A humanidade não havia conhecido, acaso, fora dos longínquos milênios da história oriental, um conflito de gentes e antagônicas formas de vida como o que se operou com a Conquista da América. Esta colisão de raças, economias e opostos estilos vitais que ainda condiciona a problemática social de todos os países hispano-americanos, se iniciou então.1 [Mariano Picón Salas (1978)]
Mariano Picón Salas (1978), historiador e crítico literário venezuelano, explica que a civilização anglo-saxã do norte da América extermina o índio nômade do território e adota, sem restrições religiosas, -com o impulso capitalista que já alentava o pensamento e a fé puritana- os novos modelos econômicos ocidentais. Há uma maior flexibilidade social para o domínio na medida em que o único desafio por parte dos dominadores se encontra na extensão territorial a ser povoada. A democracia norte-americana se cumpre como ascensão de gentes que se consideravam iguais e só deviam vencer os obstáculos econômicos.2
Em contrapartida, na América Hispânica, em meio a ritos, costumes e gentes estranhas entre si, colonizadores e colonizados encontram-se em um âmbito cultural de divisão de castas. Sendo assim, de acordo com a perspectiva de Salas (1978), o processo de democratização não poderia realizar-se de movo evolutivo como alcançaram os Estados Unidos, senão em meio a sangrentas turbulências no século XVIII, seguidas de grandes combates de emancipação e lutas dos caudilhos no século XIX.
Nas guerras civis hispano-americanas, cuja mais antiga gênesis pode rastrear-se nos conflitos entre conquistadores e conquistados da América do século XVI, não apenas aspira-se a maior distribuição econômica, mas se expressa, de igual modo, o rancor dos “humilhados” e “ofendidos”. Picón Salas (1978) sustenta seu argumento com o exemplo do personagem Lope de Aguirre, do romance histórico El Camino de El Dorado, de Arturo Uslar Pietri (1947),3 em sua carta destinada a Felipe II, rei da Espanha, declarando sua emancipação em relação ao domínio espanhol:
Não há como uma primeira epopeia do ressentimento, nesta diabólica aventura de Lope de Aguirre, “El Tirano”, contra as autoridades do Peru no século XVI e em todo o testemunho de rebeldia doentia que é sua conhecida carta a Felipe II, acerba crítica da Administração nas Índias, desde o foro dos soldados desavergonhados? (Picón Salas 1978: 42).4
Nessa visão de Picón Salas (1978), os espanhóis não devem ser culpados por sua falta de visão antropológica, ao presumirem que seus padrões vitais eram os únicos que tinham validez. Dentro do complexo religioso atuante em cada conquistador, a propagação da fé cristã, associada ao estilo de vida espanhol, é a única razão justificável para a violenta busca de ouro e crueldade das guerras.
Hernán Cortés, conquistador espanhol da América, por exemplo, expressa, claramente, em seu testamento, sua incerteza de estar em paz consigo mesmo, ao questionar se a guerra contra os índios é justa, se é permitido ao europeu escravizá-lo como pretexto para ensinar-lhes a fé.
O debate teológico e jurídico daquele tempo não dá conta de definir o grau de justiça ou injustiça das guerras de Conquista, sobretudo, porque esta teria que harmonizar -sob a fórmula cristã- o que parece inconciliável: desejo de riqueza, império e a propagação da fé. O índio, por sua vez, não está de acordo com a visão europeia e cristã do Papa como senhor do universo, o qual outorgou ao rei de Castilha as terras conquistadas, porque, neste caso, o Papa estaria doando aquilo que nunca lhe pertenceu.
Ainda que houvesse boa fé em determinado conquistador, seu sistema de valores e juízos morais é naturalmente antagônico ao do indígena. Tal realidade é responsável por tornar tão dramática essa discussão sobre a capacidade dos índios e direitos que lhes poderiam ser outorgados, iniciada na Ilha Espanhola, tendo como dilema o fato de ainda não haver nenhum espírito que pudesse julgar o índio “de dentro”, desde o plano de seus próprios interesses e reações. Os índios foram constituídos foco de reflexão histórico-cultural apenas em décadas posteriores, no momento de precursão da ciência antropológica americana.
Os castigos de desonra e difamação que às vezes aplicam os conquistadores aos índios para “curá-los” de seus vícios acarretam entre eles um mínimo efeito, além de não determinarem sanção alguma da tribo. O violento impacto de culturas produz na América, nos primeiros anos de Colonização, frequentes fugas e suicídios de aborígenes receosos, ante a coação dos europeus. Embora estádios e milênios de cultura separem os maias, astecas e incas das mais desnudas gentes das Antilhas, o choque espiritual se faz ainda mais crítico quando se passam das Ilhas aos antigos “impérios” americanos. Oferecia-se ao espanhol deste processo histórico-cultural outro sincronismo, sem paralelo dentro de sua experiência europeia.
A essência americana é a conciliação mestiça
A mestiçagem americana consiste em muito mais que mesclar sangues e raças; é unificar no templo histórico essas dissonâncias de condição, de formas e padrões vitais em que se desenvolveu nosso antagonismo. Nem na mais colorida história de Heródoto ligada ainda aos lindeiros caminhos estreitos do mundo clássico, pôde contar-se uma experiência humana tão ambiciosa, uma tão extraordinária confluência de elementos dissimiles, aquela mescla de pânico e maravilha que fazia dizer a Bernal Díaz junto aos muros de Tenochtitlán “que parecia com as coisas de encantamento que contam no livro de Amadis” (Picón Salas 1978: 50).5
A herança sociocultural e histórica da Conquista da América para além das lendas míticas
Não se trata, desse modo, de um retrocesso ao antigo debate jurídico-moral de validez ou invalidez da Conquista, ao considerarmos que nem os conquistadores espanhóis podem ser vistos unicamente como possessos de destruição, fazendo jus a como sempre são pintados pela lenda negra, assim como, da mesma maneira, não equivalem aos santos ou cavalheiros de uma cruzada espiritual, em consonância com a descrição não menos ingênua da lenda branca.
De acordo com Picón Salas (1978), na empresa conquistadora, não se pode equiparar a crueldade de um Lope de Aguirre ou um Carvajal, “demônios dos Andes”, personagens psicopatas, nos quais a dura natureza do trópico americano e a feroz solidão de sua errância atuam de maneira inflamada, levando-os a perder o controle de sua consciência, com o terror político que, contra seu temperamento mais bem diplomático e conciliador, temperamento de grande general dobrado de estadista, deve impor-se às vezes um Hernán Cortes.
As fortes personalidades europeias querem ver neste “Novo Mundo” a segurança que não encontraram na Europa, para além dos perigos de uma natureza tão desconhecida e indómita. Não se pode cortar da história da América Hispânica o cordão umbilical com o “complexo social”, na definição de Salas (Picón Salas 1978: 63), ou seja, com as ideias, sentimentos coletivos e normas éticas do mundo espanhol do século XVI.
Até Lope de Aguirre, considerado uma das personalidades mais diabólicas da Conquista, censura na carta a Felipe II os frades que folgavam em vez de evangelizar os magistrados que não faziam justiça, cuja crítica demonstra -além de um espírito de dissimulação ou hipocrisia, uma falsidade segura de si mesma- um complexo social, o cânon da época.
Há que se notar, igualmente, o paradoxo de que, no caso da cultura espanhola, o momento em que se realiza a grande aventura ultramarina da Espanha coincide com a integração de novos sistemas de crítica, novos valores no campo da política e economia, no conhecimento da natureza, na religião e na guerra, a penetrarem no organismo europeu. Há um rompimento da relação medieval entre os mundos terreno e divino, entre a religião e a política, o qual parece, na contracorrente, seguir subsistindo no Estado-Igreja da Espanha dos séculos XVI e XVII.
Frente à disciplina do estilo romano do catolicismo, o mundo nórdico europeu reclama seu direito à experiência interior, a interpretar os livros sagrados, a simplificar a hierarquia e a liturgia religiosa, anelando beber no cálice reservado ao sacerdote. Em contrapartida, a Igreja católica e Felipe II, no caso espanhol, reagem como reagiria um governo conservador moderno ante as reinvindicações obreiras consideradas demasiado audazes, ou as consignas de um partido de extrema esquerda.
O Estado espanhol se levanta em seu último intento contra a indisciplina, contra a revolução, nas lutas da Contrarreforma, e com obstinado orgulho se opõe diante das novas formas dominadoras da vida (ciência natural, economia e técnica) que começava a elaborar a cultura europeia. O Estado “vela por suas próprias exéquias como aquele misantropo imperador cujo imenso poder estava ruído de desengano e menosprezo” (Picón Salas 1978: 65).6
Este foi o lado negativo e ineficaz de nossa origem espanhola, na visão de Picón Salas, com o qual estamos de acordo. A Espanha foi interpretada pelo criticismo posterior com base nos novos valores que conduziriam à economia capitalista, ao Estado laico, à política que renunciaria aos “universais” da Idade Média. Seu mundo espiritual, por sua vez, permaneceu à margem desta dinâmica da história moderna (empirismo, naturalismo, protestantismo, positivismo e materialismo do século XIX).
Pode-se, no entanto, compreender e valorizar nossa origem espanhola para além tanto da tese conservadora do Estado-Igreja quanto da tese liberal do século XIX, a qual nega ou escarnece de tudo o que não condiz com a divinização da era industrial. Na fronteira em que se cruzam as violências do conquistador com o humanismo ético das “Leis das Índias”, nas quais Bartolomé de las Casas -frade dominicano espanhol, cronista defensor dos índios- se opõe aos encomendeiros, nos aproximamos, mais além de toda propaganda, da autenticidade de nossas origens.
De acordo com a seguinte explicação, sobre as primeiras formas de transculturação na América:
As formas da cultura europeia penetram desde o começo nos centros urbanos que se fundam na América no século XVI embora a originalidade do ambiente imponha, como já o veremos, o precoce aparecimento de formas mestiças. O problema do transplante cultural é diferente em um meio como o de Santo Domingo, primeiro estabelecimento espanhol na América mas onde o conquistador não encontra uma tradição aborigem digna de conservar-se e o índio se sume -sem incluir quase- no estrangeiro, e em um país como México, onde o autóctone pugnará por incorporar-se ou metamorfosear-se no estilo espanhol (Picón Salas 1978: 69).7
A cidade de Santo Domingo, fundada em 1494, primeira capital, porto, fortaleza e primitivo centro de gravitação da aventura conquistadora, será a última, a mais distante, em termos de avanço da cultura espanhola, no século XV, em sua mescla de gótico em falecimento e Renascimento inicial, nas terras ultramarinas. Em Santo Domingo, alma de nossa história civil, nota-se um adornado estilo de vida urbano imposto pela classe dominadora, a despeito da pobreza ou atraso do meio. Após catorze anos, desde fundada, Santo Domingo já é uma cidade toda urbanizada com conventos, escolas e sede episcopal, como para acentuar a vinculação deste mundo recém-descoberto com o europeu do Renascimento.
Partindo de Santo Domingo, o processo de evangelização na América, durante os séculos de dominação espanhola, avança por todo o México, América Central, Terra Firme e todo o continente sul-americano, culminando na presença dos jesuítas nos bosques do Paraguai. Como em toda história, há, nesta época de evangelização, o lúcido e o sombrio: a violência com que mais de um torpe frade espanhol anela impor a religião, pela defesa de que a letra se internaliza com sangue, e, também, uma pedagogia, uma estética e, inclusive, um sistema econômico de evangelização.
Os desafios pedagógicos apontados para esta empresa são:
[...] no México, por exemplo, abolir a velha religião de sangue; aprender o idioma dos conquistadores; criar em um povo guerreiro e tão ferozmente hierárquico como o asteca um sentimento cristão da vida; vencer a hostil desconfiança contra o espanhol; utilizar sob um novo sistema as artes e os ofícios da raça vencida; buscar nas línguas aborígenes palavras ou símbolos que sirvam para simplificar os complicados mistérios da fé (Picón Salas 1978: 86).8
Embora o autor mencione o México, pode-se estender a peculiaridade de desafios apresentados ao contexto hispano-americano de Colonização, em geral. No século XVII -o século do Barroco- a esplendorosa liturgia é substituída, ainda que não totalmente, pela fé criadora. A artificial pompa do barroquismo substitui a realidade rural e indígena americana.
Nesse contexto, Lezama Lima (1988) afirma que a estética barroca designa o legítimo eixo de nosso devir. Justifica-se pela percepção de que, com o Barroco, inicia-se o diálogo com o “espaço gnóstico” e a contemplação do Renascimento espanhol passado à América. Nesse sentido, o Barroco marca um autêntico começo, não uma origem, uma vez que é uma forma que renasce para gerar o nosso devir histórico-cultural.
Para o autor cubano, o verdadeiro Barroco se realiza, em sua plenitude, no Novo Mundo, desde a vida cotidiana até as mais elaboradas formas artísticas. Ao partir da premissa de que Picón Salas caminhava para um hispanismo regressivo de uma “busca da unidade espiritual originária” entre Espanha e América, Lezama Lima (1988) apresenta como contraponto intertextual que tal unidade se converte em diversidade, realizando-se mais integralmente na América.
Em seu argumento, pautado num expressivo americanismo, o escritor atribui ao Barroco um sentido revolucionário, por causa da “política” subterrânea da Contraconquista, a qual somente poderia efetivar-se a partir da tensão e plutonismo transculturadores dos mestiços. Quer-se dizer, com isso, que o Barroco figura um autêntico começo, como já mencionado, por viabilizar uma síntese “hispano-indígena” e “hispano-negroide”, ilustrada pelos artistas populares (Lezama Lima 1988).
Como exemplo, podem ser referenciados tanto os anônimos das catedrais peruanas, mexicanas ou das pinturas cusquenhas, quanto os legendários Kondori e Aleijadinho, esse último caminhando pelas ruas de Ouro Preto com a sua mula para picotar mais uma pedra-sabão com a sua goiva. Além desses, há, no mesmo sentido de transculturação, os literatos da elite vice-reinal: os doutos Carlos de Siguenza e Góngora, Domínguez Camargo, além da grande Senhora Barroca Sor Juana Inés de la Cruz, cuja ampla bibliografia sonhou em um poema único em nossa literatura. Posteriormente, a continuidade estética do Barroco na literatura americana do segundo pós-guerra ganha notoriedade internacional, com Alejo Carpentier e Severo Sarduy (Lezama Lima 1988).
Mariluci Guberman (2011) alude a que embora as críticas sobre a América colonizada quase sempre foram negativas, a terra fecunda estimulou, no século XVIII, um afã de conhecimento, engendrando o surgimento de uma rica geração de sábios. Havia, cada vez mais, o desenvolvimento de uma autorreflexão, o que contribuirá para o surgimento de uma consciência nacional.
Outro fator determinante para a sedimentação dessa consciên- cia será:
[...] a perda do espaço do latim e, ao mesmo tempo, a difusão das línguas vernáculas, principalmente a partir da tese e traduções da Bíblia por Martinho Lutero no século XVI. Se por um lado, na Europa, as línguas vernáculas vão impondo-se; por outro lado, na América Latina, as línguas dos nativos vão perdendo espaço para o latim, o espanhol e o português. A Reforma produziu o crescimento dos vernáculos no continente europeu, e a Contrarreforma produziu o crescimento do espanhol e do português nos séculos XVII e XVIII no continente latino-americano (Guberman 2011: 111).9
Com a ruptura dos impérios indígenas e a aquisição de uma nova língua comum, a América Hispânica, em especial, existe como unidade histórica e não se fragmenta em porções ferozmente reclusas em si mesmas. Neste processo histórico, a língua espanhola constitui um admirável símbolo de independência política, a qual, pela ação de Bolívar e San Martín, impediu, através do fundo comum de história, que se mobilizassem as guerras contra Fernando VII, por exemplo, de modo que a América configurasse, para os imperialismos do século XIX, uma nova África por repartir-se.
A América Hispânica em processo de formação de identidades culturais após as Independências
A partir do século XIX, as novas ideias alastradas e o descontentamento coletivo intensificaram o sentimento nativista, ocasionando, enquanto elemento propulsor, os movimentos independentistas da América Latina. Após intensas lutas, os países latino-americanos lograram, até 1898, suas Independências.
Ao romper-se, politicamente, o sistema colonial, a literatura hegemônica constitui-se a neoclássica. Essa desloca o Barroco a uma posição subalterna, o qual não desaparece imediatamente, mas perde sua posição de domínio. Ao declarar-se a Independência latino-americana, o desenvolvimento da literatura neoclássica, vinculada ao Iluminismo, domina tanto o sistema culto, quanto a produção jornalística da época, bem como quase todos os gêneros que se cultivam, nesse momento.
Não se trata, no entanto, de um simples prosseguimento do Iluminismo colonial, uma vez que ocorre uma distinção crucial: a díspar inserção social, na Colônia e na República, do discurso iluminista. Há, a partir de 1821, o surgimento da “opinião pública”, enquanto instância coletiva capaz de gerar modificações concretas na vida social, presente tanto na prosa de reflexão e nas canções cívicas, como no teatro, na oratória castrense, constitucional ou parlamentar; nos artigos e quadros de costumes e, inclusive, nas correspondências, que, apesar de privadas, pareciam ser produzidas para inúmeros leitores.
Mario Valdés, na introdução ao livro O condor voa: literatura e cultura latino-americanas, do ensaísta e crítico literário peruano Antonio Cornejo Polar (2000), traz a seguinte explicação, a respeito do pensamento de Cornejo Polar (2000) sobre este processo histórico de formação cultural latino-americana e, por conseguinte, de suas literaturas:
A tradição popular não segue o calendário europeu nem tampouco a periodização dessas histórias literárias. A temporalidade popular no Peru, México, Guatemala e Bolívia tem suas próprias contribuições para conseguir o prosseguimento de suas tradições de origem, superando a violentíssima ruptura da conquista e a ruptura mais lenta da evangelização e da língua imposta. Em contrapartida, a temporalidade da tradição iluminista se origina na conceituação europeia dos clássicos gregos e romanos, na extensa gestação das culturas na Idade Média, no Renascimento e nos princípios da modernidade, que inclui o barroco, o neoclassicismo, o romantismo, o realismo etc. Na América Latina vive-se, a cada dia, o choque das duas tradições (cfr. Cornejo Polar: 9).
De acordo com a visão apresentada, esta dicotomia, em seu enrijecimento, sempre geraria uma visão marginalizada das literaturas autóctones, enquanto o mais adequado seria uma visão dialética da história de formação das culturas latino-americanas e suas literaturas. Há que se considerar a dualidade do passado, permeada pela tradição popular, assim como pela tradição iluminista, para então, ponderar, ainda, sobre seus reflexos no contexto contemporâneo. Há que se conceber, em outras palavras, a realidade de que as culturas autóctones não foram de todo aniquiladas, ao contrário, prosseguiram e perduraram, a despeito das influências exógenas recebidas, as quais geraram a assimilação de novos meios de expressão.
Trata-se de uma espécie de dialética aberta, no esclarecimento de Mario Valdés (cfr. Cornejo Polar 2000), sendo este último defensor de uma visão das culturas literárias da América Latina como totalidade contraditória, em que seus diversos setores estão, necessariamente, em intrínseca correlação. Nas suas palavras:
Suspeito que a categoria de sistema é, pelo menos em parte, algo assim como um subproduto talvez imprevisto da infatigável inoperância de nossa historiografia literária. Incapazes de superar as bases conceptuais do positivismo, quase todas as histórias da literatura latino-americana imaginam sua matéria como uma sequência unilinear, supressora e perfectiva. Épocas, períodos e mesmo gerações se sucedem num tempo único e abstrato, obscuro mas firmemente governado pelo imperativo do Progresso. Permanece fora de sua consciência a perturbadora simultaneidade de opções literárias contraditórias e beligerantes, inclusive dentro do represamento da arte hegemônica, e certamente a coexistência, ainda mais inquietante, de várias literaturas paralelas e pouco menos que autônomas (cfr. Cornejo Polar: 47).
O autor nos esclarece que a busca de um sistema literário que promova uma ordem tão perfeita e harmoniosa quanto postiça, motivada por uma tentativa de corrigir os erros da historiografia, tenta tornar o heteróclito em homogêneo, o diverso em uma unidade. Este modelo sistêmico, baseado nas postulações do primeiro estruturalismo,10 o qual, cartesianamente, visa esmiuçar sucessividades e simultaneidades, opõe, na verdade, a espessura de uma imagem múltipla integrante da versão historiográfica de nossa literatura.
O culto, o popular e o indígena, fazendo menção apenas aos sistemas de maior vulto, confluem no mesmo ambiente literário, funcionando como a manifestação maior e inquestionável da complexa estratificação literária da América Latina (cfr. Cornejo Polar 2000). Na defesa do autor peruano, o conceito de sistema tornou-se mais geológico que histórico, ao lograr deter o tempo, verticalizar o horizontal, com vistas a simular sua solidez estrutural que, por sua vez, por estar fora da história, possuiu pouca serventia. Isso porque, embora os vícios da historiografia pudessem ser corrigidos, com esta visão sistêmica, praticamente, tornamo-nos sem história.
Um sistema sem história significa uma abstração ilegítima e enganosa (cfr. Cornejo Polar: 48), pois cada sistema possui sua história e, em paralelo, faz parte de outra, bem mais ampla, “aquela que distingue um sistema de outro e ao mesmo tempo, direta e indiretamente, os correlaciona”. De acordo, ainda, com esta postulação:
De que maneira as literaturas populares compreendem, experimentam a prática de sua própria história e nela se inscrevem? Debilmente autônomas no que diz respeito à vida social, é provável que seu tempo interior, o que leva de um texto a outro, esteja submerso no ritmo do acontecer coletivo, talvez muito mais reiterativo que mutável, precisamente porque insistir é uma forma de resistência cultural e um modo de vencer a interferência depredadora do opressor (cfr. Cornejo Polar: 49).
As relações entre os sistemas literários são sempre contraditórias. Na América Latina, cada sistema alicerça a atuação de sujeitos sociais distintos e, por vezes, em contenda, imbricados em contextos linguísticos diferentes, idiomáticos ou dialetais, forjadores de racionalidades e imaginários dissimiles, comumente, incompatíveis. Por isso, não cabe, ao contexto de nossas literaturas heteróclitas, o comparativismo entre teoria e prática, de cer- ta forma, eficazes para o cotejo entre literaturas homólogas.
Nesta pertinente visão:
O caminho inverso, que leva das literaturas marginais à hegemônica, pode-se conhecer melhor porque suas instâncias finais inscrevem-se na face mais visível de nossa literatura. As que às vezes denominei “literaturas homogêneas” funcionam em parte como receptoras das tradições populares e indígenas e neste sentido, além de reproduzir as rupturas socioculturais da América Latina, operam no espaço ambíguo da ressemantização de formas e conteúdos alternativos. Certamente não são iguais as crônicas, a gauchesca, o negrismo, o indigenismo, o romance do nordeste brasileiro, o realismo mágico ou o relato testemunhal, mas em todos estes casos o discurso hegemônico se abre a outros discursos, os marginais e subterrâneos, às vezes com autenticidade -quando são produtivos- e às vezes com artificiosidade opaca e falsificadora. Enfim, a polifonia backhtiniana só é enriquecedora quando as vozes dos outros preservam seu tom e têmpera discordantes (cfr. Cornejo Polar: 50-51).
Nesse sentido, o caminho mais adequado de entendimento da literatura latino-americana é o do estudo destas relações concretas. Não se trata de uma mestiçagem que admite tudo, mas há que se forjar o perfil do objeto literário que se busca conhecer, considerando a seguinte ressalva:
Nunca se deve evitar o fato de que não é um objeto “natural”, mas uma construção intencional, portadora de opções ideológicas e científicas talvez não muito precisas, mas em todo caso, decisivas. Não é “natural”, por exemplo, que assumamos como latino-americanas as literaturas pré-colombianas, nem que atribuamos condição literária à oralidade sem letra, nem sequer que falemos de “literatura” para referir-nos ao imaginário verbal de culturas que não parecem necessitar desse conceito. Tudo isso, e muito mais, explica-se e se faz legítimo quando existe uma consciência clara de porque se problematiza um assunto como o caráter heteróclito da literatura latino-americana, assunto que, de outros pontos de vista, se poderia e até se deveria omitir (cfr. Cornejo Polar: 52).
O próprio conceito de literatura latino-americana é produto da história. Cornejo Polar (2000) explica que, na concepção das primeiras gerações republicanas, nossa literatura inicia-se por volta de 1810, a partir da Independência. Posteriormente, os séculos coloniais, considerados a origem de nossas literaturas nacionais, incorporam-se ao processo de formação da literatura latino-americana. Por fim, a inclusão do período pré-hispânico, por sua vez, ganha notoriedade, ainda que sem consenso e mais recentemente, neste processo de “nacionalizar” e “latino-americanizar” ideologicamente nossas literaturas.
Conforme a elucidação abaixo:
Não sei se fica claro, assim, que os sistemas maiores de nossa literatura têm consistências diferenciais, cada qual com sua própria história, quase totalmente desconhecidas no caso das literaturas marginais, mas também, ao mesmo tempo, funcionam dentro de um jogo de ressonâncias múltiplas, imprevisíveis e contraditórias, cujos ecos vão e vêm no seio de uma história que é o fato único a nos identificar com “todos os sangues” de nossa América. É esta filiação plural e contrastante, com sua dura dramaticidade e sua vocação de plenitude, a razão última de um exercício crítico e historiográfico que quer reconhecer-se nos muitos tempos com que se trama, sem pausa, a aventura americana (cfr. Cornejo Polar: 53).
Em outras palavras, uma teoria da literatura não pode deixar de considerar, também, a teoria da história e a teoria da crítica dessa literatura. Ou seja, torna-se irrealizável uma história literária que pretenda carecer de valoração crítica, assim como é inútil ou insuficiente uma crítica que se postule desassociada da história. Do mesmo modo, ambas mantêm relações intrínsecas com a correspondente teoria literária. Ainda que haja especificidades concretas na competência de cada uma delas, tais peculiaridades não promovem desassociação, tendo em vista que tais disciplinas se alimentam umas das outras, reciprocamente.
As imbricações entre literatura e história na obra dos escritores latino-americanos do século XX
Ao romper o século XX, os escritores da América Latina encontram-se em uma bifurcação histórico-cultural, a qual apontará para duas vertentes em nossas letras: a) a gota de “sangue da África, do índio” e, sobretudo, todos os problemas históricos vinculados a ela ressoam em Mariano Picón Salas e Arturo Uslar Pietri, César Vallejo e José María Arguedas, Nicolás Guillén e Alejo Carpentier, Juan Rulfo e Aimé Césaire, Pablo Neruda e Jorge Amado; b) as “visões de países distantes ou impossíveis” sobrevivem em obras como as de José Maria Eguren, Vicente Huidobro, Jorge Luis Borges ou Haroldo de Campos.
A Revolução Mexicana gera, ainda, uma intensidade maior no foco dos escritores para as questões nacionais e sociais, na medida em que ocasiona um processo democrático-burguês que fomentará, pela primeira vez, a irrupção das massas populares nas artes de um país latino-americano, além de repercutir no estrangeiro as raízes da nação. O muralismo mexicano configura a grande contribuição mundial dada pela arte americana, até o momento. Artistas como Diego Rivera, por exemplo, que trabalha junto com cubistas em Paris nesse período, não encontrará precedente nas artes plásticas da América, ao regressar a seu país, inaugurando uma arte nova -nacional e universal- concomitantemente.
Roberto Fernández Retamar (1984: 129) explica o seguinte:
Paralelamente ao desenvolvimento do chamado “romance da Revolução Mexicana”, se produzem na América Latina outros dois fenômenos literários de envergadura continental: “o primeiro período, a primeira fase coerente da narrativa latino-americana”, e a aparição da vanguarda poética. Se trata de fenômenos em aparência contraditórios: por um lado, a publicação de romances como La vorágine (1924), de José Eustasio Rivera, Don Segundo Sombra (1926), de Ricardo Guiraldes, e Doña Bárbara (1929), de Rómulo Gallegos, que revelam um forte predomínio agrário, em correspondência com o atraso estrutural de nossas sociedades; por outro lado, a primeira consequência em nossos países da chamada vanguarda europeia, que a princípio mostra uma visível tendência urbana, maquinística. Na realidade, em ambos os fenômenos repercute a crise do liberalismo dependente latino-americano: uma crise ainda mais visível na aparição coetânea de pensadores marxistas como José Carlos Mariátegui e Julio Antonio Mella, a cancelação de influência de pensadores como Rodó, e a revalorização de democratas revolucionários como Manuel González Prada e, sobretudo, Martí.11
Ocorre, no século XX, uma busca por autenticidade na América Latina, a partir da “devoração de valores europeus”, os quais deveriam ser destruídos ao serem incorporados à nossa realidade, como modo de encontrar a expressão de nossos próprios valores. O indigenismo peruano e o negrismo antilhano, por exemplo, foram impulsionados por este alvo.
Passados quinze anos da Segunda Guerra Mundial, a América Latina, batizada equivocadamente como “subdesenvolvida” ou “terceiro mundo”, oferece uma literatura cuja maturidade está respaldada por escritores como Manuel Bandeira, Ezequiel Martínez Estrada, Murilo Méndez, Carlos Drummond de Andrade.
Romances como El señor Presidente (1946) e Hombres de maíz (1949), de Miguel Ángel Asturias; El camino de El Dorado (1947), de Arturo Uslar Pietri; El reino de este mundo (1949) e Los pasos perdidos (1953), de Alejo Carpentier; Pedro Páramo (1955), de Juan Rulfo; La hojarasca (1955), de Gabriel García Márquez; Grande sertão: veredas (1956), de João Guimarães Rosa são exemplos de grandes clássicos produzidos nesse período. Além disso, no ano de 1958, em especial, Nicolás Guillén publica La paloma de vuelo popular; Alejo Carpentier, Guerra del tiempo; Pablo Neruda, Estravagario; Jorge Amado, Gabriela, cravo e canela; José Lezama Lima, Tratados en la Habana; Octavio Paz, La estación violenta(Fernández Retamar 1984).
Fernández Retamar (1984) afirma que qualquer leitor atento poderá discernir nessas obras a assimilação criadora de uma ampla e contraditória herança. É papel do respectivo leitor verificar, ainda, se o âmbito histórico em que se produz essa literatura representaria, realmente, um mundo “subdesenvolvido”. Ao fazê-lo, poderá reconhecer que a literatura desenvolvida por esta geração alcança, na verdade, uma complexa e genuína expressão, a qual ganhará reconhecimento universal, sobretudo, a partir da década de 70, do século XX.
As décadas de maturidade literária, inauguradas por José Martí e Rubén Darío, convergem, em seguida, numa produção literária de instrumentos expressivos, ao mesmo tempo que refinados, de nível universal, mantendo, porém, sua fidelidade a seus problemas específicos. Compreende-se, nesse momento, que a América Latina tanto não era uma mera repetidora das realidades “ocidentais”, ao menos em suas figuras e obras vernáculas, como, também, não possuía uma cultura cujos sistemas sígnicos estivessem abruptamente distanciados dos que o Ocidente já havia difundido pelo planeta.
Os latino-americanos não são, obviamente, europeus, mas, ao serem forjados no diálogo dramático com a modernidade ocidental, sua situação não estava tão divergente da que vivia a periferia europeia, salvo por serem enriquecidos por heranças culturais aborígenes e de raiz africana, as quais aportam seus poderosos elementos a uma mestiçagem em ebulição.
A defesa, com a qual estamos de acordo, é de que a literatura contribui para a revelação de um novo aspecto do mundo ou uma nova zona do mesmo, a qual costuma reivindicar atenção, por razões extraliterárias, embora, no que tange à literatura, esta só poderá reter a atenção pleiteada por razões concretamente literárias (Fernández Retamar 1984). Os romances latino-americanos do século XX são uma amostra da dramática realidade do continente, refratada através de uma rica diversidade estilística e apresentada, em geral, em contraponto polêmico com a versão “ocidental” consagrada até o momento.
Não obstante, este enriquecimento ao âmbito humano não se esgota na peculiaridade dos romances latino-americanos, ao contrário, estende-se à poesia e ao conto, gêneros cultivados com o mesmo fim de encontrar claridade ante as urgências desse tempo, através da construção de uma literatura lúcida e beligerante, embora não tenha sido nosso propósito discuti-los neste estudo.
A literatura latino-americana revela ao mundo que o ser humano é, também, mulher, negro, amarelo, mestiço, operário e campesino, asiático, latino-americano, africano. Dessa forma, traz novos traços ao perfil definitivo do homem. O homem já não é apenas masculino, europeu, branco, burguês e ocidental, de maneira que o outro seria sempre o excepcional.
A poesia e a prosa encontram um ponto de conexão comum quando comungam nessa percepção mais ampla de representação literária do humano, situado numa noção espaço-temporal que, igualmente, se reconfigurou, ampliando-se. A despeito do gênero literário cultivado, faz-se mister a compreensão, tanto por parte dos escritores quanto dos leitores, de que a literatura latino-americana se forma por gerações que possuem uma realidade histórica e tal realidade é morfológica, não valorativa. Implica diferenças de forma, não de qualidade.
Há que se considerar que uma obra literária está em contato com toda a sua época e, igualmente, com a literatura. Ou seja, a literatura vive em relação com o seu tempo, mas também com a própria história da literatura. As vanguardas latino-americanas, nesse caso, reconhecem os valores americanos minimizados pela arte de inspiração burguesa, de modo que já não se trata mais de falar sobre negros e índios, mas como negros, como índios, como mestiços raciais e culturais que repudiam o absoluto burguês.
Nesse sentido,
Na América Latina existem, evidentemente, muitos casos, muitos matizes: desde o de escritores entre dois mundos, como Huidobro (“poeta ambivalente”, segundo disse com acerto Ana Pizarro), ou escritores que involucionaram dramaticamente, até escritores que fazem plenamente visível esse “papel catalisador” que está em nome desta mesa redonda: poetas como César Vallejo, Nicolás Guillén ou Pablo Neruda; romancistas como Miguel Ángel Asturias ou Alejo Carpentier. Não é exagerado dizer que, na medida em que, com maior ou menor consciência, dão voz a um indetenível processo de liberação nacional, eles inauguram a literatura latino-americana realmente nova, e que poetas como Drummond de Andrade, Aimé Cesaire ou Ernesto Cardenal; romancistas como Jorge Amado, José María Arguedas ou Gabriel García Márquez, para não nomear senão a uns poucos, verificam longamente esse papel catalisador da vanguarda em nossas terras (Fernandéz Retamar 1984: 84).12
Ao papel catalizador da literatura, referido pelo autor, destina-se a produção literária dos escritores latino-americanos do século XX, homens de peleja aberta, cuja busca por uma América Latina que exista -com pensamento próprio e crítica literária orgânica- tornou-se sua luta agônica.