Na temática que engloba o acesso a direitos humanos básicos positivados na Constituição da República Federativa do Brasil, Rodrigo Nóbrega Farias, publica pela Juruá (Curitiba, Brasil), a obra Direito à saúde & sua judicialização (2018).
Antes de adentrar nessa luta garantista que reflete o coro legislativo que imprimiu a reabertura democrática no ordenamento jurídico pátrio, o autor destina esforços para discorrer sobre a política na democracia atual brasileira. Assim, no primeiro momento, intitulado A deliberação política no debate da democracia contemporânea, reflete um panorama que evidencia, a partir de uma análise filosófica, a crise de representatividade política que vem alcançando as democracias. Aqui podemos avançar na apresentação de Farias (2018) a partir do cenário atual brasileiro, principalmente ao pontuarmos movimentações populares organizadas nessa segunda metade de década que motivaram sucessivos atos de repúdio da sociedade civil, culminando no ápice: o impeachment da presidente Dilma Rousseff.
O advento do impeachment, realizado em 2016, traz à baila duas abordagens posteriores: o papel da participação e da deliberação política na democracia e a democracia digital. Com a consolidação da globalização e a expansão da internet, mais fácil é o estabelecimento de agrupamentos de pessoas dotadas de uma mesma ideologia ou pauta de intenções. Isso endossou e encorpou as lutas compreendidas como populares, mas passíveis de questionamento, contra o governo do Partido dos Trabalhadores. Diálogo, interação e visualização dos anseios populares deve corresponder a uma das pautas mais sensíveis da disputa presidencial que se avizinha no cenário brasileiro, claro sem esquecer de plano nacional de desenvolvimento, defesa da soberania nacional e combate à corrupção institucionalizada.
“O direito fundamental” à saúde apresenta de modo pioneiro a função dos direitos fundamentais na vida dos indivíduos como sendo “impor limitações referentes aos abusos cometidos pelo ente estatal, diante da utilização indiscriminada de seus próprios poderes, através de suas autoridades constituídas”.1 Desse modo, quando a Carta Constitucional aduz que “são direitos sociais a educação, a saúde...”,2 conforme redação do seu artigo 6º, automaticamente atribui ao Estado a obrigação de garantir ao cidadão o acesso a esse direito. Mais a frente, no seu artigo 23, II, expressa que compete à União, estados, Distrito Federal e municípios “cuidar da saúde...”.3 Todavia, apesar dessa positivação realizada, o regramento impresso não é no todo exercitado pelo ente estatal e pelas suas autoridades, o que gera um dano ao direito assegurado constitucionalmente.
As políticas públicas são evidenciadas como instrumentos relevantes para o alcance e gozo desses direitos fundamentais. Muitas dessas ações de fato contribuíram para a minimização dos reflexos causados pelo não acesso à saúde, mas, no todo, não extinguiu o problema. Associado às políticas públicas, como evidencia a etapa “controle judicial das políticas públicas”, o ativismo judicial se apresenta como mecanismo impositivo ao gestor público na condução de investimentos na saúde pública, em atendimento às legislações específicas, bem como na determinação que o Estado arque com os custos na aquisição de medicamentos, cirurgias e tratamentos de pessoas que acionam a justiça na busca do exercício do direito prescrito no texto constitucional. Uma barreira para o ativismo judicial nessa seara corresponde à questão orçamentária, principalmente em tempos de crise econômica, quando então são evocadas questões como individual x coletivo, reserva do possível x mínimo existencial, proporcionalidade x razoabilidade x eficiência.
Associado a questão do garantismo que permeia a concepção de constitucionalismo pátrio, é importante destacar instituições que correspondem a “atores institucionais da judicialização da saúde (que juntos fomentam) a necessidade do diálogo institucional e da abertura democrática”, tais como Judiciário, Executivo, Ministério Público, Defensoria Pública, sociedade. A conscientização dos direitos inerentes ao cidadão corresponde a função da sociedade imediatamente apontada pelo autor do estudo aqui em tela. Assim, cabe a sociedade, conhecendo os seus direitos, pressionar os poderes e instituições existentes para que os mesmos deixem de ser meras positivações e passem a ser exercícios em plenitude.
Ao tratar do “financiamento público da saúde no município de João Pessoa”, situado no estado da Paraíba, Brasil, o autor destaca a responsabilidade das três esferas estatais no trato para com a saúde, pois o sistema federativo brasileiro exige o custeio da saúde por parte da União, estados e municípios, em que pese a União centralizar parcela substancial das receitas públicas, cabendo a ela o repasse para os demais entes. Como forma de fundamentar sua argumentação, destaca que 70% da carga tributária brasileira é concentrada em cinco impostos, dos quais quatro são de competência da União. Em paralelo, o autor explicita o complexo sistema de receita do município de João Pessoa e a evolução arrecadatória ao longo dos últimos anos.
Necessário destacar que o município de João Pessoa, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),4 é o 24º município com maior população no Brasil e possui a 29ª maior densidade demográfica do país, cuja renda média é de 2.6 salários mínimos, salário referência de 2016, ou US$ 592,39 ou apenas o 406º município com maior renda.5 Ou seja, é um município relativamente pobre com uma população elevada e que demanda um elevado número de serviços públicos.
Como forma de demonstrar a efetivação da saúde, a obra questiona o fenômeno da “judicialização da saúde e o município de João Pessoa”, ou seja, as ações propostas em desfavor do município de João Pessoa em razão da busca pelo Judiciário para garantia e concessão de medicamentos, cirurgias, exames, insumos e suplementos alimentares, como meio de cumprimento do texto constitucional. Ocorre que a constante judicialização, seja por pressão e lobby da indústria farmacêutica, seja para a implementação de deveres assumidos constitucionalmente, gera um desequilíbrio no Sistema Única de Saúde e consequente desorganização das políticas públicas. Como forma de reforçar esse argumento, destaca o custo da saúde por habitante correspondeu, no ano de 2013 a R$ 672,30, ao passo que o custo por autor foi de R$ 29.548,47, ou seja, o custo da judicialização por indivíduo corresponde a quase 44 vezes o custo do sistema em relação ao número total de habitantes.
Considerando a distribuição qualitativa da prestação jurisdicional, terseia a seguinte distribuição:
2011 | 2012 | 2013 | |
Medicamentos | 57,70% | 45,40% | 46,45% |
Cirurgias | 23,07% | 23,56% | 17,98% |
Exames | 5,77% | 2,30% | 8,99% |
Insumos | 4,49% | 6,32% | 16,86% |
Suplementos alimentares | 6,41% | 15,52% | 4,86% |
(TABELA NOSSA)
Ao tratar do perfil das demandas, destaca que muitos medicamentos sequer constam no rol do SUS, de sorte que as demandas estão pautadas em laudos particulares ou sequer consta uma receita médica para embasar o pleito judicial.
O Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba, de acordo com o posicionamento apontado pelo autor, tem proferido decisões que obrigam a administração municipal a custear medicamentos que não compõem sua esfera de competência ou que sequer possuem previsão de distribuição pelo sistema público de saúde.
A crítica à judicialização e financiamento dos direitos já vem sendo tratada na doutrina e jurisprudência brasileira, notadamente por Scaff,6 Timm,7 Lopes,8 Galdino,9 além de também ser objeto de preocupação na doutrina estrangeira como Álvarez, Sojo,10 Abramovich e Pautassi11 e Arcidiácono e Gamallo.12 A obra apenas reforça essa preocupação, notadamente por inviabilizar as políticas públicas e por criar desequilíbrios na gestão estatal.
Ao tratar dos agentes na condução da política pública de saúde, a obra destaca a participação fundamental dos Conselhos de Saúde (CS) e Orçamento Público Participativo (OPP). Os primeiros seriam espaços públicos locais de natureza deliberativa e consultiva formados pelo Estado e pela sociedade civil organizada cujo objetivo é a formação e controle de execução de políticas públicas. Já o Orçamento Participativo seria, de acordo com Amaral, um mecanismo de governança democrática e cooperação que garante protagonismo aos cidadãos ao permitir o debate e viabilizar a consulta popular nas decisões administrativas, notadamente ao efetivar os princípios administrativos da transparência, eficiência e efetividade das políticas públicas.
No tocante às dificuldades na construção da política democrática na saúde, há o destaque às divergências sociais das políticas públicas exigidas, além da partidarização do orçamento participativo e falta de legitimidade dos representantes sociais e participantes principais nos OPP.
Como alternativa às deficiências e dificuldades apresentadas, o autor propõe o reforço às participações virtuais, notadamente por maximizar a participação social, além de democratizar, ainda mais, a atuação coletiva, permitindo a oitiva de múltiplos setores da heterogênea composição social. Para tanto, justifica o uso das redes sociais como Facebook, Twitter, Instagram, Youtube e Google+ como instrumentos de participação social, conforme se observa da articulação da juventude em torno das manifestações políticas de 2013. Esse fenômeno do uso da democratização virtual já vinha sendo observado por outros autores como Gomes13 e Maia,14 porém adquiriram fundamental relevância a partir do processo de 2013.
Destarte, é visualizado que o ativismo judicial corresponde a importante ferramenta quanto tratamos de efetivação de direitos positivados, mas ainda não viabilizados pelo Estado. Como destacado pela obra aqui suscitada, o Estado deve abandonar essa sua condição de violador de direitos e construir uma pauta de garantia de direitos. Para essa mudança de perspectiva, o Judiciário corresponde a importante colaborador. Ativismo judicial garantista, eis o desafio do Judiciário brasileiro na atualidade.