Introdução
Em 2020, o Grupo de Peritos para o Património Arquivístico Partilhado do Conselho Internacional dos Arquivos emanou um relatório elaborado por James Lowry (doravante, Relatório de Lowry) (International Council on Archives 2020) que atualiza o ponto da situação do contencioso arquivístico internacional. A remoção dos arquivos dos seus contextos sociais e territoriais originários, independentemente dos seus factores incoativos, e as reivindicações pela sua restituição constituem um dos problemas mais complexos da arquivística contemporânea. O fenómeno tem sido denominado pela comunidade arquivística internacional como arquivos deslocados -apesar de coexistirem outras denominações sinónimas, com definições nem sempre consistentes- entendidos como «arquivos removidos do local da sua criação, onde a posse e propriedade dos arquivos são disputadas por duas ou mais partes» (International Council on Archives 2020, 5).
Durante muito tempo, o fenómeno subjacente aos arquivos deslocados permaneceu associado a casos internacionais, por força dos estudos produzidos por Kecskeméti (1977) e por Auer (1998). Segundo Lowry (2017), a via jurídica revelou-se, na maior parte das vezes, ineficaz na resolução destes conflitos, considerando os poucos casos resolvidos face à emersão de novos pedidos de restituição, desta vez com contornos muito distintos. Embora a natureza deste conflito possa estar associada a fenómenos derivados do conflito armado, da secessão/irredentismo, do colonialismo, das migrações forçadas/diáspora, do tráfico ilícito de bens culturais, estes eventos também podem ocorrer em contexto subnacional, com a agravante de as remoções poderem também ocorrer ope legis pela ação das administrações centrais (Macedo 2019).
Entre os diversos casos emergentes destacam-se os conflitos pela custódia de arquivos em contexto subnacional ou intranacional, ou seja, as reivindicações pela restituição de arquivos dentro de um mesmo país. De acordo com o Relatório de Lowry, emergiram dois casos: a Região Autónoma da Gronelândia versus Reino da Dinamarca e a Região Autónoma da Madeira versus Portugal. Embora os casos apresentados pela Região Autónoma da Gronelândia se apresentem como remoções derivadas da postura colonialista do governo dinamarquês em relação àquela comunidade, a Região Autónoma da Madeira denomina o fenómeno como um caso intranacional. Não obstante existirem diversos conflitos pela custódia de arquivos em contexto subnacional ou intranacional no mundo, como o caso dos «Papeles de Salamanca» em Espanha ou a disputa pela domiciliação legal de arquivos entre o Arquivo Público Municipal de Ouro Preto e o Arquivo Público Mineiro, no Brasil, estes não se encontram reportados no Relatório de Lowry, contribuindo, em certa medida, para a invisibilidade do fenómeno em apreço ao nível internacional.
Este artigo versa-se sobre um caso concreto referente aos pedidos de restituição de arquivos reivindicados pela Região Autónoma da Madeira (RAM) ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). Reconhecendo que os conflitos pela custódia de arquivos em contexto subnacional constituem uma dimensão pouco abordada na produção científica, a nossa análise incide especialmente sobre as estratégias de representação da informação dos conjuntos documentais reivindicados pela RAM em instrumentos de acesso à informação (doravante, IAI), de qualquer materialização genológica. Se para Winn (2015) a inexistência de IAI constitui um dos factores limitadores para a identificação de casos de arquivos na condição de deslocados, é importante, no caso de estes instrumenta existirem, conhecer como estes conjuntos documentais têm sido representados pelas entidades custodiantes, atendendo que as disputas pela custódia de arquivos não se restringem apenas a questões jurídicas sobre posse ou propriedade de bens arquivísticos de conservação permanente, mas também aos critérios de representação de informação adotados pelas entidades custodiantes contestadas.
Assim, partindo do caso escolhido, pretende-se neste artigo responder a duas perguntas de investigação:
Quais são os fundos documentais reivindicados pelas autoridades madeirenses ao ANTT?
Como é que estes conjuntos documentais se encontram representados nos IAI do ANTT e da RAM, especialmente no que respeita à forma de aquisição?
A principal contribuição deste estudo consiste não só em tornar visível a complexidade subjacente ao fenómeno dos arquivos deslocados em contexto subnacional ou intranacional, tomando o caso português como ponto de partida e reconhecendo a escassez de casos congéneres na literatura, mas também em explorar abordagens metodológicas alternativas que permitam conhecer a causalidade do fenómeno, identificando as suas caraterísticas diferenciadoras.
Metodologia
Para responder às questões de investigação supramencionadas, realizou-se uma investigação de natureza qualitativa de tipo documental e arquivística (C. G. da Silva 2021). Esta estratégia possibilita combinar dados sobre a representação do conteúdo de conjuntos documentais em IAI publicados pelo ANTT e pelo ABM com o grau de dispersão das unidades documentais.
Para a identificação dos arquivos reivindicados pela Resolução da Assembleia Legislativa da Madeira n.º 3/2017/M, de 12 de janeiro, a análise de IAI possibilita-nos explorar estratégias de representação dos conjuntos documentais em disputa. Para Ribeiro (2013), a representação da informação arquivística materializada em IAI (genologicamente materializados em catálogos, inventários, guias, índices ou bases de dados) continua a ser aplicada pela comunidade profissional para servir uma dupla função, por um lado, para «organizar/arrumar (fisicamente) documentos» e, por outro, para «representar/recuperar informação». Neste caso específico, para a questão (1) a nossa análise incide na extração de dados referentes à zona de identificação (metadados Código(s) de referência, Título, Data(s), Nível de descrição, Dimensão e suporte) da norma internacional ISAD(G) (Conselho Internacional dos Arquivos 2002). Do ponto de vista do nível de descrição, cingir-nos-emos ao fundo. Para a contextualização dos processos de aquisição, interessa-nos particularmente o metadado «fonte imediata de aquisição ou transferência» da zona de contexto da norma referenciada para responder à questão de investigação (2). Convém reconhecer que os IAI têm evoluído consideravelmente, tanto em suporte analógico como em suporte digital (MacNeil 2012), de modo que os dados disponibilizados nos portais institucionais pelas entidades custodiantes podem ser objeto de modificação.
A pesquisa decorreu através de uma recolha em bases de dados ou listagens disponíveis no Portal Português de Arquivos (Direção-Geral do Livro dos Arquivos e das Bibliotecas 2017) e no portal da Direção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira (Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira 2017).
Nos motores de pesquisa do portal institucional web do Portal Português de Arquivos utilizamos descritores para recuperar informação em título de fundo, utilizando a denominação dos fundos enumerados na Resolução supra exarada, combinados com «Madeira» e «Funchal». Os resultados foram extraídos e processados em .xlsx (Microsoft Excel). Para suporte à análise de conteúdo, baseamo-nos num conjunto de garantias literárias emanadas pelo Conselho Internacional de Arquivos e pelo órgão nacional dos arquivos (Direção-Geral dos Arquivos 2011), atendendo às recomendações para a descrição dos metadados supra indicados. Uma vez extraídos os dados, complementa-se com investigação documental, com recurso à legislação portuguesa (Assembleia da República 2010; Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2016) e à investigação arquivística dos fundos dos «arquivos dos arquivos» (Arquivo Nacional da Torre do Tombo 2011; Governo Regional da Madeira 2021).
Resultados
Quais são os fundos reivindicados pelas autoridades madeirenses ao ANTT?
A Resolução n.º 3/2017/M, de 12 de janeiro, enumerou cinco fundos a transferir para a RAM: «Cabido da Sé do Funchal, do Convento de Santa Clara, do Convento da Encarnação, da Provedoria da Real Fazenda e da Alfândega do Funchal» (Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira 2017, 409). Contudo, os resultados da pesquisa efetuada no portal institucional devolveram onze fundos madeirenses na custódia do ANTT, a saber: Convento de Santa Clara do Funchal (CSCF); Convento de Nossa Senhora da Encarnação do Funchal (CNSEF); Convento de São Francisco do Funchal (CSFF); Cabido da Sé do Funchal (CSF); Convento de Nossa Senhora da Piedade de Santa Cruz (CNSPSC); Convento de São Bernardino de Câmara de Lobos (CSB-CL); Convento de Nossa Senhora da Porciúncula da Ribeira Brava (CNSPRB); Convento de São Sebastião da Calheta (CSSC); Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal (PJRFF); Comissão da Fazenda do Distrito da Madeira e Porto Santo (CFMPS) e Alfândega do Funchal (ALF). Foram devolvidos subfundos Confraria das Escravas de Nossa Senhora do Monte (CSCF), Irmandade da Ordem Terceira de São Francisco (CSSC) e Confraria de Nossa Senhora Mãe dos Homens e do Patriarca São José (CSFF). Foi igualmente devolvido pelos motores de pesquisa do ANTT sub-fundos como Delegação do Funchal da PIDE-DGS e Comissão Distrital do Funchal da União Nacional, que se excluiu, não só por não estar mencionada na citada Resolução.
Numa primeira análise, o facto de a Resolução apenas enumerar cinco fundos só pode ter justificação por motivo de o legislador ter recorrido a um IAI anterior ao ano de 2000. Esta discrepância de número de fundos deriva do desconhecimento da intervenção feita pelo ANTT, em 2002, quando se empreendeu uma profunda reorganização dos fundos conventuais, cujo inventário (Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo 2002) foi coordenado pela arquivista madeirense Maria do Carmo Jasmins Dias Farinha (1937-2014), sob a direção José Mattoso. Basicamente, foram individualizados seis novos fundos que permaneceram indistintos no fundo da PJRFF desde a sua transferência para Lisboa em finais do século XIX, mais concretamente os conventos masculinos (CFMPS, CNSPRB, CNSPSC, CSB-CL, CSFF e CSSC) (Arquivo Nacional da Torre do Tombo 2002).
Importa referir que, desde 1937, o Arquivo Distrital do Funchal (entidade antecessora da atual Direção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira) procurou inventariar no ANTT a documentação reivindicada, cujos resultados foram publicados no boletim Arquivo Histórico da Madeira (1939d; 1939c; 1939e; 1939b; 1939a). Os fundos ALF, PJRFF, CNSEF e CSCF foram microfilmados e parcialmente digitalizados a partir do microfilme, projeto conduzido pelo Centro de Estudos de História do Atlântico, organismo do Governo Regional da Madeira, cuja base de dados Nesos (Governo Regional da Madeira 1998) se encontra atualmente descontinuada.
O portal institucional da Direção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira (Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira 2017), por seu turno, apenas disponibiliza um inventário digitalizado e não dispõe de qualquer representação digital sobre os conjuntos documentais que custodiam nas bases de dados institucionais. De igual forma, não dispõe de um IAI atualizado há várias décadas. A tabela seguinte enumera os conjuntos documentais constantes desta entidade, partindo da informação unicamente providenciada através do guia impresso (Arquivo Regional da Madeira 1997).
Conforme se pode verificar através do Gráfico 1, os conjuntos documentais foram incorporados no Arquivo Distrital do Funchal (entidade da administração central desconcentrada pré-autonómica) desde 1937 (CSFF, CNSEF, CSBCL, CSCF, CNSPSC). Sobre a PJRFF, não foi documentado qualquer auto de incorporação anterior a 1957 e, no que respeita ao fundo ALF, a documentação foi incorporada ao longo dos anos entre 1951 até 2012 (Arquivo Regional da Madeira 1997). Apesar da amplitude cronológica, alguns de vários séculos, houve perdas documentais significativas ocorridas no passado devido a factores humanos e naturais, que se pode depreender através de lapsos cronológicos. Os IAI disponibilizados pelo ABM constituem simplesmente listagens de unidades de instalação, que não cumprem com as normas internacionais de descrição arquivística, sem representações digitais destas unidades nas bases de dados desta entidade. Assim, podemos concluir, através desta breve análise, que o problema presente é o da reunificação de fundos, como o gráfico seguinte elucida:
Fonte: elaborado a partir do portal do ABM (Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira 2017) e Portal Português de Arquivos (Direção-Geral do Livro dos Arquivos e das Bibliotecas 2017).
Através do Gráfico 1, é possível visualizar a existência de dois grupos distintos, a saber:
(1) Grupo 1 (G1): sete fundos repartidos entre o ABM e ANTT (n= 12789): ALF (ABM [1650/2000], n= 10598 u. i. uersus ANTT [1620/1834], n= 513 u. i.); PJRFF (ABM [1649/1833], n= 26 u. i. uersus ANTT [1569/1834], n= 1392 u. i.); CSCF (ABM [1634/1897], n= 17 u. i. uersus ANTT [1447/1900], n= 144 u. i.); CNSEF (ABM [1645/1895], n= 36 u. i. uersus ANTT [1660/1890], n= 48 u. i.); CSFF (ABM [1710/1730], n= 1 u. i. uersus ANTT [1732/1832], n= 7 u. i.); CSBCL (ABM [1783/1824], n= 1 u. i. uersus ANTT [1792/1825], n= 4 u. i.); CNSPSC (ABM [1705/1710], n= 1 u. i. uersus ANTT [1772/1776], n= 1 u. i.).
(2) Grupo 2 (G2): quatro fundos que se encontram custodiados na totalidade pelo ANTT (n= 101 u. i.), a saber: CSF (n= 78 u. i., 1478/1861); CFMPS (n= 16 u. i., 1834/1851); CSSC (n= 4 u. i., 1674/1811); CNSPRB (n= 3 u. i., 1736/1809).
Com base no exposto, a proporção de fundos entre o ANTT e o ABM reparte-se, respetivamente, entre 16,5 % e 83,5 % face ao total de unidades de instalação identificadas (n= 12890). O fundo mais extenso é o ALF, com cerca de 86,2 % do volume total de unidades de instalação, e o menos extenso é o CNSPSC (0,01%), ambos do G1.
Independentemente do volume documental de cada fundo, alguns dos quais aparentam ser muito fragmentários (com > 10 u. i.), verifica-se que os conjuntos documentais mais antigos se encontram na custódia do ANTT, especialmente o CSCF e o CSF, que remontam ao século XV e que se estendem por vários séculos. Acresce a isto o facto de, não obstante, os fundos do G1 apresentarem datas que indiciam lapsos temporais em determinadas séries documentais. Embora esta análise se cinja ao nível do fundo, este aspeto pode ser importante, pois sugere que uma representação hipoteticamente reunificada destes conjuntos documentais depende da forma como cada unidade de instalação foi descrita por ambas as entidades custodiantes, assim como as classes intermédias (secção/subsecção e série/subsérie). Evidências empíricas destas ações podem ser encontradas nos IAI emanados pelo ANTT, designadamente na forma como esta entidade custodiante optou não só por desagregar unidades de um fundo para gerar novos fundos -como é o caso dos conventos masculinos (CSFF, CSBCL, CSSC, CNSPSC e CNSPRB) e entidades como a CFMPS, ambos inicialmente integrados na PJRFF- como também por reconduzir unidades de instalação entre fundos (u. g., PJRFF e ALF e CSCF e CNSEF). Oscilações no cômputo global das unidades de instalação de cada um desses fundos podem limitar a possibilidade de alcançar-se uma representação orgânica e cientificamente reunificada, por motivo da ausência de intervenção por parte do ABM na descrição dos conjuntos documentais que se encontram sob custódia.
Com base no exposto, a identificação de fundos disputados não constitui um processo linear, atendendo que nada indica que a reivindicação feita pelas autoridades insulares tenha partido do conhecimento direto dos conjuntos documentais e dos seus IAI. Além disto, é indispensável analisar genologicamente os IAI emanados pelas entidades custodiantes, sendo percetível que diversas representações destes fundos disputados resultaram numa erosão causada pela mediação arquivística, especialmente ao fazer prevalecer a perspetiva da entidade custodiante em detrimento de uma representação técnica e cientificamente reunificada com a parte remanescente na Região Autónoma da Madeira. Por exemplo, os IAI que descrevem o CNSEF na custódia do ANTT não mencionam em qualquer um dos metadados a existência da outra parte, também CNSEF, na custódia do ABM. Não obstante, em última análise, o recurso a garantias literárias para a descrição arquivística pode não proporcionar um cenário de representação reunificada (independentemente do medium) de fundos dispersos, se na base da sua conceção não estiver o propósito de alcançar a sua reunificação.
Como é que estes conjuntos documentais se encontram representados nos IAI do ANTT e da RAM, especialmente no que respeita à forma de aquisição?
O elemento metainformativo «Fonte imediata de aquisição» (FIA) tem como objetivo «identificar a fonte imediata de aquisição ou transferência da unidade de descrição» (Conselho Internacional dos Arquivos 2002, 28). Visa informar «formas de aquisição, ou seja, de obtenção da propriedade e/ou custódia de documentos de arquivo» (Direção-Geral dos Arquivos 2011, 78). Sendo um elemento obrigatório na descrição de nível de fundo em Portugal, mas facultativo para os níveis de descrição inferiores, a informação disponibilizada pelo ANTT sobre os onze fundos reivindicados encontra-se exarada no seguinte Quadro:
Fundo | FIA | Fonte |
---|---|---|
ALF | Incorporação ao abrigo de Portaria do Ministério do Reino. | https://digitarq.arquivos.pt/details?id=3886618 |
CFMPS | Incorporação ao abrigo de Portaria do Ministério do Reino. | https://digitarq.arquivos.pt/details?id=3909719 |
CNSPRB | [Omite] | https://digitarq.arquivos.pt/details?id=1375741 |
CNSPSC | [Omite] | https://digitarq.arquivos.pt/details?id=1375743 |
CSBCL | [Omite] | https://digitarq.arquivos.pt/details?id=1379034 |
CSCF | [Omite] | https://digitarq.arquivos.pt/details?id=1379435 |
CSFF | [Omite] | https://digitarq.arquivos.pt/details?id=1379962 |
CSSC | [Omite] | https://digitarq.arquivos.pt/details?id=1382433 |
PJRFF | Incorporação, em 1886, ao abrigo de Portaria do Ministério do Reino. | https://digitarq.arquivos.pt/details?id=4310201 |
CSF | [Omite] | https://digitarq.arquivos.pt/details?id=1379940 |
CNSEF | [Omite] | https://digitarq.arquivos.pt/details?id=1375671 |
Fonte: Portal Português de Arquivos (Direção-Geral do Livro dos Arquivos e das Bibliotecas 2017).
Conforme se pode verificar no Quadro 1, apenas três fundos mencionam explicitamente o critério de aquisição por incorporação por diploma, a Portaria do Ministério do Reino de 9 de junho de 1886, enquanto os fundos conventuais não mencionam qualquer modo de aquisição, não se cumprindo, assim, o requisito estipulado pelo órgão de gestão dos arquivos em termos de descrição arquivística. No entanto, as informações sobre os processos de aquisição destes bens pelo ANTT encontram-se no metadado «História Custodial e Arquivística». Por um lado, o ANTT justifica a aquisição ao abrigo do Decreto de 2 de outubro de 1862 (Ministério da Justiça 1862). Apesar de os restantes fundos integrantes da população terem em comum o facto de partilharem o fatum provocado por esse diploma e pela Portaria de 9 de junho de 1886 (Ministério do Reino), apenas o fundo CN-SEF omite as bases legais que determinaram a sua transferência, concretizada a 21 de junho de 1894 (Arquivo Nacional da Torre do Tombo 1894), para o ANTT. Atendendo que este fundo procede de um cenóbio feminino, a Lei de 4 de abril de 1861 (Ministério dos Negócios da Fazenda 1862), que regulou a extinção dos conventos femininos, executando os bens com o falecimento da última religiosa professa, só foi efetivamente executada a 24 de outubro de 1890, passando os conjuntos documentais imediatamente para a custódia da Repartição da Fazenda do Funchal, nos termos do Decreto e Instruções de 31 de Maio de 1862 (Ministério e Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda 1871), e transferido para o ANTT, por força do Decreto de 29 de Dezembro de 1887 (Ministério do Reino 1887), que institucionalizou a Inspeção Superior das Bibliotecas e Arquivos.
O diploma mais problemático é a Portaria de 9 de junho de 1886, do Ministério do Reino, mencionada pelos diversos IAI do ANTT (e replicado pelo ABM). As tentativas de identificação deste diploma remetemnos para o facto de não existirem evidências documentais que atestem para a sua existência, apesar da sua obrigatoriedade nos termos do artigo 3.º do Decreto de 2 de outubro de 1862. A sua existência não consta nem nos índices dos boletins oficiais do Diário de Governo do ano de 1886, nem no Arquivo Histórico da Assembleia da República, muito menos no «arquivo do arquivo» do ANTT. A primeira menção desta portaria surge com a Relação (Arquivo Nacional da Torre do Tombo 1886) elaborada pelo oficial de origem madeirense (e posteriormente diretor do ANTT), Roberto Augusto da Costa Campos, que veio à ilha da Madeira por três vezes para recolher os fundos documentais para o ANTT (precisamente nos anos de 1886, 1887 e 1894). Depois da primeira reivindicação feita pelos autores do Elucidário Madeirense (1921), somente em 1934, Machado classificou este diploma como «portaria surda» (1935, 171). Presumindo que este oficial estivesse munido de uma autorização ao mais alto nível para executar a remoção dos arquivos para o ANTT, por que motivo a Portaria de 9 de junho de 1886, do Ministério do Reino, não foi objeto de publicação nos boletins oficiais governamentais? Apesar de o artigo 3.º do Decreto de 2 de outubro de 1862 estabelecer como procedimento de aquisição de arquivos a publicação de «uma portaria expedida ao competente prelado diocesano, pela direcção geral dos negócios eclesiásticos» (Ministério da Justiça 1862, 304), a ausência de elementos factuais que atestem a existência da denominada Portaria do Ministério do Reino de 9 de junho de 1886, não deixou de ser um factor causal relevante para produzir um determinado efeito, que o teve, ao menos na forma como este diploma tem sido referenciado pelos IAI sucessores, sem indagação por parte das entidades custodiantes acerca do seu teor.
Sobre a segunda questão de investigação, em última análise, é possível verificar que as entidades custodiantes (e mais particularmente o ANTT) não escrutinaram suficientemente sobre o teor da Portaria de 9 de junho de 1886, do Ministério do Reino, sobre o qual não se possui qualquer registo publicado. Apesar de o caso da Madeira não ser único, podendo ser conferido, por exemplo, em relação aos fundos documentais removidos da região de Coimbra para o ANTT ao abrigo da Portaria de 9 de julho de 1863, do Ministério do Reino, a descrição arquivística no metadado FIA poderia sustentar-se na informação, pelo menos do «arquivo do arquivo» do ANTT, de modo a apresentar uma justificação minimamente plausível sobre o processo de aquisição dos fundos madeirenses, aspeto que não se verifica em nenhum dos IAI emanados pelas entidades custodiantes.
Discussão
De acordo com Ribeiro, como se denominam os arquivos que foram «desalojados do seu habitat original» (1998, 522), quando este ocorre dentro de um mesmo país? Este artigo partiu do caso português veiculado pelo Relatório de Lowry, mais especificamente a reivindicação pela restituição de arquivos removidos do arquipélago da Madeira para o ANTT em finais do século XIX. O principal contributo deste artigo consiste em trazer um fenómeno pouco conhecido na literatura científica, atendendo que o conflito pela custódia de arquivos tem sido entendido como um fenómeno que ocorre predominantemente em contexto internacional.
O enfoque deste artigo consiste em analisar, não do ponto de vista jurídico-normativo, mas no que diz respeito à representação da informação dos conjuntos documentais objeto de disputa em IAI elaborados por cada uma destas entidades custodiantes. É curioso verificar que os casos subnacionais (ainda que outros autores atribuam causas diversas para o mesmo fenómeno) ocorrem com maior incidência em regiões insulares, que, para além da ilha da Madeira (Macedo, Silva y Freitas 2022), podem ser presenciados noutros casos estudados sobre os arquivos removidos das Ilhas Virgens para o Reino da Dinamarca e para os Estados Unidos da América por Bastian (2001), sobre a política extrativista de arquivos por parte do Reino Unido sobre as suas antigas possessões insulares em Rawlings (2015) ou da importância da sua restituição às comunidades originárias não só como forma de reparação de injustiças históricas ocorridas no passado mas também na revitalização de práticas culturais em situação de vulnerabilidade (Lancefield 1998). Contudo, fenómenos subnacionais também existem em contexto continental e entre diversas jurisdições territoriais dentro de um mesmo país, como é o caso dos Papeles de Salamanca (Cruanyes 2003), em Espanha.
O fenómeno de remoção dos arquivos da ilha da Madeira para o ANTT, que se ampara na legitimação do seu cânone arquivístico nacionalista, decorreu de uma forma, senão tácita, bastante acidentada no passado. O resultado da dispersão de fundos entre entidades custodiantes tornou a hipótese de reunificação de fundos uma tarefa complexa, onde as tecnologias de informação e de reprodução são instrumentalizadas, ao mesmo tempo, como uma solução fungível à restituição física e uma relação de poder sobre a comunidade reivindicante.
Neste sentido, até que ponto as garantias literárias para a descrição arquivística proporcionam um cenário de representação reunificada de fundos dispersos do mesmo produtor entre diversas entidades custodiantes? Não se pretende com isto sugerir a ideia de falência dos modelos de representação da informação em IAI construídos com o suporte das garantias literárias para a descrição arquivística. Foi possível percecionar que os IAI, no caso particular de Portugal, se limitaram a representar conjuntos documentais como meras listas de ativos patrimoniais, transmitindo, em certa medida, uma falsa perceção de completude, de integridade e de organicidade ao utilizador, designadamente na estratégia de as entidades custodiantes tendencialmente não representarem as lacunas ou os erros nos IAI. No caso dos arquivos removidos das Ilhas Virgens, Bastian criticou a forma como «each custodian can only provide access to a portion of the records without any clear idea of what else exists» (2001, 111). De igual forma, Ribeiro criticou a forma como fundos documentais beneditinos dispersos entre diversas entidades custodiantes em Portugal eram representados nos IAI, que, em várias situações, «ocasionou uma perda de inteligibilidade do todo e o tratamento técnico a que cada uma das parcelas foi sujeita descurou a visão global» (2006, 311). No presente caso analisado, umas das hipóteses consiste no facto de haver representações idiossincrásicas em IAI (tanto analógico como digital) que tendem a reproduzir silos informacionais, em vez de alcançar uma representação descritiva dos fundos documentais técnica e cientificamente reunificada.
Não obstante a reivindicação subjacente à supracitada Resolução, existem diversos conjuntos documentais removidos do arquipélago da Madeira que saíram ilegalmente do país, nos termos do Decreto Regional n.º 14/78/M, de 10 de março (Assembleia Regional da Região Autónoma da Madeira 1978). Nesta condição estão, a título de exemplo, os arquivos privados de natureza empresarial, como Vera Way Marghab Papers (South Dakota State University 2000) e Cossart, Gordon and Co. (London Metropolitan Archives 2011). Até ao momento, não se dispõe de uma listagem pública dos conjuntos documentais removidos do arquipélago.
Ainda assim, posto que os estudos sobre arquivos deslocados em contexto subnacional se encontram numa condição incipiente, muitos casos permaneceram obscurecidos, sendo que a pesquisa documental e arquivística nos «arquivos dos arquivos» (Henry 2009) pode fazer emergir diversos casos silenciados. Como Lowry refere, «the catalogue is the key» (2017, 8), não só para identificar casos, mas também para fazer emergir através da análise genológica, retórica ou discursiva processos subjacentes à representação de arquivos que se encontram na condição de deslocados.
Considerações finais
Este artigo abordou o caso específico dos pedidos de restituição de arquivos reivindicados pela Região Autónoma da Madeira (RAM) ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). O estudo teve como principal objetivo tornar visível a complexidade dos arquivos deslocados em contexto subnacional ou intranacional, utilizando o caso português como ponto de partida. Também explorou abordagens metodológicas alternativas para compreender a causalidade desse fenómeno e identificar as suas características diferenciadoras.
A investigação realizada adotou uma abordagem qualitativa, utilizando análise documental e arquivística. Os dados foram recolhidos a partir de IAI publicados pelo ANTT e pelo Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira. A análise concentrou-se na representação da informação dos conjuntos documentais em disputa nos IAI, com ênfase na forma de aquisição.
Os resultados revelaram que a Resolução n.º 3/2017/M, de 12 de janeiro, listou cinco fundos a serem transferidos para a RAM. No entanto, a pesquisa realizada no portal institucional do ANTT identificou onze fundos madeirenses sob a custódia do ANTT. Essa discrepância pode ser atribuída ao facto de que a Resolução pode ter utilizado um IAI anterior a 2000.
O estudo destacou a importância de compreender não apenas as questões jurídicas de posse e propriedade dos arquivos, mas também os critérios de representação de informação adotados pelas instituições custodiantes contestadas. Nesse sentido, a análise dos IAI permitiu identificar as estratégias de representação dos conjuntos documentais em disputa e examinar a forma como foram organizados e descritos.
Em suma, este estudo procurou dar um contributo para uma melhor compreensão da complexidade dos arquivos deslocados em contexto subnacional ou intranacional, utilizando o caso da Região Autónoma da Madeira como exemplo. Também sublinhou a necessidade de abordagens metodológicas alternativas para estudar este fenómeno e identificar as suas características específicas. Ao tornar visível esta problemática, espera-se encontrar soluções mais adequadas para lidar com os arquivos deslocados e as suas reivindicações de restituição.