Introdução
Este artigo tem por objetivo central analisar os conhecimentos botânicos tradicionais de mateiros em comunidades rurais da região da Serra das Almas, Paraná - Brasil. Os estudos que abordam os saberes ecológicos tradicionais, como os de mateiros, caboclos, caipiras, entre outros, se inserem no âmbito das etnociências (em especial da etnobotânica) que busca delimitar como objeto de estudo os sistemas de classificações vernaculares de natureza. Os dados aqui relacionados são um compêndio de diferentes trabalhos desenvolvidos pelos autores entre os anos de 2014 e 2016 nas comunidades em epígrafe e que ainda não haviam sido reunidos e publicados. Trata-se de uma junção teórico-prática de um “almanaque” de saberes vernaculares, que tem por palco a relação sociedade/natureza, cuja apresentação se dá coordenada pelo olhar da ciência geográfica.
Conforme (Sturtevant, 1964, p. 475-476) “[...] etnobotânica é uma concepção cultural específica sobre o mundo vegetal [...]” com modos particulares de classificar seu universo material e social. Cada indivíduo apresenta uma forma de se relacionar com o ambiente em que vive, é influenciado por vários fatores que são tanto culturais, advindos dos costumes e transmissão de conhecimentos como também físicos, características singulares de relevo, clima, vegetação. Na mesma linha, Oliveira et. al. (2009) ao retratarem o avanço das pesquisas etnobotânicas no Brasil no período entre 1968 e 2007 apontam para a interdisciplinaridade da temática e chancelam que no país, tal qual ocorre com os demais países em desenvolvimento, os estudos acompanham a diversidade cultural, relacionando-se com o saber-fazer da população. Destarte, a etnobotânica é, por excelência, um campo interdisciplinar que coloca em órbita diferentes áreas do saber por meio da perspectiva cultural, especialmente interessado nos saberes tradicionais.
Segundo Diegues e Arruda (2000, p. 30) o conhecimento tradicional pode ser “definido como o conjunto de saberes e um saber-fazer a respeito do mundo natural, sobrenatural, transmitido oralmente de geração em geração”. Esse saber-fazer está ligado a um conjunto de conhecimentos advindos do senso comum e das relações sociais. Resulta dos vínculos de solidariedade, está em constante transformação, pois é enriquecido com as experiências individuais. Assim, o conhecimento tradicional atua em escalas: cultural (saber total), regional (território), comunitária (espaço apropriado por comunidade), doméstica (familiar) e individual (Toledo; Barrera-Bassols, 2008).
Referem-se a um complexo campo de relações sobre elementos naturais, sua dinâmica, seu potencial utilitário. Oliveira et al. (2009) apõem também que os saberes etnobotânicos servem às comunidades periféricas como uma potente ferramenta para geração de renda e aprimoramento da sustentabilidade ambiental. Assim, tais comunidades valem-se de estratégias que manipulam a paisagem natural, por meio dos diversos usos de espécies nativas ligadas às relações sociais, como: as festividades, sistemas de troca, costumes repassados ao longo das gerações. (Toledo; Barrera-Bassols, 2008). Em síntese, esses “[...] conhecimentos têm um valor substancial para clarificar as formas como os produtores tradicionais percebem, concebem e conceituam os recursos, paisagens.” (Toledo et al., 2008, p. 35).
Destaca-se a importância destes conhecimentos na manutenção das áreas florestadas e manejo das espécies. Conforme análise de áreas de diferentes comunidades tradicionais, Moro et al. (2018) concluem que a conservação de criadouros comunitários colabora para a conservação do Bioma da Mata Atlântica.
Nas comunidades de onde provêm os mateiros estudados, dentre as principais atividades que garantem a sobrevivência, elas adotam um peculiar modelo de agricultura familiar, quando evidenciam que suas relações com a natureza é mais que uma questão de sobrevivência, é uma relação de pertencimento com a paisagem. Dentre os moradores, se destacam alguns atores sociais de grande relevância para toda a região. Alguns são conhecidos como benzedores, associados ao ‘dom’ da medicina popular. Outros se destacam pelas habilidades em se locomover em meio à mata, alguns em encontrar solos férteis para cultivo, outros ainda na coleta e preparo de medicinais, outros sabem em que período e qual a melhor madeira para construir casas, artefatos etc.
Conhecendo as plantas, esses agentes, aqui denominados mateiros, atuam também como médicos populares em suas comunidades. Estes atores sociais reunem especialidades de benzedor, mateiro e vidente - prática em que é necessário possuir um dom específico (conferido por forças sobrenaturais) de modo que esse saber só é transmitido para as pessoas que sejam identificadas com esse dom (Borchardt; Colvero, 2013).
Caracterização da área estudada
A Região da Serra das Almas se encontra dentro do Bioma Mata Atlântica, em local de ocorrência da Floresta Ombrófila Mista Montana a Floresta com Araucária (VELOSO et. al., 1991). Pode apresentar variadas fisionomias devido aos diferentes estágios sucessionais que envolvem toda a área estudada, condicionados à diversidade geológica, pedológica, de relevo e de uso (Moro; Lima, 2012).
A denominação Região Serra das Almas tem a origem associada à paisagem em uma área que se encontra o limite dos municípios na zona rural de Palmeira, Campo Largo e Ponta Grossa, entre o Primeiro e Segundo Planalto no Estado do Paraná e situada nas proximidades da Escarpa Devoniana. Serra das Almas é como as pessoas denominam a região em que se inserem, sem uma razão histórica para tal.
As comunidades do Faxinal Sete Saltos de Baixo, localizada no município de Ponta Grossa e a comunidade Lageado Grande, localizada no município de Campo Largo, apresentam como característica espaços de uso coletivo, a área de criadouro de animais, onde estão também as moradias e os remanescentes da vegetação (Lowen Sahr; Iegelski, 2003). O criadouro é separado por valos e cercas das áreas de plantar, constituídas por parcelas de terras particulares com cultivo de milho, feijão, mandioca e outros gêneros alimentícios (Lowen Sahr; Iegelski, 2003). A comunidade Quilombola Palmital dos Pretos, localizada no município de Campo Largo, encontra-se em área íngreme, relativamente distante das demais, da qual retiram seu sustento da agricultura de subsistência (Celinski, 2010). Não há dados demográficos precisos da área em questão, haja vista que o último CENSO foi realizado no ano de 2010 e há um acentuado êxodo rural ocasionado especialmente pela expansão do agronegócio na região. Desta forma, os mais jovens da região pendem a migrar para a cidade em busca de trabalho.
Materiais e métodos
Após o contato inicial com os moradores das comunidades da região da Serra das Almas e a indicação dos potenciais informantes, foram realizadas as entrevistas semiestruturadas. A partir de cada entrevistado, foram citados outros nomes para serem entrevistados, inclusive envolvendo o intercâmbio com pessoas de comunidades distintas. Fala-se da técnica conhecida como bola de neve, quando as citações prosseguem até que as histórias comecem a se repetir, dando-se por exauridas as fontes de pesquisa. (Bailey, 1994 apudAlbuquerque et al., 2010).
Realizou-se também o emprego das etnometodologias conjugadas com algumas das ferramentas do Diagnóstico Rural Participativo - DRP (Verdejo, 2006), como o diagrama de Venn, a matriz de priorização de problemas, a construção de representações cartográficas com os entrevistados, a Matriz de Organização Comunitária, baseada na "FOFA" (Fortalezas, Debilidades, Oportunidades e Ameaças). A partir do contato com a comunidade, foram identificados os “informantes-chave”, isto é, sujeitos que participam de forma mais intensa da pesquisa (Albuquerque et. al., 2010). Indivíduos que são referências pelos seus saberes a respeito do ambiente local e pela experiência acumulada com plantas medicinais, todos homens, quais sejam: Informante A (59 anos) e Informante B (68 anos), moradores da comunidade Lageado Grande; Informante C (63 anos) e Informante D (92 anos) da comunidade faxinal Sete Saltos de Baixo e Informante E (67 anos) da comunidade quilombola Palmital dos Pretos. A pesquisa ocorreu no período de 2014 a 2016.
Realizou-se a coleta de material botânico por meio da turnê guiada (Albuquerque et. al., 2010), em uma caminhada com os informantes pela mata, buscando-se informações referentes ao conhecimento das espécies que se fazem presente e os usos de cada uma, complementando informações das entrevistas. A caminhada pela mata foi realizada individualmente com cada informante, que foi identificando as espécies, as quais foram coletadas e encaminhadas ao herbário da Universidade Estadual de Ponta Grossa, onde ocorreu a identificação de seu nome científico.
Os mateiros e a identificação das espécies arbóreas
Cada mateiro tem uma forma particular de se relacionar com o meio em que vive, guiados por valores humanos, religiosidade, solidariedade, modos de vida e características culturais diversas atreladas à sua localidade. Os mateiros das comunidades rurais da região da Serra das Almas não se autoidentificam como mateiros, mas possuem práticas que refletem os seus conhecimentos acerca dos ecossistemas locais e das espécies da floresta. Conforme Da Silva; Marangon e Alves (2011) o termo mateiro é comumente utilizado para denominar os experientes conhecedores locais dos ambientes florestais, os quais possuem habilidades específicas que constituem o que pode ser entendido como o saber mateiro.
Os saberes mateiros são diversos, estão relacionados aos processos naturais, à mata, ao solo, aos organismos vivos do ambiente local. Com a imersão e a observação participante na comunidade percebeu tratar-se de um conhecimento ágrafo, não necessita da escrita para sua transmissão, que ocorre de forma empírica, com a prática, na vivência, no cotidiano dos que buscam aprender, por meio dos itinerários compartilhados pelos anciões, em que plantas, formas de relevo e processos naturais funcionam como referências, determinando o calendário religioso, festivo e de cultivos.
A partir da turnê guiada foi possível identificar as espécies conhecidas e/ou manejadas localmente pelos mateiros da região. Além do nome popular, o mateiro passava outras informações como os usos atribuídos às espécies, tipo de ambiente a que pertenciam, se era mais úmido ou seco, e se a espécie era de crescimento rápido ou mais difícil de ser encontrada.
Identificou-se que eles usavam vários atributos para reconhecer a espécie, dentre eles estão as características das folhas, formato dos galhos, em seguida a cor do tronco, tipo da casca e cheiro da madeira. De acordo com Marchiori (1995), a identificação das espécies por mateiros, agricultores e outros agentes detentores de saberes tradicionais engloba elementos considerados secundários para a sistemática clássica, em especial a cor, aspecto da casca e os odores que exalam das cascas, folhas e outras partes vegetais. Entretanto, esses atributos seriam os mais empregados pelos saberes locais para identificar as espécies mais significativas e que lhes possibilitam maiores alternativas para suprir suas necessidades.
Resultados
Durante a caminhada com os mateiros foram coletadas 103 espécies com onze categorias de usos (madeira, medicinal, aromático, lenha, brinquedo, alimento, ornamental, religioso, utensílios, artesanato e uso não definido). O principal uso apontado foi o da madeira com 54 citações, seguido pelo alimento com 40 aparições, a lenha com 39, as de uso não definido totalizando 34 e 23 empregos medicinais (Tabela 1). O uso madeira, que se refere à construção, como categoria mais representativa do saber botânico tradicional dos mateiros, também aparece em outros trabalhos, como de Botrel et al. (2006).
Nome popular | Nome científico | Usos citados pelos mateiros | ||||
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Informante E | Informante C | Informante D | Informante A | Informante B | ||
Açoita cavalo | Luehea divaricata Mart. | Não Possui | Madeira | X | X | Madeira |
Aleluia | Tibouchina sellowiana Cogn | X | X | X | Ornamental Religiosa | Ornamental Religiosa |
Angico | Anadenanthera colubrina (Vell.) Brenan | X | X | X | Lenha | Madeira Lenha |
Araçá | Psidium longipetiolatum D.Legrand | Alimento | X | X | X | X |
Araçá | Psidium sp. | X | X | Alimento | X | X |
Araçá do campo | Psidium australe Cambess. | X | X | Alimento | X | X |
Ariticum | Annona sylvatica A.St.-Hil. | Alimento | X | X | X | X |
Aroeira | Schinus terebinthifolia Raddi | Medicinal e Madeira | Madeira | Madeira | Madeira | Madeira |
Bracatinga | Mimosa scabrella Benth. | X | Lenha | X | Lenha | Lenha |
Cabriúva | Myrocarpus frondosus Allemao | Medicinal | Medicinal | X | Medicinal | X |
Cafeeiro do mato* | Eriosema glabrum Benth. | X | X | Medicinal | X | X |
Cafeeiro, Cafezeiro ou Guaçatunga Preta | Casearia sylvestris Sw | Alimento | X | X | Não Possui | Lenha |
Caingá | Calyptranthes grandiflora O.Berg | X | X | X | X | Madeira |
Caingá | Myrcia hatschbachii D.Legrand | Não Possui | X | X | X | X |
Cajaranda | Cabralea canjerana (Vell) Mart. | X | X | X | Madeira | Madeira |
Cambuí | Calycorectes psidiiflorus O. Berg | Utensílios | X | Lenha | X | Lenha |
Canela | Cryptocarya aschersoniana Mez. | X | X | X | Madeira | Lenha |
Canela amarela | Nectandra lanceolata Nees & Mart. | X | X | Lenha | X | X |
Canela Amarela | Nectandra oppositifolia Nees & Mart. | X | X | X | X | Lenha |
Canela de alho ou pau de aho ou Capororoca | Myrsine ferruginea (Ruiz & Pav.) Spreng. | Não Possui | Lenha | Não Possui | X | X |
Canela Guaicá | Ocotea puberula (Rich.) Nees | X | Não Possui | Não Possui | X | |
Canelinha | Ocotea pulchella (Nees) Mez | X | Madeira | X | X | |
Carandá | Dalbergia brasiliensis Vogel | X | X | X | X | Madeira Lenha |
Carne de vaca | Clethra scabra Pers | X | Não Possui | X | Madeira e Lenha | Lenha |
Carova | Jacaranda micrantha Cham. | X | X | Medicinal | Não Possui | X |
Carvalinho | Casearia sp | Madeira Lenha | X | X | X | X |
Cataia ou Casca de anta | Drimys brasiliensis Miers | Medicinal Humanos e Animais | X | Medicinal | Medicinal Animal | Medicinal Animal |
Cedro | Cedrela fissilis Vell | X | Madeira | Madeira | Madeira Religioso | Madeira |
Cerejeira | Eugenia pitanga (O.Berg) Nied | X | Alimento | Alimento | X | X |
Chupeteira | Escallonia montevidensis (Cham. & Schltdl.) DC | X | Lenha | X | X | X |
Cipó estrivo | Machaerium cf paraguariense Hassl | Madeira | Não Possui | X | Não Tem | X |
Corticeira | Erythrina falcata Benth | X | X | X | Utensílio (Canoa, Monjolo) | X |
Criciúma | Indeterminada | Artesanato | X | X | X | |
Crindiúva | Trema micrantha (L.) Blume | X | X | X | X | Não Possui |
Cuvatã ou Miguel Pintado | Matayba elaeagnoides Radlk | Madeira Lenha | Madeira | X | Madeira | Madeira Lenha |
Cuvitinga | Solanum mauritianum Scop. | X | X | X | X | Alimento Aves |
Desconhecida | Frangula sphaerosperma (Sw.) Kartesz & Gandhi | X | Lenha | X | X | X |
Embiruçú | Pseudobombax grandiflorum (Cav.) A. Robyns | X | X | Ornamental | X | |
Erva-mate | Ilex paraguariensis A.St.-Hil. | Alimento | X | Alimento | X | X |
Espinheira Santa | Maytenus ilicifolia Mart. ex Reissek | Medicinal | X | X | X | X |
Farinha seca | Jacaranda puberula Cham | X | Lenha | X | X | X |
Fruitera de Porco | Eugenia pluriflora DC. | X | Alimento e Lenha | Não Possui | Não Possui | Alimento Lenha |
Gaviroveira | Campomanesia guaviroba (DC.) Kiaersk. | Alimento | X | X | X | X |
Gaviroveira | Campomanesia xanthocarpa (Mart.) O.Berg. | X | Alimento | Alimento Medicinal | Alimento | Alimento |
Grileiro | Não coletado | X | X | Não Possui | X | X |
Guaçatunga | Casearia inaequilatera Cambess | Diversos | X | X | X | X |
Guaçatunga Cambroé | Casearia obliqua Spreng. | Diversos | X | X | X | X |
Guaçatunga da folha miúda ou Guaçatunga | Casearia decandra Jacq | Diversos | Lenha | Lenha | Utensílio | X |
Guaçatunga ou Guaçatunga Graúda | Casearia lasiophylla Eichler | X | X | X | Lenha | Lenha |
Guamirim | Myrcia splendens (Sw.) DC. | Não Possui | X | X | Madeira | Lenha |
Guamirim da casca lisa | Eugenia ramboi D.Legrand | X | X | X | Utensílio | X |
Guaraperê | Lamanonia ternata Vell. | Não Possui | Lenha | X | X | Lenha |
Guatambu | Aspidosperma australe Müll.Arg. | X | X | X | X | Madeira |
Gurrupiero | Celtis iguanaea (Jacq.) Sarg | X | X | Não Possui | X | X |
Imbuia | Ocotea porosa (Nees & Mart.) Barroso | Madeira | Madeira | Madeira | Madeira | Madeira |
Imbuia branca | Ocotea sp | X | X | Madeira | X | X |
Ingá Feijão | Inga marginata Willd. | X | X | X | X | Lenha |
Ingaeiro miúdo | Machaerium stipitatum (DC.) Vogel | X | Madeira | X | X | X |
Ingaiero | Inga virescens Benth | X | Alimento | X | X | Alimento |
Ipê amarelo | Tabebuia sp | X | X | X | X | Ornamental |
Jaboticabeira | Plinia rivularis (Cambess) Rotman | X | Alimento | Alimento | X | Alimento Humano e Aves |
Jacaré | Piptadenia gonoacantha (Mart.) J.F. Macbr | X | Lenha | X | Madeira e Lenha | Lenha |
Juvevê | Zanthoxylum kleinii (R.S. Cowan) P.G. Waterman | Madeira | X | X | Não Possui | X |
Juvevê | Zanthoxylum rhoifolium Lam. | X | X | X | X | Madeira e Utensílios |
Laranjeira Brava | Randia ferox (Cham. & Schltdl.) DC. | X | X | X | Não Possui | X |
Leitero | Sebastiania brasiliensis Spreng. | X | Não Possui | Lenha | X | X |
Limoeiro Bravo | Citronella gongonha (Mart.) R.A.Howard | X | X | X | X | Não Possui |
Louro branco | Porcelia macrocarpa R.E.Fr | Alimento | X | X | X | X |
Maria Mole | Symplocos tenuifolia Brand | X | X | X | Medicinal | Não Possui |
Marmeleiro bravo ou Marmeleiro do mato | Dalbergia frutescens (Vell.) Britton | X | Madeira | Madeira | X | X |
Miguel Pintado | Cupania vernalis Cambess. | X | X | Madeira | X | X |
Monjoleiro | Acacia polyphylla DC. | Não Possui | X | X | X | X |
Murtera ou murta | Myrceugenia myrcioides (Cambess.) O.Berg | Madeira | X | X | X | Alimento |
Oreia de mico | Ilex theezans Mart | X | X | Madeira | X | X |
Orvalheiro | Eugenia pyriformis Cambess. | X | X | X | X | Alimento |
Palmeira | Syagrus romanzoffiana (Cham.) Glassman | X | X | X | X | Alimento Religioso |
Palmeira | Não coletado | X | Alimento | X | X | X |
Pau de Andrade | Persea pyrifolia (D. Don) Spreng. | Medicinal | Medicinal | X | Medicinal | Medicinal |
Pessegueiro bravo | Prunus brasiliensis (Cham. & Schltdl.) D.Dietr | X | Lenha | Lenha | X | X |
Pessegueiro Bravo | Prunus myrtifolia (L.) Urb. | X | X | X | X | Madeira |
Pimenteira | Cinnamodendron dinisii Schwacke | Ornamental | X | Madeira Medicinal | Não Possui | X |
Pinheiro | Araucaria angustifolia (Bertol.) Kuntze | Alimento (Pinhão) e Madeira | X | Madeira | X | Alimento (Pinhão) Madeira |
Pitangueira | Eugenia uniflora L. | Alimento | Alimento | Alimento | X | X |
Pororoca | Myrsine acuminata Royle | X | Não Possui | Lenha | Lenha | Não Possui |
Pororoca ou Papaventeiro ou Pororoca Graúda | Myrsine umbellata Mart | Ornamental | X | Medicinal | Madeira Brinquedo | X |
Quaresmeira | Myrcia arborescens O.Berg | X | X | Ornamental | X | X |
Quina | Solanum pseudoquina A. St.-Hil | X | X | Medicinal | X | X |
Sabugueiro | Sambucus sp | X | X | X | X | Medicinal |
Sapopema | Sloanea hirsute (Schott) Planch. ex Benth. | X | X | Madeira | X | X |
Sassafrás | Ocotea odorifera (Vell.) Rohwer | Aromatizante Medicinal | Aromatizante | X | Madeira | Madeira |
Tapiaiero | Alchornea triplinervia (Spreng.) Müll.Arg | X | X | X | Medicinal | Alimento Animais |
Tapiaiero* | Alchornea sidifolia cf. intermedia Pax & K.Hoffm. | X | X | X | X | Alimento Animais |
Tarumã | Vitex montevidensis Cham. | X | X | Madeira | Madeira | X |
Timbó | Lonchocarpus subglaucescens Benth. | X | X | X | Utensílio | X |
Timbó amarelo | Ateleia glazioveana Baill. | X | X | Madeira | X | X |
Timbó branco | Sp | X | X | Não Possui | X | |
Tiriveira | Campomanesia adamantium (Cambess.) O. Berg | Não Possui | Não Possui | X | X | X |
Tupichava | Baccharis sp | X | Não Possui | Não Possui | X | X |
Uva Japão | Hovenia dulcis Thunb. | Alimento | X | X | X | X |
Vacum | Allophylus edulis (A.St.-Hil., A.Juss. & Cambess.) Radlk | X | Alimento | Alimento | X | X |
Varana | Cordyline spectabilis Kunth & Bouché | X | Alimento | Alimento | X | Alimento |
Vassoreira | Bernardia pulchella (Baill.) Müll.Arg | X | Não Possui | Não Possui | X | X |
Voadeira | Ilex brevicuspis Reissek | X | X | Não Possui | X | X |
Fonte: Staniski, 2016.
Nota: O “x” indica que o mateiro desconhece a árvore ou não foi encontrada na comunidade em que vive; *O mesmo nome se refere a espécies diferentes entre as comunidades.
Em relação ao uso para madeira, as espécies mais mencionadas foram a Aroeira (Schinus terebinthifolia) e a Imbuia (Ocotea porosa), estas duas espécies aparecem nas três comunidades e foram apontadas por todos os entrevistados, no entanto, em Palmital dos Pretos a Aroeira apresenta uso diferenciado, como medicinal.
As madeiras mais utilizadas para fazer palanques ou construção também são as mais resistentes. Destas espécies é possível utilizar o cerne da madeira, este se forma com o passar dos anos e pode ser retirado após a morte natural da árvore. Segundo os moradores, os raios são frequentes e atingem as árvores mais altas, assim a floresta está em constante renovação e sempre tem lenha seca para uso doméstico nos fogões, item indispensável na comunidade no inverno para cozer os alimentos e aquecer a casa.
O uso da madeira se dá em relação à rigidez da mesma, com as mais duras sendo utilizadas para ferramentas, palanques e construção. Conforme relata o Informante C, o Ingaiero Miúdo (Machaerium stipitatum) e o Marmeleiro (Dalbergia frutescens) são utilizados para fazer “cabo” de ferramentas, apresentando tronco “rijo” (duro). Já as consideradas frágeis são utilizadas somente para “vara de galinheiro e para lenha”.
Para a alimentação as mais citadas foram Gaviroveira (Campomanesia xanthocarpa) e Jabuticabeira (Persea pyrifolia). A Gaviroveira também é citada em outros estudos (Strachulski; Floriani, 2013) como sendo de grande importância alimentar, tanto animal quanto humana.
Para o uso medicinal as mais encontradas foram as espécies Pau de Andrade (Plinia rivularis) e Cabriúva (Myrocarpus frondosus), não existindo espécies que forneçam óleos ou tintas. Estudo realizado por De Paula, et. al. (2009) e Dluzniewski e Muller (2018) destacam também o emprego destas espécies a partir do uso medicinal, sendo a primeira utilizada para tratar inflamações na bexiga e rins, diarreia e regular os intestinos. A Cabriúva é citada como uma das principais espécies utilizadas para tratamento de infecção e feridas.
Das espécies visualizadas durante a caminhada com os mateiros, algumas são citadas somente por uma pessoa. Assim, cinquenta e três espécies não se repetem, destas, dezesseis foram citadas somente por Informante D., quinze foram citadas por Informante B, doze citadas por Informante E, seis citadas por Informante C e quatro encontradas somente por Informante A.
Os usos e espécies mais comuns dentre os mateiros são: a lenha para Informante B que mostrou quinze espécies, já para o Informante A foi a madeira com doze espécies mencionadas. O Informante D citou doze espécies que podem ser utilizadas para madeira e o Informante C citou de maneira mais incisiva aquelas empregadas como lenha, totalizando dez menções. Para Informante E destacam-se as nove espécies utilizadas como alimento, seguido das espécies boas para madeira.
De acordo com os saberes mateiros, os usos que se destacam, classificados por comunidade são os seguintes: no Lageado Grande sobressaem os usos de madeira e lenha; na comunidade Sete Saltos de Baixo destaca-se o uso da madeira, lenha e alimento; e em Palmital dos Pretos são mais citadas as espécies para alimento, madeira e tendo o maior número de espécies coletadas com uso não definido.
Tais usos distintos envolvendo comunidades tão próximas remete a outra lógica de uso dos recursos naturais. Comunidades mais empobrecidas, como a de remanescentes quilombolas Palmital dos Pretos, aproximam o uso da natureza para fazer frente às suas necessidades alimentares e para cuidarem de suas respectivas saúdes, enquanto as demais se valem de tais recursos/saberes para práticas diversas que não necessariamente conectadas às demandas urgentes.
Inobstante, apesar de viverem num mesmo ambiente florestal, os mateiros possuem vivências particulares, o que revela distintos saberes e práticas de apropriação dos elementos naturais, o que lhes permite desenvolver diferentes estratégias de manejo da natureza local (Toledo; Barrera-Bassols, 2008), podendo explicar as diferenças na preferência maior por um determinado uso pelos mateiros e comunidades em geral.
Quanto ao uso da madeira aparece de forma clara durante a entrevista que a legislação é também facilmente burlada por quem tem maior poder aquisitivo. O morador fala dos pinheiros que tem plantado e que donos de serrarias já quiseram várias vezes comprar, ele diz “eu evito de cortá uma árvore, eu só corto se eu precisar, se não precisar deixa [...] deixo pro futuro, porque se eu vir a precisar eu tenho, não preciso comprar, se eu vender eu tenho que comprar, e ainda tá servindo de alimento” (Informante B, 2014).
Destarte, é possível perceber que há uma preocupação em não retirar espécies da mata a não ser que seja extremamente necessário. Atualmente cultivam algumas espécies nativas e exóticas para satisfazer as necessidades cotidianas, sendo elas respectivamente: a Bracatinga (Mimosa scabrella Benth), utilizada principalmente como lenha, e o eucaliptos (Eucalyptus grandis), utilizado para a construção. Alier (2018) destaca a importância dos saberes tradicionais para a conservação das florestas e da natureza como um todo, afirmando:
Há situações nas quais as percepções sociais, os valores, as culturas e as instituições locais têm retardado a exploração de recursos ao estabelecer uma concepção diferente do uso do espaço (por exemplo, reivindicando direitos territoriais dos indígenas) ou ao afirmar valores não econômicos (como o “sagrado”). (Alier, 2018, p. 77).
Quanto às espécies do criadouro, ambiente de vegetação de remanescentes da Floresta Ombrófila Mista, uma que representa perigo para os animais é o Pessegueiro bravo (Prunus sp.) - presente nas três comunidades estudadas - pois quando as folhas murchas são ingeridas por animais, principalmente pelo gado, causam inchaço, levando a morte. Os mateiros contam que suas folhas somente são tóxicas se tiverem sido retiradas das árvores. O conhecimento mateiro nem sempre é de ordem prática, pois conhecem o veneno, mas não o utilizam para nada. Desta forma, “[...] sua concepção, a priori, não é de ordem prática, pois corresponde às exigências cognitivas e intelectuais, ao invés de somente satisfazer suas necessidades orgânicas” (Strachulski, 2018, p. 264).
Mateiros locais: algumas percepções
Os mateiros demonstram conhecer as espécies de diversos estágios sucessionais, sendo que na tiguera e na capoeirinha estão plantas que servem como indicadoras da qualidade do solo, para alimentar os animais, medicinais como o “cipó milome” e arbustos que servem para fazer vassouras e objetos de uso doméstico. Nos estágios mais desenvolvidos da floresta está a maior parte das espécies que possuem uso nas comunidades, o que não ocorre nos estágios sucessionais iniciais, sendo que, apesar do conhecimento, em parte não são mais aplicados devido às alterações nas leis ambientais, como é o caso da extração de madeira para construção, espécies conhecidas como “madeiras de lei”: Imbuia (Ocotea porosa (Nees) Barroso), Cedro (Cedrela fissilis Vell.) e Miguel pintado (Matayba elaeagnoides Radlk.). Estas funcionam como pontos de referência para o deslocamento na paisagem.
A relação deles com a floresta não se dá de forma restrita, está associada a uma complexa interação relacionada ao uso do solo, a preservação das nascentes de água, quais espécies são alimentos para animais, aquelas de uso medicinal, religioso e o ambiente que estas se desenvolvem. As de ambiente seco desenvolvem-se nas “lombas” (regiões mais elevadas de uma vertente) e as de ambiente úmido se encontram presentes em áreas de “baixada”, próximas aos rios.
Outra característica observada é a dispersão das espécies, o Informante B aponta algumas das quais os animais consomem e transportam, como é o caso da Araucaria angustifolia (Bertol.) Kuntze, “transportada por cotias, esquilos, gralha-azul” ou se é propagada pelo vento, como é o caso do Jacaré (Piptadenia gonoacantha (Mart.) J.F. Macbr) e do Ipê amarelo (Tabebuia sp), já a fruta do Tapiaeiro (Alchornea triplinervia (Spreng.) Müll.Arg) serve de alimento para as pombas, os brotos do feijão atraem os “veados”.
Foi possível constatar a partir da participação em algumas ações e eventos locais, como um mutirão para a reforma de cercas do criadouro, que seu saber está atrelado a uma convivência pautada pelo respeito à natureza local. Para a realização dos consertos, verificou-se que nas áreas mais baixas, em que a cerca se estendia por dentro de um córrego, os moradores mudavam os pés de xaxim (Dicksonia sellowiana Hook.), plantando-os alinhados (Fig. 2). Isto faz com que formem uma barreira, uma cerca viva, para impedir os porcos de passar para as áreas de lavoura. Além da cerca durar por longo tempo, ela preserva e dissemina uma espécie ameaçada de extinção.
O mateiro age, dessa forma, para a preservação da natureza. No entendimento de Ferraz et. al. (2005), o saber botânico local é de suma importância para o planejamento de ações sustentáveis, pois é capaz de promover a conservação da biodiversidade, de modo a identificar pressões a que as espécies nativas estão submetidas, como no exemplo do Xaxim, conciliando suas necessidades materiais com a disponibilidade dos elementos bióticos do meio, fazendo um uso compatível com as potencialidades ambientais.
Nas áreas secas em que não há valos (buracos na terra), o conhecimento das espécies não pode ser aplicado. Segundo os mateiros, devido à legislação, só podem cortar “madeira branca1” para utilizar na construção da cerca. Tendo que ser renovada em um período de aproximadamente dois anos. Apesar das dificuldades, do esforço necessário para manutenção das cercas, a comunidade se mantém unida, buscando a manutenção do seu modo de vida e de seus saberes.
O Informante B deixa claro que esses saberes não são ensinados, “pois me criei no interior daí a gente aprende, eu ouvia os mais velho falar”, a pessoa se interessa e aprende no cotidiano sem necessariamente haver uma transmissão consciente e/ou induzida das informações. Desta forma, entende-se que os saberes mateiros não resultam somente da:
[...] transmissão de saberes de uma pessoa mais velha para outra mais nova, mas também o aprendizado que o sujeito tem pela curiosidade, a prática que leva a novas descobertas. Em sua grande maioria, os saberes são compartilhados por toda comunidade, contudo, há também aqueles que são fruto de suas subjetividades, da sua ação particular no mundo. (Strachulski, 2018, p. 31).
Nesta direção, a partir de seus saberes fortemente atrelados ao meio que os cerca e às suas subjetividades, alguns nomes populares são atribuídos devido às características específicas das árvores, percebidas pela vivência diária junto a floresta, como são os casos da Pimenteira (Cinnamodendron dinisii Schwacke) e da Canela de alho (Myrsine ferruginea (Ruiz & Pav.) Spreng.), que recebem tais denominações devido à proximidade que tem com o odor da pimenta e do alho, respectivamente.
Já o atributo cor é um indicativo da resistência da madeira, visto que as vermelhas são mais rígidas e mais procuradas para a construção, como a Imbuia (Ocotea porosa (Nees & Mart.) Barroso), a Aroeira (Schinus terebinthifolia Raddi) e o Tarumã (Vitex montevidensis Cham.). Segundo o Informante D, madeiras brancas são mais fracas, “duram um ano e poco” e apresentam outros usos.
Na caminhada com o Informante E, ele informou também o período de propagação das espécies e apontou até o período de flora, Uva Japão (Hovenia dulcis), Pau de Andrade (Persea pyrifolia (D. Don) Spreng.) apresentam sua florada a partir do mês de novembro até dezembro. Ele consegue diferenciar várias espécies que pertencem a mesma Família e Gênero, como por exemplo: Guaçatunga cambroé (Casearia decandra Jacq), Guaçatunga (Casearia obliqua Spreng.), Guaçatunga graúda (Casearia lasiophylla Eichle), Cafezeiro (Casearia sylvestris Sw). Assim, acredita-se que os moradores locais entendidos como mateiros, cada um com seu modo de ver a floresta, mas partilhando muitas vezes do reconhecimento dos mesmos atributos, consigam reconhecer a diferença até de subespécies que podem escapar aos especialistas.
Espécies medicinais e religiosidade
Dentre todos os usos mencionados, o medicinal é aquele que possibilita um contato mais expressivo com o mundo simbólico atrelado com as espécies vegetais. O saber de cunho medicinal (15 espécies) do mateiro une o uso de espécies arbóreas e a religiosidade para a cura dos sintomas mais recorrentes de moléstias dos moradores da região. Ao mesmo tempo em que se tem a ação do princípio ativo extraído principalmente por meio de chás e garrafadas, a oração é complemento essencial para potencializar seu efeito. A medicina popular resolve os males que afetam o corpo, podendo ser decorrentes de problemas físicos, ou o espírito, em que ambos acabam apresentando sintomas no corpo. Clarindo (2014) ao estudar a medicina popular das comunidades da região, a conceitua como um amálgama cosmo-mítico-religioso tradicional.
A respeito da relação entre a religiosidade da população local e o uso das espécies vegetais, infere-se que:
[...] sua estrutura social e suas práticas de produção estão intimamente relacionadas com processos simbólicos e religiosos que estabelecem um sistema de crenças e saberes sobre os elementos da natureza que se traduzem em normas sociais sobre o acesso e uso dos recursos. (LEFF, 2008, p. 94).
Nesse sentido, a religiosidade e o uso das espécies medicinais são de suma importância para os moradores da região da Serra das Almas, nas comunidades de Lageado Grande, Sete Saltos de Baixo e Palmital dos Pretos. Os mateiros possuem um significativo conhecimento acerca das plantas medicinais, inclusive são procurados por pessoas que vem de outras cidades (Piraquara, Curitiba e outras) para coletar algumas espécies como a Cabriúva (Myrocarpus frondosus), no entanto nem todos exercem benzeduras (um dom que pode ser transmitido entre as gerações).
Além dos mateiros há benzedeiras e um benzedor na região, os quais encerram em suas personalidades, além do elevado conhecimento no manejo da natureza para a formulação de remédios caseiros, conforme ilustra a Figura 3, o dom e a vocação para conciliá-los com distintos rituais de cura e proteção. Tais saberes fazem com que estas pessoas se tornem referências para a comunidade local e, não obstante, para pessoas de diversas outras regiões. Com efeito, a projeção de seus saberes é incalculável e remete a um empoderamento social peculiar, para além de uma possível (e dispensável, neste caso) validação institucional (Clarindo, 2014).
Alguns saberes relatados durante as caminhadas são de conhecimento coletivo, perpassam a dimensão do visível e apresentam significado religioso. É o caso das espécies citadas pelo Informante B., como a aleluiera (Tibouchina sellowiana), que floresce no sábado de Aleluia e o Pinheiro de São José (Araucaria angustifolia), que madura sua semente no mês de março. São espécies símbolos do catolicismo popular e referências ao calendário cristão dos moradores.
O Informante A apontou duas espécies de uso religioso, como a Aleluia (Tibouchina sellowiana) e a Palmeira (Syagrus romanzoffiana). As folhas da Palmeira são coletadas e levadas para benzer na missa de domingo de ramos. Essas folhas são guardadas por um ano até a data da próxima missa de ramos onde se coletam novas folhas para benzer e utilizadas para defumações do ambiente para proteção do lar. “A Aleluia floresce sempre na semana santa, ela varia com duas cor, flor roxa e branca, segundo a crença dos antigo, eu não me baseio nisso, tem ano que ela floresce com bastante flor roxa, vai morrer mais gente velha, quando floresce bastante flor mais branca do que roxa, vai morre bastante pessoa nova, eu não acredito nisso, mas é crença dos antigo”. (Informante A, 2015).
Já o Cedro (Cedrela fissilis), segundo o Informante A, pode indicar o local onde existiam casas. As pessoas “faziam uma cruz de Cedro verde e colocavam no portão. Ciência dos antigos, daí dizem que este broto viro árvore”. Explica que no passado (aproximadamente 30 anos atrás) quando passavam as procissões ou rezas, paravam em frente das casas que possuíssem a cruz.
Como símbolos da religiosidade local estas árvores podem ser consideradas “geossímbolos [...] uma forma de linguagem, um instrumento de comunicação partilhado por todos [...]” (Bonnemaison, 2002, p. 124), fazem parte da história coletiva da comunidade e da vivência das pessoas com a paisagem. Ademais, a medicina popular une o uso de espécies de plantas (nativas ou não) e a religiosidade para a cura dos sintomas mais recorrentes dentre os habitantes da região.
O Informante D. explica que existe diferença entre benzedura e simpatia, sendo a benzedura realizada por meio da oração, já a simpatia é com o poder das plantas, principalmente utilizadas para defumações. Em suas palavras “a defumação você vê, você confia nas erva, e o benzedô nas oração” (Informante D., 2015).
O Informante D. explica que existe diferença entre benzedura e simpatia, sendo a benzedura realizada por meio da oração, já a simpatia é com o poder das plantas, principalmente utilizadas para defumações. Em suas palavras “a defumação você vê, você confia nas erva, e o benzedô nas oração” (Informante D., 2015).
Com relação à simpatia, cada planta tem uma função, existem diversas plantas, para problemas do corpo, utilizadas como chá, para proteção e defumação. “[...] do mato tem socará de tocha, um espinho que dá sete cada um, um cacho bem grande e seis mais pequeno, aquele é bão pra defumação, o mais é remédio de horta [...] cada uma tem a sua vez, arruda é pra feitiçaria, o malefício, põe na defumação não te cala nada, o gengibre é pra tentação do coisa ruim, cada um tem o seu significado” (Informante D., 2015).
Os mateiros explicam o que as espécies da mata significam para eles: “uma natureza, uma beleza, que Deus deixou no mundo”. Informante D., benzedor, agricultor e mateiro, é referência local e diz ter ajudado inúmeras pessoas com problemas que vão desde hemorragias, picadas de cobras, doenças que médicos não descobriam solução, doenças de animais, simpatias e defumações para proteção. Relata que hoje os mais jovens não procuram mais esses conhecimentos e preferem buscar atendimento na saúde pública, com médicos. Porém, antigamente não era fácil acesso ao médico e todo mundo se curava com “remédio do mato”, com auxílio de um benzedor.
Quanto aos problemas do corpo, diversas plantas nativas e também as cultivadas em hortas são indicadas como remédio, compondo o conhecimento vernacular medicinal dos mateiros. Entretanto, como o foco era o conhecimento das florestas, foram coletadas e identificas apenas as espécies arbóreas (Tabela 01), tendo grande variedade e algumas sendo raras, de difícil acesso, por não ser possível transplantar algumas espécies arbóreas nativas para quintais.
Dentre as espécies arbóreas mencionadas como de uso medicinal, destaca-se a importância da Quina (Solanum pseudoquina), que foi coletada durante a caminhada com o Informante D., devido a seu uso medicinal que combate a febre e que não foi encontrada nas demais comunidades, como também não houve relatos sobre sua existência.
Das espécies citadas por mais de um entrevistado, destaca-se algumas peculiaridades, como da pimenteira (Cinnamodendron dinisii), utilizada pelo Informante D como medicinal para animais e também para madeira, mas que não recebe nenhum uso específico dos demais entrevistados.
Já o Tapiaiero (Alchornea sidifolia cf. intermedia) encontrada somente na comunidade Lageado Grande é utilizada pelo Informante A como medicinal, para combater a hipertensão. Para o Informante B, a espécie tem frutos úteis para alimentação dos animais.
O Sassafrás (Ocotea odorifera) na comunidade Lageado Grande aparece como bom para o uso da madeira. Para o Informante E de Palmital é excelente medicinal, o chá das folhas é utilizado para problemas diversos, principalmente para tratar infecções, e o chá da casca tem uso externo para feridas. Também pode ser usado na cachaça (aromático), na comunidade de Sete Saltos, Sassafrás é apontado pelo seu uso aromático na cachaça pelo Informante B.
Cataia (Drimys brasiliensis) foi coletada nas quatro caminhadas, todos conhecem seu uso como medicinal utilizada para tratar Garrotílho em cavalos. O Informante D. diz que a espécie é também conhecida popularmente como Casca de anta e é um importante remédio para os problemas respiratórios em humanos, esse uso também foi relatado pelo Informante E.
A Cataia é uma espécie medicinal de grande importância na região, pois é conhecida por todos os mateiros pesquisados, além de ser utilizada para tratar problemas de saúde tanto de humanos como de animais. De acordo com Amorozo (2002), os saberes sobre uma espécie medicinal e seus usos estão atrelados à disponibilidade. Nesse caso, a referida espécie aparece em todas as comunidades em que os mateiros moram, estando ao alcance de todos.
O saber da medicina vernacular é transmitido por pessoas que não realizam o benzimento. Este acontece com a troca de mudas, “receitas” de chás, compondo as práticas do dia-a-dia. Respeitam o meio natural não o vendo apenas como recurso, mas como protagonista de muitas crenças e costumes, guia das práticas desenvolvidas na região, onde é preciso pedir permissão para São João Maria2 para fazer um chá e é onde também os “dias de Santo” são respeitados.
Conforme se apurou na imersão junto às comunidades e no diálogo com os mateiros, as simpatias são de conhecimento coletivo dos moradores e muitas delas estão relacionadas ao calendário religioso como a recomendação das Almas, o dia de Sexta-feira Santa, em que são feitas simpatias para bronquite, a maioria delas relacionadas ao período “de quaresma”. As simpatias, benzeduras e o uso das plantas medicinais estão presentes em toda a região.
As festividades religiosas reforçam os laços de compadrio e parentesco e fortalecem também a propagação ou mesmo a manutenção da medicina vernacular, com “receitas”, trocas de espécies. Pois, configuram o momento de encontro, de doação, de solidariedade e de fé. Esta fé que na região da Serra das Almas não pode ser dissociada do elemento natural, da floresta local, do patrimônio natural que permeia as relações sociais, o cotidiano dos moradores. Desta forma, não é possível separar a medicina popular e do uso das espécies da floresta.
Considerações finais
A partir de sua apropriação material e simbólica, os mateiros das comunidades da região da Serra das Almas seguem seu continuum com a floresta, não se dissociando dela. Mantêm suas práticas tradicionais, seu modo de vida, fato que pode ser observado em sua religiosidade e cura de algumas doenças que estão atrelados a biodiversidade local.
O uso de espécies vegetais se constitui como parcela importante ao atendimento das necessidades cotidianas de energia (lenha), medicinal e alimentar. Ao mesmo tempo, devido à legislação, já não utilizam mais “madeira de lei” para construção ou para utensílios, apenas madeira branca, uso mais referenciado pelos mateiros. No entanto, apesar de não utilizarem mais “madeira de lei”, o saber sobre estas espécies permanece vivo na memória dos moradores e materializado em antigas casas.
Os mateiros locais são exímios e experientes conhecedores da floresta e das espécies vegetais arbóreas, vide a extensa listagem de espécies identificadas a partir de suas citações de uso. Seus saberes sobre as espécies medicinais apesar de serem os menos mencionados, são dos mais significativos, visto que estes atores sociais são referências, sendo procurados por pessoas de outros lugares para benzimentos e curas a partir das árvores.
Este estudo acerca dos saberes botânicos tradicionais dos mateiros locais contribuiu com o conhecimento da flora desta região, além de que oportunizou a perpetuação da valorização destes saberes. Não obstante, seu registro científico acaba sendo de suma importância para a sua propagação ao longo do tempo, evidenciando que seus saberes tradicionais não caíram no ostracismo e podem ser fundamentais na descoberta de potenciais da flora local.
Faz-se de grande importância também a capacidade do mateiro de gestão dos recursos naturais, em que seus saberes permitem o planejamento de ações sustentáveis, conforme já pontuaram alguns autores. Pois, são capazes de promover a conservação da biodiversidade, de modo a identificar pressões a que as espécies nativas estão submetidas, como no exemplo do Xaxim, conciliando suas necessidades materiais com a disponibilidade dos elementos bióticos do meio, fazendo um uso compatível com as potencialidades ambientais.
Resta, por fim, a compreensão de que os mateiros e as demais pessoas da região têm a natureza como uma forma de perpetuação de seus modos de vida. Com isto, adotam o tempo todo estratégias individuais e coletivas de preservação (mesmo que inconscientes) e com vistas a suplantar o avançar do agronegócio na região. Suas matrizes cognitivas próprias ensinam que é possível e necessário (re)pensar a vida, mesmo no atual contexto de modernidades múltiplas.