O que meu pai e minha mãe protegiam não era os meus direitos de criança, mas as normas sexuais e de gênero que haviam sido inculcadas dolorosamente neles mesmos, por um sistema educativo e social que punia toda forma de dissidência
Paul Preciado
Introdução
A epígrafe que abre este artigo tem por finalidade enunciar dois elementos que este trabalho se propõe analisar, a ideia da infância sob os estudos de gênero e sexualidade e os dispositivos que produzem e articulam tais categorias. No enfoque a proteção à criança, existe atualmente uma circulação e uma produção de práticas, discursos, medos e emoções que assentam uma hegemônica normatividade de gênero e sexualidade para esse período de vida. Para isso, propomos uma reflexão sobra as práticas de prevenção e punição à “violência sexual”5 contra crianças e adolescentes a fim de entender como os sujeitos e os corpos destes sujeitos se constituem e se configuram diante desta trama política.
No caso da proteção de crianças e adolescentes, estes sistemas sociais, estão traduzidos em diversas práticas como as políticas públicas destinadas a proteção da criança e do adolescente, leis, discursos científicos como da pedagogia e da psicologia, abrigamento em instituições de educação e guarda (escolas, creches, orfanatos e etc.). E por fim incluem-se, também, práticas investigativas para punição de possíveis crimes perpetrados contra crianças e adolescentes e é sobre este último que este artigo irá versar, pois versar sobre a “violência sexual” na infância, significa adentrar num campo polêmico e polissêmico que mobiliza discursos e práticas que caminham concomitantemente para demonstrar que “a sexualidade, assim como o gênero, é política” (Rubin, 2017, p. 127).
Para isso, acompanhamos em uma delegacia, investigações criminais realizadas a partir da denúncia de possíveis crimes de estupro contra crianças e adolescentes. E, para fins do presente texto, selecionamos algumas cenas que demonstram de que forma as políticas de “prevenção” e punição à “violência sexual” podem também se constituir sob liames que normatizam e enviesam gênero, corpo e sexualidade na infância.
Nesta análise partimos do referencial teórico-analítico de Foucault sobre os dispositivos da sexualidade (Foucault, 2015) para entender de que maneira a infância é produzida a partir de ideais normativos condicionados por regimes de verdade amplamente estabelecidos no interior de práticas discursivas. E no caso das investigações criminais propomos colocar em evidência os modelos normativos que operam em práticas investigativas e punitivas. Pois, “há regimes diferentes de poder que produzem os conceitos de identidade sexual e a correspondente relação mimética entre gênero e sexo” (Toneli, 2008, p. 69).
Infância, gênero e sexualidade: entre dimensões teóricas e críticas
Articular infância6, gênero e sexualidade é adentrar na tensão de uma temática composta por ideias que se complexificam na medida que se entrecruzam. Isso implica entender que se trata de um ponto de vista matizado, habitado por inúmeras ideias e perspectivas que explicam ou não a possibilidade de intersecção entre tais temáticas. O desafio é a possibilidade de problematizar a uniformidade e universalidade da concepção de “infância” que carrega também um viés da sexualidade e das relações de gênero marcado por estas concepções. Além disso, em muitas das análises e pesquisas realizadas está presente a ideia de que a sociedade não é apenas androcêntrica, mas também adultocêntrica (Saffioti, 2001) e em grande medida, são raras ainda as iniciativas que investem analiticamente nas intersecções entre gênero e infância (Minella, 2006).
Sabemos que há muito a avançar para compreensão da categoria “infância” enquanto categorial social plural e não universal7, do tipo geracional composta e atravessada pelas diferenças de classe, gênero, geração, raça, etnia e geografia (Pretto & Lago, 2013). É mediante a premissa da impossibilidade de tornar a criança objeto passivo das práticas sociais, culturais, educacionais e políticas, que conseguimos abarcar os fenômenos supracitados.
Diante de todas as categorias necessárias ao debate, a relação entre corpo, sexualidade, gênero e infância, está presente na vida social sob as mais diversas formas. Expressões como “a criança não tem malícia”; “a criança é um ser puro”; “a criança não tem sexualidade”, ou mesmo a ideia contraditória de “preservar a sexualidade e o corpo da criança” são ainda comumente reproduzidas e demonstram que há “uma vigilância constante em dominar os corpos infantis e suas expressões de sexualidade” (Xavier Filha, 2016, p. 86). Além disso, nos fazem pensar que “diferentes teorias de gênero não coabitam apenas no debate acadêmico e intelectual, mas estão presentes nas práticas e discursos sociais e também políticos” (Maluf, 2006, p. 2).
Se por Foucault (2015) a sexualidade é um dos dispositivos de controle por meio do qual a sociedade atua, formando e produzindo o sujeito em uma determinada direção, a infância torna-se local legítimo para reprodução de tais domínios. Por isso, entender o gênero como uma forma primária de dar significado às relações de poder (Scott, 1989) nos possibilita apreender como e quando os diversos dispositivos reproduzem práticas e visões hegemônicas que privilegiem uma certa preponderância universal do gênero para a infância. Algumas produções acadêmicas (Freire, Sabarenese & Branco (2009); Ribeiro, (2006); Muylaer, Delfini & Reis (2015); Fornari, Sakata-So, Egry & Fonseca (2018), por exemplo, demonstram que existe uma matriz composta pela naturalização dos sistemas que normatizam o gênero na infância. Além disso, a grande maioria das pesquisas que tratam da relação entre gênero e infância, reificam a ideia binária do sexo em seus estudos, quando realizam trabalhos em sistemas institucionais e estes sistemas também privilegiam esta perspectiva, demonstrando que dimensões teóricas e críticas sobre infância e gênero podem também apresentar dissonâncias8.
Isso nos ajuda a entender que as coordenadas constitutivas do campo da sexualidade na infância têm como corolário a reconfiguração e o estabelecimento de um campo discursivo que coloca em cena enunciações sobre a sexualidade. Tais enunciações só são possíveis mediante um jogo de poder que insere a sexualidade como sendo um dos seus instrumentos de controle (Foucault, 1987). Portanto, a sexualidade enquanto produção constituinte no interior de um conjunto heterogêneo de práticas discursivas ancoradas em modelos de poder-saber (de leis, de pressupostos científicos, religiosos, filosóficos, etc.) opera mediante a constituição de processos de subjetivação. E tais processos, são oriundos de modelos derivados de uma tradição teórica idealista que instituiu modelos de poder e saber para se pensar gênero e sexualidade na infância.
Ao nos voltarmos aos estudos de Preciado (2014) entendemos a necessidade de ampliar a analítica que reside na operação dos regimes sexuais entre infância e gênero, pois segundo ele, a criança é o “álibi que permite naturalizar a norma”. Crianças “estranhas”, meninos que se travestem, crianças que possuem dúvidas sobre o sexo, meninas que não fazem brincadeiras esperadas para o seu sexo (ou, que não gostam de rosa como a grande maioria) e que não reproduzem relações tipicamente “gendradas” (Lauretis, 1987) entre outras, requerem atenção, pois não se enquadram na racionalidade moral e científica estruturada através da grande preocupação com a infância. A infância é particularmente especial, pois refrata os dispositivos de sexualidade que sustentam o regime sexual vigente pautado através da unicidade e coerência da experiência do gênero e da sexualidade sob seus corpos. Nesse sentido a “criança é um artefato biopolítico que garante a normalização do adulto” e assim “a norma faz sua ronda em torno dos corpos frágeis” moldando e designando modelos de ser a agir nos corpos destes sujeitos (Preciado, 2014, online).
Segundo Ferreira (2016), as crianças que não se adequam à norma do campo de elaboração de experiências consideradas legítimas e, mesmo inteligíveis, acabam ficado expostas a possibilidade de serem expurgadas da própria política de proteção à infância, dado que os adultos querem proteger as próprias normas que os ensejaram e constituíram (Preciado, 2014). Veremos no próximo tópico como a proteção à infância e a preocupação com a “violência sexual” torna-se objeto normativo desenvolvido e amparado em nome das crianças. Por isso, aqui a elaboração do diálogo entre gênero, sexualidade e infância, é entendido como produção situacional que nos permite focar a ação política destas categorias a partir da análise dos mecanismos de poder que engendram essas produções.
Considerando então que o gênero é constituído e constituinte de relações de poder (Butler, 2003) quando se afirma “é um menino!”, não estamos descrevendo um menino, mas criando um conjunto de expectativas para aquele corpo que será construído como menino (Bento, 2011). E muitas das crianças são destinadas a se tornarem heterossexuais, submetidas a um conjunto de normas que as acompanha desde o nascimento e atravessa inclusive todas as ações a elas destinadas, como veremos adiante nas tramas das investigações criminais.
Sobre as tramas das investigações criminais
Atualmente no Brasil, uma das intervenções possíveis e mais imediata - além de obrigatória - diante de crimes ou da possibilidade de ocorrência de “violência sexual” contra crianças e adolescentes é o âmbito processual-penal. A questão imediata e obrigatória reside na intervenção legal, que ampara a realização de investigações criminais em casos de denúncia, fazendo com que a família, a sociedade e o Poder Judiciário tomem medidas a fim de proteger e amparar os sujeitos que são vítimas de tais crimes.
De imediato, um crime sexual praticado contra uma criança pode se ajustar em diversos tipos penais, que vão se enquadrar conforme a tipicidade do crime e a forma que ele ocorreu. O Dispositivo Constitucional Brasileiro (Constituição do Brasil, 1988), deu ensejo a uma vasta legislação protetora da infância (Lei nº 8.069, 1990) e se encarregou de destacar garantias e prever punições para os casos de inobservância de crimes deste tipo.
Considerado como crime hediondo, ou seja, um crime que merece maior reprovação por parte do Estado, o crime de estupro contra crianças e adolescentes, é permeado por inúmeras questões e dinâmicas para os sujeitos que vivenciam o processo através do aparato processual-penal. O primeiro passo para que uma possível “violência sexual” ingresse no sistema de justiça é a realização da notificação9 para algum dos sistemas de garantia de direitos.
Após a notificação, são realizados procedimentos (como a escuta de depoimentos) em uma delegacia. A delegacia fica responsável em entender a dinâmica da denúncia e principalmente da autenticidade de tal denúncia. São cuidados que precisam ser tomados a fim de resguardar as precauções legais ao processo e também para resguardar todas as partes envolvidas na notificação.
Somente inicia-se o recebimento da denúncia, após a realização da devida investigação criminal, que, por sua vez, visa trazer indícios suficientes ou não da autoria do crime. A denúncia é o caminho necessário e fundamental para se chegar à uma sanção penal e requer que sejam asseguradas e observadas normas previstas no código de processo penal e nos direitos constitucionalmente assegurados ao acusado e à vítima (Dobke, Santos & Dell´aglio, 2010). É neste contexto que propomos descrever a seguir como o gênero é produzido nas investigações criminais de “violência sexual” contra crianças e adolescentes e como as relações de poder constroem e/ou dão visibilidade a corpos e subjetividades diferentes da norma.
Acompanhando cenas
Era uma segunda-feira à tarde, a delegacia havia recebido uma requisição do Ministério Público e naquele momento nada fora do comum acontecia. Naquela tarde, ao conferirem o documento em requisição protocolada, todos ficaram surpresos. Tratava-se de um possível crime que aconteceu no passado, há cerca de oito anos atrás. Como a delegacia dispunha de psicólogos-policiais para auxiliar nas investigações criminais, a psicóloga-policial responsável foi chamada para acompanhar o caso e ficou responsável por realizar algumas ações.
A inquietação da requisição se tratava da necessidade de um levantamento aprofundado e preciso referente a uma “violência sexual” perpetrada contra uma criança que tinha 10 anos de idade quando o crime ocorreu. Ao tomar conhecimento de tal solicitação, toda a trajetória da denúncia é aberta e se descobre que quem estava por trás da denúncia era a própria vítima, agora com 18 anos de idade. Agora com a maioridade, a vítima havia procurado a promotoria de justiça para denunciar e processar seu abusador.
Tal solicitação é recebida com espanto, pois, até então, a delegacia nunca havia presenciado tal desenlace de um crime perpetrado há tanto tempo e nos documentos, estava descrito aquilo que impulsionava o adolescente a “buscar justiça”. O denunciante, então com 18 anos, procurou o Ministério Público para denunciar o crime praticado contra ele, sob a alegação de ser gay por conta do estupro que sofreu.
A requisição foi elaborada para delegacia conforme a própria denúncia do adolescente, e continha além do histórico das partes envolvidas, aproximadamente 10 questões fechadas que foram formuladas com base na narrativa do próprio denunciante. Segundo sua própria requisição, ele desejava “encerrar isso de uma vez por todas”, pois, “só hoje conseguia entender o porquê de estar passando por essa triste condição”. Esta “condição” referia-se ao fato de ser gay e buscava imprimir uma escala valorativa a esta situação. A promotoria via facilidade em resolver o caso com o auxílio de uma psicóloga-policial e por isso solicitou a realização de uma avaliação psicológica que contrapusesse ou não as questões formuladas pela promotoria em conjunto com o adolescente.
As perguntas a serem respondidas eram diversas e iam desde a necessidade de explicar como ocorreu o crime, até aos possíveis encaminhamentos de ajuda psicológica para a vítima. Porém, algumas outras chamam atenção. A primeira delas era a necessidade de uma avaliação sobre a atual “condição psíquica” de André10 a fim de estabelecer uma causalidade direta entre o sofrimento psíquico gerado pela “violência sexual” e os possíveis traumas decorrentes de tal situação. Ou seja, não bastava saber se André tinha sido ou não abusado e se o crime ocorreu, mas era necessário informar o sofrimento causado pela “violência sexual” e os possíveis desdobramentos de tal experiência.
Tais desdobramentos fazem referência à dúvida central que motivava o processo e o próprio adolescente: o fato de ter se tornado gay. No relatório, ele relatava que percebeu que mudou muito após o estupro e que hoje, com a maioridade, conseguia “entender muitas questões”. Dado o caráter da solicitação, não havia nela muitos detalhes sobre o crime, mas, acompanhando o pequeno relatório, André narrava explicitamente como tudo ocorreu e como muitas vezes se sentiu culpado por ter sofrido “violência sexual”. No procedimento policial, o que se destaca de início é a negação por parte da psicóloga-policial em estabelecer qualquer tipo de causalidade entre André ser gay e ter sofrido “violência sexual” na infância. Posteriormente, em diálogo com André, ele disse que acreditava, sim, haver relação dos fatos e se sentia triste por isso porque achava que se fosse hétero, “tudo seria mais fácil”. Além disso, diz que sustentava tudo isso com o intuito também de encontrar uma justificativa para mover a denúncia tanto tempo depois.
O que se percebe diante desta síntese é que as investigações criminais, o sistema de justiça e as instituições que operacionalizam esses sistemas, são permeados por inúmeras tramas e questões que também auxiliam a constituir as narrativas dos sujeitos que ali circulam. Mas sobretudo auxiliam a produzir enunciados partindo de lugares institucionais que só são legitimados quando são produzidos dentro de algumas concepções hegemônicas, pois o lugar de enunciação é “determinado por regras sócio-históricas que definem e possibilitam que ele seja enunciado” (Gregolin, 2004, p. 26).
Esse cenário nos mostra que o sujeito também se encontra preso a uma identidade marcada pela produção e representação de uma concepção pautada sobre o dualismo sexo/gênero. No âmbito desta investigação existia a compreensão de que o sexo interpela o gênero, carregando o pressuposto de que o sexo seria biológico, pré-discursivo (Butler, 2003). Tendo em vista que a cisnormatividade molda a atividade social (Bauer et al., 2009), as investigações criminais também estão organizadas dentro deste sistema e contribuem para manutenção de uma ordem no campo da sexualidade, que parte da ideia de que o sexo aparece como algo inato ao ser e, por isso, deve ser protegido.
Tal proteção, está pautada na possibilidade de diagnosticar sexualidades diferentes da norma. Uma metafísica da substância imbuída na hipótese de alguém “ser” um gênero (Butler, 2003), ou no caso das crianças de ainda não “ser” esse gênero e por isso deverá ser protegido. Isso implica também que alguém só “é” ou “torna-se” mediante a coerência entre corpo, sexo, gênero, prática sexual e desejo.
Enquanto autoridade jurídica que disciplina os sujeitos, as investigações criminais colocam o campo da sexualidade como objeto de regulação e disciplinam sexualidades consideradas desviantes mediante a chancela também da proteção de tais sujeitos. Isso auxilia a manter um campo de lutas em torno de significações discursivamente produzidas e legitimadas pelos próprios sujeitos dentro deste campo de regulação.
André, ao dizer que se sentia triste e que havia se tornado gay por conta do estupro, colocava em evidência a função estratégica do próprio dispositivo. Foucault (2015) compreende que as práticas que operam pelo dispositivo da sexualidade se inscrevem nos corpos dos indivíduos funcionando como modos de objetivação; e são, no caso, pelos modos de objetivação que os indivíduos são subjetivados e se transformam em sujeitos (Moruzzi, 2017).
Tais formas de subjetivação (Foucault, 2013) enunciam também que não existe um sujeito alheio aos regimes de verdade e por isso tais sujeitos se constituem também na experiência da “violência sexual”. Tais experiências estão atravessadas por uma normatização que mesmo os sujeitos que escapam da norma heterossexual por exemplo, como no caso de André, reproduzem o modelo explicativo sobre a sua constituição utilizando-se tal como afirma Butler (2018) de uma identificação com o fantasma normativo do sexo. O que está em jogo neste cenário é que tais dispositivos possibilitam um esquadrinhamento da criança, do seu corpo e da sua sexualidade, por meio de uma atmosfera que só ganha sentido naquele contexto, ou seja, tornam visível certo modo de ser criança, certo modo de viver a infância e a colocação do exercício de sua sexualidade dentro da normalidade (Moruzzi, 2017).
Já em outro caso, acompanhamos o desenrolar de um episódio de “violência sexual” de uma criança com 10 anos. Mateus consta como vítima de estupro de vulnerável em boletim de ocorrência comunicado por sua mãe, Rose. Segundo relato, o pai de Mateus, ex-marido de Rose, teria sido o perpetrador dos fatos. O pai que não detém a guarda, recebe o filho quinzenalmente. Na entrevista com a mãe, a mesma relata que há um mês o filho disse-lhe que o pai ficava mexendo no seu pênis, porém ela afirma não ter dado muita importância. Porém, a criança voltou a falar sobre isso para mãe, repetindo diversas vezes que "o pai ficou mexendo de volta" e "o pai ficou brincando com o meu pipi". Assim, ao comentar o caso com seu advogado, responsável pela separação, este a orientou a ir até a delegacia para que registrasse um boletim de ocorrência.
Rose fala que não conversou com o ex-marido sobre o fato, mas que juntando isso aos maus cuidados que ele tem com o filho, gostaria que não tivesse mais o direito das visitas. Fala que o ex-marido é muito "machista" e que acredita que ele deva estar ensinando o filho a se masturbar, pois teme que o filho "vire gay", já que ele gosta de brincar de bonecas e não gosta de futebol. Inclusive, ressalta que o ex-marido, certa vez, falou a Rose que "o filho viraria gay por causa dela". Assim, não acha que ele esteja mexendo no pênis da criança com o intuito de abusar do filho, mas sim de estimulá-lo a "ser homem".
Além da questão ainda hegemônica sobre as masculinidades que “tendem a envolver padrões específicos de divisão interna e conflito emocional, precisamente por sua associação com o poder generificado” (Connell & Messerschmidt 2013, p. 271), esse caso chama ainda mais atenção, quando no atendimento à mãe, a criança escuta a sua mãe falar que o pai tinha medo que ele se tornasse gay. Mateus rapidamente intercepta (sem muito bem entender o conteúdo da conversa): “- Então eu sou gay? O que é ser gay?”. A mãe rapidamente responde à Mateus: “não não filho, você é homem” e desconversa o assunto. Percebemos assim a reprodução interpretativa da sexualidade na infância, mediada por concepções autocêntricas dos sujeitos. Contudo, isso não implica também que estes sujeitos não estejam envoltos em seus respectivos conflitos que amarraram concepções de gênero, sexualidade e infância.
Novamente no caso da infância, percebemos que não existe apenas a concepção de uma diferença sexual, mas sim “uma transversalização das relações de poder, uma diversidade de potências de vida” (Preciado, 2011). Nesse sentido, é precisamente na postura crítica à diferença sexual e no escrutínio nos discursos que estão presentes nestas cenas que entendemos que o olhar sobre o gênero e a sexualidade da/na infância, são também sustentados por um caráter normativo. Mateus por supostamente não condescender a masculinidade incutida ao seu sexo sofre “violência sexual” por parte do pai e depois, na busca por punição ao próprio pai, Mateus ao enunciar sua dúvida, marca naquele momento o lugar onde talvez ouviria a expressão “ser gay” pela primeira vez.
Já em outro caso, após a realização do exame de corpo de delito pelo Instituto Médico Legal (IML), Yasmim chega na delegacia acompanhada de duas conselheiras tutelares e sua mãe. O exame já comprovava o estupro, mas, como diligência obrigatória da instituição, era necessária a realização de um atendimento por parte da psicóloga-policial para ouvir a vítima. Além da vítima, todos que a acompanhavam foram ouvidos. Aparentando não entender muito bem tudo o que tinha acontecido, Yasmim com 12 anos revela o padrasto como abusador. Após o atendimento, chama-se a mãe para entrevista e a mãe diz que muitas vezes achou estranho a filha “ficar sentada no colo dele, quando saía do banho”, diz que não gostava destes comportamentos. Quando a filha fazia isso, perguntava para ela sobre o porquê desse comportamento, e, como Yasmim não respondia, a mãe sempre a repreendia quando presenciava tal situação. A mãe diz estar muito abalada, pois o marido sempre foi “bom” para elas.
Após a mãe, as conselheiras foram ouvidas juntas e contam que foi a escola quem denunciou o crime. Segundo elas, Yasmim contou para uma colega e essa colega contou a uma professora. Em determinado momento elas afirmam: “olha, é muito triste tudo isso, mas se você olhar para ela, já é uma moça”; “eu não entendo como uma mãe deixava a filha fazer isso”, e finalizam “se a mãe não sabia o que fazer com a filha, ela poderia ter encaminhado para alguém acompanhar e dar suporte para então evitar tudo isso”.
Seja qual for o âmbito, tais afirmativas nos mostram a necessidade de debater questões relativas a gênero e feminismo e sua relação com a infância. Como Yasmim não se esquadrava na noção naturalizada de infância, entendida como uma fase da vida associada a noções de fragilidade, inocência, não racionalidade e pré-logismo (Ariés, 1981), a compreensão do crime passa também pela exigência moral de corresponder ao ideal desta infância como um bem juridicamente a ser protegido.
Além disso, a últimas duas cenas nos permitem colocar em valimento os desdobramentos e consequências dos atos criminosos. Enquanto crime (hetero)sexual - no caso de Yasmim - levantou suspeita sobre a vítima e o contexto em que o crime ocorreu, nos crimes de natureza homossexual, em nenhum momento foi colocada ou enunciada a suspeição da vítima e/ou o consentimento do crime por parte de alguém envolvido no ato. O que demonstra que, mesmo nos casos de “violência sexual” na infância, existem sexualidades que devem ser reiteradamente excluídas da possibilidade de legitimação (Lowenkron, 2007), mesmo que seja na investigação criminal no caso de “violência sexual”. Existem então, outras assimetrias para além do marcador etário que configuram e moldam as concepções de crime e “violência sexual”.
André, Yasmim, Mateus e talvez muitas outras crianças, estão inscritas sob lógicas análogas. São lógicas ancoradas pelos ideais modernos de infância, onde a criança é o sujeito que está sempre em fase de desenvolvimento, infantil, inocente e ingênuo. Amparado nesta ideia os crimes sexuais interferem também na coerência normativa entre gênero-sexo-sexualidade destes sujeitos.
As cenas narradas acima deixam claro a colisão direta com o que Preciado (2014) sustenta. Segundo ele, a criança “é sempre um corpo a quem não se reconhece o direito de governar” (Preciado, 2014, online) e como em geral as práticas de gênero são construídas através de eventos e interpretações culturais sobre o sexo é preciso definir e acompanhar o aparato ou a maquinaria de poder (Foucault, 1987) que esquadrinha, desarticula e recompõe os sujeitos. O poder age na subjetividade e nos corpos de forma acentuada na infância, prescrevendo um “sexo natural” e uma coerência sobre ele.
Trata-se, portanto, da colocação exata do sexo em determinada forma de discurso, no discurso considerado verdadeiro, o discurso que na anormalidade do crime coloca a expressão do desejo como algo normal e atua para o sujeito como um processo coercitivo de normalização em seu próprio discurso.
No caso da infância, existe ainda uma subjetividade condicionada, que naturaliza sistemas normativos (sexo/gênero) como também do sujeito de desejo (Áran, 2006), mostrando que nos cenários investigados sobre a “violência sexual” na infância, se produzem gêneros inteligíveis (Butler, 2003; 2009) e talvez limitações no entendimento sobre gênero, infância e sexualidade. Tais limitações que estão historicamente constituídas desde o século XVIII (Foucault, 2015) demonstram um esforço ao controle do corpo das crianças que sustentam a ideia de que as crianças, nesse contexto, são compreendidas ora como seres indefesos, inocentes, em perigo, ou ora como seres perigosos (Foucault, 1987; 2001) e o segundo, em se tratando da violência sexual, "o sexo foi aquilo que, nas sociedades cristãs, era preciso examinar, vigiar, confessar, transformar em discurso” (Foucault, 1992, p. 230). As investigações criminais possibilitam colocar em discurso justamente essas duas lógicas e é interessante observar o quanto a sexualidade infantil se torna alvo de preocupação e controle, necessitando ser constantemente monitorada e inclusive orientada pelo próprio discurso dos sujeitos.
Pensar sobre como podemos elaborar práticas que caminhem com a possibilidade de “produzir uma crítica às categorias de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e mobilizam” (Butler, 2003, p. 24). Talvez, somente pela transformação social impulsionada por tais questionamentos, conseguiremos desestabilizar alguns sistemas e colocar em suspeição determinadas concepções que continuamente geram e reiteram desigualdades de gênero demonstrando que existem limites nas práticas que promovem os direitos de crianças e adolescentes.
Considerações finais
O enfoque dado neste artigo, buscou mostrar que as investigações criminais de estupro contra crianças e adolescentes, também podem se constituir por um viés normativo que modela e chancela existências de gêneros inteligíveis (Butler, 2003) consentidas pela ideia de proteção à sexualidade e à infância. Nessa relação não há espaço para contradições ou hesitações em relação ao sexo, corpo e gênero, mas um espaço de produção de gramáticas generificadas destinadas à infância.
A partir dos cenários acompanhados podemos pensar como o discurso hegemônico da garantia de direitos e proteção à infância está demarcado em um espaço de intervenção e governo desses elementos, acentuando maneiras recorrentes de normatização dos sujeitos. Não levando em consideração que estes cenários também produzem os sujeitos que buscam proteger e estertoram o gênero e a sexualidade na infância.
Marc Bessin (2011) demonstra as ambivalências entre “veiller sur” (cuidar de/dar atenção a) e as políticas que hoje envolvem “surveiller” (vigilância). Segundo ele, “a ces pratiques de surveillance s'ajoutent des formes plus diffuses de contrôle” (Bessin, 2011, p. 79). Tal controle preventivo dos desvios do comportamento, está expressado claramente em normas e leis, que ora são consideradas indispensáveis ao funcionamento da sociedade contemporânea, ora atuam como uma forma de dominação moral implícita (Kant de Lima, 2013; Foucault, 1987) por isso, são movimentos que se intercalam e constituem os cenários aqui descritos.
Sabemos que as investigações criminais como um dos sistemas de proteção à infância são um efeito da sociedade regida pelos dispositivos de segurança. Foucault (2008) afirma que a sociedade procura criar mecanismos em função de acontecimentos possíveis que precisam ser regularizados. Nesse sentido, as investigações criminais possibilitam gerir e/ou colocar em destaque uma série de técnicas de vigilância que constroem e classificam irregularidades no campo do gênero na infância. Entendemos que a violência é um campo sempre aberto a significação (Rifiotis, 2014) e, por isso, no cenário aqui relatado, desempenha papel fundamental nas relações de produção do gênero e da sexualidade na infância, possibilitando questionar os efeitos legítimos dos saberes e poderes produzidos em seu próprio nome.
Percebemos aqui como as práticas de proteção e garantia de direitos podem promover uma “essencialização” do gênero construindo determinados modos de ser na infância. Por isso, chamamos atenção para a necessidade da inserção de reflexividade e distanciamento dentro destas políticas para não reproduzirem e legitimarem concepções heteronormas em suas práticas. Para isso são necessários deslocamentos e recomposições no interior do dispositivo da sexualidade, pois tal dispositivo arrasta normatizações para a ordem do desejo, do gênero e da infância. O nosso argumento está calcado na afirmação de que as políticas de proteção à infância estão norteadas por diversas estratégias ancoradas na punição como forma de governo e no anseio de tal punição acabam por proteger uma suposta sexualidade hegemônica associada a uma puerícia construção biológica dos corpos dessas crianças.
Gênero nesse caso aparece no modo como lidamos com o poder, nas relações interpessoais, hierarquizando e valorizando o masculino em detrimento do feminino (Scott, 1989) e, portanto, as suas mudanças, só são possíveis a partir do reconhecimento das necessidades do Estado e a ligação explicita com o poder (Foucault, 1987; 2013) de tais relações. Como demonstrado aqui, existe sim a constituição de experiências dissidentes na infância e cabe a nós, recordar e/ou acompanhar os processos de elaboração de si onde o confronto às normas sexuais é vivido como parte inalterável da constituição daquele espaço. Por fim, defendemos o direito das crianças de serem subjetividades políticas irredutíveis a uma identidade de gênero, de sexo ou de raça (Preciado, 2014).