1. Introdução
A habilidade de realizar cálculos matemáticos é necessária nos diferentes espaços da vida cotidiana. Tal competência é utilizada para estimar o troco da padaria ou para estabelecer o horário da medicação prescrita três vezes ao dia. Os cálculos exemplificados podem ser resolvidos por meio de diferentes possibilidades de resolução - como, por exemplo, contar nos dedos, estimar o valor, ou utilizar a calculadora - que constituem estratégias válidas e potencialmente eficientes, mas algumas parecem ser mais adequadas para determinadas situações do que outras (Heinze et al., 2020; Spinillo, 2014).
Nesse sentido, a valorização da habilidade de adequar a estratégia para determinado tipo de cálculo matemático - adaptatividade - e alternar o uso de diferentes meios de resolução - flexibilidade - acompanha a necessidade de promover níveis mais altos de aprendizagem (Andrews et al., 2021; Korten, 2020; Rathgeb-Schnierer & Green, 2013; Threlfall, 2002) e de introduzir a matemática como uma ferramenta de interpretação e transformação do mundo (Ching & Nunes, 2017). Isso se torna ainda mais relevante quando se considera que crianças com baixo desempenho matemático, ou seja, que não demonstram alcance de níveis mais altos de aprendizagem, se encontram em sérios riscos de desenvolver dificuldades de aprendizagem na área (Aunio, 2019).
Portanto, em relação ao uso flexível e à adequação de estratégias ao tipo de cálculo exigido, é válido ressaltar a definição de Star e colaboradores (2015), que compreendem esta habilidade como flexibilidade cognitiva, correspondendo à capacidade de gerar, usar e avaliar vários métodos de solução para determinados problemas, sendo reconhecida pela sua importância para o domínio matemático. Corroborando esta ideia, Rathgeb-Schnierer e Green (2013) referem que um método de solução flexível no cálculo mental depende da rede de relações numéricas construída pelos estudantes.
Nesta perspectiva, este estudo apresenta os cálculos mentais como importante meio de avaliar e favorecer a flexibilidade e faz uma breve revisão das pesquisas sobre o tema. Grande parte destes estudos foram realizados em países estrangeiros, no entanto ainda não se tem registros de investigações do tipo no Brasil. Diante do cenário de desempenho educacional brasileiro, com baixos índices de proficiência matemática (Brasil, 2021a, 2021b), compreende-se a relevância de aprofundar o conhecimento acerca da flexibilidade cognitiva em cálculo mental dos estudantes brasileiros, com o intuito de contribuir para a literatura da área e elucidar implicações educacionais. Tem-se como objetivo, portanto, identificar os conhecimentos subjacentes aos perfis de flexibilidade cognitiva em cálculo mental (flexível, misto ou rígido), permitindo a caracterização destes perfis, em estudantes de 2º (7 a 9 anos) e 4º (9 a 10 anos) anos do Ensino Fundamental, com base nos elementos cognitivos por eles utilizados durante a resolução de cálculos aritméticos. Convém mencionar que esta investigação foi realizada com base em estudos anteriores, os quais compararam amostras de diferentes países (Rathgeb-Schnierer e Green (2013, 2015, 2017), e por isso os termos que designam os diferentes raciocínios a serem utilizados no decorrer do texto serão mantidos de acordo com o proposto pelos autores referidos.
2. Flexibilidade em cálculo mental
O cálculo mental, como habilidade matemática, é um instrumento importante (e possível) de avaliação, intervenção e promoção de flexibilidade para os pesquisadores que se ocupam desta temática (Carvalho & Rodrigues, 2021; Heinze et al., 2020; Korten, 2020; Heirdsfield & Cooper, 2004; Rathgeb-Schnierer & Green, 2013, 2015, 2017, 2019; Serrazina & Rodrigues, 2017, 2021). Do mesmo modo, um crescente corpo teórico tem demonstrado a validade de ensinar cálculos mentais para promover a flexibilidade cognitiva e alcançar a competência matemática (Heinze et al., 2020; Serrazina & Rodrigues, 2017, 2021; Rathgeb-Schnierer & Green, 2013, 2015, 2017; Rechtsteiner-Merz & Rathgeb-Schnierer, 2015; Threlfall, 2009).
Em relação à definição, o cálculo mental é diferente da aritmética feita “de cabeça”, pois conforme argumenta Thompson (1999), esta pode envolver apenas a recordação de fatos básicos ou a execução mental de um cálculo algorítmico, enquanto o cálculo mental exige a utilização de estratégias mentais, definidas como “(...) a aplicação de fatos numéricos conhecidos ou calculados rapidamente, em combinação com propriedades específicas do sistema numérico, para encontrar a solução de um cálculo cuja resposta não é conhecida” (Thompson, 1999, p. 2, tradução nossa). Além desta diferenciação proposta por Thompson (1999), as estratégias de cálculo mental também diferem dos algoritmos escritos porque exigem mais do que a aplicação de um procedimento passo a passo, requerendo a aplicação de um conhecimento mais profundo de como os números funcionam (Carvalho & Rodrigues, 2021; Rathgeb-Schnierer & Green, 2019).
Ao se considerar esse conhecimento mais profundo sobre o funcionamento dos números, é possível referir Buys (2001), que destaca que o cálculo mental permite calcular livremente, sem restrições, possibilitando o desenvolvimento de novas estratégias de resolução, usando números de referência e estratégias do repertório pessoal. O autor assinala três características importantes do cálculo mental: (I) opera com números e não com dígitos; (II) usa propriedades elementares das operações e relações numéricas; e (III) permite o recurso de registros intermediários em papel. A ideia de cálculo mental, portanto, está centrada no trabalho com números, suas relações e padrões, e operações relacionadas à noção de um cálculo pensado e não mecanizado (Mendes, 2012). Corroborando esta ideia, Verschaffel, Greer e De Corte (2007) referem que a distinção entre cálculo mental e algoritmos (escritos) independem do uso ou não de lápis e papel, mas sim das ações e conhecimentos matemáticos envolvidos.
Nesse sentido, Serrazina e Rodrigues (2017, 2021) acreditam que o cálculo mental viabiliza a flexibilidade no raciocínio matemático. Para as pesquisadoras é essencial, por exemplo, que as crianças compreendam os números a partir de diferentes representações, canônica e não-canônica (exemplo: 9 = 5+4, 18/2, 3+3+3, 10-1, etc), pois cada representação acrescenta uma informação sobre o número e, desta forma, aprofunda o conhecimento sobre o mesmo e facilita a identificação das relações numéricas existentes, como relação parte-todo, comutatividade, associatividade e distributividade. As autoras também salientam a importância da construção de fatos aritméticos básicos, por possibilitarem automatismo, o que é relevante para o cálculo mental. Destacam as estratégias de dobro, quase dobro, metade do número, dobrar repetidamente, fechar ou completar a dezena e compensação como suporte à resolução de cálculos e para o desenvolvimento de fatos básicos. Cabe chamar atenção à compreensão das autoras sobre flexibilidade como componente do senso numérico, visto que contempla o conhecimento sobre números e operações e sobre o uso flexível para fazer julgamentos matemáticos e resolver problemas (Serrazina & Rodrigues, 2017). Dessa forma, para as autoras a qualidade do senso numérico influencia a flexibilidade e vice-versa. Mais que isso, convém ressaltar que parte dos conhecimentos numéricos iniciais mencionados até então são, justamente, preditores do desempenho matemático posterior (Aunio & Räsänen, 2015).
Essa base numérica, significativa e interconectada, viabilizada pelo cálculo mental, é o fundamento do raciocínio flexível em matemática (Serrazina & Rodrigues, 2021). Korten (2020) assume o cálculo mental flexível como uma resposta individual a características e relações numéricas específicas do cálculo em questão e à correspondente construção de um processo de solução usando meios estratégicos. Estes meios estratégicos, ou ações mentais, são definidos como elementos cognitivos por Rathgeb-Schnierer e Green (2013, 2015, 2017, 2019), que estabelecem duas alternativas a serem utilizadas pelos alunos ao resolverem um cálculo mental: características numéricas percebidas nos cálculos e procedimentos de solução. A partir da análise dos elementos utilizados pelos estudantes no cálculo, é possível estabelecer as características individuais do perfil de raciocínio flexível, as quais podem dar pistas sobre dificuldades e preditores da competência matemática (Heize et al., 2020; McMullen et al., 2017; Rathgeb-Schnierer & Green, 2019).
Os estudos acima apontados parecem deixar evidente, conforme refere Threlfall (2002), que a contribuição dos cálculos mentais para a flexibilidade do raciocínio matemático está bem estabelecida, mas a natureza exata dos processos e das competências numéricas envolvidas nesta habilidade são menos claras. A seguir, estes fatores serão explorados por meio da análise de diferentes evidências da área.
2.1. Pesquisas em flexibilidade em cálculo mental
Embora a flexibilidade cognitiva seja estudada há décadas, ainda há muito a ser investigado, especialmente no que tange às habilidades envolvidas no cálculo mental flexível e às características que distinguem os diferentes perfis. Poucas investigações se dedicam a compreender as diferenças individuais do conhecimento subjacente ao raciocínio flexível. A seguir são apresentadas algumas pesquisas que estudam a flexibilidade através da resolução de cálculos mentais.
Alguns pesquisadores, a partir de seus resultados empíricos, conseguiram mapear características individuais dos estudantes e agrupá-las em padrões de raciocínio. Nesse sentido, Heirdsfield e Cooper (2004) estudaram os procedimentos mentais e a compreensão da adição e subtração em cálculos multidígitos de seis alunos australianos de 3º ano do Ensino Fundamental (EF). Os resultados apontam que os estudantes com raciocínio flexível escolheram e implementaram as estratégias apoiados em uma ampla compreensão numérica (senso numérico), conhecimento de fatos básicos, metacognição, efeito de operação na compreensão de números e forte crença em suas próprias estratégias. Os alunos com raciocínio inflexível aplicaram uma estratégia automática (imagem mental do algoritmo de lápis e papel) para compensar o seu conhecimento limitado, assim como suas crenças metacognitivas os levavam a não verificar suas soluções, pois confiavam na precisão do procedimento ensinado pelo professor.
Os diferentes tipos de raciocínio flexível podem ser identificados em estudos variados, demonstrando características semelhantes conforme o perfil do aluno. Sobre este tema, em um dos estudos apresentados por McMullen e colaboradores (2016), os pesquisadores buscaram determinar se havia diferenças individuais no conhecimento adaptativo/flexível de números em 55 estudantes de 3º e 5º ano do EF de uma escola finlandesa. Os resultados demonstraram diferenças individuais substanciais nas respostas dos participantes no “Adaptive Number Knowledge Task”. Essas diferenças individuais são quantitativas, em termos do número de respostas corretas dadas, e qualitativas, em termos da complexidade matemática das respostas. Analisadas e categorizadas, as resoluções da amostra resultaram em 4 grupos: (1) Baixo, poucas respostas corretas e maior parte de soluções simples; (2) Simples, com alto número de acertos, mas relativamente poucas respostas complexas; (3) Complexo, não tiveram muitas respostas corretas, mas as respostas produzidas foram consideradas complexas; (4) Alto, com número alto de acertos e alto de respostas complexas. As variáveis desempenho acadêmico, idade e escolaridade (3º e 5º anos) não apresentaram significância pronunciada em relação aos grupos, mas foi identificada uma tendência de os alunos com melhor desempenho, mais velhos e no 5º ano integrarem os grupos alto e complexo. Por fim, os autores discutem a importância de entender as diferenças individuais no conhecimento numérico adaptativo/flexível como um componente chave da competência aritmética posterior. Embora não trabalhem na perspectiva dos cálculos mentais, os autores apontam que fornecer experiências com numerosidades, relações quantitativas, e relações entre números e operações podem ser cruciais para o conhecimento adaptativo/ flexível de números melhor desenvolvido.
Ainda sobre os perfis de raciocínio, Rathgeb-Schnierer e Green (2017) utilizaram os cálculos mentais como meio para avaliar a flexibilidade cognitiva de 69 estudantes americanos e alemães de 2º e 4º ano do EF e identificam diferentes perfis de flexibilidade mental. A noção de flexibilidade destes pesquisadores é semelhante à "interação entre perceber e conhecer" (Threlfall, 2002, p. 29, tradução nossa) os números no processo de cálculo. O objetivo do estudo foi verificar se os alunos reconhecem e usam as características, padrões e relações numéricas na resolução de cálculos mentais. Esta compreensão numérica é um indicador de raciocínio flexível e, em contrapartida, os procedimentos passo a passo indicam uma forma rígida de raciocínio matemático.
Os resultados da pesquisa demonstraram uma variedade de tipos de resolução, maior do que a esperada, com um total de 902 raciocínios de resolução, categorizados em 3 perfis de raciocínio matemático: (1) raciocínio flexível - predomínio do uso de caraterísticas e relações numéricas durante a resolução dos cálculos; (2) raciocínio misto - caracterizado pelo equilíbrio no uso de características e relações numéricas e procedimentos de solução e; (3) raciocínio rígido - preferências pelos procedimentos de solução. Os autores não encontraram diferenças significativas entre os estudantes dos dois países investigados, nem entre os anos escolares americanos. No entanto, houve diferença na amostra da Alemanha, em que os estudantes de 4º ano apresentaram um raciocínio significativamente mais flexível do que os alunos do 2º ano, possivelmente pela maior experiência com os números. Esse não era o resultado esperado pelos autores, a expectativa era de que as crianças mais novas seriam mais flexíveis em suas resoluções, pois se apoiariam em habilidades numéricas e não estariam engessadas pelo regramento do algoritmo padrão, uma vez que no 2º ano ainda há pouca prática deste procedimento. Por outro lado, os estudantes do 4º ano tenderiam a usar mais procedimentos padronizados nas suas resoluções, diante dos anos de experiência com estes. Os pesquisadores demandam mais estudos para esclarecer esta questão e ampliar e distinguir as características e diferenças entre os perfis encontrados em sua pesquisa.
A respeito da identificação das diferentes alternativas de resolução utilizadas pelas crianças em cálculos mentais, Caviola e colaboradores (2018) examinaram como as escolhas estratégicas de 160 crianças italianas, de 3º e 5º ano do EF, estão relacionadas ao grau e às variações de complexidade das características dos cálculos. As análises do repertório de estratégias indicam que as crianças do 3º ano tinham maior probabilidade de relatar estratégias menos eficientes (ou seja, contagem) e dependiam mais do algoritmo padrão (da direita para a esquerda) em comparação às crianças do 5º ano, que usaram mais recuperação de fatos básicos e estratégias da esquerda para a direita baseadas em conceitos (decomposição). No entanto, todos os tipos de estratégias foram utilizados pelas crianças de 3º e 5º ano e o uso variou de acordo com a complexidade do cálculo. Tal achado mostra que uma base conceitual e procedimental comum já estava presente desde o 3º ano escolar e que este conhecimento foi ampliado e qualificado com o passar dos anos.
Portanto, a literatura apresenta a identificação de diferentes maneiras através das quais as crianças resolvem flexivelmente (ou não) os cálculos. No que se trata de desenvolver esta flexibilidade, a abordagem de Rechtsteiner-Merz e Rathgeb-Schnierer (2015) visa promover o "Zahlenblick1”, um constructo semelhante à noção de senso numérico, para desenvolver a flexibilidade no cálculo mental. Esse constructo é considerado “[...] um resultado do desenvolvimento e significa a competência para reconhecer de antemão as características do problema, os padrões de número e as relações numéricas, e usá-las para resolver problemas” (Rechtsteiner-Merz & Rathgeb-Schnierer, 2015, p. 355, tradução nossa). As pesquisadoras investigaram como uma abordagem especial, chamada "Zahlenblickschulung", apoiou 12 crianças com dificuldades para aprender matemática em comparação aos 8 estudantes submetidos ao ensino regular, matriculados no 1º ano do EF na Alemanha. A análise de dados demonstra que essa abordagem de ensino ofereceu suporte aos alunos menos avançados no desempenho aritmético e no desenvolvimento de flexibilidade no cálculo mental, uma vez que o reconhecimento de padrões e relações numéricas foi crucial para aprender a calcular, para além da contagem.
Os estudos destacados acima têm amostras de estudantes holandeses, australianos, americanos, alemães e italianos. No Brasil, pouco se estuda a flexibilidade cognitiva em cálculo mental considerando-a como uma habilidade cognitiva específica da matemática. Além desta lacuna de estudos em amostras latino-americanas, as pesquisas dão pouco suporte sobre quais habilidades numéricas e matemáticas integram cada tipo de raciocínio. Identificar os perfis de raciocínio e suas diferenças individuais parece ser uma importante ferramenta para identificar estudantes em risco de desenvolver dificuldades de aprendizagem (Aunio, 2019; McMullen et al., 2016; Rathgeb-Schnierer & Green, 2019). Pesquisas têm destacado a importância desta habilidade no ensino da matemática, apontando evidências de que a flexibilidade em aritmética é um bom preditor do desempenho matemático posterior como, por exemplo, a álgebra (McMullen et al., 2017). Isto posto, a relevância do presente estudo está na compreensão de como a flexibilidade em cálculo mental se manifesta em estudantes no contexto brasileiro, o qual apresenta características educativas, socioeconômicas e culturais tão diversas dos países acima mencionados.
Considerando o exposto, este estudo parte de evidências pioneiras sobre os perfis de flexibilidade cognitiva em uma amostra brasileira. Foram encontrados os três tipos de perfil, rígido, misto e flexível, em alunos de 2º e 4º anos do Ensino Fundamental, baseados nas definições de Rathgeb-Schnierer e Green (2017) supracitadas (Nunes, Dorneles & Corso, 2020). O estudo replicou a pesquisa alemã e americana e tinha como intuito verificar se os perfis de flexibilidade seriam identificados de forma semelhante em crianças brasileiras. De fato, foram encontrados padrões bastante parecidos de raciocínio flexível, no entando apenas categorizar as crianças em diferentes perfis dizia pouco sobre a qualidade dos conhecimentos envolvidos. Também não havia suporte na literatura que destacasse as habilidades e conhecimento matemático de cada padrão de raciocínio flexível. Assim, com intuito de contribuir para a literatura em cálculo mental flexível, a partir dos três tipos de perfil identificados no Brasil, esta pesquisa visa: a) Caracterizar o perfil de flexibilidade cognitiva em cálculo mental, no 2º ano e no 4º ano do EF, identificando as ações mentais específicas (elemenos cognitivos) que sustentam o processo de resolução: características dos problemas e procedimentos de solução e; b) Comparar o repertório de características dos problemas e de procedimentos de solução utilizado entre os anos escolares.
Tem-se como hipóteses que: a) Cada perfil de flexibilidade será caracterizado pelo uso do conhecimento numérico (características, padrões e relações numéricas), enquanto os procedimentos de solução terão papel secundário nesta caracterização, embora espere-se alta proporção de uso devido à ênfase no ensino do algoritmo padrão, conforme evidenciado em alguns estudos (Mendes, 2012) e; b) Os estudantes de 4º ano apresentarão maiores proporções de uso do repertório de características numéricas do que os estudantes do 2º ano, de acordo com os resultados encontrados por Rathgeb-Schnierer e Green (2017) que evidenciaram que os alunos mais velhos apresentavam maior experiência com números e, portanto, maior conhecimento numérico e flexibilidade no racíocinio. No entanto, este ainda é um dado controverso na literatura, visto que alguns autores acreditam que os anos de experiência, junto com a introdução do algoritmo padrão, podem dificultar a flexibilidade nos cálculos (Heirdsfield & Cooper, 2004).
3. Método
3.1 Amostra
Participaram do estudo 84 alunos, 42 de 2º ano (7-8 anos) e 42 de 4º ano (9-11 anos), do Ensino Fundamental, oriundos de quatro escolas públicas de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. A caracterização da amostra está na Tabela I. As escolas apresentam semelhança na metodologia de ensino e nas características socioeconômicas, e foram escolhidas a partir de critérios de conveniência da pesquisa (proximidade entre escolas, maior quantidade de alunos). Dois aspectos justificam a escolha do 2º e 4º anos. O primeiro, observar se há diferenças no perfil de flexibilidade em cálculo mental dos alunos com mais ou menos tempo de escolaridade. O segundo refere-se ao fato de que o instrumento para avaliar flexibilidade cognitiva em que o presente estudo se baseia, de Rathgeb-Schnierer e Green (2013, 2015, 2017), foi aplicado em alunos destes mesmos níveis de escolaridade.
Dados | Amostra total | 2º ano | 4º ano | |
---|---|---|---|---|
Amostra | 84 100% | 42 50% | 42 50% | |
Meninas | 35 100% | 18 51,42% | 17 48,57% | |
Meninos | 49 100% | 24 48,97% | 25 51,02% | |
Média de idade | 9,3 | 8,27 | 10,33 |
Nota. Elaborada pelas autoras
Uma amostra inicial de 96 estudantes foi avaliada por meio do Subteste de Aritmética do Teste de Desempenho Escolar (TDE) (Stein, 1994). Foram incluídos no estudo apenas os alunos que obtiveram desempenho médio e superior na tarefa , de acordo com a padronização do teste, visando a necessidade de conhecimentos mínimos para a realização da avaliação de flexibilidade cognitiva. Nesta etapa, seis alunos foram excluídos e outras seis crianças foram retiradas da amostra por não concluírem a avaliação da flexibilidade cognitiva (Rathgeb-Schnierer & Green, 2017), totalizando os 84 estudantes. A autorização dos pais de todos os alunos participantes foi obtida com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob o número 4404721 5.3.0000.5347.
3.2 Instrumentos
Avaliação de flexibilidade cognitiva em cálculo mental: o instrumento de avaliação proposto por Rathgeb-Schnierer e Green (2013, 2015, 2017) consiste em uma entrevista, direcionada ao reconhecimento das características, padrões e relações numéricas de cálculos de adição e subtração de dois dígitos. Cada questão foi projetada para mostrar, no mínimo, uma característica numérica especial, conforme a Tabela II. As entrevistas, realizadas pela primeira autora, dividiram-se em dois momentos. O primeiro envolvia classificar os cálculos em “fáceis” ou “difíceis” e justificar a classificação. No segundo, as crianças resolviam os cálculos. Na primeira etapa, os estudantes foram incentivados a observar atentamente os números em cada cálculo para classificá-los nas categorias "fácil" ou "difícil" (estes rótulos foram colocados em cada lado da mesa). Em seguida, foram questionados os motivos da triagem: "Por que esse problema é fácil/difícil para você?". Na segunda fase, os alunos resolveram os cálculos de cada categoria (fácil ou difícil) e explicaram o raciocínio utilizado durante a resolução. Os estudantes foram orientados a realizar os cálculos “na cabeça”. Lápis e papel foram disponibilizados sobre a mesa, mas não foram diretamente oferecidos aos alunos. O instrumento foi aplicado individualmente, em sala reservada dentro da escola, com duração de tempo que variou de 15 a 60 minutos por criança. Todas as entrevistas foram realizadas pela pesquisadora e filmadas para a posterior análise de dados. Somente raciocínios que levaram a uma solução correta dos cálculos foram computados como dado de pesquisa. As crianças que não chegaram a resultados corretos em nenhum cálculo foram excluídas do estudo.
CÁLCULOS | CARACTERÍSTICAS |
33 + 33 | sem reagrupamento, dígitos duplos, dígitos duplos no lugar das unidades, inverso de 66-33. |
34 + 36 | com reagrupamento, dígitos duplos no lugar das dezenas, unidades que somam 10. |
47 + 28 | com reagrupamento. |
56 + 29 | com reagrupamento, 29 perto de trinta. |
65 + 35 | com reagrupamento, cinco no lugar das unidades, unidades somam 10. |
73 + 26 | sem reagrupamento. |
31 - 29 | com reagrupamento, faixa estreita de números, 29 perto de trinta. |
46 - 19 | com reagrupamento, 19 perto de vinte. |
63 - 25 | com reagrupamento. |
66 - 33 | sem reagrupamento, relação de dobro e metade, dígitos dobrados, inverso de 33+33. |
88 - 34 | sem reagrupamento, relação de dobro e metade nas unidades. |
95 - 15 | sem reagrupamento, cinco no lugar das unidades. |
Nota. Adaptado de Rathgeb-Schnierer e Green (2013, 2017)
Desempenho aritmético: para avaliar o nível de desempenho aritmético dos estudantes, foi utilizado o Subteste de Aritmética (SA) do Teste de Desempenho Escolar - TDE (Stein, 1994), instrumento padronizado para a cidade de Porto Alegre, composto por 38 questões envolvendo cálculos aritméticos com grau de dificuldade crescente. O instrumento foi aplicado pela pesquisadora, coletivamente, em sala de aula. Os escores do TDE (Stein, 1994) foram utilizados como critério de inclusão e a amostra representou os alunos com desempenho médio e alto em aritmética (escores do percentil 50 em diante).
3.3 Análise de dados
O conteúdo das entrevistas, registrado por meio de filmagens, foi analisado e categorizado pelo sistema de codificação desenvolvido por Rathgeb-Schnierer e Green (2013, 2015, 2017), baseado na premissa de que procedimentos padronizados demonstram conhecimento engessado e conhecimento numérico é indicador de flexibilidade. O sistema é composto por duas categorias principais: raciocínio por característica do problema (RCP) e raciocínio por procedimento de solução (RPS). Estas categorias centrais incluem vários códigos e subcódigos, conforme demonstrado na Tabela III:
Códigos | Subcódigos |
---|---|
RACIOCINIO POR CARACTERISTICA DO PROBLEMA | |
ADU - Analogia dezena e unidade | |
RN - Relações numéricas |
|
RT - Relações da tarefa |
|
CU - Características das unidades |
|
NE - Números Especiais |
|
TN - Tamanho dos números |
|
FB - Fatos básicos |
|
RACIOCÍNIO POR PROCEDIMENTO DE SOLUÇÃO | |
CD - Composição e decomposição | |
CT - Contagem | |
ED - Encontrar diferenças | |
MP - Modificar o problema | |
AP - Algoritmo padrão | |
OE - Outra estratégia |
Nota. Elaborada pelas autoras a partir de Rathgeb-Schnierer e Green (2013, 2015, 2017)
*Estas subcategorias surgiram a partir da amostra deste estudo, mas só foram incluídas porque havia lógica no raciocínio empregado.
O raciocínio por características do problema foi codificado quando os estudantes se referiram especificamente às características do problema - por exemplo, fatos básicos, associatividade, quase dobro - portanto, considerado um raciocínio flexível. O raciocínio por procedimentos de solução foi codificado quando os alunos descreveram qualquer técnica de computação mental, ou seja, que envolveu procedimentos mentais do tipo contagem, composição ou decomposição, algoritmo padrão, entre outros, sendo considerado como raciocínio rígido (Rathgeb-Schnierer & Green, 2017).
Após a categorização das respostas dos estudantes, foram realizadas comparações dos valores de frequência e repertório dos dados de raciocínio por característica do problema (RCP) e raciocínio por procedimento de solução (RPS), através de uma razão que evidenciava a diferença entre os dois tipos de raciocínio. Essas comparações foram baseadas em Rathgeb-Schnierer e Green (2013, 2015, 2017) que definem os perfis de flexibilidade pela diferença de uso dos dois tipos de raciocínio. Os autores utilizaram apenas dados de frequência em suas análises, no entanto, o presente estudo incluiu a informação de repertório, pois o interesse principal é identificar os conhecimentos matemáticos utilizados em cada perfil.
Os seguintes valores (aproximados) foram tomados como referência para a distribuição da amostra nos perfis de raciocínio. As métricas menores que 1 indicavam a prevalência de RPS, portanto o perfil dos alunos era rígido. Os valores iguais a 1 indicavam o equilíbrio entre RCP e RPS, assim estes alunos apresentaram raciocínio misto. Por fim, as métricas maiores que 1 representaram preferência pelo RCP e os estudantes foram classificados como flexíveis.
Deste modo, no perfil flexível foram identificados alunos do 2º ano (n=8) e alunos do 4º ano (n=8). No perfil misto também foram observados estudantes de 2º ano (n=19) e de 4º ano (n=34). O perfil rígido foi composto exclusivamente por crianças do 2º ano (n=15), conforme observado na Figura 1.
Para examinar e caracterizar os perfis de raciocínio flexível dos estudantes, o repertório foi calculado a partir do uso ou não de cada item pelos estudantes, durante a resolução dos cálculos da tarefa avaliativa. Deste modo, obteve-se as porcentagens de alunos que utilizaram cada recurso dos dois padrões de raciocínio. Assim, foi possível ter a visão da variabilidade do raciocínio em cada grupo dos perfis de flexibilidade.
O teste exato de Fischer (p>0,05) verificou a significância estatística das proporções de alunos que utilizaram cada recurso das características dos problemas (CP) e dos procedimentos de solução (PS). O teste verificou as diferenças entres os perfis rígido, misto e flexível dentro de cada ano escolar, como também comparou a diferença entre 2º e 4º ano em cada grupo de raciocínio (por exemplo, mistos de 2º e 4º ano).
3.4 Resultados
As figuras 2 e 3, expostas a seguir, demonstram a distribuição do repertório de características do problema e procedimento de solução, respectivamente, por ano escolar e por padrão de raciocínio. As interpretações de cada figura serão descritas, evidenciando as características de cada perfil de raciocínio.
A proporção de alunos que utilizaram Relações Numéricas (RN) foi significativamente maior no grupo de alunos flexíveis do 4º ano em comparação ao mesmo grupo do 2º ano (p=0,0256). Mais alunos mistos de 4º ano utilizaram RN do que os estudantes mistos de 2º ano (p=0,0003) e não houve diferença estatística entre os grupos flexíveis, mistos e rígidos de cada ano escolar. No que diz respeito às Relações da Tarefa (RT), os alunos rígidos do 2º ano diferiram (p=0,0043) de seus colegas mistos e flexíveis, desta forma, a proporção de alunos rígidos que utilizaram RT foi significativamente menor que a proporção de alunos mistos e flexíveis, sendo que estes não diferiram entre si. A proporção de alunos mistos de 4º ano foi estatisticamente superior (p=0,0410) à proporção dos mistos de 2º ano na utilização de RT. Em relação à Associação Dezena e Unidade (ADU), os estudantes rígidos do 2º ano não apresentaram ADU em seu repertório (p>0,0001) e, portanto, diferiram estatisticamente dos demais. No que tange às Características das Unidades (CU), o grupo misto do 4º ano teve proporção significativamente maior (p=0,0011) do que o grupo misto de 2º ano no uso de características das unidades. As CU não foram utilizadas pelo grupo de estudantes rígidos (p<0,001), portanto os rígidos diferiram estatisticamente dos seus pares do 2º ano mistos e flexíveis. No Tamanho dos Números (TN), houve diferença estatística apenas no grupo dos alunos mistos (p= 0,0214), em que os estudantes de 2º ano utilizaram mais TN do que seus colegas de 4º ano. Por fim, nos Fatos Básicos (FB), o grupo de alunos rígidos do 2º ano diferiu significativamente de seus colegas de mesmo ano escolar (p= 0,0002), com uma baixa proporção de alunos que recorreram ao uso de fatos básicos.
Concernente à Composição e decomposição (CD), no 2º ano, a proporção de estudantes que a utilizou foi significativamente maior no grupo flexível (p= 0,0090) do que nos grupos mistos e rígidos e, estes, por sua vez, não diferiram entre si. A proporção de alunos flexíveis do 4º ano que utilizaram CD foi estatisticamente menor do que os estudantes mistos do mesmo ano escolar (p= 0,0449). Dentro do grupo flexível, os alunos do 2º ano apresentaram maior proporção de utilização de CD do que seus colegas do 4º ano (p=0,0405). O uso da Contagem (CT) apresentou alta proporção de alunos que a utilizaram durante a resolução dos cálculos e não houve diferença estatística entre os grupos de raciocínio e dentro dos anos escolares. Em relação ao Algoritmo padrão (AP), todos os alunos do 4º ano utilizam o algoritmo padrão durante a resolução dos cálculos. No entanto, apenas a proporção de estudantes mistos de 4º ano que utilizaram AP foi estatisticamente superior à proporção do mesmo perfil de 2º ano (p= 0,0132).
O repertório total da amostra contabilizou 626 raciocínios de resolução, destes, 402 (64%) são raciocínios por características do problema (RCP) e 224 (36%) são raciocínios por procedimentos de solução (RPS). Os estudantes do 2º ano apresentaram 249 (40%) raciocínios, dos quais 155 (62%) são RCP e 94 (38%) são RPS. Os alunos do 4º ano representam 60% (377) dos raciocínios totais da amostra, em que 247 (66%) são RCP e 130 (34%) são RPS. A Tabela IV demonstra os valores totais das proporções de uso de características do problema e de procedimentos de solução pelos grupos de raciocínio por ano escolar.
PERFIL | ANO | CP | PS | p- valor |
---|---|---|---|---|
Flexível | 2º ano | 75,00% | 43,75% | 0,0005 |
4º ano | 94,64% | 39,58% | <0,0001 | |
p= 0,0070 | p=0,8362 | |||
Misto | 2º ano | 64,66% | 41,23% | <0,0001 |
4º ano | 81,51% | 54,41% | <0,0001 | |
p=0,0004 | p=0,0266 | |||
Rígido | 2º ano | 25,71% | 28,89% | 0,8632 |
Nota. Elaborada pelas autoras
CP - características do problema; PS- procedimentos de solução. Nível de significância à 0,05.
Estudantes flexíveis de 2º e 4º ano apresentaram clara preferência pelo uso de característica do problema (CP) em relação aos procedimentos de solução (PS), confirmado pela diferença estatística verificada pelo teste exato de Fischer (p=0,0005 e p<0,0001, respectivamente). Os dois anos escolares do perfil flexível não diferem entre si no uso de PS (p=0,8362), no entanto o 4º ano usou CP em maior proporção estatística do que o 2º ano (p=0,0070). Este resultado indica que os estudantes mais velhos exibiram maior grau de flexibilidade do que seus pares mais novos, em virtude do maior repertório de uso de recursos de características do problema.
O perfil misto, de 2º e 4º ano, apresenta proporções de CP e PS mais aproximadas, se comparadas ao perfil flexível, mesmo que o uso de características do problema tenha sido significativamente maior do que os procedimentos de solução (p <0,0001 para ambos). Os alunos mistos de 2º e 4º ano diferiram entre si no uso de CP (p =0,0004) e no uso PS (p=0,0266), demonstrando que os alunos de 4º ano utilizaram maiores proporções dos dois tipos de raciocínio. Estes resultados indicam que o 4º ano apresenta vantagem no grau de flexibilidade em relação aos alunos de 2º ano.
O grupo rígido, composto apenas por estudantes de 2º ano, utilizou proporções de CP e PS estatisticamente baixas e equivalentes (p=0,863).
4. Discussão
Em uma análise geral, foi observada alta proporção de uso de características, padrões e relações numéricas (64%) pelos estudantes de 2º e 4º anos, de forma que o reconhecimento e uso destes levaram os alunos a determinar os passos a serem seguidos no caminho da resolução dos cálculos, a revisar seus procedimentos durante o cálculo e a confirmar os resultados de diferentes maneiras. Os fatos básicos (FB) foram o recurso mais utilizado para chegar à solução, seguidos pelos números especiais (NE) e pelas características das unidades (CU). Em contrapartida, apesar das menores proporções de uso (36%), os procedimentos de solução estavam presentes em quase todos os cálculos realizados, com forte destaque para o algoritmo padrão (AP), composição e decomposição (CD) e contagem (CT). A seguir, serão destacados os recursos mais significativos em cada perfil de flexibilidade dos dois anos escolares, conforme o primeiro objetivo.
O uso da contagem foi determinante para a caraterização do perfil de raciocínio rígido, pois o desempenho na tarefa foi pautado por este procedimento, e, assim, determinou o uso de outros recursos. A contagem (93,3%) cumpriu papel de abordagem principal de resolução, apoiada nos dedos ou na representação gráfica, de modo a compensar o conhecimento numérico limitado dos estudantes rígidos. O grupo apresentou a menor proporção do uso do algoritmo (60%), que se deve à falta de compreensão do conjunto de regras deste procedimento. Os alunos rígidos não conseguiam “armar a conta” corretamente e seguir suas etapas procedimentais e, assim, recorriam à contagem. Esse resultado indica a baixa compreensão numérica deste grupo, pois pouca ou nenhuma compreensão é necessária para o uso de procedimentos (Heirdsfield e Cooper, 2004). Dentre as características do problema, o tamanho do número (TN) foi um recurso que obteve a maior proporção de uso (66,6%), pois os alunos procuravam pelos cálculos com números de menor magnitude, que demandassem menos trabalho na contagem um - a - um (por exemplo, 46-19 e 33+33). Este grupo também se destaca pela menor proporção de fatos básicos (33%). Usar a contagem como um procedimento de solução reforça uma tendência de rigidez do raciocínio, conforme explicam Rathgeb-Schnierer e Green (2013, 2015, 2017), por limitar a resolução à aplicação de um regramento. Além disso, possuir um limitado repertório de procedimentos de solução e de conhecimento numérico dificulta a construção de fatos aritméticos básicos. Nesse sentido, Serrazina e Rodrigues (2021) apontam que os fatos básicos são desenvolvidos na prática com os números, suas características e relações, e são um suporte essencial para o cálculo mental. Assim, a aparente pouca prática com os números pode justificar as menores proporções de uso das características do problema no perfil rígido.
O grupo de alunos mistos, incluindo 2º e 4º anos, abrangeu perfis bastante heterogêneos de raciocínio. Estes alunos apresentaram maior variabilidade na proporção de uso de características do problema (CP) e procedimentos de solução (PS), sem apresentar um padrão de raciocínio dominante. Embora os estudantes mistos de 2º ano apresentem altas proporções de uso de contagem (100%) e de tamanho do número (73,6%), também têm alta proporção de fatos básicos (94,7%), o que revela que eles já possuem certa prática em cálculos e números (Serrazina & Rodrigues, 2021). O perfil misto de 4º ano utilizou todos os recursos dos dois tipos de raciocínio, demonstrando a grande variabilidade cognitiva deste grupo. Estudos interventivos recentes têm apontado que a articulação do ensino de procedimentos e de uma base numérica parece ser o caminho mais promissor para o desenvolvimento e manutenção da habilidade de flexibilidade em cálculos (Heinze et. al., 2020), mesmo após a introdução do algorítimo padrão. Assim, a heterogeneidade desse grupo, se bem conduzida, pode levar a níveis mais sofisticados de raciocínio.
O perfil flexível de 2º ano foi o grupo que mais recorreu à composição e decomposição (87,5%), o que pode indicar que estava menos vinculado ao algoritmo padrão e mais disposto a basear seu raciocínio em procedimentos matemáticos construídos, possivelmente vinculados ao senso numérico (Serrazina & Rodrigues, 2021). Estes alunos apresentaram repertório de características do problema variado e estatisticamente superior aos procedimentos de solução, demonstrando uma compreensão numérica mais complexa, que suporta o cálculo por meio da adaptação deste conhecimento ao processo flexível de solução (Heirdsfield & Cooper, 2004; McMullen et al., 2016; Rathgeb-Schnierer & Green, 2015, 2019)
Os estudantes flexíveis de 4º ano evidenciaram um padrão de raciocínio com clara preferência pelo raciocínio por características do problema (RCP) (Figura 2). Estes alunos apresentaram um repertório rico e interconectado de conhecimentos numéricos, base para o cálculo mental (Serrazina & Rodrigues, 2021), dentre os quais destaca-se a relação parte todo, relação dobro/ metade, associatividade, distributividade, completar a dezena, valor posicional, relação inversa entre adição e subtração e fatos básicos. Diferentes meios de solução partiram de um destes conhecimentos ou da articulação entre mais de um deles, o que indica a flexibilidade do raciocínio matemático destes estudantes (Heirdsfield & Cooper, 2004; Korten, 2020; Rathgeb-Schnierer & Green, 2019). Outro destaque importante do perfil flexível foi a capacidade metacognitiva de monitoramento na realização dos cálculos, verificada na postura de muitos estudantes de procurar alternativas de solução que verificassem os resultados alcançados e, inclusive, a aplicação de procedimentos padronizados para a verificação da solução correta para o cálculo. Como bem lembram Heirdsfield e Cooper (2004), a metacognição é um indicador importante de flexibilidade no raciocínio e está bem estabelecida como preditora do desempenho matemático posterior (Aunio & Räsänen, 2015).
De acordo com a discussão acima, verifica-se a confirmação parcial da primeira hipótese, visto que as proporções totais (Tabela IV) e de cada recurso do raciocínio por características do problema (Figura 2) diferenciaram os perfis de flexibilidade cognitiva no 2º ano e no 4º ano. Cada grupo fez uso de recursos em diferentes proporções, enquanto os grupos flexíveis usaram e articularam seu conhecimento numérico em todas as situações de cálculo; os grupos mistos e rígido os utilizaram em menor proporção. Entretanto, a alta proporção de uso de procedimentos de solução (Figura 3) cumpriu uma função tão importante quanto as características dos problemas na caracterização dos perfis, diferente do desempenho secundário que a hipótese inicial estabelecia. O limitado conhecimento de recursos matemáticos como, por exemplo, as relações de dobro e metade, associatividade e de fatos básicos, levaram grande parte das crianças a recorrerem ao recurso seguro para alcançar a solução de um cálculo (Threlfall, 2002) e, por isso, as proporções de contagem foram altas em todos os perfis de flexibilidade.
As comparações entre os dois anos escolares, segundo objetivo do estudo, indicam que os estudantes de 4º ano apresentaram maiores proporções de uso do repertório de características do problema do que seus colegas de 2º ano, enquanto que o uso do repertório de procedimentos de solução obteve maior equilíbrio entre os dois anos escolares. Destaca-se a maior proporção de uso de tamanho do número (TN) no 2º ano, que se trata de uma abordagem que demanda um conhecimento numérico mais superficial, vinculado à maior proporção de uso de contagem. Ou seja, o 2º ano apresenta recursos cognitivos mais imaturos para sustentar a resolução de cálculos mentais. O 4º ano, por sua vez, apesar de ter apresentado conhecimento numérico mais aprofundado, indicado pelas altas proporções de características do problema, também se destacou pelo uso do algoritmo padrão (AP) e de encontrar a diferença (ED), o que demonstra a marca do sistema de ensino baseado em procedimentos mecanizados. A prevalência de raciocínio por caraterísticas do problema indica flexibilidade (Rathgeb-Schnierer & Green, 2015), portanto os estudantes do 4º ano foram mais flexíveis do que seus pares mais jovens, confirmando a hipótese deste objetivo. Este achado contradiz alguns resultados da literatura que afirmam que, após aprender um algoritmo padrão de cálculos, as crianças abandonam estratégias mais vantajosas e apropriadas e que estes procedimentos podem ter um impacto negativo no desenvolvimento da flexibilidade em cálculo mental (Heirdsfield; Cooper, 2004; Rathgeb-Schnierer & Green, 2015, 2019; Rechtsteiner-Merz & Rathgeb-Schnierer, 2015). Em contrapartida, outros resultados, a favor da hipótese, mostram que as crianças mais velhas tendem a apresentar um nível de raciocínio mais complexo, articulando diferentes fontes de conhecimento que favorecem a flexibilidade (McMullen et al., 2016). Corroborando estes resultados, a pesquisa de Caviola e colaboradores (2018) comparou as habilidades de cálculo aritmético de estudantes de 3º e 5º anos e evidenciou que a superioridade da compreensão conceitual dos alunos de 5º ano está de acordo com seu nível de experiência numérica (mais tempo de escolarização).
6. Considerações finais
O objetivo desta pesquisa foi identificar os conhecimentos subjacentes que caracterizam o perfil de flexibilidade cognitiva em cálculo mental de estudantes de 2º e 4º anos do Ensino Fundamental, com base na análise das ações mentais utilizadas durante a resolução de cálculos aritméticos: características dos problemas e procedimentos de solução. Além disso, buscou-se comparar o repertório de uso daquelas ações mentais entre os anos escolares, a fim de verificar como os perfis de raciocínio flexível se manifestam e se diferenciam em cada ano escolar.
Dentre os resultados, evidenciou-se que os estudantes mais flexíveis apresentavam conhecimento numérico mais desenvolvido e que as porcentagens de uso deste conhecimento diferenciaram os perfis de flexibilidade entre os anos escolares. Neste sentido, argumenta-se, com base na perspectiva de Serrazina e Rodrigues (2021), que a flexibilidade cognitiva pode ser um indicador de senso numérico, posto que o ensino experienciado pelos alunos da pesquisa enfatizava habilidades procedimentais em detrimento do conhecimento numérico. Embora o desenvolvimento do senso numérico não seja um objetivo evidente no Ensino Fudamental no Brasil, a prática com os números estabelece relações e padrões numéricos que constituem os fatos básicos e propiciam a base para o cálculo flexível (Korten, 2020; Rathgeb-Schnierer & Green, 2019; Rechtsteiner-Merz & Rathgeb-Schnierer, 2015) e para o senso numérico (Serrazina & Rodrigues, 2021). Observou-se também que todos os recursos do raciocínio por características do problema foram usados pelos dois anos escolares, com menores proporções no 2º ano e maiores no 4º ano, ou seja, de modo geral, estes recursos cognitivos, ou ações mentais, já estavam disponíveis para as crianças mais novas e o seu uso foi ampliado pelas crianças mais velhas (Caviola et al., 2018; McMullen et al., 2016). Acredita-se que tal achado esteja relacionado ao nível de experiência numérica dos estudantes (Rathgeb-Schnierer & Green, 2017). Embora o conhecimento numérico tenha se destacado nos resultados, os procedimentos de solução também evidenciaram as fragilidades deste conhecimento nos estudantes brasileiros, pois houve alta proporção de contagem, considerada a mais imatura das estratégias de cálculo (Threfall, 2002).
Neste ponto, faz-se pertinente dirigir esforços de pesquisa para alcançar objetivos práticos e aplicados. Com isso, algumas implicações educacionais merecem destaque. A flexibilidade em cálculo mental pode ser favorecida por atividades que encoragem os alunos a prestar atenção sobre as características das operações e as relações numéricas (Korten, 2020; Rechtsteiner-Merz & Rathgeb-Schnierer, 2015). Os professores podem levantar questões cognitivamente desafiadoras, com o intuito de estimular a reflexão dos alunos e fazê-los raciocinar (metacognição) sobre suas escolhas (por exemplo, “Este cálculo é fácil ou difícil para você? Por quê?”; “Existem operações fáceis que te ajudam a resolver aquelas que são mais difíceis?”). Ações desse tipo implicam adiar o ensino do algoritmo em favor do enfoque que prioriza a análise das características das operações e das relações entre as operações (Rathgeb-Schnierer & Green, 2019; Serrazina & Rodrigues, 2021). Outra implicação para a educação diz respeito à necessidade de o professor conhecer e identificar os perfis de raciocínio dos seus alunos para que possa obter uma visão ampla do conhecimento numérico dos mesmos, e, a partir disso, traçar ações de intervenção pedagógica que previnam dificuldades posteriores e promovam níveis mais sofisticados e flexíveis de pensamento matemático (McMullen et al., 2016). Em especial, diante de uma evidência recente de que a flexibilidade em aritmética prediz o desempenho em álgebra nos anos mais adiantados da Educação Básica (McMullen et al., 2017).
Convém lembrar que os achados deste estudo devem ser considerados de acordo com algumas limitações identificadas. Dentre elas, ressalta-se o fato de o instrumento de avaliação da flexibilidade usado, proposto por Rathgeb-Schnierer e Green (2013, 2015, 2017), apresentar cálculos aritméticos que não foram adequados ao conhecimento matemático dos estudantes de 2º ano da amostra. Por assim ser, o desempenho deste ano escolar foi significativamente inferior, gerando poucos dados sobre o raciocínio destas crianças, o que pode ter influenciado nos dados finais, uma vez que o grupo de estudantes rígidos foi composto exclusivamente por estudantes deste ano escolar.
Para finalizar, destaca-se que este estudo apresenta as primeiras impressões sobre a flexibilidade cognitiva no contexto educacional do Brasil e, por assim ser, pesquisas futuras precisam direcionar esforços para ampliar a compreensão deste constructo em estudantes brasileiros e estabelecer referências que identifiquem cada perfil, o que requer, entre outros aspectos, observar a adequação dos instrumentos avaliativos de flexibilidade para as diferentes etapas de escolaridade, assim como para o currículo escolar. Estudos futuros podem esclarecer a construção do racíocinio flexível e como este se correlaciona com o desempenho matemático posterior, além de delimitar, com maior objetividade, a identicação dos perfis de raciocínio. Aponta-se igualmente a relevância de pesquisas que correlacionem a flexibilidade em cálculo mental a habilidades de domínio especifico (como o senso numérico) e de domínio geral (por exemplo, a memória de trabalho), particularmente em estudos longitudinais que acompanhem o desenvolvimento da flexibilidade em cálculo mental durante o processo de escolarização.