À guisa de introdução
Adespeito das transformações importantes no Brasil do final do século XX, referentes às questões de gênero e orientação sexual, não é raro notar a perpetuação da violência contra os grupos sociais que não correspondem às expectativas de comportamentos de gênero (Rohden, 2009).
Para além da discriminação baseada em orientação sexual e identidade de gênero, nossa sociedade é pautada em uma estrutura racista derivada do sistema colonial escravocrata e machista, o qual situa a mulher negra em um contexto de extrema desvantagem social. Grada Kilomba (2019) 2 explica que as condições que colocam as mulheres negras em dois processos como o racismo e o sexismo não podem ser entendidas como paralelas, pois há uma tendência de se equiparar as opressões. Se, por um lado, ambas afetam e/ou colocam os grupos de pessoas como diferentes, menosprezando a sua importância ou sua capacidade laboral, por outro lado, essas opressões interseccionam as mulheres negras.
Por conseguinte, para Lélia Gonzalez (1982), o racismo é uma construção ideológica e seus discursos de exclusão perpetuam-se em função dos interesses das pessoas que por dele se beneficiam (Gonzalez, 1982). Na medida em que existe uma divisão racial, consequentemente, existe uma divisão sexual do trabalho. E, não por acaso, sobre a mulher negra incide a tríplice discriminação (gênero, raça e classe), de forma a colocá-la no mais baixo nível de opressão da sociedade, de forma que são elas quem compõe a à base da pirâmide social da nação brasileira.
De acordo com Maria Aparecida Silva Bento (1995), existem alguns atributos para determinadas profissões e, não surpreendentemente, são nos serviços de maior subalternização em que as mulheres negras se encontram. Dessa maneira, vale considerar que a diversidade racial no ambiente acadêmico e científico não contrapõe o modelo segregacionista existente em nossa sociedade. Nesse aspecto, se a contribuição da população negra é silenciada no espaço acadêmico, a produção científica e tecnológica das mulheres negras é, com ainda mais expressividade, invisibilizada. Assim sendo, as narrativas das pesquisadoras negras nas ciências, principalmente, área das ciências exatas, tornam-se ocultadas e silenciadas por uma lógica discursiva de dominação.
Para Reis e Pinho (2016), os espaços educacionais são importantes na construção social do sujeito na medida em que reforçam ou constroem novos signos e significados referentes às identidades e sexualidades dos indivíduos. Neles também circulam representações negativas sobre o/a negro/a, as quais influência a construção identitária dos sujeitos (Benite et al., 2017).
Nessa acepção, levantar a discussão acerca das dinâmicas sociais para o processo educacional é um ato necessário para compreendermos nossa posição como sujeitos inseridos em uma sociedade organizada hierarquicamente, com considerações a partir das categorias gênero, identidade de gênero, sexualidade e raça, permitindo-nos consolidar ações de combate às desigualdades. Esse processo passa pela formação de professores/as capazes de questionar e refletir acerca de sua própria realidade, “estimulando uma atitude reflexiva sobre os acontecimentos de seu cotidiano escolar e os alicerçando aos conhecimentos essenciais para intervir na realidade concreta da instituição” (Dias, 2012, p. 672).
Ao compreendermos que o processo educativo ocorre tanto dentro quanto fora das instituições escolares, Nathália Pereira de Araújo e Kassandra da Silva Muniz (2016) apontam a necessidade de se melhor entender “o intercâmbio entre educação não formal e educação formal como meio de otimizar e dinamizar os currículos engessados no que tange à educação para as relações étnico raciais” (p. 10). Frente a essa reflexão, entendemos como a educação não formal pode se manifestar em uma pluralidade contextual, já que ocorre em espaços diferentes dos espaços escolares convencionais, tais como parque, casa, rua, praça, terreno, cinema, praia, caverna, rio, lagoa, campo de futebol, dentre outros inúmeros (Jacobucci, 2008).
Reconhecemos que todos esses lugares são singulares e importantes para o processo educativo que defendemos, pois, assim como aponta Araújo e Muniz (2016), as Organizações não Governamentais (ONGs) também são espaços nos quais a educação se instaura e ocorre plenamente. Desse modo, proporcionam uma aprendizagem dissemelhante daquela que ocorre em sala de aula, ou seja, por ser um ambiente onde se apresenta a ciência com novidades, curiosidades, sem cobranças e de forma descontraída.
Portanto, as ONGs podem ser o espaço e o elo entre o ensino, pesquisa e extensão, elementos essenciais para a formação de cidadãos e cidadãs que possam atuar justamente na sociedade brasileira. Convém salientar, nesse sentido, que as ONGs que possuem como pauta as mulheres negras contribuem para o elo de duas temáticas essências e atuais para a sociedade: ser mulher e ser negra no Brasil.
Desde 2009, o Coletivo Negro/a Tia Ciata no Laboratório de Pesquisas em Educação Química e Inclusão (LPEQI - NUPEC - IQ - UFG) tem desenvolvido pesquisas com a temática da Lei 10.639/20033 (BRASIL, 2003) no ensino de Química (Benite et al., 2018; Benite et al., 2019; Camargo e Benite, 2019; Silva et al., 2022). Com o intento de promover a divulgação científica e a popularização das ciências sobre a participação feminina negra, no que tange ao desenvolvimento científico e tecnológico do país, nasce o projeto de pesquisa e extensão “Investiga Menina!”4 (Vargas, 2018; Bastos, 2020). O Colégio Estadual Solon Amaral (CESA), parceiro dessa ação, situa-se na periferia de Goiânia/Goiás/Brasil e tem como público principal alunas negras que cursam as séries do Ensino Médio. Por sua vez, na ONG feminista negra - Grupo de Mulheres Negras Dandara no Cerrado5 - tem-se como alvo as mulheres negras, visto que intencionamos fazer com que esse grupo possa compreender que a produção de conhecimento é realizada de forma coletiva e com os seus pares (Vargas et al., 2018; Benite, Vargas, Bastos, 2021; Faustino et al., 2021; Faustino et al., 2021a).
Assumidos tais pressupostos, o presente trabalho tem como objetivo teóricometodológico o desenvolvimento de uma vivência intercultural (VI) centrada na produção de cientistas negras e seus universos identitários para o processo de educação não formal em uma ONG feminista negra.
As tessituras do caminho
Esta investigação tem elementos de uma pesquisa participante (PP), visto se tratar de uma prática que se concebe a partir da atividade educativa com investigação e ação social (Brandão, 1984). Importa ressaltar que, na pesquisa participante, os sujeitos do pesquisar são compreendidos para além do pertencimento da comunidade, com vistas a dar voz aos espaços sócios ideológicos que ocupam (Demo, 2004).
A investigação foi desenvolvida em 24 de agosto de 2019, no período da manhã, em 2 horas e 41 minutos, sendo gravada em áudio e vídeo e feita transcrição. Os dados totalizaram 296 turnos de discurso, agrupados por unidades de significado e analisados segundo a técnica da Análise da Conversação (AC) (Marcuschi, 2003). Participaram dessa investigação 32 integrantes da ONG, denominadas/os, a saber, A1-A32, de faixa etária entre 15 e 60 anos de idade, com suas diversas ocupações, sendo elas, professoras universitárias e da educação básica, estudantes (da educação básica, de graduação, mestrado e doutorado), trabalhadoras de limpeza urbana, assistentes sociais, dentre outras. Além de ser um espaço de aproximação do conhecimento científico trazido pela cientista com a população em geral, sendo realizado na ONG desde o projeto foi laureado pelo financiamento do prêmio Elas nas Exatas e Negras Potências.
Apresentamos o caminho metodológico da PP que são: Fase 01 - Montagem Institucional e Metodológica da PP - Planejamento conjunto com a professora formadora (PQ), professoras em formação continuada (PF1, PF2 e PF3) e professor em formação inicial (PF4). Houve abordagem em caráter interdisciplinar, apoiada em aspectos da Lei 10.639/2003 referente ao ensino de Química; Fase 02 - Estudo preliminar da região e da população envolvida - Mapeamento da realidade social da ONG e a articulação da parceria entre a Universidade, a sociedade e o movimento social com alto percentual de pessoas negras. Fase 03 - Análise crítica dos problemas considerados prioritários e que as/os participantes desejam estudar - Problematização sobre as mulheres negras nas ciências exatas e a discussão sobre as relações étnico-raciais de gênero e sexualidade; Fase 04 - Programação e desenvolvimento de um plano de ação que contribua para a solução das/os problemas encontradas/os - Planejamento em conjunto das atividades a serem desenvolvidas e que popularizem as ciências e as pesquisadoras negras contemporâneas brasileiras das exatas. Compreender as relações étnico-raciais, de gênero e sexualidade na formação docente.
Desvelando as tramas
Ao visarmos à construção de uma ciência que possa romper com os paradigmas e estereótipos hegemônicos, na busca por uma aproximação entre as cientistas negras e as integrantes da ONG, o projeto “Investiga Menina!”, em colaboração com pesquisadoras negras das ciências exatas, promoveu nos anos de 2018, 2019 e 2020 encontros entre esses sujeitos. Importa considerar que ao início de cada ano era distribuído o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) entre as participantes para que assinassem concordando sobre sua participação nas atividades do projeto. O Quadro 01, exposto abaixo, apresenta a organização dessas atividades.
Vivência Intercultural | Cientistas Negras Contemporâneas |
---|---|
2018 | |
I (28/04/2018) | Drª Sônia Guimarães (ITA) e Drª Vera Lúcia Gomes Klein (UFG) |
II (12/05/2018) | Drª Nicéa Quintino Amauro (UFU) e Mestra Lucely Morais Pio (UnB) |
III (11/08/2018) | Drª Joana D’Arc Félix de Sousa (ETEC) e Drª Jaqueline Araújo Civardi (UFG) |
IV (15/09/2018) | Drª Natália Cybelle Lima Oliveira (IGFEC/PE) e Drª Janice Pereira Lopes (UFG) |
V (20/10/2018) | Drª Zélia Maria da Costa Ludwig (UFJF) e Drª Anna M. Canavarro Benite (UFG) |
VI (10/11/2018) | Drª Bárbara Carine Soares Pinheiro (UFBA) e DrªNyuara Araújo da Silva Mesquita (UFG) |
2019 | |
I (16/03/2019) | Drª Viviane Gomes Bonifácio (UEG) e Doutoranda Talita Ferreira de Rezende Costa (UFG) |
II (18/05/2019) | Mestra Gina Vieira Ponte de Albuquerque (UnB) e Drª Marcia Maria dos Anjos Mascarenha (UFG) |
III (24/08/2019) | Drª Katemari Diogo da Rosa (UFBA) |
2020 | |
I (07/03/2020) | Drª Nília Oliveira Santos Lacerda (UEG) |
O trabalho em análise versa sobre o III encontro de 2019 com a cientista negra Drª Katemari Diogo da Rosa (UFBA). A Figura 01 apresenta o panfleto produzido para a divulgação do encontro ocorrido no colégio parceiro e na ONG.
O desenvolvimento da vivência intercultural - neste caso caracterizado quando se reúne universo de formação acadêmica, a demanda social e a própria produção do conhecimento científico - na ONG se deu em dois momentos: no primeiro foi construída uma historiografia oral da pesquisadora em formato audiovisual para sua publicação nos canais do Projeto Investiga Menina! (Facebook, no Instagram, no YouTube, a fim de promover a divulgação e a popularização da ciência; já no segundo momento, a cientista negra foi convidada a apresentar para as/os participantes da ONG a sua trajetória de vida e seu objeto de estudo. Por permearem sua existência, a cientista protagonizou o debate sobre os temas da intersecção de raça e gênero nas ciências e dos conceitos de identidade de gênero, expressão de gênero e sexo biológico, conduzindo a discussão acerca da diferença entre atração física e atração emocional.
Apresentamos aqui, por motivo de espaço, um dos extratos produzidos na vivência intercultural e passamos à análise dos discursos elaborados durante o seu desenvolvimento. Sendo os turnos de discursos produzidos ao longo da vivência como (T), a legenda para a cientista participante e PP e das integrantes da ONG de A1-A32. Passemos para a análise do Extrato 01.
Extrato 01 - Discursos sobre inserção da pesquisadora na ONG: sobre gênero, sexualidade e raça.
T.02 - PP: Eu tinha pensado da gente falar um pouco sobre a gente mesmo, cada um pensar um pouco sobre si mesmo em termos de identidade de gênero. Vamos discutir sobre as questões de gênero e sexualidade porque ultimamente eu tenho pensado um pouco como a gente. Sou professora de Física e trabalho com as questões de intersecção de raça, gênero e sexualidade nas ciências. E devido às questões politicas atuais, eu tenho pensando muito nas questões individuais, da gente olhar para nós mesmos e pensar em algumas coisas que a gente faz. Nesse sentido, precisamos conhecer mais em termos de gênero e sexualidade, aproveitar para pensar um tempo sobre isso. Muitas vezes a gente não tem tempo para a gente pensar no que a gente é ou sobre o que a gente é. Eu pensei em falar de algumas questões macro das relações raça e ciências e como historicamente alguns fatores fizeram com que as pessoas negras, a intelectualidade negra, a produção negra seja institucionalmente aniquilado. E eu queria o que vocês acham? Uma é mais palestra e a outra é menos palestra.
T.10 - A6: Eu quero saber um pouco mais da sua história e a partir da sua vivência nos temos isso. Eu nunca sonhei em fazer uma faculdade. Eu não fui preparada para ela. Eu tinha uma experiência na faculdade muito complicada. É um universo que muitas pessoas negras não almejam e não sabe nem por onde andar. No seu caso, qual foi a sua trajetória? O que motivou? Isso ajuda a compreender o porquê dessa escolha e no decorrer das suas escolhas quem é você?
T.11 - A7: Da para fazer um pouco de cada.
T.12 - A8: Um pouco de cada para dar uma noção.
T.68 - PP: Eu vejo nos eventos as pessoas que falam umas coisas que são bem bacanas, mas do ponto de vista do individual não está batendo. Uma coisa é do ponto de vista teórico. E do ponto de vista prático? Das relações pessoais? E falando sobre gênero, eu vejo muita piada homofobica, transfobica, sexista, comentários sexistas. Então você fala sobre mulheres, você fala que é importante incluir mulheres na ciência, é importante incluir mulheres negras na ciência. E você tem praticas sexista, transfobica, não bate. Então a gente precisa mudar esse individual. Isso tem que pensar. Você é assim por quê? Você ia perguntar, aponta para A12?
T.69 - A12: O que é sexista?
T.70 -PP: Quando a gente pensa em sexo, em termos de homem e mulher. Você é uma pessoa do sexo masculino, então você é um homem. Você é uma pessoa do sexo feminino, então você é uma mulher. O sexismo são as opressões baseadas no que é ser mulher e homem. O que homens são, o que mulheres podem ser ou não. O que podem fazer ou não. Se eu digo mulheres podem fazer uma coisa ou não pode fazer determinada coisa só pelo fato dela ser mulher isso é sexismo.
T.75 - PP: Eu, por exemplo, me identifico como uma mulher e as pessoas me identificam como uma mulher, eu não tenho problemas em relação a isso. Só que há um tempo, eu nunca tinha pensado, porque eu me identifico como uma mulher? É o que é que faz com que eu me identifique com uma mulher? E porque para gente, e eu incluo todas, é muito fácil da gente se enxergar como uma mulher. E também nunca pensaram sobre isso. E também não sei se já pensaram sobre isso. Por que vocês acham que são mulheres? O que faz uma pessoa ser mulher? Eu sou mulher porque eu sou, sei lá, eu olho no espelho e vejo que eu tenho seios, órgãos genitais que são associados às mulheres, é isso que me faz ser mulher?
T.76 - A13: É que você é mulher. Eu converso isso com a minha irmã. Ela fala umas coisas assim. Você é criança, você não sabe supostamente você tem que usar rosa porque é mulher, você tem que fazer isso porque você é homem. E você vai crescendo com isso daí.
T.78 - PQ: Porque eu me percebo mulher, porque tem um controle sobre meu corpo. E nesse momento que eu me percebo mulher. Eu não posso andar sem camisa, apesar de ter a maior vontade de andar sem camisa [...] Eu me sinto mulher quando alguém espera que eu saiba lavar uma louça.
T.79 - A8: Que eu tenho que gostar de limpar a casa, tirar a poeira para tudo ficar limpinho.
T.89 - A6: É o conflito de ela saber quem ela é. E a gente enquanto estudantes de Serviço Social que estava ali. Entendendo o sujeito como um todo e percebendo as relações que perpassam a vida dela que é afetivamente e sexualmente e tem a outra questão de “O ser mulher”.
T.90 - PP: Isso pela gente não se conhecer e pensar. É sempre mais fácil a gente falar do outro.
T.91 - PF3: Mas isso é questão difícil na questão racial quanto de gênero. Eu acho que foi na 2º ou na 3º conferencia municipal da mulher a gente queria saber quais eram as mulheres lésbicas ou se declaravam. A gente sabia que tinha muitas. E nós colocamos na ficha. E isso deu um problema, porque as pessoas não sabiam nem o que era hétero. É igual quando você pergunta em relação à cor segundo o IBGE, preto, pardo e amarelo.
T.122 - PP: A gente precisa compreender para subverter essa questão a opressão. Feminilidades são oprimidas na nossa sociedade. Se você tem uma pessoa que é vista como um homem e que performa, que se expressa com feminilidade e mal visto.
T.275 - PP: O desenvolvimento tecnológico normalmente é voltado para resolver os problemas de homens. Não se faz desenvolvimento tecnológico pensando em mulheres, de diversidade, de pessoas com diversas sexualidades.
T.277 - PF3: E o ensino de ciências tem uma responsabilidade com isso.
O Extrato 01 apresenta, inicialmente, a explicação sobre a linha de pesquisa da cientista (PP) turno (T) 02. Durante muito tempo, as mulheres não tiveram acesso à educação e foi através do magistério que elas puderam acessar o sistema formal de ensino. Conforme Katemari Diogo da Rosa e Maria Ruthe Gomes da Silva (2015) 6, apenas por volta da década de 40 que a figura feminina começou a se formar em carreiras nas áreas das Exatas no Brasil. Esses são, de forma insofismável, um dos fatores responsáveis pela tardia participação feminina no cenário das Ciências Exatas e Tecnológicas.
No mesmo turno, a pesquisadora descreve os temas com os quais trabalha (PP: as questões de intersecção de raça, gênero e sexualidade nas ciências). Nesse sentido, os conceitos de raça e etnia, no segmento sociológico, são socialmente construídos e marcam a constituição da diversidade cultural na sociedade brasileira (Munanga, 2004). No que diz respeito ao gênero, concordamos com Scott para afirmar que “gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e; o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder” (1995, p.86). Desse modo, a identidade de gênero está relacionada à maneira como o sujeito se reconhece e se identifica, como, por exemplo, mulher cis, mulher trans, travesti, homem cis, homem trans, entre outros. Enquanto a orientação sexual está associada às categorias sociais que organizam o desejo sexual (bissexual, homossexual, assexual, pansexual, heterossexual, entre outros).
Defendemos que, ao pensar no enfrentamento do racismo, machismo e a LGBTIfobia, não se pode pensar em ações particionadas. Como nos ensina Audre Lorde (2019), todo debate sobre a questão negra também é LGBTI e, nesse sentido, não se deve hierarquizar as opressões. Fazer a intersecção entre o racismo, homofobia e a transfobia costuma ser uma peculiaridade no campo dos estudos de gênero, que tem limitada a sua produção interrelacionada das temáticas de gênero e raça. Esse divórcio temático leva a uma série de inquietudes comuns para os/as professores/as, atores e atrizes no cenário educacional e de pesquisa, haja vista que há uma relação entre a orientação sexual e o pertencimento racial do/a pesquisador/a e do tema de pesquisa, ou seja, uma identificação entre o sujeito e o objeto da investigação (Góis, 2003; Figueiredo, 2008).
Compreendemos, portanto, tal como A6 no T.10 (A6, T.10: Eu nunca sonhei em fazer uma faculdade. Eu não fui preparada para ela. É um universo que muitas pessoas negras não almejam e não sabe nem por onde andar), que formar professores/as “passa também por uma formação política e comprometida com a superação das barreiras e limitações que alguns grupos sociais passam para serem aceitos e valorizados na sociedade” (Marin, 2019, p.140). Além disso, realizar as vivências interculturais na ONG passa também pelo desafio do diálogo da demanda social de uma sociedade real, o conhecimento científico e os processos acadêmicos de formação de professores/as. Sobretudo nós, como professores/ as de química, devemos contribuir para ensinar temáticas relevantes e vivas nas/para as vidas dos/as estudantes, contribuindo para as inquietudes e expectativas perante a atmosfera social. Uma vez que, também se tornam urgentes esses debates em espaços de educação não formal, como, por exemplo, nas ONGs. Além disso, é preciso criar condições que favoreçam a apresentação de uma ciência que dialogue com as múltiplas corporeidades, com vistas a auxiliar nas transgressões dos silenciamentos sobre as relações étnico-raciais e das sexualidades dissidentes no espaço escolar, além de evidenciar os marcos identitários de práticas educativas que ocorrem fora do espaço da escola e que são muito potentes para a Educação Química e para o ensino da Química, bem como para a formação de docentes.
O discurso de PP apresentado no T.68 relata sobre as piadas que ecoam a lesbofobia, homofobia, bissexualfobia, transfobia e intersexfobia da nossa sociedade, reflexo de cenários cujo seio se ampara nas convicções do patriarcado e no machismo.
Apesar da presença cotidiana dessas formas de preconceito, os termos de gênero, identidade sexual e orientação sexual ainda não são muito compreendidos por grande parte da população, assim como questionado na ONG, como demonstra A12 no T.69 (T.69 - A12: O que é sexista?), haja vista que essa temática apresenta uma grande invisibilidade e ainda se encontra resistência no meio educacional. De igual forma, a escola é responsável pela formação de cidadãos e cidadãs capazes de intervir, de maneira crítica, em sua realidade. A escola também desempenha papel ímpar na socialização dos sujeitos, de modo a promover o conhecimento e o desenvolvimento de suas capacidades cognitivas para a compreensão do mundo social.
Discutir sobre a diversidade sexual, o combate ao preconceito, à desigualdade de gênero, ao sexismo e à LGTBIfobia, como faz PP nos T. 68, 70 e 75, significa afastar-se das visões naturalizadas socialmente, mesmo porque, conforme aponta Megg Rayara Gomes de Oliveira (2017 e 2020), todas essas maneiras de opressão e de normalização de poder não podem ser tratadas como semelhantes, mas em seus diferentes entrelaçamentos, combinações e intersecções.
Dessa forma, compreender, reconhecer e valorizar outras realidades é preparar para que a cada dia esses sujeitos, desconsiderados/as da construção de conhecimento, possam estar cada vez mais nas matrizes curriculares de ensino e no acesso formal de ensino. Por conseguinte, para Mbembe (2016) essa soberania do estado de exceção sobre a política da morte representa, em suma, o ato de poder e a idoneidade de estabelecer quem pode viver e quem deve morrer. Na acepção do autor, “matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais” (Mbembe, 2016, p. 123). Consequentemente, para os sujeitos racializados ou considerados sub-humanos “as mortes diretas com participação do estado, o trabalho em condições não dignas, as políticas que negam direitos de saúde, serviços básicos e de educação de qualidade, se constituem como umas das principais formas de operação da necropolítica” (Marin, 2020, p. 260).
A partir do questionamento apresentado no T. 75 (PP: Por que vocês acham que são mulheres? O que faz uma pessoa ser mulher?), apoiamo-nos no pensamento da crítica à heterossexualidade compulsória, que pressupõe, inicialmente, o pensamento de Simone de Beauvoir “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (1967, p. 09). De maneira similar, Butler (2003) explica o conceito de “mulher” como uma categoria que se pretende a-histórica e universal, representativa para todas as mulheres, mas que só é construída como tal a partir de processos de normalização e abjeção social. Por um lado, essas características permeiam as relações de poder, tal como apresentado no T.78 por PQ, quando essas relações são ocultadas, são internalizadas e se normalizam à medida que esses sujeitos crescem na sociedade, tal como aponta A13 no T.76 (A13: Você é criança, você não sabe supostamente você tem que usar rosa porque é mulher, você tem que fazer isso porque você é homem. E você vai crescendo com isso daí). Por outro lado, a relação dual entre o sujeito e o poder “denuncia as exclusões engendradas pelo sujeito universal, mesmo em movimentos que reivindicam para si o papel de críticos do sistema de poder vigente, como o feminismo” (Cyfer, 2015, p.46). Paralelamente, “o sujeito que representa as demandas das mulheres é também um produto das relações de poder que pretende combater” (Butler, 2003, p.18).
Cabe ressaltar aqui que, para problematizar o conceito de mulher, é necessário incluir todas as mulheres com as suas especificidades e interseccionalidades. As mulheres sempre foram excluídas do fazer científico e as mulheres negras ainda mais intensamente (Benite et al., 2018a), pois estas são marcadas pela interseccionalidade de raça e gênero (hooks, 1995).
Nesse sentido, bell hooks (1995) explica que as mulheres negras desenvolveram, de maneira particular, o modo de observar a realidade na qual elas se encontram, tanto a realidade posta de “dentro para fora” quanto a “de fora para dentro”. E, conscientemente, por motivos de sobrevivência nesse mundo, enxergamos o mundo tanto à margem dessa sociedade quanto ao centro. No entanto, apesar da prática de (re)existência das mulheres negras, não somos capazes de combater os marcadores de gênero da sociedade brasileira patriarcal, tais como as cores rosa e azul, como destacado por T.76, e os papéis sociais de gênero das mulheres, relatado por T.79. Esse resultado nos faz considerar que o debate de gênero e sexualidade ainda perpassa as concepções binárias e heteronormativas.
Podemos observar no turno 91 quando PF3 responde (PF3: difícil na questão racial quanto de gênero) que, ainda hoje, há uma invisibilidade de tratamento das questões racial, de gênero e sexualidade. Vale ressaltar que, em 2019, houve a criminalização da homofobia - caracterizada pela discriminação por orientação sexual e identidade de gênero sofrida por homossexuais e transexuais -, que passa a ser enquadrada no crime de racismo. Dessa maneira, fazer a intersecção entre o racismo e a homofobia é uma peculiaridade, pois pesquisas sobre as relações étnico-raciais têm deixado de lado a situação dos “homens homossexuais, dos gays afeminados, dos viados e das bichas, da mesma maneira que os estudos de gênero têm dado pouca atenção às questões de raça” (Oliveira, 2017, p. 86). De fato, no campo dos estudos de gênero, é limitada a produção inter-relacionada das temáticas de gênero e raça (Lima e Cerqueira, 2007). Como consequência disso, ambos os movimentos retratam discursos e práticas influenciadas pelo modelo heteronormativo europeu, culminando em atos homofóbicos, transfóbicos e racistas.
Durante a formação de professores/as de Química, os assuntos sobre gênero e sexualidade ainda são poucos discutidos e, evidentemente, formar professores/as de Química, partindo da inserção de assuntos de gênero e das relações étnico-raciais, pode contribuir para que eles e elas estejam cientes das possíveis relações implícitas e explícitas nesses assuntos. Sendo, portanto, iniciativas como essa de elo entre a pesquisa e a extensão, lugares de disseminação de debates de práticas educativas acolhedoras de temáticas de gênero, sexualidade e racialidade.
Coadunando com os T. 122, 275 e 277, algumas iniciativas potentes têm debatido sobre gênero e sexualidade na educação, como, por exemplo, os hormônios são essenciais na mudança do comportamento sexual de crianças e adolescentes, que, por sua vez, abrangem um leque de conteúdos e alternativas de se discutir conteúdos sobre a sexualidade (Coello e González, 2008). Nesse sentido, Swiech (2016) observa que a contextualização de temas sociais, aliada aos aspectos tecnológicos do desenvolvimento de um produto, como a camisinha, pode ser assunto para discussão durante o ensino de Química, já que a partir dessa temática podemos abordar os processos tecnológicos de produção, decomposição, impactos ambientais e sociais etc.
Tramontano (2017) analisa o papel dos hormônios ditos sexuais (o estrogênio e a testosterona), apontados como a diferença mais básica entre seres humanos - ser anatômica e funcionalmente homem ou mulher, alicerces de uma visão binária de gênero. Considerando esta colocação, Garcia, Lopes e Loguercio (2017) apresentam e analisam uma proposta de ensino de química orgânica, tendo como eixo químico a compreensão da estrutura e da função dos hormônios, interconectado ao eixo social-cultural das questões de gênero e à sexualidade.
Por sua vez, Ferreira, Silva e Stapelfeldt (2016) tratam em aulas de Química e Biologia o sistema nervoso e o equilíbrio químico como elementos para se discutir o ciclo menstrual e os métodos contraceptivos. Bastos e Lüdke (2017) fazem uma abordagem da sexualidade sobre os conhecimentos sobre anatomia e fisiologia de órgãos genitais, bem como sobre a profilaxia de as Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). Essas iniciativas convidam os/as educadores/as a questionarem quais são os processos que educam os indivíduos para a igualdade social.
Ademais, Barros e Ribeiro (2012) analisam as narrativas da equipe pedagógica e da direção, a respeito da sexualidade no currículo escolar, e observam que quando enunciam as temáticas de corpos, gêneros e sexualidades, concluem que as disciplinas de Ciências continuam sendo um dos lugares considerados autorizados e privilegiados para se falar sobre tais temáticas.
No entanto, apesar de avanços nas discussões de gênero e sexualidade, conforme apontado por Proença e colaboradores/as (2019) na formação docente em Ciências no Brasil e por Nogueira e colaboradores/as (2021) no ensino de Química, estas discussões precisam ser compreendidas sob uma ótica racializada, de igual forma, os debates sobre as relações étnico-raciais precisam ser entendidos mediante uma perspectiva de gênero.
A partir desses questionamentos, torna-se necessário e urgente incluir o enviadescer nas questões que têm como foco a discussão sobre interseccionalidades, ou seja, para além do conforto das identidades negras heterossexuais na produção de Ciência e Tecnologia. Nesse sentido, quando pensamos as questões de diversidade sexual e de gênero, ou seja, na intersecção que essa temática nos convoca para analisar, a Química, a ciência da “transformação da matéria”, silencia o debate.
Algumas Considerações
Nossos resultados mostram que as ONGs podem auxiliar na formação inicial e continuada dos/as professores/as, visto que nesses segmentos é possível a realização de práticas de ensino que estejam atreladas com os tópicos: i) ensinados em sala de aula; ii) as políticas públicas e ações já desenvolvidas neste local; iii) de divulgação de conceitos científicos e; iv) de divulgação e popularização da ciência.
Nesse sentido, o debate com a pesquisadora negra, atrelado às questões de gênero e sexualidade, mostrou-se como uma alternativa para discutir em espaços não formais de ensino essas temáticas, ou seja, uma das formas de operacionalização e da resistência das violências e violações dos direitos da população negra e LGBTI.
Além disso, os/as professores/as são formados/as para atuar com a sociedade como um todo e a aproximação com uma ONG com cerne no movimento de mulheres negras se insere na formação de professores/as o componente da interseccionalidade como elemento fundante da sociedade brasileira que celebra mestiçagem a partir da violação do corpo negro feminino. A ciência, portanto, os professores e as professoras precisam se comprometer com as relações sociais que caracterizam o contexto do ensino de ciências.
Em vista disso, salientamos que a química é uma ciência viva, a ciência da transformação da matéria e da dinâmica da existência. Por isso, quando restringimos seu ensino aos consensos que estão acordados em linguagem apenas simbólica, estamos omitindo toda a potencialidade de lidar com a reatualização da vida. Nossos resultados mostram que, como professores/as de química, frente às múltiplas identidades de gênero e orientações sexuais, é possível associar a natureza da ciência ensinada a práticas acolhedoras e temáticas urgentes em aulas de química, com a intenção de que criemos laços e intersecções entre o saber teorizado e os desafios sociais que circundam nossa existência sociopolítica.