SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.37 número97Creación de datos abiertos enlazados en la Biblioteca Nacional de Costa RicaBibliotecas de los congresos locales de México: explorando sus políticas de información índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Links relacionados

  • No hay artículos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Investigación bibliotecológica

versión On-line ISSN 2448-8321versión impresa ISSN 0187-358X

Investig. bibl vol.37 no.97 Ciudad de México oct./dic. 2023  Epub 02-Ago-2024

https://doi.org/10.22201/iibi.24488321xe.2023.97.58818 

Artigos

Patrimônio e memória de bibliotecas universitárias no sul do Brasil

Patrimonio y memoria de las bibliotecas universitarias del sur de Brasil

Heritage and memory of university libraries in southern Brazil

Luciana Bergamo Marques* 

Cezar Karpinski* 

* Programa de Pós-Graduação em Ciencia de Informação, Universidades Federal de Santa Catarina, Brasil bergamota.marques@gmail.com cezark@hotmail.com


RESUMO

Os documentos relativos às atividades-fim das bibliotecas universitárias que pareçam corriqueiros ou não oficiais -como campanhas de educação de usuários, antigos catálogos, manuais desatualizados, entre outros exemplos- constituem seu patrimônio documental e devem ser preservados a fim de propiciar memórias a seu respeito. A memória das bibliotecas universitárias, proporcionada por esses documentos históricos evita que o conhecimento gerado na sua rotina seja esquecido e valoriza o empenho de seus profissionais e usuários por educação, ciência e cultura. O objetivo desse artigo é apresentar os resultados obtidos por uma investigação sobre a realidade de preservação de documentos históricos das bibliotecas universitárias públicas no estado do Rio Grande do Sul. A coleta de dados ocorreu em duas etapas, uma baseada em entrevistas presenciais e observação in loco, e outra baseada na análise dos sites das bibliotecas selecionadas. A interpretação dos resultados evidencia que grande parte do patrimônio documental dessas bibliotecas não tem recebido medidas de preservação como documentos históricos, o que coloca em risco a promoção de memórias sobre as bibliotecas universitárias.

Palavras-chave: Biblioteca universitária; Memória; Patrimônio; Documento histórico

RESUMEN

Documentos relacionados con las actividades centrales de las bibliotecas universitarias que parecen comunes o no oficiales --como campañas de educación de usuarios, catálogos antiguos, manuales desactualizados, entre otros ejemplos- constituyen su patrimonio documental y deben ser conservados para proporcionar memorias sobre él. El trabajo de memoria de las bibliotecas universitarias evita que los conocimientos generados en su rutina sean olvidados y valora el compromiso de sus profesionales y usuarios por la educación, la ciencia y la cultura. El objetivo de este artículo es presentar los resultados obtenidos por una investigación sobre la realidad de la preservación de documentos históricos en bibliotecas universitarias públicas en el estado de Rio Grande do Sul. La recolección de datos se llevó a cabo en dos etapas, una basada en entrevistas cara a cara y observación in situ, y la otra basada en el análisis de los sitios Web de las bibliotecas seleccionadas. La interpretación de los resultados muestra que gran parte del patrimonio documental de estas bibliotecas no ha recibido medidas de preservación como documentos históricos, lo que pone en riesgo la promoción de la memoria sobre las bibliotecas universitarias.

Palabras clave: Biblioteca universitaria; Memoria; Patrimonio; Documento histórico

ABSTRACT

Documents related to core activities of university libraries that seem common or unofficial -such as user education campaigns, old catalogs, outdated manuals, among other examples- constitute their documentary heritage and must be preserved in order to provide memories. The memory of university libraries, provided by these historical documents, prevents the knowledge generated in their routine from being forgotten and values the commitment of its professionals and users for education, science, and culture. The aim of this article is to present the results obtained by an investigation into the reality of preserving historical documents in public university libraries in the state of Rio Grande do Sul. Data collection took place in two stages, one based on faceto-face interviews and on-site observation, and the other based on the analysis of the websites of the selected libraries. The interpretation of the results shows that a large part of the documentary heritage of these libraries did not receive preservation measures as historical documents, which can weaken the formation of memories about university libraries.

Keywords: University Library; Memory; Heritage; Historical Document

INTRODUÇÃO

A memória se tornou um conceito pesquisado e apropriado pela Ciência da Informação no Brasil, haja vista o Grupo de Trabalho de número 10 do Encontro Nacional de Pós-Graduação em Ciência da Informação no Brasil (ENANCIB), o mais relevante evento nacional em que se apresenta e se discute a produção de conhecimentos na área. Investigando as abordagens teórico-conceituais dos temas memória e esquecimento no âmbito da Ciência da Informação, Holanda (2011, 60-66) identificou esses conceitos sendo vinculados à natureza meta-econômica da informação. A autora concluiu não ser suficiente, para o avanço da área, estudar a integração entre as ferramentas tecnológicas de memória artificial e o indivíduo, mas que se deveria ter como foco a função da memória para o espírito humano. Nesse sentido, embora internet e bancos de dados digitais possibilitem uma capacidade praticamente irrestrita de se recuperar informações sobre o passado, ainda é escassa a consciência sobre o processo seletivo envolvido na sua recuperação e formação de memórias, seja na esfera individual ou das instituições.

Além do campo da memória artificial, as memórias institucional e organizacional também são temas na Ciência da Informação, com destaque para o trabalho de Thiesen (2013), para quem: «[...] a memória organizacional poderia ser vista como um conjunto de meios através dos quais o conhecimento do passado é recuperado em atividades do presente, determinando maior ou menor eficácia organizacional.» (Thiesen 2013, 109). Já o conceito de organização pode ser pensado a partir da comparação com um organismo biológico, onde diferentes órgãos executam suas funções enquanto interagem com os demais para manter a vida. Se considerarmos a organização «universidade», a biblioteca universitária (BU) é um dos seus órgãos, que também se utiliza de uma organização em sistema para desempenhar suas funções na universidade: cada unidade de informação (bibliotecas setoriais) faz a sua parte para que a BU funcione eficazmente.

Uma vez que documentos produzidos pela, e para, a organização refletem o seu modus operandi, promovendo a rememoração de suas experiências e valores, bem como a escrita da sua história, diz-se que a memória organizacional é passível de ser construída a partir de documentos (Bellotto 2006). Além de tornar conhecida a evolução de uma organização, a preservação de documentos «desatualizados» - que foram elaborados em função das atividades-fim de uma BU - contribui para dar sentido ao que ela foi ou fez, no passado, e pode fornecer parâmetros para a solução de problemas atuais.

A BU produz e recebe documentação que deve ser tratada conforme a legislação apropriada, como a que define o Código de Classificação e Tabela de Temporalidade e Destinação de Documentos relativos a atividades-fim do Poder Executivo Federal (Arquivo Nacional 2011). No entanto, pela atualização constante no modo como atua junto à comunidade acadêmica - haja vista a comunicação com os usuários por meio das redes sociais digitais, além dos tradicionais cartazes, e-mails, exposições, boletins informativos etc. -, a BU gera documentos que, pela morosidade de atualização e interpretação da legislação, podem não ser percebidos como documentos de arquivo. Esses documentos/ rastros da atuação da BU acabam não sendo incluídos no processo de gestão documental e, em última instância, não são preservados.

O interesse no potencial de testemunho desses documentos suscitou uma investigação, no âmbito de um mestrado acadêmico em Ciência da Informação, que desvendasse como a BU no Brasil têm mantido fontes de memória a seu respeito, e cujos resultados são apresentados neste artigo.

METODOLOGIA

Visando retratar o tratamento concedido a sua documentação histórica, pela BU brasileira, desenvolveu-se uma pesquisa qualitativa, com caráter exploratório e descritivo (Yin 2016), com coleta de dados in loco (por meio de entrevistas e observação) e análise documental (em domínios da internet).

Considerando que a quantidade de instituições de ensino superior no Brasil extrapolaria as condições temporais e orçamentárias dos pesquisadores, optou-se por restringir a população investigada às universidades públicas federais do estado do Rio Grande do Sul. O critério «universidade federal» serviu para que houvesse alguma homogeneidade de características organizacionais entre as bibliotecas, como estatuto de funcionários, fomento, comunidade acadêmica e, consequentemente, documentação produzida e recebida. Ainda, foi escolhido o Rio Grande do Sul por estar próximo à residência dos pesquisadores e por gerar o maior número de sujeitos investigados (estado com maior número de universidades federais da região sul do país).

Etapas da pesquisa

Inicialmente, um roteiro de entrevistas com os gestores das bibliotecas foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, nas seis universidades federais do Rio Grande do Sul. Dessas, quatro aceitaram ou puderam participar da pesquisa, por meio de seus sistemas de BU: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Universidade Federal do Rio Grande (FURG); Universidade Federal de Pelotas (UFPEL); e Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA).

A investigação in loco foi necessária para caracterizar o entendimento dos gestores sobre documentos históricos e identificar como eram tratados os documentos. Uma vez que estivessem sendo preservados, dever-se-ia discriminar se essa forma de preservação estava institucionalizada (por instrumentos de padronização explícitos como políticas, manuais, regulamentos etc.), ou se constituía conhecimento tácito (decorrendo apenas de atitude/experiência do profissional). Buscava-se interpretar, pelo discurso dos gestores somado à observação dos locais de guarda, se percebiam alguma contribuição dos seus documentos históricos no cotidiano das bibliotecas.

Tendo em vista as atualizações na legislação referente à gestão de documentos na administração pública federal dos últimos quatro anos - como as que instituem as comissões de avaliação de documentos (Brasil 2019a); a digitalização de documentos físicos (Brasil 2019b, 2020); e a gestão dos arquivos digitais (Arquivo Nacional 2022) -, foram analisados os sites das bibliotecas investigadas em janeiro de 2023 à procura de indícios da preservação de seus próprios documentos históricos.

Foram analisados os portais das universidades UFPEL, UNIPAMPA, FURG e UFRGS, buscando identificar, principalmente, páginas de histórico e memória universitária, páginas sobre o funcionamento da biblioteca universitária, menção a coleções históricas, ou diretrizes para avaliação e preservação de documentos, por exemplo. Nos seus catálogos, a busca se deu por filtros indicativos de coleções com caráter histórico, como «história», «histórico», «documentos», «preservação», «memória», «arquivo». Também, a análise dos portais buscou verificar se, uma vez mencionada a preservação de documentos, essa estava institucionalizada (referência a instrumentos de padronização para a seleção e avaliação, como políticas, manuais e regulamentos, entre outras possibilidades).

Caracterização da população pesquisada

A UFRGS foi criada como Universidade de Porto Alegre, em 1934, integrando faculdades criadas nesse estado desde o final do século XIX. A sua federalização ocorreu em 1950, conformando-se à estrutura organizacional atual em 1970 (UFRGS 2023a), quando as bibliotecas dos cursos passaram a compor um sistema coordenado pela Biblioteca Central. Conta com 22 523 alunos com vínculo ativo (UFRGS 2020).

A FURG surgiu como primeira escola de educação superior da cidade de Rio Grande, nos anos 1950, em função das demandas do porto marítimo e indústrias. Desejando formar profissionais que permanecessem em suas indústrias, estabeleceu-se a Fundação Cidade do Rio Grande em 1953, com uma escola de engenharia (FURG 2023a). Com a colaboração de outras instituições, especialmente de Pelotas, foram instalados novos cursos ainda na década de 1950. Com a Reforma Universitária de 1968, foi criada a Universidade do Rio Grande, aglutinando as várias faculdades. O sistema de BU da FURG foi organizado em 2010 com uma biblioteca central e demais setoriais (FURG 2023a), atendendo a quase 12 000 alunos (FURG 2023b).

Da mesma forma que as anteriores, a UFPEL foi criada por um decreto que reunia várias faculdades já existentes e as federalizava, em 1967, como a Universidade Federal Rural do Rio Grande do Sul. Passou a UFPEL em 1969, anexando faculdades de Pelotas que eram vinculadas à UFRGS e outras instituições particulares (UFPEL 2022a). São nove as bibliotecas do atual sistema de BU da UFPEL, gerenciadas pela Coordenação de Bibliotecas (UFPEL 2022b), atendendo a mais de 18 400 alunos (UFPEL 2023).

Por último, a UNIPAMPA foi instituída em 2008, em uma estrutura de dez campi no interior do estado. Todos os campi somam quase 11 000 alunos (UNIPAMPA 2023a) e formam um sistema de BU coordenado por uma unidade técnico-administrativa em Bagé, junto à reitoria (UNIPAMPA 2023b).

APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE RESULTADOS

Por meio da pesquisa in loco, constatou-se que os documentos físicos ou digitais de atividades-fim da biblioteca que não envolvem questões financeiras e trabalhistas, como processos de aquisição de bibliografia e contratação de estagiários, são preservados conforme o discernimento do profissional que o criou ou o recebeu. Com isso, documentos em suporte tradicional podiam estar armazenados em mobiliário de uso exclusivo do servidor ou da coordenação de bibliotecas, embora restrito ao público. Documentos digitais estavam salvos no disco rígido da estação de trabalho (computador de uso individual), conta de e-mail, ou pasta compartilhada na nuvem em conta pessoal (foram mencionados serviços como Google Drive e Dropbox, mas não programas e contas institucionais para esse compartilhamento).

Nas entrevistas com os gestores, eles demonstraram perceber que o documento produzido nas bibliotecas em função de suas atividades-fim é único, orgânico e testemunha o trabalho criativo em bibliotecas universitárias. Por essa razão, salvavam seus arquivos digitais e conservavam os materiais impressos junto de si, configurando um modo de preservação tácito. Documentos administrativos, comuns a outras unidades na estrutura das universidades, eram gerados e tramitados em sistemas de processos administrativos digitais, mas não foi detectada política ou outra padronização para a manutenção de registros da prática bibliotecária, exceto na entrevista com a gestora da Biblioteca Central da UFRGS.

No caso da UFRGS, a gestora indicou haver uma política institucional de seleção, avaliação e publicidade de documentos produzidos em decorrência das funções da biblioteca universitária e das funções da administração central da universidade: documentos salvos no Document@ ou catalogados no Sabi (UFRGS 2023d; 2023e). Políticas desse tipo reúnem informações propícias à construção de memórias e da própria identidade da instituição, o que facilita refletir sobre estratégias novas para atender à evolução das demandas sociais. No mesmo sentido, há a plataforma Wikipampa (UNIPAMPA 2023d), produzida por servidora da UNIPAMPA, para postagem de alguns materiais instrucionais do seu sistema de BU.

Em relação a documentos que não estavam sendo classificados como arquivísticos em suas unidades, de acordo com a sua interpretação da tabela de temporalidade e avaliação de documentos utilizada na instituição, os entrevistados reconheciam que todos poderiam ser considerados de caráter histórico, uma vez que retratam o modo pelo qual a biblioteca universitária desempenha suas funções. Foram citados como documentos dotados de valor histórico, mas não considerados no momento de avaliação e recolhimento para os arquivos universitários: material preparado para as campanhas de educação de usuários, campanhas comemorativas à Semana do Livro e da Biblioteca, fotografias, guias de usuário, manuais de serviço, relatórios de gestão, estatísticas e planejamentos anuais.

Um exemplo de documento de valor histórico na BU da UFRGS - embora composto por item físico que trata de atividade-fim e que está catalogado no Sabi e disponível para consulta local -, mencionado na entrevista, é o folder da «Campanha de preservação dos acervos da UFRGS», realizada em 1999. Também na BU da UFRGS, os manuais de serviço vigentes são disponibilizados no Document@, contudo, os arquivos antigos e nos quais estão registradas as alterações que ocorreram entre as versões mais antigas e a atual são acessíveis somente ao administrador do sistema. Assim, evita-se que algum bibliotecário observe o manual mais antigo na sua prática diária, mesmo mantendo o arquivamento das versões anteriores, com valor histórico.

Todos os entrevistados manifestaram que têm interesse em classificar e dar a destinação correta (prevista por legislação específica) para os documentos administrativos físicos. Quanto aos documentos que armazenam nos computadores e que não estão vinculados aos sistemas de processos digitais da instituição, os entrevistados não pensam em eliminar, uma vez que os utilizam para saber como foi feita determinada atividade ou orientação técnica no passado. No entanto, não há a preocupação com o formato de arquivo em que estão salvos esses documentos, visando o acesso público e a preservação.

Para interpretar se os documentos históricos têm contribuído no dia a dia das bibliotecas, utilizou-se das entrevistas com os bibliotecários, quando se referiram ao uso da documentação armazenada junto aos setores. Como relatado pelos entrevistados, a maior parte da documentação acumulada pelas bibliotecas universitárias estudadas é produzida em meio digital e nem chega a ser impressa - são elaborados manuais disponibilizados on-line ou enviados por e-mail, resoluções de reuniões, tutoriais a usuários, materiais de educação de usuários, estudo de usuários etc. Esses arquivos são mantidos junto ao gestor e funcionário porque servem a consultas frequentes no momento de elaboração de novos documentos e não são deletados, como todos os entrevistados mencionaram, pois há a consciência de que continuarão sendo importantes no auxílio a atividades desempenhadas no futuro.

Na BU da UFRGS não há uma estatística do uso da coleção de documentos produzidos pelas unidades acadêmicas e administrativas e demais itens digitais, disponíveis nos sistemas SABi, Document@ ou em pastas em servidor institucional. Ainda assim, sua preservação é considerada relevante no cotidiano da instituição, segundo a gestora entrevistada. Por outro lado, a gestora da BU da UNIPAMPA não considera arquivar documentos de atividade-fim que não estejam envolvidos em processos administrativos, mas mantém um caderno manuscrito, que lhe serve de diário, no qual registra decisões que tomou na sua gestão e cola cópias de documentos que elaborou. Assim, ela cria um histórico de sua gestão com a finalidade de repassar o conhecimento quando deixar a função de coordenadora do sistema da biblioteca universitária.

À vista dos pesquisadores e da entrevista com os gestores, apenas o sistema da UFRGS apresentou um tratamento aos documentos da BU voltado à produção da memória organizacional. Note-se que os outros três sistemas de BU, FURG, UFPEL e UNIPAMPA, possuem estruturas menores e distribuídas em unidades de biblioteca universitária distantes entre si. Não apenas essas diferenças poderiam justificar relatos distintos sobre preservação de documentos históricos, mas a própria organização em múltiplas unidades relativamente autônomas, com uma integração mínima voltada à eficiência do sistema. Acredita-se que essa descentralização seja uma tendência que resulta das teorias de gestão aprendidas, mas nem sempre se relacionam à função social da biblioteca universitária, como apontado por Souza (2015).

Realizou-se, então, a busca nos portais on-line das bibliotecas universitárias anteriormente visitadas, por indícios de um patrimônio documental próprio. Iniciando pelo portal da BU da UFRGS, a observação do seu site sugeriu, pelo link «Sobre» do menu principal, onde encontrar informações de histórico e divulgação dos procedimentos e políticas (UFRGS 2023b). Nessa página encontra-se o histórico da coordenação centralizada e o acesso ao histórico das atividades desenvolvidas/questões resolvidas no Document@, um sistema de disponibilização de arquivos na web. Assim, ao invés de cada servidor salvar os documentos necessários ao desempenho de suas funções em seus desktops ou recuperar por e-mail, ficam publicadas nesse sistema as normativas internas que padronizam serviços técnicos; apresentações, vídeos e outros materiais relativos ao programa de capacitação de usuários; formulários acessados por usuários, servidores e colaboradores; materiais de eventos promovidos; descrição de solicitações com links para tutoriais de resolução e para contato com o setor responsável; e lista de ramais das bibliotecas.

Na mesma página «Sobre» da BU da UFRGS, há a indicação do Lume, o Repositório Digital da UFRGS, como plataforma para preservar não apenas as coleções digitais produzidas na UFRGS, mas também produções de caráter histórico que são de interesse da instituição. Não foi encontrada nenhuma informação sobre a coleção de documentos impressos com valor histórico da UFRGS, a Coleção U, descrita na entrevista com a gestora, em 2018, como a coleção de memória institucional. Ao adentrar no Lume, não foi encontrada nenhuma coleção específica da BU da UFRGS, mas a subcomunidade «Acervos», composta por coleções de digitalizações de documentos históricos pertencentes aos acervos das unidades acadêmicas e demais órgãos da UFRGS (UFRGS 2023c).

No portal da BU da FURG, ao explorar o menu «Sobre», encontram-se organizadas as opções habituais de páginas de apresentação, equipe e lista de bibliotecas. Além dessas, há publicações de relevância histórica, como os itens das páginas «Políticas, regimentos e resoluções» e «Projetos e Programas» (FURG 2023d; 2023e). Contudo, nessas páginas não há a indicação de guarda das versões completas dos projetos e de políticas, regimentos e resoluções não mais vigentes. Da mesma forma, algumas opções presentes no menu «Produtos e serviços», como «Tutoriais» (FURG 2023f), contêm documentos produzidos pelos bibliotecários relativos à atividade-fim da biblioteca universitária, mas não foi encontrada no portal a indicação sobre os materiais produzidos anteriormente/ desatualizados, e que poderiam constituir documento histórico sobre a biblioteca universitária, tanto em formato físico, quanto digital.

Ainda, no menu horizontal do portal da BU da FURG, há o link «Nossos canais», onde são listados os perfis da biblioteca nas redes sociais mais populares (FURG 2023c). Esses veículos de comunicação com o usuário também requerem a produção de conteúdos por parte da biblioteca e acabam por gerar documentos que poderiam ser preservados de forma institucional.

Na página inicial do site da BU da UFPEL, não há menção à memória organizacional, exceto a opção «Histórico» do link «Coordenação de Bibliotecas», onde há informações sobre a criação das bibliotecas que compõem o sistema extraídas de uma dissertação de mestrado, e não produzidas pela própria BU (UFPEL 2022b). Portarias, resoluções e tutoriais vigentes encontram-se no link «Documentos». Não há, contudo, nenhum indício da salvaguarda dos documentos de mesma tipologia desatualizados, e outros documentos que são gerados no desempenho das funções e que não ficam visíveis pelo site.

No site da BU da UNIPAMPA foi possível identificar alguns documentos que são gerados no desempenho das suas funções, como os vídeos tutoriais, o folder e guia de usuários, formulários para requisição de serviços, regimento, regulamento, organograma e lista de serviços (UNIPAMPA 2023c). Como a UNIPAMPA foi criada no contexto dos documentos digitais, presume-se que os documentos produzidos estejam sendo salvos nos computadores utilizados pelos bibliotecários, em pastas compartilhadas na nuvem pública, em pastas de servidor institucional, ou em sistema de gerenciamento de arquivos digitais da instituição.

Por outro lado, encontrou-se a opção Wikipampa no menu «Bases de dados» do portal da BU da UNIPAMPA, uma plataforma colaborativa de gestão do conhecimento. Na sua página inicial há um texto explicando que o objetivo da plataforma é a postagem de conteúdos como histórico, notícias sobre os setores e compartilhamento de documentos do sistema de BU (Medeiros 2023). A iniciativa apresentada pela Wikipampa não foi mencionada pela gestora da BU da UNIPAMPA como uma política para a preservação dos documentos e da informação digital, apesar de, à observação do site institucional, vir desempenhando esse papel.

DISCUSSÃO

Há pouco mais de dois séculos, memória e história não se distinguiam, remetendo ao conhecimento sobre o passado baseado em biografias, crônicas e relatos considerados relevantes. Sob a influência do Positivismo, a história passou a reivindicar o status de ciência, diferenciando-se da memória por usar um «método científico» para a análise de uma fonte escrita. Até o final do século XIX, essa fonte se restringia a papéis considerados «documentos», aqueles presentes em arquivos de Estado e únicos testemunhos confiáveis da «verdade histórica» (Karpinski 2015). Apenas na década de 1960 o documento histórico ultrapassou os limites do arquivo histórico: deixou de ser confundido com «monumento» e, com a finalidade de preservação da informação, passou a migrar de um suporte a outro, abrangendo a impermanência (Le Goff 2003). Assim, enquanto novas formas de registro informacional ascendem à condição de fonte, na academia, modifica-se a noção de documento.

No contexto da Ciência da Informação, documento é entendido como «unidade de registro de informações, qualquer que seja o suporte ou formato» (Dicionario brasileiro de terminologia aqtuivistica 2005, 73). Esse registro, ao criar um elo entre o presente e os múltiplos passados evocáveis a partir de sua interpretação, adquire valor histórico, a qualquer tempo, em qualquer formato. Pode haver documento com valor histórico para uma biblioteca universitária, portanto, dentre aqueles que são recentes e não têm um suporte físico fixo (armazenados na «nuvem», por exemplo, com conteúdo disperso em mais de um servidor de internet, não sendo possível determinar origem e backup).

Os documentos gerados pelas bibliotecas universitárias são, em sua maior parte, representados por objetos conceituais, modificam-se na própria interface de criação e nem sempre são capturados para comprovar as ações em curso. Ainda, exigem metadados que incorporem aspectos de conteúdo, contexto e estrutura, e não constituem uma só unidade de armazenamento, mas pedaços em diferentes sistemas lógicos (Fonseca 2005). Nesse cenário, é necessária uma atualização muito mais frequente das esferas de avaliação de documentos para contemplar aqueles com valor histórico e que logo são substituídos pela próxima comunicação na página institucional.

Por outro lado, documentos como equipamentos e mobiliário obsoletos - a exemplo do gaveteiro para catálogo de fichas - têm valor didático nas visitas orientadas e estágios de cursos como Biblioteconomia e Arquivologia e, assim como imagens dos diretores da biblioteca, depoimentos sobre seu modo de gerir, além de cartazes de campanhas de educação de usuário, dentre outros rastros, podem ser preservados. A memória organizacional, então, pode extrapolar os limites da classificação de documentos arquivísticos em uso, integrando um sentido mais amplo de documento histórico que abranja informações provenientes de documentos em suportes e linguagens diversos. Mais que um repositório de informações sobre a história da organização, a memória organizacional deve constituir uma fonte interna de conhecimento, contribuindo para a inovação em diferentes ambientes da organização (Camisón e Villar-López 2011).

Exceto pelo SBUFRGS, não foram verificadas - nem pelas entrevistas, nem pela análise dos sites - políticas de preservação de documentos históricos das bibliotecas. A percepção dos pesquisadores é de que os gestores confiam que todo trabalho de avaliação e classificação será realizado pelas comissões de avaliação de documentos de arquivo das universidades, sem que precisem manifestar o interesse em manter certos documentos não comuns às demais unidades acadêmicas ou administrativas. Para além dos documentos físicos e digitais salvos em suas estações de trabalho e contas pessoais de e-mail e armazenamento de arquivos, coloca-se em questão o que é publicado nas redes sociais enquanto atividade-fim das bibliotecas. Essas publicações ilustram formas de interagir com os usuários e a sua preservação permite o aprendizado sobre a prática profissional em biblioteca, além do reconhecimento do esforço dos técnicos e dos usuários por educação, ciência e cultura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo realizado buscou investigar o tratamento concedido a documentos históricos da própria biblioteca universitária no Brasil e acabou evidenciando que os documentos gerados na sua rotina podem ter sua gestão prejudicada por práticas personalistas, pela obsolescência dos suportes documentais, pela falta de estrutura da preservação documental ou, simplesmente, pela falta de ponderação e orientação quanto ao patrimônio documental. Aponta-se que este pode ser um ponto de partida para diferentes estudos sobre documentos a partir dos quais é possível escrever histórias da biblioteca universitária.

REFERENCIAS

Arquivo Nacional (Brasil). 2011. Portaria n. 92, de 23 de setembro de 2011. Diário Oficial da União, 1(185): 26. [ Links ]

Arquivo Nacional (Brasil). 2022. Resolução n. 50, de 6 de maio de 2022. Diário Oficial da União, 1(87): 88. [ Links ]

Bellotto, H. L. 2006. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: FGV. [ Links ]

Brasil. 2019a. Decreto n. 10.148, de 2 de dezembro de 2019. Diário Oficial da União, 1(233), 3. [ Links ]

Brasil. 2019b. Lei n. 13.874, de 20 de setembro de 2019. Diário Oficial da União , 1(183-B), ed. Extra, 1. [ Links ]

Brasil. 2020. Decreto n. 10.278, de 18 de março de 2020. Diário Oficial da União , 1(54): 4. [ Links ]

Camisón, C. e A. Villar-López. 2011. Non-technical innovation: organizational memory and learning capabilities as antecedent factors with effects on sustained competitive advantage. Industrial Marketing Management, 40: 1294-1304. [ Links ]

Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. 2005. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. [ Links ]

Fonseca, M. O. Arquivologia e ciência da informação. Rio de Janeiro: FGV , 2005. [ Links ]

FURG. (Universidades Federal do Rio Grande). 2023a. História. Acessado em 25 de junho de 2023. https://www.furg.br/ . [ Links ]

FURG. 2023b. Perguntas frequentes. Acessado em 25 de junho de 2023. https://www.furg.br/perguntas-frequentes/Links ]

FURG. 2023c. Sistema de Bibliotecas. Nossos canais. Acessado em 01 de fevereiro de 2023. https://biblioteca.furg.br/pt/nossos-canaisLinks ]

FURG. 2023d. Sistema de Bibliotecas. Políticas, regimentos e resoluções. Acessado em 01 de fevereiro de 2023. https://biblioteca.furg.br/pt/politicas-regimentos-e-resolucoesLinks ]

FURG. 2023e. Sistema de Bibliotecas. Projetos do SIB. Acessado em 01 de fevereiro de 2023. https://biblioteca.furg.br/pt/projetos-de-extensaoLinks ]

FURG. 2023f. Sistema de Bibliotecas. Tutoriais. Acessado em 01 de fevereiro de 2023. https://biblioteca.furg.br/pt/tutoriaisLinks ]

Holanda, A. B. 2011. Memória e esquecimento na ciência da informação: um estudo exploratório. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação. [ Links ]

Karpinski, C. 2015. Memória arquivada: reflexões sobre documentos e arquivos a partir de Paul Ricoeur. Em Encontro Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciência da Informação , 16. Acessado em 25 de junho de 2023. https://brapci.inf.br/index.php/res/v/188485Links ]

Le Goff, J. 2003. História e memória. Campinas: Ed. da Unicamp. [ Links ]

Medeiros, M. F. 2023. Wikipampa. Acessado em 25 de junho de 2023. https://sites.unipampa.edu.br/sisbi/wikipampa/Links ]

Souza, F. das Ch. de. 2015. Ética bibliotecária em universidades do Norte e Nordeste do Brasil. Informação & Informação, 20(1): 43-69. https://doi.org/10.5433/1981-8920.2015v20n1p43 [ Links ]

Thiesen, I. 2013. Memória institucional. João Pessoa: Ed. UFPB. [ Links ]

UFPEL. (Universidades Federal de Pelotas). 2022a. Histórico. Acessado em 30 de dezembro de 2022. http://portal.ufpel.edu.br/historico/Links ]

UFPEL. 2022b. Sistema de Bibliotecas. Acessado em 30 de dezembro de 2022. https://wp.ufpel.edu.br/sisbi/Links ]

UFPEL. 2023. UFPEL em números. Acessado em 25 de junho de 2023. https://wp.ufpel.edu.br/proplan/informacoes-institucionais/ufpel-em-numeros/Links ]

UFRGS. (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). 2020. Levantamento sobre regiões em que se encontram os estudantes cotistas da UFRGS. Acessado em 25 de junho de 2023. https://www.ufrgs.br/acoesafirmativas/wp-content/uploads/2021/01/Localizac%CC%A7a%CC%83o-dos-cotistas-UFRGS-2020.pdfLinks ]

UFRGS. 2023a. Histórico. Acessado em 03 de fevereiro de 2023. http://www.ufrgs.br/ufrgs/a-ufrgs/historico . [ Links ]

UFRGS. 2023b. Bibliotecas. Sistema de Bibliotecas. Acessado em 03 de fevereiro de 2023. https://www.ufrgs.br/bibliotecas/sobre/sistema-bibliotecas-ufrgs/Links ]

UFRGS. 2023c. Repositório digital. Acervos. Acessado em 03 de fevereiro de 2023. https://lume.ufrgs.br/handle/10183/8992Links ]

UFRGS. 2023d. Sistema de Biblioteca Universitária. Document@. Acessado em 03 de fevereiro de 2023 Acessado em 03 de fevereiro de 2023 https://plone.ufrgs.br/documentaLinks ]

UFRGS. 2023e. Sistema de Biblioteca Universitária. Sabi: catálogo on-line. Acessado em 03 de fevereiro de 2023. https://sabi.ufrgs.br/F/9AA7ARF31AKQXMDCUIQHGICC2J1CGDEDMAVH53QA3I21FFIR1L-00414?func=find-b-0&clear_level=2Links ]

UNIPAMPA. (Universidade Federal do Pampa). 2023a. Unipampa em Números. Acessado em 25 de junho de 2023. https://sites.unipampa.edu.br/nida/perfil-dos-academicos/Links ]

UNIPAMPA. 2023b. Sistema de Bibliotecas. Acessado em 3 de fevereiro de 2023. http://porteiras.r.unipampa.edu.br/portais/sisbi/Links ]

UNIPAMPA. 2023c. Universidade. Acessado em 3 de fevereiro de 2023. http://novoportal.unipampa.edu.br/novoportal/universidadeLinks ]

UNIPAMPA. 2023d. Wikipampa. Acessado em 3 de fevereiro de 2023. https://sites.unipampa.edu.br/sisbi/wikipampa/Links ]

YIN, R. K. 2016. Pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Penso. [ Links ]

Para citar este texto:

Bergamo Marquez, Luciana y Cezar Karpinski. 2023. “Patrimônio e memória de bibliotecas universitárias no sul do Brasil”. Investigación Bibliotecológica: archivonomía, bibliotecología e información 37 (97): 97-110. http://dx.doi.org/10.22201/iibi.24488321xe.2023.97.58818

Recebido: 28 de Junho de 2023; Aceito: 21 de Setembro de 2023

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons