Eleitoral Católica (LEC), uma das principais estratégias de intervenção dos objetivos e concepções religiosas na esfera política, cujo objetivo era o de influenciar a composição do legislativo federal nas eleições de 1933.42
Ainda, falando do Uruguai, o país também já teve o catolicismo como religião oficial do Estado, havendo essa previsão no artigo 5o. da Constituição uruguaia de 1830. Ocorre que, apesar da tentativa de institucionalização do cristianismo no Uruguai, principalmente com a criação, em 1932, do Vigariato Apostólico de Montevidéu, pelo papa Gregório XVI, o país foi marcado por uma tendência antagônica de religiosidade, baseada, por um lado, em pressupostos racionalistas e liberais,43 e por outro, na consolidação a partir da ocupação de espaços, com base em uma proposta de crença ortodoxa, dogmática e proselitista, sendo o movimento para a secularização dos cemitérios, entre 1968 e 1978, o pontapé que contribuiu progressivamente para o estímulo de uma militância anticlerical radical, que passava a entender o catolicismo e a fé como manifestações ultrapassadas de compreensão do mundo, representando antíteses ao progresso e entraves ao desenvolvimento (Silva 2018, 87-89).
Desta forma, no contexto das posições sobre a permissividade do aborto, sobretudo frente ao posicionamento pró-escolha do movimento feminista, há de ser considerada a posição cristã a respeito do tema como um contramovimento, em especial da igreja católica, tanto no Brasil como no Uruguai,44 tendo em vista, sobre tudo, o modo como a laicidade foi construída em cada um desses países. Essa construção tem reflexos ainda hoje no peso da igreja como instituição de maior confiabilidade para a maioria dos latinoamericanos, afinal, a confiança nela, para estes, embora tenha caído 10 pontos percentuais entre 2013 e 2018, passando de 73% para 63%, continua sendo a mais relevante quando comparada a outras instituições como partidos políticos e polícia45 (Corporación Latinobarómetro 2019).
Ademais, afirma a Corporación Latinobarómetro (2019) que os níveis de confiança na igreja acabaram sendo afetados fortemente, nos últimos anos, pelos escândalos de pedofilia da Igreja católica, porém, isto não alterou o fato de que existe um alto índice brasileiro de confiança na instituição eclesiástica, o qual se manteve elevado por força do importante crescimento, nos últimos 20 anos, de novas configurações religiosas. No tocante ao Uruguai, este é o segundo país da região analisada com o menor índice de confiança na Igreja, perdendo apenas para o Chile.
A partir das colocações feitas, percebe-se o peso social da Igreja como instituição para a América Latina, ao mesmo tempo em que se nota a disparidade de confiança na mesma instituição entre os brasileiros e os uruguaios, fato que exerce uma forte influência nas decisões legais e sociais totalmente opostas entre esses dois países quanto à permissividade do aborto, afinal, por uma questão de ordem lógica, a confiança em uma determinada instituição abre o leque de possibilidades para que ela exerça um nível significativo de influência política,46 não escapando a questão da permissividade do aborto dessa situação.
Falando em aspecto político, explica Moreira (2000, 19) que Brasil e Uruguai diferem em termos de institucionalização e consolidação de um sistema político democrático, tendo em vista a representação de ambos os países a partir de modelos relativamente contrários, pois o Uruguai é uma das democracias mais antigas do continente, enquanto o Brasil, uma das mais recentes, sendo o primeiro país marcado por uma situação não consolidada de competição política até 1903; vivendo uma democracia restrita do ano referido até 1919; podendo ser considerado, a partir daqui, uma democracia plena, interrompida por dois períodos autoritários, quais sejam, 1933-1942/1973-1984.
Por outro lado, o segundo país tem por marca a existência de um regime competitivo entre elites até 1930; um regime autoritário do tipo corporativo até 1945; uma democracia restrita entre 1945 e 1964; um regime militar entre 1964 e 1985; e, por fim, uma democracia restrita entre 1985 e 1990 (Moreira 2000, 19).
Quanto à capacidade de articulação política dos interesses, os partidos atuaram de forma bastante diversa nos dois países comparados, sendo que, no Brasil, o ator social que desempenhou o papel de articulador político foi o Estado,47 fato este reforçado pelo impedimento, no período conhecido como Estado novo (1930-1945), da aglutinação política que havia possibilitado a transformação dos partidos oligárquicos em partidos de massa (Moreira 2000, 19).
Por outro viés, no Uruguai, os partidos foram marcados pela continuidade desde o século XIX, sendo possível, com o fim das guerras civis, no início do século XX, a construção de um Estado democrático cujos principais administradores seriam tais atores, responsáveis por protagonizarem a gestão governamental do estado uruguaio sob diversas formas de coparticipação ao longo de todo o século (Moreira 2000, 19).
No aspecto, as diferenças trazidas acima sobre alguns aspectos políticos dos dois países comparados servem para justificar o quanto a construção da democracia tão diversa em ambos ainda hoje reflete na forma como a população enxerga tal regime de governo. Sobre tal fato, a Corporación Latinobarómetro (2019, 16) traz em seu bojo uma tabela que demonstra a discrepância a respeito do apoio à democracia entre os países cotejados, sendo que o percentual do ano de 2018 referente ao apoio à democracia por parte do Uruguai alcança a marca de 61%, sendo inferior apenas ao índice da Venezuela (75%) e da Costa Rica (63%), enquanto o Brasil ocupa o outro extremo sobre a mesma temática, tendo somente o índice de 34%48 nesse sentido, situando-se na lista dos países com menor apoio à democracia, superado apenas por dois países, El Salvador y Guatemala, ambos com o percentual de 28% de apoio à democracia.
Com isto, diante de tantas diferenças que atravessam o Brasil e o Uruguai em termos de formação histórico-política, e das consequências desse processo nos dois países, percebe-se, em primeiro lugar, que os movimentos sociais devem ser entendidos dentro do seu próprio contexto de formação, não escapando o movimento feminista dessa compreensão.
Em segundo lugar, os tais movimentos não atuam de forma unilateral, dentro dos seus propósitos, sendo que o movimento feminista enfrenta, desde a sua raiz, a resistência religiosa como um empecilho para o avanço das pautas das mulheres. Isto está intimamente relacionado, no Brasil e no Uruguai, aos graus de secularização inversamente proporcionais presentes em ambos os países.
Por último, o cenário atual que diz respeito ao modo como ocorre a permissividade do aborto em ambos os países dialoga com a história do povo brasileiro e uruguaio; a própria geografia de cada país, aos aspectos de formação da população; de como é encarada a secularização em ambos; e, finalmente, de como tudo isto influenciou na força de atuação do movimento feminista quando do atendimento ou não de suas demandas.
VI. Considerações finais
Retomando a proposta introdutória do artigo, fundada na ideia de comparar otratamento dado ao aborto no Brasil e no Uruguai, a partir da perspectiva do movimento feminista, percebe-se que, na verdade, a atuação desse movimento nos dois países não necessariamente representam diversass, pelo contrário, são bem parecidos quanto à sua atuação.
Desse modo, a hipótese levantada sobre o modo de encarar o aborto, no Brasil e no Uruguai, ter uma ligação direta com a diferença na atuação dos movimentos feministas dos dois países é parcialmente verdadeira, porque devido a questões territoriais da formação de cada país, é muito mais fácil para o Uruguai articular suas ativistas, enquanto o Brasil acaba tendo dificuldades por força da própria dimensão, então nesse ponto há uma diferença entre os dois países quanto à atuação do movimento em destaque. Porém, isso não explica por completo a problemática.
Assim, levando em consideração justamente a questão de formação, num sentido histórico-político, dos dois países cotejados, é destaque que a dinâmica dos movimentos sociais normalmente atua com a resistência de contramovimentos, e, sendo o feminismo uma mobilização cuja resistência à sua atuação está ligada à Igreja e entidades de cunho religioso, a historicidade referente à separação entre Igreja e Estado, bastante forte no Uruguai, quando comparada ao Brasil, faz toda a diferença no cenário atual que diz respeito ao modo como funciona a permissividade do aborto em ambos.
Além disso, a dinâmica referida pode ser verificada quando observados os dados relativos, no Brasil e no Uruguai, à história do povo brasileiro e uruguaio; à própria geografia de cada país; aos aspectos de formação da população; de como é encarada a secularização em ambos; e, finalmente, de como tudo isto influenciou na força de atuação do movimento feminista quando do atendimento ou não de suas demandas.
Finalmente, sendo colocada uma visão autoral, a chegada de um(a) filho(a) empiricamente pesa mais para a mulher, independentemente de ela ter uma rede de apoio ou não para criá-lo(a), cabendo a ela decidir se terá o filho ou não. Caso a opção na gravidez seja por um aborto, mesmo em países onde ele não é legalizado, também é a mulher quem vai ter de lidar com os problemas advindos da realização do ato em clínicas clandestinas, tendo de arcar mais uma vez, com as consequências de sua escolha. Portanto, essa escolha deveria ser muito bem amparada institucionalmente, pois é uma questão de saúde pública.