Sumário: I. Introdução. II. Sistema de justiça e solução de problemas jurídicos. III. O sistema multiportas. A necessidade de reconstrução da ideia dos anos 70 do século XX: do átrio para a praça. IV. Características do sistema brasileiro de justiça multiportas. V. Heterocomposição e respeito aos precedentes no sistema brasileiro de justiça multiportas. VI. Conclusões. VII. Referências bibliográficas.
I. Introdução
Em março de 2015 foi promulgado o novo Código de Processo Civil brasileiro (CPC), com vigência a partir de março de 2016. Um dos pilares do novo Código é a estruturação dogmática de um sistema de precedentes judiciais obrigatórios. Essa transformação deve-se muito ao modo pelo qual a jurisdição vem sendo examinada pelos estudiosos do Direito no Brasil.
A novidade introduzida pelo Código de Processo Civil de 2015 tem influenciado o legislador em outras áreas do Direito e, também, o modo de compreensão do sistema de solução de problemas jurídicos no Brasil.
É interessante perceber que os §§ 2º e 3º do art. 3º2 do CPC estabelecem, ao lado de outros dispositivos, diretrizes do sistema brasileiro de justiça multiportas,3 que, por opção legislativa, reconhece a existência de múltiplos modos para a solução de problemas jurídicos.
Isso é, de um lado, curioso, porque a um Código de Processo Civil se costuma destinar o papel de regular o exercício da atividade jurisdicional, e, de outro, sintomático, porque revela, com clareza, que o “processo”, atualmente e ao menos entre nós, brasileiros, deve ser compreendido como método de solução de problemas jurídicos, não necessariamente método de solução do problema por meio da jurisdição, que deixa de ser compreendida como via preferencial para essa finalidade.
Diversas normas extraídas do Código de Processo Civil não têm, por isso, seu âmbito de incidência limitado ao processo civil. Elas são, antes de tudo, integrantes de um bloco normativo que estrutura o sistema brasileiro de justiça multiportas, em qualquer dos seus modos de manifestação.
O propósito deste ensaio é apresentar, a partir da premissa da existência de um sistema brasileiro de justiça multiportas, a influência do regime jurídico dos precedentes judiciais, previsto no Código de Processo Civil, sobre outras portas de acesso à justiça dedicadas à heterocomposição, e algumas diretrizes de interação entre essas diferentes portas.
II. Sistema de justiça e solução de problemas jurídicos
Sistemas são compostos por um repertório (um conjunto de elementos) e por uma estrutura (um complexo de comandos que definem o modo de interação entre os elementos)4.
Uma teoria sobre o sistema de justiça de determinado país tem por objeto de investigação as instituições e os agentes, públicos e privados, responsáveis por oferecer à sociedade a solução adequada de problemas jurídicos e as normas, diretrizes e mecanismos de interação entre esses sujeitos. Dito de outra maneira, uma teoria sobre o sistema de justiça ocupa-se, essencialmente, do estudo do repertório e da estrutura desse sistema.
O sistema de justiça, como se nota, é plural,5 poliédrico ou multinível,6 multiportas,7 com o oferecimento de modos variados de resposta a problemas jurídicos existentes na sociedade.
É importante perceber que um sistema de justiça não se destina exclusivamente a solucionar conflitos. Essa visão restritiva é produto de um período histórico em que se negava o aspecto promocional do Direito, a possibilidade de tutela preventiva e a existência de problemas jurídicos sem caráter conflituoso, por exemplo. Sistemas de justiça ― inclusive o sistema brasileiro de justiça multiportas ― servem para a solução de problemas jurídicos e a tutela de direitos.
Problema jurídico é um tipo de problema8 que pode ser resolvido com base no Direito.
Problemas filosóficos, morais, econômicos e políticos, por exemplo, são igualmente encontrados na sociedade e, em sua evolução e interação, contribuem para a formação de aspectos da identidade de uma comunidade, mas, por maior que seja a sua relevância, a sua solução é objeto de outros sistemas que não o de justiça. Questões como o significado de uma vida boa, a identificação do início da vida humana, a relação entre inflação e taxa de juros e a melhor forma de governo para determinada nação não interessam, de modo direto, ao sistema de justiça, mas apenas quando estejam associadas a uma situação cuja solução dependa de uma definição à luz do ordenamento jurídico.
Há problemas jurídicos de configuração concreta, cuja solução constitui o objeto dos sistemas de justiça, e problemas jurídicos em tese, que são resolvidos pelos entes que produzem normas jurídicas de caráter geral, de que o Legislativo é o principal exemplo.
Um sistema de justiça, portanto, não se ocupa da solução de qualquer tipo de problema, mas apenas de problemas jurídicos concretos.9
A determinação do significado do termo justiça é um tema clássico da Filosofia em todos os tempos. Não se pretende, aqui, propor a resposta a esse problema filosófico. Para os fins deste ensaio, é suficiente a percepção de que, sob perspectiva jurídica, o signo “justiça”, na expressão “sistema de justiça”, refere-se à solução adequada de um problema jurídico.
A solução do problema será adequada se estiver em conformidade com o Direito, em sua unidade e complexidade ― isto é, quando observar o postulado da integridade10 (art. 926,11 CPC).
No sistema de justiça, a solução do problema jurídico será alcançada através de alguma das suas portas -das portas de acesso à justiça.
Porta, aqui, tem sentido figurado: por onde se entra, por onde se sai ou por onde se vai (caminho). E note: nem sempre a porta de entrada é a mesma da saída (como veremos, as portas se entrelaçam em nosso sistema), pois uma porta pode dar acesso a outras tantas, assim como há situações em que não há propriamente um lugar para entrar (uma infraestrutura pré-estabelecida, como um prédio ou uma plataforma virtual, ou um arranjo institucional, previsto pelo legislador ou criado por ente administrativo, ou convencional), mas apenas um caminho a seguir, que será construído, como costuma ocorrer, durante a própria caminhada. Daí que o Judiciário pode ser uma porta (por onde se entra) e a negociação direta e a autotutela, também (por onde se vai); daí que, tendo entrado pela porta de uma câmara de mediação, se possa sair pela porta de uma arbitragem ad hoc. Mesmo o percurso não é, necessariamente, isolado. Portas diferentes podem ser provisoriamente agregadas para permitir a construção compartilhada da solução de um problema, como se dá com a cooperação interinstitucional, por exemplo.
Atente, também, para não confundir a porta com o que se busca ao atravessá-la: a justiça. Justiça é, aqui, como visto, a solução adequada de um problema jurídico. Essa solução pode dar-se por vários modos (heterocomposição, autocomposição, autotutela e execução extrajudicial). Uma mesma porta pode dar acesso a vários modos de solução do problema jurídico: indo ao Judiciário, pode-se sair com um acordo ou com uma decisão judicial, por exemplo.
III. O sistema multiportas. A necessidade de reconstrução da ideia dos anos 70 do século XX: do átrio para a praça
A ideia de um tribunal multiportas foi proposta inicialmente -embora não com essa denominação-12 por Frank Sander, em conhecida palestra proferida na Pound Conference, em 1976, posteriormente convertida no artigo Varieties of Dispute Processing.13
Sander percebeu a vantagem da criação, em tribunais ou em centros de resolução de disputas, de uma espécie de saguão, em que um funcionário de triagem direcionaria os litigantes para a porta mais adequada para a solução do conflito, considerando critérios como a natureza da controvérsia, a relação entre as partes, a dimensão econômica dos direitos envolvidos, os custos e o tempo exigidos para a solução do caso14. O grande valor da ideia residia em uma premissa singela: a única certeza numa política de uniformização absoluta do tratamento de conflitos dotados de características substancialmente distintas é a sua inadequação às especificidades dos casos.
No Brasil, essa ideia foi difundida com a denominação de justiça multiportas, em grande medida em razão do título de obra coletiva de referência sobre o tema, coordenada por Hermes Zaneti Jr. e Trícia Cabral,15 cuja primeira edição foi publicada em 2016. Essa imagem proposta por Sander é interessante como referência inicial, mas não representa da maneira mais adequada a complexidade dos espaços de acesso à justiça, ao menos não no cenário brasileiro. Talvez a visão mais apropriada seja a de uma ampla praça, em constantes reforma e expansão, em que se situam e interagem diversas instituições dedicadas à solução de problemas jurídicos -a exemplo do Poder Judiciário-, essas sim com seus respectivos átrios, a partir dos quais é possível acessar diferentes portas internas para a resolução do problema.
Pela praça circulam transeuntes meramente casuais (os litigantes eventuais) e aqueles que são presença frequente no local (os litigantes habituais). Determinadas áreas da praça costumam ser mais acessadas por certos perfis de cidadãos, embora, como regra geral, seja possível transitar, com maior ou menor liberdade, entre os diferentes ambientes, inclusive para solucionar apenas parcelas específicas de problemas mais complexos. Os próprios indivíduos envolvidos em um problema jurídico, aliás, podem definir entre si o caminho a ser percorrido ao longo da praça. Há, ainda, algumas áreas da praça destinadas necessariamente a dadas finalidades específicas.
A interação e a recíproca influência entre indivíduos e instituições, a criação de novas técnicas para a solução de problemas jurídicos e o aparecimento de novas instituições fazem da praça e dos átrios das suas edificações um espaço dinâmico, quase como um organismo vivo, que se auto-organiza e evolui para configurações cada vez mais complexas.
Na realidade brasileira, então, é mais apropriado falar de um sistema de justiça multiportas do que de tribunais (ou centros de resolução de disputas) multiportas. Isso porque o sistema brasileiro não é organizado a partir de um átrio central, ainda que virtual, mantido e controlado por um único órgão, seja do Poder Judiciário, seja de outra instituição governamental.
Não há dúvidas de que o Conselho Nacional de Justiça desempenha um papel muito importante na organização do sistema. No entanto, nem mesmo ele controla a criação e o funcionamento das demais portas de acesso à justiça, embora desempenhe uma espécie de função de supervisor do sistema, coordenando políticas de justiça e promovendo a articulação entre diferentes instituições.
A praça imaginária em que as partes se situam é, portanto, do sistema de justiça como um todo. A partir dela, diversas portas podem ser acessadas.
IV. Características do sistema brasileiro de justiça multiportas
É possível identificar algumas características presentes no sistema brasileiro de justiça multiportas: a) auto-organização; b) abertura; c) preferência pela solução consensual; d) adoção do meio adequado para a solução do problema jurídico; e) integração.
Essas características serão examinadas adiante.
1. Auto-organização
O sistema brasileiro de justiça multiportas pode ser compreendido como um sistema auto-organizado, em sentido semelhante ao empregado por Michel Debrun.16
Sistemas auto-organizados são caracterizados por sua capacidade de estruturação e reorganização a partir da interação dos seus elementos integrantes, com crescimento não linear, mas em condições variáveis e progressivamente mais complexas.
Essa complexidade pode decorrer dos efeitos recíprocos originados do contato entre seus elementos constitutivos, da agregação de novas partes componentes, da evolução do contexto em que se situa o sistema e da eventual atuação de um supervisor -sujeito que pode interferir na conformação do sistema, mas não a determina. Sistemas com essa feição, que podem ser encontrados no âmbito, por exemplo, das Ciências Naturais e das Ciências Sociais,17 nunca são um resultado consolidado, mas necessariamente um processo em desenvolvimento.18
Dito de outro modo, um sistema auto-organizado, como o sistema brasileiro de justiça multiportas, é marcado por uma construção paulatina, progressiva e sem planejamento.
Inicialmente limitado, de modo quase exclusivo, à atuação do Poder Judiciário, o sistema expandiu-se com a agregação de figuras como o agente fiduciário (arts. 31 a 37,19 Decreto-lei n. 70/1966), o árbitro e as câmaras arbitrais (Lei n. 9.307/1996), os tribunais administrativos (inclusive os tribunais de contas), o conciliador e o mediador (Lei n. 13.140/2015), as agências reguladoras, os comitês de resolução de disputas (dispute boards), os entes de autorregulação, o terceiro responsável pela realização de avaliação imparcial, associações e autoridades (formais ou informais) reconhecidas como legítimas por povos tradicionais ou por determinados grupos sociais, o Conselho Nacional de Justiça e, mais recentemente, as instituições responsáveis pela manutenção de ODR’s20. Sujeitos cuja função já estava diretamente associada à administração da justiça também tiveram, ao longo do tempo, suas atribuições reconfiguradas, permitindo mais facilmente sua visualização como elementos integrantes do sistema, a exemplo do Ministério Público (Resolução n. 118/2014 do CNMP), da Advocacia Pública (art. 1921, Lei n. 10.522/2002) e das serventias extrajudiciais.
2. Abertura
A partir de qualquer perspectiva sob a qual se examine o sistema brasileiro de justiça multiportas, facilmente se constata sua vocação à não exaustividade.
De maneira analítica, é possível visualizar a abertura do sistema em relação aos sujeitos, ao modo de solução de problemas jurídicos, aos institutos utilizados para a resolução do problema, às fontes normativas e à forma de sua estruturação.
O sistema é, por definição, progressivamente mais complexo, e a constante agregação de novos fatores permite visualizá-lo como um ever-expanding system22. O sistema brasileiro de justiça multiportas encontra-se em estado de permanente expansão, realidade que acentua o desafio de elaboração de diagnósticos completos (conquanto necessariamente provisórios) sobre o acesso à justiça no país.
No Brasil, a existência de uma infraestrutura normativa com autorizações como as decorrentes do art. 5º, XXXV,23 CF/1988, e do art. 3º, § 3º, CPC, a ampla arbitrabilidade dos problemas jurídicos e uma organização institucional com Poder Judiciário independente, Conselho Nacional de Justiça, tribunais administrativos, agências reguladoras e serventias extrajudiciais (com cada vez mais competências), leva essa característica de “permanente-expansão” quase ao paroxismo.
3. Preferência pela solução consensual
As balizas que orientaram a concepção da política nacional de tratamento adequado dos problemas jurídicos de interesses pelo Conselho Nacional de Justiça (Resolução n. 125/2010) foram acolhidas e aprofundadas pelo legislador no processo de elaboração do Código de Processo Civil de 2015, tendo a promoção da solução consensual dos problemas jurídicos sido consagrada como norma fundamental do processo.24
Os §§ 2º e 3º do art. 3º do CPC refletem o espírito democrático que orientou a elaboração do Código. Sua relevância política é evidente: a solução negocial é um importante instrumento de desenvolvimento da cidadania, em que os interessados passam a ser protagonistas da construção da decisão jurídica que regula suas relações. Neste sentido, o estímulo à autocomposição pode ser entendido como um reforço da participação popular no exercício do poder ― no caso, o poder de solução dos problemas jurídicos.
Os dispositivos simbolizam, então, uma mudança substancial de paradigma no sistema brasileiro de justiça e, ao fazê-lo, incentivam uma transformação cultural ― da cultura da sentença para a cultura da paz25.
Mas sua relevância não se esgota aí.
O caput e os §§ 2º do art. 3º do CPC devem ser interpretados em conjunto. Isso significa que, sempre que compatível com as circunstâncias do caso, o processo -não somente judicial- deve garantir meios que favoreçam a autocomposição, sob pena de concretização insuficiente do direito de acesso à justiça.
Ao determinar que o “Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”, o art. 3º, § 2º, do CPC assegura ao cidadão um direito ao estabelecimento de normas de organização e procedimento26 compatíveis com o estímulo à autocomposição, exigível perante todos os entes estatais, nas esferas legislativa, judiciária, administrativa e controladora.
Além do dever de estruturação do procedimento em condições favoráveis à autocomposição, o que pode incluir, por exemplo, a previsão de sanções premiais processuais,27 os poderes públicos devem conceber arranjos institucionais que facilitem o alcance desse resultado.
4. Adoção do meio adequado para a solução do problema jurídico
A preocupação com a adequação é característica central do sistema brasileiro de justiça multiportas. Em verdade, a própria existência do sistema justifica-se pelo propósito de assegurar o oferecimento de soluções adequadas a problemas jurídicos. Perceber isso é essencial para a compreensão das diretrizes do sistema e das variadas modalidades de interação entre seus elementos.
Ressalvadas as hipóteses nas quais determinados meios, por imposição do ordenamento jurídico, são necessários ou exclusivos em certas situações, deve-se buscar o meio que, no caso concreto, se revele mais adequado para a solução do problema.
As questões, perceba-se, são de duas ordens: pragmática, consistente na incapacidade estrutural do Judiciário para solucionar todos os problemas jurídicos, e jurídico-sociológica, relativa à compreensão da existência de meios mais adequados do que outros para a solução de certas espécies de problema jurídico28 - um dos núcleos da terceira onda de acesso à justiça.29 O desenvolvimento de um sistema de justiça multiportas encontra seu fundamento no delicado equilíbrio entre esses dois fatores.
Em uma renovada interpretação do acesso à justiça, os modos de solução de problemas jurídicos distintos da tradicional atuação do Judiciário em heterocomposição devem ser utilizados pela sociedade por sua maior adequação ao caso, nem sempre por uma necessidade de fuga do Estado-juiz, motivada por um quadro de ineficiência em seu funcionamento. Em outros ter-mos, como observado por Taruffo,30 o Judiciário deve possuir condições reais de ser uma alternativa aos “meios alternativos” de solução de conflitos (como foram inicialmente denominados,).
A adequação deve ser avaliada a partir de elementos como a) a aptidão para resolução do problema jurídico, b) o interesse e o comportamento das partes, c) o custo e o tempo exigidos para o oferecimento da solução, d) as características do objeto do problema, e) a existência de urgência e f) o exame de eficiência do sistema, inclusive a partir de uma análise das capacidades institucionais.31
5. Integração
Uma das mais importantes características do sistema brasileiro de justiça multiportas é a integração entre as suas portas. As diferentes portas de acesso à justiça não são isoladas.
Não é por acaso que o Direito brasileiro tem convivido com um movimento de progressivo estímulo à articulação institucional para a construção conjunta de soluções em âmbito administrativo (como na celebração de consórcios públicos, nos termos da Lei n. 11.107/2005), normativo (como na atuação integrada entre agências reguladoras, prevista na Lei n. 13.848/2019) e decisório (a exemplo do que se verifica na cooperação judiciária, regulada pelos arts. 67 a 6932 do CPC e na Resolução n. 350/2020 do CNJ, e na decisão administrativa coordenada, disciplinada pela Lei n. 14.210/2021). A solução de problemas complexos pode exigir, de modo concomitante ou sucessivo, subsídios provenientes de diferentes entes, como aproveitamento das respectivas capacidades institucionais.
Por isso, em um sistema de justiça multiportas, o acesso à justiça deve ser compreendido a partir da premissa da possibilidade de fracionamento da condução e da solução de problemas jurídicos, com a interação entre diferentes portas de acesso à justiça.
V. Heterocomposição e respeito aos precedentes33 no sistema brasileiro de justiça multiportas
1. Generalidades
A heterocomposição é o modo de resolução de problemas jurídicos em que um terceiro determina a respectiva solução.
No ordenamento jurídico brasileiro, a autocomposição é modo de solução de problemas jurídicos preferencial em relação à heterocomposição (CPC, art. 3º, §§ 2º e 3º). O Estado tem o dever de assegurar a possibilidade de resolução do problema por meio da decisão de um terceiro ― do que se extrai, ao menos, um dever de edição de normas de organização e procedimento relativas aos processos judicial estatal e de normas de competência para amparar a instituição da arbitragem ―, mas, prioritariamente, deve estimular e garantir condições para a construção consensual da solução pelas partes.
A heterocomposição pode ser realizada por diferentes sujeitos integrantes do sistema de justiça multiportas. Ela pode ser visualizada na solução de problemas jurídicos pelo Poder Judiciário, por árbitros e tribunais arbitrais, por tribunais administrativos, por agências reguladoras, por tribunais desportivos, por cortes eclesiásticas, por instituições reconhecidas como legítimas no seio de povos tradicionais ou de determinados grupos sociais, por comitês de resolução de disputas e por entes de autorregulação, por exemplo.
Duas observações, no entanto, devem ser destacadas desde logo.
O ingresso em uma das portas para a obtenção da heterocomposição não necessariamente significa sua permanência nela até o ato decisório final. Negócios processuais multiportas34, atos de cooperação judiciária e técnicas de articulação administrativa podem permitir a interação e o trânsito entre diferentes portas destinadas à solução do problema jurídico por um terceiro, como visto anteriormente neste ensaio.
O segundo aspecto relevante diz respeito à percepção da necessidade de observância, na heterocomposição no âmbito das diferentes portas de acesso à justiça, de um conjunto de garantias estabelecidas pelo ordenamento jurídico, que podem assumir conformações específicas no âmbito de determinadas portas. O cumprimento dessas garantias está asociado à concretização do princípio do devido processo em um sistema de justiça multiportas, temática que será explorada em capítulo específico.
Motivação, respeito aos precedentes e imparcialidade formam um trio de características que integram o modo de ser da heterocomposição no sistema brasileiro de justiça multiportas. Para o propósito deste ensaio, interessa especificamente o respeito aos precedentes, que, no Direito brasileiro, encontra seu principal fundamento no art. 926 do Código de Processo Civil.
O art. 926 do CPC impõe aos tribunais, além do dever de uniformização da sua jurisprudência, o de sua preservação com estabilidade, integridade e coerência. Embora situado no Código de Processo Civil, o dever de manter a jurisprudência estável, íntegra e coerente alcança todos os entes estatais que desempenhem a função de promover a heterocomposição.
Trata-se, em verdade, de situações jurídicas integrantes do regime jurídico geral relativo às decisões estatais em processos judiciais e em processos administrativos35 ― em consonância, ainda, com o art. 1536 do CPC.
O art. 926 do CPC não pode ser interpretado como um comando destinado apenas ao Poder Judiciário. Integridade, coerência e estabilidade devem ser observadas no âmbito interno de cada uma das portas de acesso à justiça e, sempre que possível, entre diferentes portas, havendo, no mínimo, um dever de consideração das manifestações provenientes de cada uma delas, sobretudo nos temas relacionados diretamente à sua atuação.
Essa conclusão é reafirmada por vários dispositivos da LINDB (arts. 24, parágrafo único37, e 3038) e da Lei de Liberdade Econômica39 (art. 3º, inciso IV40, além do acréscimo do art. 18-A41 na Lei n. 10.522/2002), todos no sentido da garantia de tratamento isonômico e previsível ao administrado perante o Poder Público.
Há, ainda, repercussões de tais deveres em relação às portas de acesso à justiça de natureza privada, como será visto mais adiante.
Além de tudo isso, os precedentes orientam a atuação de sujeitos públicos e privados. Ilustrativamente, a) o art. 35, I,42 da Lei n. 13.140/2015 prevê que controvérsias de natureza jurídica que envolvam a Administração Pública federal direta, suas autarquias e fundações poderão ser objeto de transação por adesão, desde que haja autorização do Advogado-Geral da União, com base na jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal ou de tribunais superiores; b) o art. 19 da Lei n. 10.552/2002 dispensa a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional de contestar, oferecer contrarrazões e interpor recursos, bem como autoriza a desistir de recursos já interpostos, entre outros casos, em relação a temas decididos em sede de repercussão geral ou recurso repetitivo; c) o art. 24 da LINDB prevê que as situações plenamente constituídas com base em jurisprudência “judicial ou administrativa” majoritária devem ser protegidas de mudanças posteriores de orientação.
2. Deveres previstos no art. 926 do Código de Processo Civil43
A. Dever de uniformização da jurisprudência
O dever de uniformizar pressupõe que o órgão decisor não possa ser omisso diante de divergência interna, entre seus órgãos fracionários, sobre a mesma questão jurídica44. Ele tem o dever de resolver essa divergência, uniformizando o seu entendimento sobre o assunto.
O art. 926, §1º, CPC, desdobra o dever de uniformizar, dele extraindo o dever de os tribunais (órgãos decisores) de sintetizar sua jurisprudência dominante, sumulando-a, ao determinar que, “na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante”. Esse dever fica condicionado ao cumprimento do disposto no art. 926, §2º, CPC: “ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação”45.
O objetivo é esclarecer que o correto exercício deste dever de editar enunciados sumulares pressupõe a fidelidade do tribunal à base fática a partir da qual a jurisprudência sumulada foi construída. Cumpre preservar o caráter de concretude do Direito judicial que se constrói. Produz-se norma geral, mas a partir de casos concretos.
Com isso, o legislador “neutraliza o problema histórico dos enunciados das súmulas criados de forma abstrata, sem referência aos precedentes que levaram à sua conformação”.46
B. Dever de coerência
A coerência entre duas normas pode ser visualizada em dimensão formal ou em dimensão substancial.
A coerência formal está ligada à ideia de não contradição; a coerência substancial, à ideia de conexão positiva de sentido.47 O dever de coerência deve ser concretizado em ambas as dimensões.
A exigência de coerência produz efeitos também em duas dimensões: interna e externa.
Do ponto de vista externo, os tribunais devem coerência às suas próprias decisões anteriores e à linha evolutiva do desenvolvimento da jurisprudência. A coerência é, nesse sentido, uma imposição do princípio da igualdade -casos iguais devem ser tratados igualmente, sobretudo quando o tribunal já tem um entendimento firmado.48 Não pode o tribunal contrariar o seu próprio entendimento, ressalvada, obviamente, a possibilidade de sua superação.
Julgar um caso é essencialmente distingui-lo de outro. É preciso, porém, que as distinções feitas pelos tribunais sejam coerentes.
Além disso, a dimensão externa do dever de coerência reforça o inafastável caráter histórico do desenvolvimento judicial do Direito: o direito dos precedentes forma-se paulatinamente, em uma cadeia histórica de decisões, que vão agregando sentido e dando densidade à norma jurídica geral construída a partir de um caso concreto.49
A coerência impõe o dever de autorreferência, portanto: o dever de dialogar com os precedentes anteriores, até mesmo para superá-los e demonstrar o distinguishing. O respeito aos precedentes envolve o ato de segui-los, distingui-los ou revogá-los, jamais ignorá-los50.
É bem conhecida a metáfora, elaborada por Dworkin, de que a construção judicial do Direito é um romance em cadeia: cada julgador escreve um capítulo, mas não pode deixar de dialogar com o capítulo anterior51, para que a história possa resultar em algo coerente. “A prática jurídica precisa se preocupar com o que foi feito anteriormente [...] [a autorreferência] torna a prática mais comprometida com a coerência no discurso jurisdicional, por meio da criação de uma espécie de linha sequencial de decisões”.52 Às vezes, nem mesmo o próprio julgador observa a sua própria cadeia decisória, submetido que está “às idiossincrasias decisórias de uma multiplicidade de assessores e analistas”.53
Muito a propósito, no particular, o enunciado n. 166 do Fórum Permanente de Processualistas Civis:54 “A aplicação dos enunciados das súmulas deve ser realizada a partir dos precedentes que os formaram e dos que os aplicaram posteriormente”.
A coerência deve, ainda, ser observada no espaço e no tempo: “geograficamente, não se autorizando que a mesma situação jurídica seja tratada de forma injustificadamente diferente por órgãos de locais díspares; e historicamente, precisando respeitar sua atuação anterior ou justificar a modificação da posição que foi adotada com referência e cuidado com o passado e suas consequências”.55
A dimensão interna do dever de coerência relaciona-se à construção do precedente e, por isso, ao dever de fundamentação. Coerência, nesse sentido, é uma dimensão da congruência que se exige de qualquer decisão judicial. Mas essa congruência não se limita ao aspecto lógico (dever de não produzir decisão contraditória);56 ela impõe outros atributos à decisão.
C. Dever de integridade
O dever de integridade relaciona-se com a ideia de unidade do Direito. Embora o termo “integridade” esteja muito relacionado a Ronald
Dworkin, não se adota, aqui, interpretação do enunciado normativo do art. 926 do CPC brasileiro exclusivamente com base no seu pensamento. As ideias de Dworkin são importantíssimas para a compreensão do assunto, mas não são a única fonte para a concretização do dever de integridade no Direito brasileiro. Essa opção decorre da premissa teórica do professor estadunidense, segundo a qual somente há uma resposta correta para um problema jurídico. Neste ponto, essa prestigiada teoria da interpretação do Direito não é a seguida neste ensaio. A interpretação é, essencialmente, uma atividade de recriação e, também, de escolha de significado, “ainda que lógica e argumentativamente guiada”.57 A teoria da “única resposta certa” não resolve, por exemplo, o problema da interpretação das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados, textos normativos genuinamente ambíguos.58
A observância do dever de integridade supõe que o tribunal adote certas posturas ao decidir. Eis algumas delas.
a) decidir em conformidade com o Direito, observada toda a sua complexidade (normas constitucionais, legais, administrativas, negociais, precedentes etc.); não se admite, por exemplo, decisão com base em “Direito alternativo”.
Nesse aspecto, o dever de integridade impede o voluntarismo judicial e argumentações arbitrárias59. Sendo assim, um “caso judicial só se pode resolver pela totalidade do ordenamento jurídico, e não por uma só de suas partes, tal como o peso todo de uma esfera gravita sobre a superfície em que jaz, embora seja só um o ponto em que toma contacto”.60
b) decidir em respeito à Constituição Federal, como fundamento normativo de todas as demais normas jurídicas. O dever de integridade é, nesse sentido, uma concretização do postulado da hierarquia, “do qual resultam alguns critérios importantes para a interpretação das normas, tais como o da interpretação conforme a Constituição”.61
c) compreender o Direito como um sistema de normas, e não um amontoado de normas. O dever de integridade é, nesse sentido, uma concretização do postulado da unidade do ordenamento jurídico, “a exigir do intérprete o relacionamento entre a parte e o todo mediante o emprego das categorias de ordem e de unidade”.62
E, consequentemente, reconhecer a existência de microssistemas normativos para, quando for o caso, decidir conforme as regras desse mesmo microssistema.
d) observar as relações íntimas e necessárias entre o Direito processual e o Direito material.
e) enfrentar, na formação do precedente, todos os argumentos favoráveis e contrários ao acolhimento da tese jurídica discutida. Esse desdobramento do dever de integridade está expressamente consagrado no §2º63 do art. 984 e no §3º64 do art. 1.038 do CPC - também nesse sentido o enunciado 305 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “No julgamento de casos repetitivos, o tribunal deverá enfrentar todos os argumentos contrários e favoráveis à tese jurídica discutida”.65
4. O sistema brasileiro de precedentes administrativos obrigatórios
A autovinculação é uma característica do Direito Administrativo brasileiro contemporâneo.66 Acompanhando a lição de Paulo Modesto, é possível visualizá-la em duas perspectivas. A primeira, mais abrangente, refere-se à limitação da discricionariedade administrativa por meio do detalhamento, em atos unilaterais ou convencionais, da interpretação a ser adotada diante de textos normativos dotados de imprecisão ou vagueza semântica, de maneira a estabelecer critérios específicos de padronização da atuação do Poder Público.67 Em uma segunda perspectiva, ela diz respeito à impossibilidade de alteração injustificada dos parâmetros decisórios adotados pela Administração,68 sobretudo por meio de seus tribunais, diretriz refletida há tempos no art. 50, inciso VII69, da Lei n. 9.784/1999 e reforçada na LINDB (art. 30).
O caráter obrigatório do precedente administrativo70 em relação ao próprio órgão administrativo julgador que o proferiu e àqueles que lhe são subordinados é, portanto, uma das manifestações do fenômeno mais amplo da autovinculação administrativa. Decorrência da igualdade (na dimensão da isonomia na aplicação do Direito) e da proteção da confiança, o reconhecimento da eficácia vinculante do precedente administrativo acentua a complexidade da teoria das fontes do Direito Administrativo, ao identificar a legalidade administrativa não apenas às manifestações do legislador, mas também aos pronunciamentos da própria Administração.
A expansão e o fortalecimento dos tribunais administrativos, que resolvem problemas jurídicos de modo imparcial e por heterocomposição, é uma das principais causas que justificam a criação desse sistema de respeito aos precedentes administrativos. A cognoscibilidade do Direito, dimensão da segurança jurídica que garante a todos saber como o Direito é compreendido e aplicado, e a igualdade, que garante aos administrados o direito de ser tratado de modo semelhante pela Administração Pública, o que significa ser tratado de modo isonômico perante as decisões administrativas, impõem o desenvolvimento desse sistema de formação e aplicação de precedentes administrativos.71
Há extenso rol72 de dispositivos que consagram a autovinculação da Administração Pública, inclusive por intermédio de precedentes obrigatórios.
O art. 4º73 da Lei Complementar n. 73/1993 atribui ao Advogado-Geral da União as competências para fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e demais atos normativos, a ser uniformemente seguida pelos órgãos e entidades da Administração Federal (inciso X), unificar a jurisprudência administrativa, garantir a correta aplicação das leis, prevenir e dirimir as controvérsias entre os órgãos jurídicos da Administração Federal (inciso XI) e editar enunciados de súmula administrativa, resultantes de jurisprudência iterativa dos Tribunais (inciso XII).
O art. 2º, parágrafo único, XIII,74 da Lei n. 9.784/1999, determina que, nos processos administrativos, se confira “interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação”. A vedação de interpretação retroativa é claro sinal de que o precedente (interpretação anterior) deve ser aplicado, até que haja justas razões para revisão do entendimento.75
O art. 50, VII, da Lei n. 9.784/1999, ao concretizar o dever de motivar as decisões administrativas, impõe o dever ao órgão administrativo decisor de expor as razões para deixar “de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais”.76
O art. 496, §4º, IV,77 CPC, dispensa a remessa necessária ao tribunal de sentença proferida contra o Poder Público que veicule “entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa”.
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro78 (LINDB, Decreto-lei n. 4.657/1942, alterado pela Lei n. 13.655/2018) não apenas consagra a “jurisprudência administrativa majoritária” (art. 24, parágrafo único), como também impõe o dever de proceder a uma transição no caso de essa mesma jurisprudência vier a ser revista (art. 2379).
A mesma LINDB, no art. 30, determina que “as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”. O parágrafo único do referido artigo prevê que tais instrumentos “terão caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão”. Assim, a lei não só supõe a existência de precedentes administrativos, como impõe a consolidação de seus enunciados em súmula administrativa e confere a eles força vinculante até futura revisão de entendimento,80 concretizando o comando do art. 2º, parágrafo único, XIII, da Lei n. 9.784/1999.
Exatamente por isso, o Decreto Presidencial n. 9.830/2019, ao regulamentar os arts. 20 a 30 da LINDB no âmbito federal, consolida esse sistema de precedentes obrigatórios no âmbito da Administração federal (arts. 19-2481, Decreto n. 9.830/2019).
O art. 3º, IV, da Lei n. 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica), estabelece que é direito de toda pessoa, essencial ao desenvolvimento econômico do país receber tratamento isonômico de órgãos e de entidades da Administração Pública em relação ao exercício de atos de liberação da atividade econômica, prevendo que o ato de liberação estará vinculado aos mesmos critérios de interpretação adotados em decisões administrativas análogas anteriores. Trata-se, aqui, de manifestação pontual de um dever que, como visto, possui caráter geral.
O art. 19 da Lei n. 10.522/2002, alterado pela Lei n. 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica), determina que
Fica a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional dispensada de contestar, de oferecer contrarrazões e de interpor recursos, e fica autorizada a desistir de recursos já interpostos, desde que inexista outro fundamento relevante, na hipótese em que a ação ou a decisão judicial ou administrativa versar sobre: [...] II - tema que seja objeto de parecer, vigente e aprovado, pelo Procurador-Geral da Fazenda Nacional, que conclua no mesmo sentido do pleito do particular; [...] IV - tema sobre o qual exista súmula ou parecer do Advogado-Geral da União que conclua no mesmo sentido do pleito do particular; [...] VII - tema que seja objeto de súmula da administração tributária federal de que trata o art. 18-A desta Lei.
A existência de precedentes administrativos, além de influenciar o comportamento do Poder Público no processo judicial, também provoca repercussões processuais que não dependem da sua manifestação de vontade, como se observa na dispensa da remessa necessária quando a sentença estiver fundada em entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa (art. 496, § 4º, IV, CPC).
Não bastassem todas essas regras, e mesmo independentemente delas82, o sistema de formação e aplicação de precedentes administrativos é desdobramento inexorável dos princípios da segurança jurídica (incluindo sua dimensão subjetiva, a proteção da confiança, porque respeitar o precedente é manter a coerência administrativa e proteger a confiança do administrado83) e da igualdade.84 O próprio art. 926 do CPC é, aliás, um comando dirigido também aos tribunais administrativos.85
Esse complexo normativo torna desnecessária a criação, na esfera administrativa, de um dispositivo equivalente ao art. 92786 do CPC. A eficácia vinculante dos precedentes administrativos já é uma característica do sistema jurídico brasileiro.87
Há ainda um aspecto a ser destacado. É necessário perceber que, em órgãos ou entidades que cumulam funções decisórias, ao modo de um tribunal administrativo, e regulatórias, o processo de decisão de casos concretos integra a dinâmica do processo regulatório. A solução de lacunas nos atos administrativos de regulamentação do setor e a própria interpretação desses atos ocorrem a partir da via contenciosa ou de consultas, gerando decisões que vinculam o ente regulador.
Interessante exemplo pode ser extraído do Regimento Interno da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), que expressamente prevê que os casos solucionados pela agência serão usados como precedentes para novas decisões e como subsídio para futura regulamentação da matéria objeto do problema jurídico (art. 49, IV88).
A. Generalidades e o dever de consultar
No Brasil, o estudo do tema dos precedentes no processo judicial já é bastante consolidado. Também é notável o amadurecimento do tema no âmbito do processo administrativo. Merece mais aprofundada reflexão doutrinária, no entanto, a questão da eficácia do precedente no âmbito de outras portas de acesso à justiça, como a arbitragem e os dispute boards, por exemplo ― em tais casos, a necessidade de observância (ou, ao menos, de diálogo) em relação às decisões anteriores da própria instituição (ou pessoa, no caso do árbitro singular) pode ser abordada como uma decorrência da boa-fé objetiva, observadas, é claro, as peculiaridades de cada uma das diferentes portas.
Mesmo assim, em todos esses casos, aquilo que se examina é uma perspectiva interna da eficácia dos precedentes.
Mas é possível pensar, ainda, em uma perspectiva externa da eficácia dos precedentes.
Geralmente, ela é abordada a partir da ótica de uma das portas de acesso à justiça e em único vetor, isto é, do ponto de vista dos precedentes do Poder Judiciário (notadamente aqueles de caráter obrigatório) em relação às demais portas de acesso à justiça.
Essa abordagem é necessária, mas não suficiente. Em uma realidade com múltiplos centros decisórios, com diferentes capacidades institucionais, muitas vezes com sobreposição de espaços de atuação entre eles, o conteúdo normativo do art. 926 do Código de Processo Civil pode ser compreendido à luz da característica da integração do sistema brasileiro de justiça multiportas, permitindo que dele se extraia um dever de consideração das manifestações provenientes de outras portas de acesso à justiça.
O ente responsável pela solução de determinado problema jurídico deve, no mínimo, dialogar com os precedentes oriundos de portas de acesso à justiça distintas, uma vez que a coerência e a integridade devem ser preservadas, na maior medida do possível, não somente no âmbito interno de cada uma delas, como também entre as diferentes portas de acesso à justiça.
Ilustrativamente, a partir da conjugação do art. 313, VII,89 do Código de Processo Civil com os arts. 1890 e 1991 da Lei n. 2.180/1954 é possível identificar um dever de consideração, pelo Poder Judiciário, das manifestações provenientes do Tribunal Marítimo.92
A suspensão do processo, prevista no citado dispositivo do CPC, não é a única técnica apta a permitir o diálogo interinstitucional. A consulta é outro possível instituto a ser utilizado para o alcance dessa finalidade.93
O ordenamento jurídico brasileiro prevê a possibilidade de formulação de consultas, por exemplo,94 à Justiça Eleitoral, ao Tribunal de Contas da União, ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica e à Comissão de Valores Mobiliários. Em termos bastante abrangentes, o art. 30 da LINDB prevê a possibilidade de formulação de consultas a autoridades públicas. A Resolução n. 499/2023 do Conselho Nacional de Justiça introduziu na Resolução n. 350/2020, do mesmo órgão, a expressa possibilidade de utilização da cooperação judiciária, inclusive interinstitucional, para fins de consulta.
Além de contribuir para a proteção de expectativas de incidência normativa, a prevenção e solução de problemas jurídicos e o aperfeiçoamento do diálogo institucional95, a consulta também colabora para a concretização dos comandos contidos no art. 926 do Código de Processo Civil, compreendidos no contexto de um sistema de justiça multiportas, como o brasileiro.
B. Arbitragem e precedentes judiciais
Nos precedentes judiciais obrigatórios, a norma jurídica geral estabelecida possui eficácia vinculante em relação ao próprio órgão jurisdicional e àqueles que lhe são subordinados (art. 927, CPC). A norma do precedente integra, portanto, o ordenamento jurídico brasileiro. Por isso, não tendo as partes escolhido a arbitragem por equidade, eles vinculam o árbitro como qualquer outra fonte de hard law.
Não há razão, portanto, para que se confira à relação entre arbitragens e precedente judicial obrigatório tratamento distinto em comparação com sua relação com as demais fontes do Direito96.
Se a decisão arbitral aplica mal ou deixa de aplicar precedente judicial obrigatório, trata-se de hipótese de error in iudicando, não de invalidade, insuscetível, então, de controle pelo Poder Judiciário.
Por outro lado, se o precedente obrigatório foi invocado pela parte, e o árbitro deixar de se manifestar sobre ele, haverá vício de fundamentação ― aliás, exatamente o que ocorre também com o juiz estatal ―, o que pode ser causa de invalidação da decisão.
Há, ainda, duas observações adicionais.
As partes podem celebrar um negócio de certificação para eliminar um estado de incerteza em relação, por exemplo, ao conteúdo e à abrangência dos efeitos de um precedente judicial obrigatório, estabelecendo a interpretação a ser adotada a respeito dele no contexto de determinada(s) relação(ões) jurídica(s).
Além disso, é necessário observar que o art. 2º, § 1º97, Lei n. 9.307/1996 autoriza a escolha, pelas partes, da norma de Direito material a ser aplicada. Trata-se de negócio jurídico conhecido como choice of law98, cuja utilização apenas não é admitida em arbitragens celebradas com a Administração Pública, submetida a um regime de indisponibilidade normativa99 para escolha do ordenamento jurídico aplicável.
Celebrado negócio jurídico para a escolha da aplicação de ordenamento jurídico distinto do brasileiro, evidentemente o árbitro não estará vinculado ao precedente judicial de tribunal do Brasil.
VI. Conclusões
O sistema brasileiro de justiça compreende múltiplos modos de solução de problemas jurídicos, oferecidos por diferentes portas de acesso à justiça ― trata-se de um sistema de justiça multiportas.
No Brasil, a heterocomposição pode ser realizada por diferentes sujeitos integrantes do sistema de justiça. Ela pode ser visualizada na solução de problemas jurídicos pelo Poder Judiciário, por árbitros e tribunais arbitrais, por tribunais administrativos, por agências reguladoras, por tribunais desportivos, por cortes eclesiásticas, por instituições reconhecidas como legítimas no seio de povos tradicionais ou de determinados grupos sociais, por comitês de resolução de disputas e por entes de autorregulação, por exemplo.
Em todos esses casos, o respeito aos precedentes é uma das normas de observância fundamental no exercício da heterocomposição, observadas, naturalmente, as peculiaridades de cada uma das portas de acesso à justiça.