A história do ensino de sociologia tem ganhado destaque nas publicações científicas no Brasil, como demonstram alguns balanços realizados em período recente (Brunetta e Cigales, 2018; Engerroff, Cigales e Tholl, 2017). Em grande parte, essa história é contada via marcos legislativos, documentos acadêmicos e manuais escolares (Machado, 1987; Miceli, 1989; Meucci, 2011). Apesar do esforço em compreender as dinâmicas históricas de inserção e retirada da sociologia no currículo, ainda nos falta conhecer melhor qualitativamente quais sociologias foram ensinadas no decorrer da história no currículo brasileiro.
Neste artigo investiga-se os projetos e as disputas no campo educacional brasileiro entre o período de 1920 e 1940, momento em que: a) a disciplina de sociologia foi lecionada na escola média, mais especificamente entre as reformas de Luiz Alvez Rocha Vaz (1925) e Gustavo Capanema (1942); b) houve a discussão da nova Carta Constitucional (1934) e do capítulo que se refere à educação, que foi motivo de debates acalorados na arena político-educacional entre intelectuais católicos e renovadores (Cury, 1978); e c) ocorreu o processo de desenvolvimento do campo educacional brasileiro, com a criação da Associação Brasileira de Educação, em 1924, e do Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública, em 1930, indícios de uma prévia estruturação do campo educacional. Assim, busca-se examinar o projeto católico para o ensino de sociologia nesse período, investigando os livros e manuais escolares da sociologia escritos por autores católicos.
Quando é aventada a ideia de um projeto católico, é relevante considerar o aspecto da relativa autonomia dos campos sociais, uma vez que um campo será mais autônomo na medida em que ele tiver maior capacidade de refratar as influências externas a ele (Bourdieu, 2004). Pode-se assumir aqui que a sociologia em seu processo de formação foi atingindo maior grau de autonomia no Brasil -considerando-se o advento de cursos de graduação e pós-graduação, institutos de pesquisa, publicações especializadas etc.- todavia, na gênese da sociologia no Brasil, encontramos um baixo grau de autonomia desse campo, de tal modo que o debate sobre uma “sociología católica” ou “sociologia cristã” reflete essa situação particular.
Entende-se nesse artigo o manual escolar como um conjunto de conhecimentos produzidos a partir do campo científico e sistematizados por determinados agentes sociais dispostos em espaços variados (acadêmico, político, cultural e educacional), voltados para o ensino de uma determinada disciplina escolar, nesse caso, da sociologia. O manual escolar possui determinadas características que o diferenciam das demais produções editoriais, como: intencionalidade do autor/editor e adequação dos conteúdos para o público escolar; sequencialidade na exposição dos conteúdos; estilo textual expositivo; presença de recursos didáticos explícitos -tabelas, quadros, exercícios, figuras, questões no final dos capítulos; regulamentação de conteúdos segundo planos e diretrizes de ensino; e a forte presença de imagens (Ossembach, 2010). Ainda que se tenha que considerar que, no desenvolvimento da nossa análise, os manuais escolares não apresentam várias das características aqui presentes, principalmente aquelas características referentes às imagens, visto que foram produzidos para diversos âmbitos (universitário, escolar normal e ensino secundário) no período entre 1920 e 1940, que representaria o início e o desenvolvimento das gráficas especializadas no país para a produção desses artefatos culturais. Também caberia destacar que, no decorrer da nossa análise, foi possível constatar que nem todos os documentos se caracterizam como manuais escolares, mas como livros, voltados para públicos extraescolares, e também livros de textos, voltados para o ensino superior.1
Sobre a metodologia de análise, este artigo apoia-se numa perspectiva da sociologia relacional com o objetivo de compreender o manual escolar como um produto simbólico voltado para o âmbito escolar, mas que extrapola os interesses internos à escola, uma vez que reflete as disputas dos diversos campos sociais -político, cultural e educacional- compondo e estruturando sistemas de classificação e de divisão do mundo social (Cigales e Oliveira, 2020). Nesta pesquisa, isso está direcionado para a compreensão de uma determinada concepção de sociologia, vinculada aos interesses da Igreja Católica e, portanto, da reprodução de um discurso social assentado e regulado por sua doutrina.
Tentando responder algumas dessas questões, este trabalho tem por objetivo analisar oito livros e manuais de sociologia que foram publicados até a primeira metade do século XX e que pertenciam a uma corrente específica da sociologia no Brasil, também conhecida como “sociologia católica” ou “sociologia cristã” (Meucci, 2011; Cigales, 2019). Tem-se como pressuposto que o objetivo da sociologia católica era a consolidação da ordem, da harmonia e do consenso social através da recristianização da sociedade, sendo a busca de Cristo aclamada como a única e verdadeira possibilidade de estabelecer essa dinâmica social.
Este artigo é originário da necessidade de compreender e aprofundar a história da sociologia no Brasil, por meio da análise dos manuais escolares, campo de estudo que vem angariando força na história e historiografia da educação nos países ibero-americanos com a criação de centros de pesquisa e catalogação desses artefatos culturais, que estão constituindose como fontes heurísticas2 para se conhecer o passado das práticas culturais escolares (Mahamud e Badanelli, 2016; Ossembach, 2010; Escolano, 2009). Portanto, trabalhar com os manuais de sociologia nos possibilita perceber as dinâmicas de um campo social específico que, conforme Pierre Bourdieu (1992, 1996, 2004), possui suas próprias regras, agentes e capitais, que se constitui a partir das posições heterogêneas dentro dessa esfera simbólica de lutas e disputas pela legitimação de práticas, ideias e representações.
Pensar a sociologia católica no Brasil a partir da constituição do campo educacional brasileiro possibilita problematizar os projetos educacionais e, ao mesmo tempo, compreender o surgimento dessa concepção de socio- logia no país, assim como seus principais representantes e preocupações. Os livros e manuais analisados destinavam-se tanto para o uso escolar como para a divulgação da sociologia católica para um público leitor mais amplo. Nesse sentido, destacam-se os manuais: Sociologia cristã, volume 1 e 2, do padre Guilherme Boing; Sociologia catholica e o materialismo (questão social), de Fernando Callage; Preparação à sociologia, de Alceu Amoroso Lima; Noções de sociologia, de Madre Francisca Peeters; Sociologia, de A. Lorton, e Programa de sociologia, de Amaral Fontoura, todos publicados entre as décadas de 1920 e 1940 no Brasil (Lorton, 1926; Boing, 1938, 1939; Peeters, 1938; Callage, 1939; Athayde, 1942; Fontoura, 1944; Silva, 1942).
É de destacar que o material analisado constituiu-se de livros e manuais escolares, estes últimos caracterizados pela intencionalidade dos autores de direcionálos para o ensino de uma disciplina escolar. Assim, os livros possuem uma linguagem mais formal, não fazendo uso de imagens, recursos didáticos e diálogos, elementos que estruturam os manuais escolares. Parte-se de uma metodologia relacional de análise dos manuais escolares, optando-se por analisar seu conteúdo interno destacando quatro elementos: a) definição da sociologia católica; b) autores e representantes sociais; c) principais preocupações; e d) prescrições sociais. Tais elementos são contextualizados com o cenário da constituição do campo educacional no Brasil, num período de renovação pedagógica e política da Igreja3, caracterizado pela disputa entre católicos e renovadores com relação às diretrizes educacionais do país (Xavier, 1999).
Os agentes intelectuais católicos da sociología
Duas questões são relevantes para compreendermos o cenário de surgimento da sociologia católica no Brasil. A primeira refere-se ao processo de laicização do Estado que retira os poderes da Igreja nas decisões políticas-administrativas, perdendo um espaço de consagração no qual a Idade Média representou seu ápice. Concomitante a esse processo tem-se o desenvolvimento de correntes de pensamento sobre a realidade social que ganham determinada autonomia no interior das universidades e círculos letrados que disputam e concorrem com os discursos sobre uma verdade baseada no catolicismo.
A segunda questão refere-se à inserção da sociologia na educação brasileira que acompanha os projetos intelectuais que visavam uma modernização dos discursos e das práticas político-administrativas e culturais do país. As correntes filosóficas-sociais do positivismo, do liberalismo e do comunismo começam a se estabelecer no Brasil e ganham força em frações da intelectualidade, principalmente naqueles grupos que visavam modernizar e transformar as bases culturais e políticas pela ideia de uma racionalização científica. Os pareceres e reformas de autores como Rui Barbosa (1882 e 1883) e Benjamin Constant (1890) -ambos positivistas e que propuseram o ensino da disciplina nos diferentes níveis de ensino, como forma de modernização do Estado brasileiro- refletem esse esforço. Podemos inferir que tais ações tiveram algum impacto no campo educacional, uma vez que ocorreram experiências pontuais de criação de cátedras em sociologia em algumas localidades, como Manaus e Aracajú.
No nível político, estava de fundo o chamado “período varguista”, iniciado em 1930 e que se desdobra no Estado Novo (1937-1946), demarcando uma ruptura com a chamada “Velha República” e que previa um redimensionamento do Estado nacional.
A Igreja Católica, assumindo uma postura estratégica de cooptação de uma parcela letrada das elites econômicas e culturais, inicia um processo de formação de líderes laicos4 do qual se destaca Jackson de Figueiredo (1891-1928) que, apesar de uma morte prematura,5 deixa um convertido à causa católica, que logo assumiu a liderança de renovação das bases culturais, educacionais e políticas do país: Alceu Amoroso Lima (1893-1983). Também conhecido pelo pseudônimo literário de Tristão de Athayde, Amoroso Lima foi um dos maiores representantes da concepção católica da sociologia no Brasil (Skalinski Junior, 2015), tendo publicado o livro Preparação à sociologia em 1931, sendo traduzido para o espanhol e francês nesse mesmo período.
É importante destacar desde já que esses agentes intelectuais católicos -em alguns casos, intelectuais no sentido estrito do termo- seguiam uma tendência mais ampla do que encontramos no campo acadêmico que se formava naquele momento que era o da não especialização. Majoritariamente, tais agentes dedicavam-se de forma concomitante a distintos campos disciplinares, escrevendo também livros e manuais escolares para diferentes áreas do conhecimento. No campo das ciências sociais, seria a partir da década de 1930, com o advento dos primerios cursos de graduação na área, que esse conhecimento começaria se autonomizar, formando a primeira geração de pesquisadores especializados em ciências sociais, o que se solidificaria na década de 1940 com as primeiras experiências pós-graduadas.6
Entre as décadas de 1930 e 1940, Amoroso Lima ganhou destaque por se contrapor ao projeto educacional dos Pioneiros da Educação Nova, unificado através do Manifesto de 1932, tendo como líder Fernando de Azevedo (1894-1974), um dos seus principais representantes.7 A posição de defensor do laicato católico no âmbito cultural deu força política para Alceu Amoroso Lima, que na época já gozava de certo reconhecimento no espaço literário carioca. Assim, suas ações vão ao encontro do projeto de outros intelectuais católicos de prestígio, como o padre Leonel Franca (1893-1948) e Jacques Maritain (1882-1973).
As iniciativas e projetos de Alceu Amoroso Lima também estiveram relacionados com a política educacional, uma vez que ele participou do esvaziamento do projeto da Universidade do Distrito Federal (UDF)8 e teve participação na seleção do corpo docente da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Suas correspondências com o ministro da Educação, Gustavo Capanema (1900-1985), salientam a influência de Amoroso Lima junto às ações do Ministério de Capanema na década de 1940 (Schwartzman, Bomeny y Costa, 2000). Assim, é de se compreender que Alceu Amoroso Lima é considerado uma espécie de “arauto” da renovação pedagógica católica (Skalinski Junior, 2015), o que explica sua influência na elaboração de uma sociologia católica no país.
No campo educacional, os projetos de maior destaque da sociologia católica foram os manuais Noções de sociologia, de Francisca Peeters, de 1935, e Programa de sociologia, de Amaral Fontoura, de 1940, dado que esses manuais obtiveram várias edições.9 Além deles, é possível destacar o manual Sociologia, de A. Lorton, de 1926, e Introdução à sociologia, de Alcionílio Silva, de 1942. De forma geral, os livros de Lorton e Fontoura eram destinados aos cursos secundários, o de Peeters para a escola normal e o de Alcionílio Silva para o ensino superior.
Sobre os autores, cabe destacar que Francisca Peeters e A. Lorton eram estrangeiros. Elizabeth Peeters nasceu na cidade de Tournai, na Bélgica, em 1876, onde estudou em colégio católico entrando, mais tarde, no noviciado das Irmãs de Santo André. Quando chegou ao Brasil em 1914, direcionou-se para o Colégio de Santo André, onde se encarregou de organizar a Escola Normal. Seu livro Noções de sociologia foi editado pela Melhoramentos, chegando à sexta edição em 1964 -essa informação de Dinorah Gondin Borges (2014) não é confirmada por este estudo, visto que encontramos apenas a segunda edição do manual, de 1938. Em colaboração com a Madre Maria Augusta de Cooman, escreveu Educação. História da pedagogia, também pela Editora Melhoramentos. Além de sociologia, lecionou latim, filosofia, matemática e física (Borges, 2014).
Por sua vez, A. Lorton possuía formação em filosofia, visto que seu livro Notions de sociologie, publicado em 1923, trazia essa informação na capa. Também evidencia-se a ligação do autor com Fleury Lavallée (1870-1961), reitor das faculdades católicas de Lyon, que foi o prefaciador do seu livro. Outra pista importante é trazida pelo artigo de Antoine Savoye (2017), que descreve o manual de Lorton junto com outros sociólogos católicos que es- creveram livros nesse mesmo período. A resenha sobre o livro de Lorton, publicada na revista L’Année Sociologique (1923/1924) e escrita por R. Laubier, aponta: “Este pequeno livro, que se passa por um manual de ‘so- ciologia’ elementar, é na realidade uma aplicação das doutrinas da Igreja e seus princípios morais e sociais” (Laubier, 1923: 209 [tradução do original em francês]). Isso também traz indícios de que o autor era conhecido ou, ao menos, fazia parte do grupo social que detinha algum reconhecimento na França no início do século XX, o que pode ser inferido em virtude de que seu manual foi traduzido e adaptado para o uso escolar apenas três anos depois de ser publicado na França.
Afro do Amaral Fontoura nasceu no Rio de Janeiro em 1912 e estudou no Colégio Pedro II, espaço tradicional de formação das elites naquele momento, e seguiu o ensino superior em Direito na Universidade do Rio de Janeiro e na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Segundo Simone Meucci (2011), Amaral Fontoura formou-se em magistério e foi professor nos cursos normais da então capital (aprovado em concurso público como técnico em educação, em 1940), período em que publicou o seu manual. Em suas atividades como professor, envolveu-se em diversas temáticas, entre elas o ensino rural, tal qual sua esposa, Maria Emília Amaral Fontoura (1910-1953), conhecida como Milly, educadora e coordenadora da educação rural da Escola Rural do Rio de Janeiro. Foi ela a quem Amaral Fontoura dedicou os seus compêndios, mesmo aqueles editados após o seu segundo casamento, com Cleonice Ivone dos Santos Pinheiro (Cleo), diretora da Faculdade de Serviço Social, com quem viveu até falecer, em 20 de agosto de 1987. Depois de formado, Amaral Fontoura “[...] passou a dar aulas de sociologia e serviço social nas principais facul- dades fluminenses” (Meucci, 2007: 43-44).
Podemos citar, entre essas faculdades, a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, que teve como um dos fundadores Alceu Amoroso Lima, a quem Amaral Fontoura se refere como o grande mestre nas epígrafes dos manuais: Programa de Sociologia e Introdução à Sociologia. Além disso, Afro Amaral foi professor na Faculdade de Serviço Social do Distrito Federal, na Faculdade de Filosofia Santa Úrsula e na Escola do Comando Maior do Exército, indicando, em seu manual (Fontoura, 1957), que era chefe do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais, na Pontifícia Universidade Católica/RJ. Ainda, participou do sindicato dos professores e foi presidente da Associação Brasileira das Escolas Normais na década de 1960 (Meucci, 2007, 2011), atuando como jornalista, escrevendo sobre educação.
Por seu amplo envolvimento com diferentes temáticas, como educação, ruralismo, psicologia, didática, sociologia, entre outros, Amaral Fontoura participou da elaboração de diversos manuais. Junto da Editora Aurora, dirigiu a Biblioteca Didática Brasileira, por ser um “reputado técnico de educação” e ser reconhecido pela editora por deter “profundo conhecimento teórico da Pedagogia, ao lado de um admirável espírito prático e objetivo” (Editora Aurora, in França, 2016). Nessa coleção, havia IV séries de títulos, sendo que, na série I, denominada A Escola Viva, participava Sociologia educacional (1951). Além desse texto, Amaral Fontoura publicou manuais como Psicologia geral (1957), Metodologia do ensino primário (1955), Introdução ao serviço social (1950), Dicionário Enciclopédico Brasileiro (1943), entre outros.
O padre Alcionílio Bruzzi Alves da Silva (1903-1988) nasceu em Nova Era/MG e estudou no colégio Salesiano em 1913. Mais tarde, entrou para o noviciado Salesiano de Lorena, concluindo seus estudos teológicos no Instituto Internacional D. Bosco na Itália. “Como sacerdote passa a atuar, a partir de 1930, no Liceu Coração de Jesus em São Paulo, sendo transferido no ano seguinte para o Colégio São Joaquim de Lorena. Durante oito anos (1934-1942), atua nos cursos do Instituto Teológico Pio XI (São Paulo)” (Magalhães, 1990: 161-162).
Ainda, destacou-se por atuar nas missões etnográficas e linguísticas no rio Negro em dois períodos: 1947-1948 e 1952-1953. “A convite de instituições de pesquisa norte-americana, em fins da década de 50, permanece nos Estados Unidos por longo tempo para melhor preparar dados linguísticos-etnográficos, que resultam no lançamento da Discoteca etnolinguístico-musical dos rios Uaupés, Içana e Cauaburis” (Magalhães, 1990: 162). Percebemos que, no período analisado (1920-1940), o autor iniciou sua profissionalização no campo das ciencias sociais no Brasil e escreveu outros manuais voltados para o ensino da química geral, para o grego clás- sico e para a psicologia experimental. Faleceu em Taracuá (Amazonas) em 12 de março de 1987, com 85 anos de idade (Azevedo, 1987).
Também podemos situar as origens dos agentes intelectuais responsáveis pelos livros da sociologia católica, dos quais destacam-se neste estudo, além de Alceu Amoroso Lima, Guilherme Boing e Fernando Callage. O padre Boing participou do I Congresso Católico de Educação em 1934, promovido pela Confederação Católica Brasileira de Educação. Nesse Congresso, apresentou o trabalho intitulado “A posição social do professorado”, temática que foi escolhida para ser um dos assuntos principais do segundo congreso a ser realizado em Belo Horizonte, no ano de 1937. Nesse mesmo evento, estavam as lideranças católicas, tal como Leonel Franca e Amoroso Lima. Guilherme Boing também foi um dos principais divulgadores da pe- dagogia do padre Álvaro Negromonte, o mesmo que realizou o prefácio da obra Sociologia cristã. Álvaro Negromonte ficou conhecido pela sua atuação junto à pedagogia católica, atuando, nesse mesmo período, em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro. Por fim, destacamos que Guilherme Boing adaptou os escritos do bispo holandes D. João D. J. Aengenent, publicando o livro Sociologia cristã após sua morte, o que demonstra que o autor mantinha uma rede de relações sociais com outros agentes de prestígio, pertencentes ao clero católico. Seu livro de sociologia, portanto, é reflexo de seu posicionamento nesse meio em que discutia a pedagogía e a sociologia católica (Orlando, 2015; Narcizo, 2008).
Por sua vez, Fernando Callage era gaúcho de Santa Marina. Radicou-se em São Paulo na década de 1920, onde se bacharelou em Direito, vindo a ingressar no funcionalismo público. Foi redator auxiliar do Departamento de Imprensa e Publicidade e, depois, chefe da Biblioteca do Departamento Estadual do Trabalho. Também atuou como correspondente do Correio do Povo e do Jornal do Comércio, no Rio de Janeiro, sendo também eleito membro efetivo da Academia de Letras do Rio Grande do Sul. Na exposição de motivos do Projeto de Lei de 2007, do vereador de Porto Alegre João Carlos Nedel para denominar como a “Rua Fernando Callage” o logradouro público conhecido como “Passagem Quintino” em Porto Alegre, há várias informações pertinentes para conhecermos melhor essa trajetória social, inclusive o próprio reconhecimento institucional, que o imortaliza com o nome de uma via pública. Através desse documento legislativo, é possível evidenciar que Fernando Callage escreveu diversas obras sobre o regionalismo sul-rio-grandense e também sobre a história social da Igreja Católica (Porto Alegre, 2007).
Esses dados revelam que os autores católicos eram polivalentes, na medida em que se dedicavam à escrita de manuais e livros em diversas áreas, que vão desde o campo literário e jornalístico até áreas mais correlatas com o ensino de disciplinas escolares (história, ciências, didática e psicologia), seguindo uma tendência mais ampla que encontramos entre os autores do período, apontando ainda para um baixo grau de autonomia dos campos disciplinares, como anteriormente afirmamos. Demarca-se uma posição de destaque desses autores junto à produção de bens culturais, a partir dos anos de 1920, transitando entre as regiões Sul e Sudeste do país, com destaque para o Rio de Janeiro, a capital política, onde se desenvolveu a maior parte dessas carreiras profissionais. Isso indica que, possivelmente, esses autores mantinham redes de relações sociais semelhantes, visto que Fernando Callage, Amaral Fontoura e Francisca Peeters faziam referência a Alceu Amoroso Lima como expoente da sociologia católica no Brasil.
O conjunto desses elementos nos ajuda a compreender a posição desses agentes no campo educacional brasileiro. Enquanto Amoroso Lima possui destaque como agente envolvido no campo político e educacional, os demais autores estão inseridos em espaços menos consagrados, porém relevantes para a divulgação dessa concepção de sociologia entre nós. Assim, tanto a docência no ensino secundário (Amaral Fontoura), normal (Francisca Peeters) e superior (Alcionílio), quanto a tradução e a adaptação de livros advindos do exterior (Guilherme Boing) e a divulgação em jornais (Fernando Callage) se fazem presentes na construção e na divulgação de uma sociologia católica no Brasil. Nesse sentido, é relevante demarcar que apesar de todos realizarem um trabalho intelectual, a rigor não poderíamos afirmar que todos são intelectuais no sentido estrito, pois em alguns casos a atividade intelectual é secundária com relação a outras atividades desenvolvidas.10
Essas trajetórias biográficas e sociais sugerem que, apesar de a sociologia católica não obter um lugar de destaque como conhecimento científico no interior dos primeiros cursos superiores no país, ela adquire força em outros espaços, como o escolar e o jornalístico, conferindo a possibilidade de tornarse um conhecimento legítimo sobre o discurso social da Igreja no espaço político e pedagógico do período.
Projetos e disputas no campo educacional brasileiro
Partindo da sociologia relacional dos manuais escolares, foram selecionamos quatro elementos que auxiliam na compreensão dessa concepção de sociologia no Brasil, uma vez que por meio deles é possível visualizar: a definição dessa concepção de sociologia, que se contrapõe a uma sociologia desenvolvida junto ao grupo de intelectuais franceses e norte-americanos que auxiliaram na fundação dos cursos de ciências sociais na Escola Livre de Sociologia Política (ELSP), em 1933, e na Universidade de São Paulo (USP), em 1934 (Miceli, 1989, 1995). É preciso salientar que os intelectuais católicos eram contrários à concepção de ciência social que se instaurou nesses centros de ensino, portanto, compreender a definição da sociologia católica é relevante na medida em que podemos, a partir dela, conferir os principais marcos históricos e conceituais de uma sociologia católica no Brasil; os teóricos e representantes sociais, elementos essenciais para a legitimação social e simbólica dessa concepção de sociologia; as preocupações, uma vez que é a partir delas que os autores vão caracterizar os principais agentes sociais, bem como as transformações no interior desses grupos que levariam a sociedade ao caos e à desarmonia social; e as prescrições sociais, já que a sociologia católica se constitui, sobretudo, em um projeto católico de sociedade.11 Essa categorização nos possibilita conhecer os projetos e as disputas no campo educacional, uma vez que os intelectuais católicos combatiam as ideias contrárias à moral católica ao mesmo tempo em que buscavam elaborar um projeto de sociedade cristã.
Ao analisarmos esses elementos, portanto, nos possibilita complexificar o exame das disputas no campo da sociologia no Brasil em seu processo de formação, uma vez que as análises que recorrentemente encontramos tendem a privilegiar o exame da sociologia universitária que se cristalizou como modelo científico no país (Miceli, 1989). Todavia, a análise do campo científico é também a análise das disputas, das estratégias traçadas e dos espaços de legitimação social e científica (Bourdieu, 2011). Considerando tais aspectos, o exame dos manuais se faz ainda mais pertinente, tendo em vista que naquele momento, no qual os cursos de ciências sociais ainda não haviam se consolidado, a publicação de livros e manuais escolares de sociologia era considerado como um dos principais espaços de legitimação do conhecimento sociológico.
Detalha-se cada um desses elementos a seguir.
A respeito da definição da sociologia católica, alguns livros e manuais apresentam uma preocupação em definir a sociologia católica como uma “sociologia filosófica” (Boing, 1938), “finalista” (Athayde, 1942), “integral” (Silva, 1942) em oposição à sociologia “naturalista” ou “positivista”. A diferença entre elas residiria no fato de que, para além da busca das leis gerais no estudo do “fato social”, a sociologia católica também compreende a sociedade moderna (pós-Revolução Francesa e Inglesa) como uma sociedade desorganizada, conflituosa, em que os papéis sociais (da família, do Estado e da Igreja) estariam postos em xeque e, portanto, propõe buscar uma ordem harmoniosa entre as instituições e classes sociais. Assim, o caráter da sociologia católica é prescritivo, uma vez que considera a existência de uma ordem social baseada na existência de um mundo sobrenatural (Athayde, 1942). Da mesma forma, se observa uma relativização dos marcos históricos definidos pelo positivismo, trazendo outros autores como fundadores da sociologia, tais como Aristóteles, Platão, São Tomás de Aquino, Le Play e os papas Leão XIII e Pio XI.
Assim, a história da sociologia é quase sempre relatada a partir de uma perspectiva da história das ideias, caracterizando uma divisão entre autores católicos, como São Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Le Play e Tristão de Athayde, daqueles não católicos, tais como Comte, Durkheim, Spencer e demais representantes do que os autores católicos chamam de “sociologista” e “materialista”.
De maneira geral, podemos caracterizar a sociologia católica formulada por esses autores como uma sociologia que detinha uma verdade baseada na ideia de uma lei natural que regia as instituições e a moral humana, e que se confronta constantemente com as transformações no nível econômico, político e cultural. Buscar explicações fora da concepção católica da vida social era ignorar a existência do plano divino, sobrenatural e natural da vida social.
Em síntese, a definição da sociologia católica, além de relativizar os autores considerados fundadores da sociologia, definem a sociologia como uma ciência especulativa e normativa, que busca constatar as leis sociais e também agir sobre elas. Assim, importava incluir uma uma parte filosófica que, conforme os dogmas católicos, teria por base a existência de uma verdade que naturalizava determinadas instituições sociais, como a religião monoteísta, a família nuclear e a divisão entre pobres e ricos, homem e mulher. Por fim, ainda ressaltava a existência de um plano sobrenatural, da imortalidade da alma e da felicidade dos homens como fim social.
Sobre os teóricos e representantes sociais, como destacado no tópico sobre a definição da sociologia, evidenciam-se no conjunto dos manuais e livros da sociologia católica diversos autores ligados ao cristianismo, com ênfase em São Tomás de Aquino e Santo Agostinho, assim como dos ensinamentos das Encíclicas Papais Rerum Novarum (1891) de Leão XIII e Quadragesimo Anno (1931) de Pio XI, inclusive trazendo trechos desses documentos no decorrer dos manuais. Também é possível evidenciar muitas referências a Karl Marx e Émile Durkheim e, com menor frequência, a Comte e Spencer, porém de maneira a refutar suas ideias. Fernando Callage (1939), inclusive, compara Marx a Satanás, destacando-o como principal inimigo da Igreja Católica. Evidenciamse também citações referentes ao circuito de consagração dessa concepção de sociologia no país, sendo Tristão de Athayde o autor mais referenciado entre os autores.
Mais especificamente sobre Marx, a crítica recai na seção dos livros e manuais que discute a parte econômica da sociologia. Essa questão ocupa grande parte dos livros analisados, já que voltam-se para a discussão sobre o modo de produção, o salário justo, as greves, as caixas de proteção familiares e, em alguns casos, os problemas que surgem entre patrões e empregados no que se refere às lutas e direitos relacionados ao trabalho nas fábricas. É justamente nessa questão que todas as teorias sociais sobre a economia -sejam elas liberalistas, socialistas ou comunistas e anarquistas- são criticadas pelos autores católicos, pois suas explicações voltam-se para outros pressupostos que não aqueles atrelados à superação do capitalismo, mas antes, pelo ajuste a uma ordem social harmoniosa, que alguns chamam de “ordem social solidária” (Boing, 1938) e outros de “distributismo”12(Athayde, 1942), onde possuem como pilares a família, o sindicato, o Estado e a Igreja trabalhando em conjunto para o bem comum.
Nessa ordem, não haveria espaço para o conflito, sendo, portanto, a sociologia católica uma sociologia do consenso, da ordem e da harmonia social.
177. Comunismo e sua refutação. “Nem se diga, continua o Pontífice, não ser legítima, a propriedade, porque Deus nos entregou a terra, a fim de todo o gênero humano sem exceção, gozar dela”. É verdade; mas, isto não quer dizer que dela pudessem ou devessem gozar, confusa e atropeladamente. É outro, o sentido desta verdade. Quer dizer, simplesmente, que Deus não delimitou o lote de cada um, em particular. E sim, deixou esta delimitação das posses individuais, ao jogo natural da indústria humana, e das organizações sociais (Lorton, 1926: 81-82; grifos do original).
Assim como Marx, Émile Durkheim também ganha evidência no conjunto das obras analisadas, embora com maior ênfase nos manuais escolares. Em Durkheim, a crítica recai principalmente sobre as constatações desse autor sobre a moral, a família, a religião e a organização social do trabalho. Por entenderem que a moral é advinda de Deus, os autores católicos não aceitam as explicações de Durkheim sobre a sociedade como reguladora da moral, da explicação histórica sobre a origem da família e principalmente sobre a origem da religião. Assim, os autores católicos, principalmente os manualistas, vão recorrer à Escola Histórico-Cultural para refutar Durkheim e suas constatações.
Sabe-se que essas tribos selvagens da África Central e da Malásia são consi- deradas as mais antigas do mundo e as mais rudimentares quanto à civilização (sobretudo depois dos estudos feitos “in loco” por Le Roy, que viveu numerosos anos entre eles). Conta-nos Le Roy, que os Pigmeus vivem “sem cidades nem aldeias, nem culturas, sem criação, sem indústria, vivendo unicamente da caça e do que colhem no mato”. E, no entanto, para decepção geral do totemistas, os pigmeus não conhecem o totemismo, e apesar de sua desorganização e selvageria totais, possuem uma família, estável, disciplinada, monogâmica e que reconhece os filhos, deles tratando cuidadosamente (Fontoura, 1944: 98).
O sociólogo francês que explica o passado pela alma coletiva feita de tradições, de crenças religiosas, de sentimentos comuns, quer que na sociedade moderna as funções diversas dos membros da sociedade criem laços sociais. Já sabemos pela doutrina católica do Corpo místico de Cristo que nesta “comunhão dos santos” os membros de Cristo se consideram como solidários uns dos outros, e são chamados a desempenhar as funções diferentes que realizarão a harmonia do corpo inteiro. Esta solidariedade sobre princípios sobrenaturais e de essência puramente espiritual, mas querer como Durkheim estabelecê-la sobre a divisão material do trabalho, ver nesta divisão a “base da ordem moral” é confessar a indigência duma moral que se pretende edificar sobre alicerces chatos. Não será nunca esta divisão do trabalho que substituirá os fundamentos providenciais, nem a caridade cristã. Só o Código proclamado por Jesus Cristo é que se podeá reconstruir o edifício social (Peeters, 1938: 131).
A Escola Histórico-Cultural é utilizada para justificar a existência de uma “lei natural” que, atravessada pela moral católica, estaria na base da consciência humana que organizaria a vida social tendo por base a felicidade dos homens e, por fim, o plano sobrenatural. Sobre a Escola Histórico-Cultural, Lorton (1926) afirma que ela foi criada pelo padre Schmidt, a qual mais tarde se filiaram outros pensadores da Alemanha, como Graebner, Strattman, e da Inglaterra, como Thomaz, Rivers e Addon.
De acordo com Melvina Afra Mendes de Araújo (2013), o padre Schmidt foi professor de etnologia e linguística nas universidades de Viena e Friburgo, e também doutor honoris causa pela Universidade de Viena e presidente da Sociedade de Antropologia de Viena, responsável pelo setor de etnologia da Exposição Missionária no Vaticano de 1925 e fundador da revista e do Instituto Anthropos. Schmidt, sobretudo, queria provar a existência de uma religião primordialmente monoteísta entre todos os povos a partir de pesquisas empiricamente baseadas. Para isso, elaborou um roteiro, “o guia para observações etnográficas”, no qual discorre sobre os tipos de dados que deveriam ser coletados e orientava a sua equipe e demais colaboradores interessados de como fazê-lo.
Como podemos observar, a Escola de Viena, nomeada pelos autores católicos de Escola Histórico-Cultural, foi relevante para afirmar as concepções da sociologia católica e ao mesmo tempo refutar os demais autores que concorriam para a explicação sobre a origem e o funcionamento da sociedade. Além disso, as Encíclicas Rerum Novarum e Quadragesimo Anno de Leão XIII e Pio XI são amplamente citadas no decorrer dos livros e manuais, pois tratam-se de documentos eclesiásticos que dão base para esses autores explicarem as “transformações maléficas” das mudanças nos planos econômico e político naquele momento. Além disso, as conclusões, ou estudos, desses intelectuais católicos não poderiam conflitar com as indicações das cartas encíclicas. Efetivamente, muitas discussões empreendidas por esses agentes no Brasil da primeira metade do século XX tinham como finalidade difundir os conteúdos de tais documentos.
Na Encíclica Rerum Novarum, publicada em 15 de maio de 1891, o Papa Leão XIII fala da degradante condição dos operários que sofrem com a ganância dos patrões que se perderam das diretrizes pregadas pela Santa Sé. A carta encíclica aborda também as soluções dadas pelo socialismo e pelo comunismo, ressaltando que a propriedade privada não é um direito adquirido, mas um direito natural do qual o Estado deve garantir e proteger. Trata também da importância da família e das associações e sindicatos católicos para restabelecer a ordem harmoniosa das classes, pregando que os homens deveriam aceitar com paciência sua condição social, pois “[...] é impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo nível” (Leão XIII, 1891). Sendo as diferenças sociais e habilidades e capacidades individuais questões naturais, a resolução, portanto, seria a caridade como meio de resolver os conflitos entre as classes, além, é claro, de os patrões pagarem um salário justo, aquele que seja suficiente para o mantenimento do trabalhador “justo e honrado” (1891).
Por sua vez, a Encíclica Quadragesimo Anno, de Pio XI, publicada em 1931, comemora o 40º aniversário da Encíclica Rerum Novarum, reafirmando várias de suas posições, principalmente do papel da Igreja como líder da reconstrução moral e econômica do século XX. O combate às teorias comunistas e socialistas também se apresentam com veemência, principalmente a essa última concepção, em que o papa Pio XI afirma ter o socialismo muitas semelhanças com o que prega a Igreja, mas que nunca poderá haver um socialismo católico e tampouco um catolicismo socialista, porque a base do pensamento da Igreja discorda em muito com o que prega a corrente socialista. A Encíclica também reafirma o papel da propriedade privada e da conciliação entre as classes sociais, instituindo a caridade como um instrumento de modificação das más condições de vida das classes trabalhadoras. Também reafirma, baseado em Leão XIII, o papel dos sindicatos católicos como instituições mediadoras entre os trabalhadores e os patrões.
Quanto às principais preocupações, os manuais escolares abordam de forma explicita os pontos a serem abordados pela sociologia católica, pois organizam o conteúdo de forma mais didática e ao redor de quatro áreas: sociologia doméstica, sociologia econômica, sociologia política e ciência, artes e religião sobre o ponto de vista sociológico. Essa estrutura se encontra tanto nos manuais analisados nesta pesquisa, como no caso de Lorton e Francisca Peeters, quanto por outros manuais produzidos nesse mesmo período (Passage, 1932). Nota-se que os livros acabam abordando mais enfaticamente a parte da sociologia econômica em detrimento das outras questões sociais, mas de maneira geral a família, o trabalho, o Estado e a religião são categorias presentes em todos os livros e manuais analisados. Assim, a partir da definição dessas categorias, os autores católicos abordam os problemas na sociedade moderna que afetariam o funcionamento e, consequentemente, a ordem natural e divina de tais instituições.
Sobre a família, descrevem que o divórcio e o feminismo integral seriam os principais problemas, pois afetariam a “ordem sagrada” do casamento e pregariam a igualdade no trabalho e na política, retirando a mulher do lugar natural de cuidado do lar e da prole. Assim, a família seria definida como “[...] a sociedade conjugal, formada pelos esposos, e a sociedade parental, formada pelos pais e os filhos”, e o matrimônio seria “[...] um contrato bilateral pelo qual um homem e uma mulher se dão um ao outro para fundar uma família” (Peeters, 1938: 42).
Os intelectuais católicos mencionam as transformações da sociedade hodierna em que o matrimônio se encontraria sob ataque, visto que o divórcio havia ganhado força como prática cultural. “O divórcio é uma ideia dissolvente. Os fatos e as estatísticas que se podem consultar o provam com toda a evidência” (Peeters, 1938: 47). Uma das questões abordadas é a dificuldade no terreno econômico e moral a qual as famílias estavam submetidas, pois a ordem social preconizada por esses autores é contrária não somente ao divórcio, mas aos processos de prevenção à gravidez, ao aborto voluntário, questões que “[...] hoje em dia fala-se abertamente e sem pejo de tão graves violações da lei natural” (1938: 50).
O entendimento da família como instituição natural e divina não permite aos autores da sociologia católica a compreensão mais ampla das transformações pelas quais passava essa instituição social ao largo entre os séculos XIX e início do século XX. Apesar de a mulher ter angariado diversas lutas no campo político, educacional e social nesse período, isso fazia com que tais mudanças fossem vistas por essa concepção de sociologia como o efeito nefasto das correntes do liberalismo, socialismo e comunismo no campo cultural. O papel reservado para as mulheres era na administração do lar e no cuidado dos filhos e, em alguns casos, nas profissões como o magistério, a medicina da mulher e em trabalhos que não prejudicassem suas “[...] aptidões físicas e psicológicas” (Fontoura, 1944: 159).
O trabalho é outra categoria recorrente, discutida na parte sobre a sociologia econômica nos manuais escolares e que ocupa um espaço de destaque entre os livros da sociologia católica. Assim, é evidenciada a influência do meio sobre a produção e o quadro social da produção, do qual discorrem sobre o papel da família, dos sindicatos, das cooperativas e da organização social católica. Além disso, a propriedade privada e a diferença entre as classes sociais são consideradas como leis naturais, sendo a caridade sau- dável para a harmonia da sociedade, na medida em que poderia evitar o conflito entre esses grupos. Além da caridade, a solução preconizada para estabelecer a ordem social está voltada para o desenvolvimento de uma economia de tendências mais modernas, sobretudo “[...] se os católicos souberem obedecer as sábias e luminosas diretivas que são contidas nas duas Encíclicas Rerum Novarum de Leão XIII e Quadragesimo Anno de Pio XI” (Peeters, 1938: 98).
A partir das diretrizes leoninas, sobretudo na Rerum Novarum, nos parece que há claramente uma transposição direta dessas questões no campo intelectual que refletiu na cristalização de uma sociologia católica, ou ao menos no esforço desses intelectuais de reafirmar as concepções da Igreja no espaço intelectual brasileiro. E a sociologia, enquanto ciência em desenvolvimen- to, permitiu essas abordagens visto sua fraca autonomia e incapacidade de refratar as imposições do campo intelectual e educacional brasileiro, que se apresentava dividido ideologicamente, entre autores católicos e renovadores que buscam, por meio das interpretações sociais positivistas, evolucionistas e teleológicas, fazer a leitura da realidade brasileira.
Por fim, sobre as prescrições sociais, os livros e manuais analisados prescrevem um projeto de sociedade, dado que a própria definição da sociologia católica comportava essa característica normativa. Assim, alguns autores apresentam o que seria necessário para alcançar o progresso e a ordem na sociedade idealizada pelo projeto católico. Enquanto os manuais de Francisca Peeters, Amaral Fontoura e Lorton buscam discutir uma saída para esses problemas via educação, guiada por meio de uma sociologia educacional católica, em que a Igreja tivesse um papel central como agente socializador de uma moral cristã, os livros são mais enfáticos com relação à pregação do Evangelho, ressaltando o retorno de Cristo como uma solução (Callage, 1939), ou ainda acrescidos da economia distributiva (Athayde, 1942), como possibilidade de resolver a crise no campo econômico.
Parece-nos que há diferentes proposições para restabelecer a “ordem social” prevista pelos autores católicos, uma vez que nos livros essa questão é atrelada à perspectiva teológica bíblica do retorno de Cristo à terra,13 enquanto que nos manuais a discussão se volta para uma educação moral em que a família, o Estado e a Igreja, em conjunto, trabalham na edificação de um projeto de sociedade organizada pelos preceitos da sociabilidade cristã, do qual a sociologia católica teria lugar de destaque, dado sua capacidade explicativa e organizativa do mundo social.
Nesse sentido, Francisca Peeters, Amaral Fontoura e Lorton discutem as diretrizes educacionais brasileiras, reafirmando a educação como palco para a socialização da juventude que respeitasse a “ordem natural” da vida social, e que fosse educada em consonância com ela. Uma sociedade dividida em classes sociais, com respeito à propriedade privada, à família tradicional e sua configuração “natural” da divisão dos papéis sociais entre homens e mulheres e à importância da Igreja e da moral católica, para a estabilidade da ordem social.
Ao descreverem o ciclo de desordem e caos, os livros e manuais acabam apontando uma solução, da qual o caminho correto a ser seguido seria o progresso social baseado com respeito às “instituições e leis naturais” estabelecidas por Deus e gestionadas pela Igreja na terra. O projeto de sociedade, portanto, é um projeto de recristianização (Meucci, 2017), organizado ao redor da família patriarcal, das classes sociais funcionando harmoniosamente, da propriedade privada como um direito divino e natural, da Igreja como única e verdadeira instituição capaz de guiar a sociedade para seu fim social e pelo Estado garantidor e mantenedor desses direitos e deveres.
Considerações finais
Essa concepção de sociologia apresentava uma dinâmica de produção que caminha em três direções e que dialogam entre si. A primeira busca explicar a realidade social a partir do ponto de vista católico sobre o funcionamento do mundo; a segunda visa combater as teorias socialistas, comunistas e liberais; e, por fim, a terceira direção é normativa ao descrever a resolução desses problemas por meio de uma perspectiva de recristianização da sociedade, que ganha diferentes dimensões na escrita dos livros e manuais escolares (Athayde, 1942; Peeters, 1938).
A partir da análise do cenário histórico da constituição do campo educacional brasileiro, podemos aferir que a sociologia foi um conhecimento utilizado pelos intelectuais católicos para afirmar e defender os interesses da Igreja no campo político e educacional. Livros e manuais escolares foram produzidos por diversos agentes, com distintas posições sociais no interior do campo educacional, entre os anos de 1920 a 1940, sendo Alceu Amoroso Lima o agente com maior destaque entre os autores analisados, até pelo fato de ele ser aquele que, dentre os agentes aqui analisados, cumpria o papel de intelectual mais a rigor. A relação deste com o campo político, cultural e científico fez com que ele fosse reconhecido pelos demais autores tratados na pesquisa como um dos líderes da sociologia católica no Brasil.
Além disso, o movimento empreendido pela sociologia católica de explicar, combater e prescrever, buscando legitimar o discurso da Igreja sobre o mundo social, deixava pouco espaço para o estudo e a investigação de outras temáticas para além daquelas orientadas pela Santa Sé, discutidas, principalmente, através das Encíclicas Rerum Novarum e Quadragesimo Anno. Os próprios conflitos ocorridos na França, local de origem de parcela do professorado que ajudou na fundação dos cursos de ciencias sociais em São Paulo e no Rio de Janeiro, eram contrários aos seus pressupostos. Assim, pensamos que a história da sociologia católica é pouco conhecida justamente porque, no decorrer das narrativas e da construção da memória das ciencias sociais no Brasil, a sociologia católica se enquadraria no que os autores definem como uma concepção pré-científica e pré-acadêmica. O motivo é que a concepção, nos planos da filosofia e da ação social, proposta pelos autores católicos não foram aceitas pelas regras do campo sociológico definido a partir dos anos de 1930, quando houve a criação dos primeiros cursos superiores de ciências sociais.
Podemos afirmar que a concepção de sociologia católica saiu derrotada em meio às disputas intelectuais travadas no campo das ciências sociais brasileiras ao longo do século XX, o que foi reflexo de uma maior autonomização desse campo científico. A sociologia passou a se rotinizar nas universidades, processo esse que se acelerou no Brasil a partir de 1968 com a Reforma Universitária, que instituiu o modelo de pós-graduação em vigor hoje em dia. Em que pese a relevância das instituições confessionais no campo acadêmico brasileiro (Casali, 1995), mesmo nos dias de hoje, pode-se perceber que tais instituições passaram a incorporar outra lógica de produção do conhecimento afinada com as “regras do jogo”, tal como ocorre com outros agentes que integram determinado campo (Bourdieu, 2005).
Podemos dizer que a lógica narrativa da sociologia católica deixou pouco espaço para o estudo e desenvolvimento de pesquisas, de métodos e técnicas de análise social. A sociologia católica, portanto, foi um conhecimento que respondeu às regras do campo religioso, do qual detinha uma explicação e uma resposta clara sobre os problemas sociais, que advinham do enfraquecimento da moral e dos costumes apregoados pela Igreja. Isso resultava na impossibilidade de questionar e problematizar, a partir de outras hipóteses, o porquê das mudanças sociais. Assim, podemos dizer que autores da sociologia católica estão mais preocupados em contestar as teorias sociais contrárias ao pensamento católico e em prescrever a volta da moral católica e do cristianismo como verdadeira solução para o conflito social do que dispostos a elaborarem outras hipótese de pesquisa que visasse ir além do que apregoava a Igreja no campo social, tornando-se uma sociologia condicionada pela moral católica.
Se enquanto ciência a sociologia católica não foi capaz de angariar espaço e reconhecimento, é na escola que ela encontra seu alcance potencializado. O mercado escolar mantido pela Igreja era vasto e diversificado, necessitando de materiais especializados para o ensino da sociologia, disciplina obrigatória entre os anos de 1920 a 1940 no currículo da escola secundária. Assim, pensando na ordem cronológica de publicação dos livros e manuais católicos no Brasil, temos, primeiramente, o manual de A. Lorton de 1926, publicado logo após a Reforma Luiz Alves Rocha Vaz de 1925, que incluiu a sociologia no sexto ano do ensino secundário, destinando-se aos interessados em obter o título de bacharel em ciencias e letras. A disciplina adquiriu o caráter de obrigatória para os demais cursos complementares a partir de 1931, com a Reforma Francisco Campo, mesmo ano em que se deu a primeira publicação do livro de Alceu Amoroso Lima. Nessa mesma década ainda foram publicados os livros de Guilherme Boing, Fernando Callage e o manual de Francisca Peeters.
Também temos que considerar que nesse período, apesar de o Estado ser laico, a cultura e parte da elite letrada brasileira não eram. Sinais de uma sociologia católica nas instituições públicas também eram recorrentes nesse período, conforme o estudo de Cristiano Bodart e Marchiori Cassiane da Conceição Ramos (2015), ao investigar o currículo de uma escola normal no município de Alegre, no interior do Espírito Santo. O que nos leva a pensar que grande parte dos professores responsáveis pela escola primária, secundária e normal eram egressos de instituições católicas ou eram advindos diretamente do clero católico, tal como indica o trabalho de Marecelo Cigales e Eduardo Arriada (2019) ao pesquisarem o corpo docente de sociologia da Escola Normal do Colégio São José na cidade de Pelotas, no interior do estado do Rio Grande do Sul.
Outro indicador relevante é a posição de pouco prestígio ocupada pelos autores católicos fora do circuito de consagração mantido pela Igreja Católica. A maioria dos autores analisados possui a carreira marcada pela docência e pela escrita de livros e manuais voltados para outras temáticas, quase sempre correlatas à educação e à defesa dos interesses da Igreja no campo político e educacional. Assim, podemos pensar que o esforço dos intelec- tuais católicos de maior prestígio, grupo do qual Alceu Amoroso Lima é representante, estaria mais voltado à concretização de uma pedagogia ca- tólica do que, especificamente, de uma sociologia católica, uma vez que a disputa pela constituição do campo educacional deixou pouco espaço para o estabelecimento da sociologia católica como campo científico. Por outro lado, a publicação do livro Preparação à Sociologia, em 1931, pode ter sido um marco para o desenvolvimento da sociologia católica entre nós, haja vista que, a partir dele, surgem outros livros e manuais que buscam sistematizar esse conhecimento no país.
As temáticas abordadas pelos livros e manuais escolares da sociología católica indicam que a Igreja desenvolveu um discurso sobre o mundo social assentado na defesa dos seus interesses no campo educacional. Essa concepção de sociologia defendia a compreensão de determinadas instituições sociais como naturais e divinas, pois não eram entendidas como o resultado do processo histórico-materialista ou funcional-estruturalista. Para compreender essas instituições, era necessário, primeiramente, saber a verdade sobre a origem e a função destinadas a elas, que era somente conhecida pelos católicos. Assim, as temáticas sobre a gênese e o funcionamento da família, do trabalho, do Estado e da Igreja eram vistas como indiscutíveis do ponto de vista natural e divino.