1. Introdução
Nos últimos anos, por todo o mundo, o estudo de aula (EA) vem sendo assumido como processo de desenvolvimento profissional de professores que constitui “...uma alternativa clara aos processos tradicionais de reflexão e melhoria da prática educativa e (...) de reconstrução dos saberes e práticas docentes” (Soto Gómez & Pérez Gómez, 2015, p.16). O EA centra-se na prática letiva de um grupo de professores e tem como foco principal a melhoria da aprendizagem dos alunos numa disciplina escolar. Trabalhando em conjunto, os professores identificam dificuldades dos alunos, definem objetivos em função do que é esperado no currículo, formulam estratégias de ensino baseadas na sua experiência e no conhecimento científico, elaboram ou adaptam tarefas e materiais e planificam detalhadamente uma aula que é lecionada por um professor. Esta aula é observada pelos restantes professores sendo posteriormente objeto de reflexão aprofundada (Lewis et al., 2019; Murata, 2011; Ponte et al., 2016). Contrariamente a outros processos formativos, o trabalho não é centrado no desempenho e atuação do professor, mas antes nas aprendizagens e estratégias dos alunos (Ponte et al., 2016). O EA “dá aos professores a oportunidade para contextualizar representações das suas atividades na aula, ao mesmo tempo que também torna explícito o seu conhecimento implícito e as suas práticas através de conversas colaborativas” (Ni Shuilleabhain & Clivaz, 2017, p.102). Representa uma oportunidade para os professores aprofundarem o conhecimento sobre o aluno e os seus processos de aprendizagem, construindo e ressignificando o seu saber-fazer em contexto colaborativo.
O EA, enquanto processo formativo que permite aos professores problematizar e investigar a sua prática letiva, os conteúdos que ensinam, os conhecimentos didáticos e a aprendizagem do aluno, possibilita que estes reflitam sobre a prática, recorram à teoria e regressem à prática num movimento cíclico e articulado (Bezerra, 2017), promovendo o seu desenvolvimento profissional em diversos domínios (Quaresma & Ponte, 2017). Importa, por isso, aprofundar o conhecimento sobre as potencialidades do EA na aprendizagem profissional de professores que lecionam os primeiros anos de escolaridade tendo em conta que a sua disseminação e apropriação é relativamente recente no contexto português, sendo ainda reduzida a investigação disponível. Assim, o objetivo deste artigo é compreender que aprendizagens no que respeita ao conhecimento do aluno e dos seus processos de aprendizagem e ao conhecimento da prática letiva desenvolveram os professores envolvidos num EA em torno da aprendizagem da multiplicação por alunos do 2.º ano.
2. Quadro teórico e investigação empírica relativa ao estudo
2.1. Conhecimento didático
São vários os autores que têm vindo a debruçar-se sobre a natureza e complexidade do conhecimento que o professor necessita para lecionar e conduzir à aprendizagem os seus alunos. Shulman (1987) dá particular atenção aos tipos de conhecimento profissional necessários ao exercício da função docente. No seu entender, os professores não só necessitam de saber como ensinar, mas também o que ensinar e o respetivo porquê. Analisou o que sabem os professores sobre os conteúdos a ensinar, onde e quando os adquiriram, como e por que transformam esse conhecimento em situações de aprendizagem na sala de aula, apresentando um conceito, o “conhecimento pedagógico do conteúdo”, situado na interseção do conhecimento do conteúdo e da pedagogia. Trata-se, na sua perspetiva, de um conhecimento distinto do conhecimento do conteúdo que diz respeito à transformação desse conteúdo pelo próprio professor tornando-o compreensível e ensinável para os alunos. É um conhecimento construído, enriquecido e melhorado sempre que o professor ensina um conteúdo.
Ball, Thames e Phelps (2008), tendo por base estudos empíricos, procuraram aprofundar o modelo de Shulman para o ensino da Matemática. A sua proposta sobre os conhecimentos necessários para ensinar Matemática encontra-se dividida em dois grandes domínios: Conhecimento do Conteúdo (CK), relativo ao conteúdo matemático a ensinar, e Conhecimento Pedagógico do Conteúdo (PCK) que contempla o modo como esse conteúdo pode ser ensinado, o currículo, os alunos e as próprias relações entre estes e o conteúdo matemático. Cada um destes domínios subdivide-se em diversos subdomínios. Para estes autores, o PCK, encontra-se dividido em Conhecimento do Conteúdo e dos Alunos (KCS), Conhecimento do Conteúdo e do Currículo (KCC) e Conhecimento do Conteúdo e do Ensino (KCT). No primeiro estão inseridos o conhecimento e as capacidades que o professor deve possuir para saber lidar com o saber dos alunos e o saber da Matemática. Inclui a ideia de que o professor deve ser capaz de antecipar as dificuldades dos alunos e delinear estratégias para as ultrapassar. O segundo refere-se ao conhecimento do professor sobre os conteúdos específicos do currículo. Por sua vez, o KCT combina o saber matemático e o saber sobre o ensino. Nele os professores sequenciam os conteúdos específicos a ensinar com o intuito de levar o aluno a uma aprendizagem progressiva. Finalmente, Ballet al. (2008) chamam à atenção que os domínios e subdomínios dialogam entre si de modo articulado com a prática.
Ponte e Oliveira (2002) indicam que o conhecimento profissional do professor é um conhecimento orientado para as situações da prática, que se desdobra nas vertentes do conhecimento na ação relativo à prática letiva e não letiva, à profissão e ao desenvolvimento profissional. Inspirando-se igualmente em Shulman (1986, 1987), os autores caracterizam o conhecimento didático que integram na tradição europeia dos estudos em didática. Este conhecimento é aquele que, para além do conhecimento matemático, intervém diretamente na prática letiva e identificam diversas vertentes. Uma que interessa particularmente para o nosso estudo diz respeito ao conhecimento do aluno e do seu processo de aprendizagem e inclui o conhecimento do aluno enquanto pessoa, os seus interesses, gostos, valores, referências culturais, dificuldades e o modo como aprende. Outra, igualmente relevante para este trabalho, é o conhecimento da prática letiva, que é considerada a vertente fundamental do conhecimento didático e inclui tudo o que diz respeito à planificação, conceção das tarefas e condução da aula, nomeadamente a organização do trabalho dos alunos, a cultura de aprendizagem, a regulação da comunicação, a avaliação das aprendizagens e do ensino pelo próprio professor (Ponte, 2012; Ponte & Oliveira, 2002). Tendo presente a centralidade das vertentes do conhecimento do aluno e do seu processo de aprendizagem e da prática letiva tanto no modelo destes autores como no de Ball et al. (2008), são estas as consideradas no presente estudo.
2.2. Aprendizagens dos professores de 1.º ciclo em estudos de aula
O interesse pelos EA como processo de desenvolvimento profissional tem sido acompanhado pela realização de investigação sobre os seus efeitos nos participantes, sejam estes professores, ou futuros professores. Alguma desta investigação tem incidido em professores em serviço a lecionar nos primeiros anos de escolaridade. Por exemplo, Puchner e Taylor (2006) apresentam os casos de dois grupos de professores. O primeiro mostra como um grupo de professores descobre através do EA que o seu planeamento e o seu trabalho podem ter um forte impacto no envolvimento dos alunos na sala de aula, o que os surpreendeu fortemente. O segundo caso incide sobre o esforço de um professor para passar do isolamento para a colaboração, ilustrando a tensão entre autonomia e colaboração que muitas vezes ocorre durante essa mudança. Num outro estudo, Sack e Vasquez (2011) consideraram três áreas de aprendizagem dos professores, o seu conhecimento, o seu envolvimento e comunidade, e os recursos para a aprendizagem dos alunos. Os autores concluem que, para que os professores possam tirar pleno partido das oportunidades proporcionadas pelo EA, devem ter interesse e disposição para investigar. Pelo seu lado, Murata et al. (2012) investigaram como os professores participantes em um EA deram sentido à aprendizagem dos alunos e ao seu ensino relacionado com o uso de representações na subtração de números com vários dígitos. O trabalho realizado mostrou que o discurso dos professores passou de superficial para uma consideração mais profunda da aprendizagem dos alunos. Os professores passaram a fazer conexões entre o conhecimento artesanal do ensino e o conhecimento académico. Finalmente, Widjaja et al. (2017) examinaram as experiências de aprendizagem profissional de professores dando especial atenção às interconexões entre suas experiências e suas crenças e práticas. Os resultados mostram o desenvolvimento de práticas colaborativas para a investigação e planeamento do professor, maior atenção ao pensamento matemático dos alunos, uso de discussões coletivas com base na antecipação das resoluções dos alunos e questionamentos focados.
2.3. A multiplicação de números inteiros
O desenvolvimento do sentido de número tem ganho relevância na literatura e nos documentos de natureza curricular, nomeadamente sobre o ensino e a aprendizagem da Matemática para os primeiros anos de escolaridade (ME, 2018; Mendes, 2012; NCTM, 2007; Rocha & Menino, 2009) por se reconhecer que os alunos necessitam de compreender, ter conhecimento e destreza com números e com as operações, e conseguir aplicar esse conhecimento e destreza em situações de cálculo (McIntosh et al., 1992). Neste contexto, o papel do professor na promoção de uma cultura de inquirição na sala de aula favorável ao desenvolvimento do sentido de número, na seleção das tarefas e na organização das atividades é crucial e influencia o modo como os alunos se apropriam, desenvolvem e aplicam estratégias de cálculo na resolução de problemas (Mendes, 2012).
Para Treffers e Buys (2001) e Brocardo et al. (2005), à semelhança de outras operações, a aprendizagem da multiplicação deve assentar na compreensão de conceitos e de propriedades, ao longo de um período de tempo, e desenvolve-se por níveis de aprendizagem até chegar à formalização. No primeiro nível, cálculo por contagem, o aluno recorre à contagem através de adições sucessivas. No segundo nível, cálculo estruturado, recorre à ideia de “quantas vezes” e estabelece relação entre uma mesma quantidade que se repete um certo número de vezes, recorrendo a diferentes modelos para a concretização dos seus cálculos, nomeadamente o linear e o retangular. Por fim, no terceiro nível, o cálculo formal corresponde ao cálculo de produtos entre dois números recorrendo a diferentes relações entre a multiplicação e outras operações, às propriedades da multiplicação e a produtos conhecidos. Contudo, esta progressão não é linear, nem os alunos percorrem estes níveis em simultâneo significando que “face a uma mesma tarefa, estes podem utilizar diferentes estratégias que traduzem diferentes níveis de aprendizagem da multiplicação” (Rocha & Menino, 2009, p. 111). A planificação e exploração de uma sequência de tarefas com o propósito de promover a progressão da aprendizagem de níveis mais baixos de estruturação das operações para níveis mais elevados assumem especial relevo ao contribuir para o desenvolvimento da compreensão dos conceitos e o estabelecimento de conexões matemáticas relativas à multiplicação (Brocardo et al., 2005; Mendes, 2012). Para Ponte e Serrazina (2000) deve partir-se de tarefas que desenvolvam o sentido aditivo da multiplicação em que os alunos possam recorrer à adição sucessiva de parcelas iguais procurando que os alunos progridam para a compreensão do sentido combinatório da multiplicação.
Brocardo et al. (2008) afirmam ainda que “deve ser dada liberdade aos alunos para inventarem as suas próprias estratégias e procedimentos e discutida a sua eficiência e nível de generalidade” (p.15). O professor, ao dar oportunidade aos alunos para explicitarem as suas estratégias cria condições para que, nas tarefas seguintes, estes sejam “capazes de recorrer aos modelos discutidos [nos momentos de discussão coletiva] para representar o seu próprio modo de pensar” (Mendes et al., 2013, p.141) ao mesmo tempo que auxilia os alunos a progredir para níveis superiores e a desenvolver a sua capacidade para usar um pensamento flexível e criativo (Rocha & Menino, 2009).
O papel do professor na seleção e formulação de tarefas que promovam o envolvimento dos alunos na sua resolução assumindo um “papel ativo na construção do conhecimento matemático” (Ponte et al., 2017, p.72) assume grande relevância, especialmente quando se procura seguir uma abordagem exploratória no ensino da Matemática (Ponte, 2005). Contrariamente às tarefas fechadas e com grau de desafio reduzido onde, maioritariamente, o aluno é chamado a consolidar conhecimentos, nas tarefas de exploração abertas e com maior grau de desafio (Ponte, 2005) os alunos “têm de começar por construir os seus próprios métodos para resolver as questões propostas, usando os seus conhecimentos prévios” (Ponte et al., 2017, p.72).
Para Ponte (2005) “o que os alunos aprendem resulta de dois fatores principais: a atividade que realizam e a reflexão que sobre ela efetuam” (p.1) sendo necessário que o professor proponha tarefas adequadas às características dos seus alunos, valorizando os momentos de reflexão e de discussão coletiva. Na estratégia de ensino-aprendizagem exploratória os momentos de discussão são “momentos por excelência para a sistematização de conceitos, a formalização e o estabelecimento de conexões matemáticas” (Ponte, 2005, p.16) constituindo uma oportunidade para os alunos “construírem e aprofundarem a sua compreensão de conceitos, procedimentos, representações e ideias matemáticas” (Ponte et al., 2017, p.73) quando são chamados a argumentar e a justificar o seu pensamento para os colegas e professor. É essa abordagem que procurámos seguir neste EA.
3. Metodologia da investigação
Esta investigação, de natureza qualitativa e interpretativa (Bogdan & Biklen, 1994), resulta da realização de um EA num Agrupamento de Escolas situado na zona Oeste de Lisboa. A experiência decorreu entre outubro de 2019 e fevereiro de 2020 e envolveu cinco professores do 1.º ciclo: Gorete, com duplo papel de participante e investigadora, Luísa, Ana, Sofia e Luís (pseudónimos). Três dos professores lecionavam o 2.º ano de escolaridade e os outros dois eram professores de apoio educativo. As sessões foram dinamizadas por Gorete, com o apoio do segundo autor. Quatro dos cinco professores participantes pertencem ao quadro de escola e têm mais de vinte anos de experiência. Apenas Ana tem menos de vinte anos de serviço e não pertence ao quadro. A participação dos professores no EA decorreu de vontade própria em querer participar na experiência após a proposta lançada por Gorete na reunião de Departamento do 1.º ciclo. O EA teve onze sessões (Sn) cuja periodicidade foi, maioritariamente, quinzenal, com a duração aproximada entre 1:30h e 2:30h por sessão, de que mais à frente daremos conta. A Tabela I sintetiza o trabalho desenvolvido nas diferentes sessões.
A recolha de dados foi feita por observação participante com a elaboração de um diário de bordo (DB), gravação áudio das sessões (GA), gravação vídeo da aula de investigação (GV) e de uma entrevista semiestruturada coletiva (EC). Todas as gravações foram transcritas integralmente. Atendendo ao objetivo deste artigo foi feita uma análise indutiva seguindo os procedimentos sustentados por Amado (2013) e Bardin (2002) de modo a identificar elementos particularmente significativos que pudessem ser reveladores das aprendizagens que os professores envolvidos desenvolveram em duas vertentes do conhecimento didático: (i) conhecimento do aluno e dos seus processos de aprendizagem, considerando os seguintes aspetos: tarefas e identificação de conhecimentos prévios; estratégias e dificuldades dos alunos; material a utilizar pelos alunos; capacidade de comunicação dos alunos; conceção da estrutura da aula de investigação, e (ii) conhecimento da prática letiva (Ponte, 2012; Ponte & Oliveira, 2002).
4. O estudo de aula: aprendizagens dos professores
Nesta secção, e após a síntese do trabalho desenvolvido nas sessões, apresentamos evidências das aprendizagens dos professores participantes do EA no que respeita ao conhecimento do aluno e dos seus processos de aprendizagem e, de seguida, ao conhecimento da prática letiva. Por fim, apresentamos um balanço da experiência realizado pelos participantes no EA.
4.1. Conhecimento do aluno e dos seus processos de aprendizagem
Da análise realizada emergiram elementos reveladores de aprendizagens sobre o conhecimento do aluno e dos seus processos de aprendizagem, por parte dos professores envolvidos no EA. Os momentos em que pensaram sobre as condições de aprendizagem na posição de alunos contribuíram para os sensibilizar para a importância de antecipar cenários e analisar aspetos sobre a organização do trabalho, a criação de um clima de aprendizagem e a regulação da comunicação como condições que influem no processo de aprendizagem dos alunos (Ponte & Oliveira, 2002; Mendes, 2012).
4.1.1. Conhecimento sobre a capacidade de comunicação dos alunos
A partilha e reflexão sobre o desempenho dos alunos nas tarefas que antecederam a aula de investigação, de que mais à frente daremos conta, foram um forte contributo para tornar os participantes mais atentos, não só aos processos de raciocínio e dificuldades dos alunos, mas também à sua linguagem, levando-os a atribuir maior importância às expressões usadas nos enunciados. Inicialmente, determinadas expressões que lhes pareciam ser de uso comum, acabaram por se constituir barreiras que condicionavam o entendimento do enunciado pelo facto de não fazerem parte do reportório vocabular da totalidade dos alunos. À medida que as tarefas iam sendo aplicadas, os resultados iam sendo objeto de análise e de reflexão contribuindo para que os participantes fossem antecipando dificuldades, delineando estratégias e (re)organizando a construção das tarefas seguintes. Essa discussão contribuiu para o aprofundamento do conhecimento sobre o aluno e do seu modo de pensar. O diálogo seguinte mostra a consciencialização da necessidade de haver uma maior preocupação na escrita dos enunciados:
Gorete: Quando apliquei a tarefa do dobro, e é daquelas coisas que não pensámos no momento, foi não prever a dificuldade dos alunos em perceber o significado da expressão «dose referida». Alterei no enunciado para o «dobro dos ingredientes da receita» porque está mais perto da linguagem deles. Destaquei a bold a palavra «dobro» porque passou despercebida na leitura e isso levou a que alguns alunos não percebessem que tinham de duplicar o número de ingredientes para poder fazer o bolo.
Luís: Eu também dei com uma assim parecida... Mas noutra tarefa. Foi na tarefa das linhas e das colunas. Eles diziam que a figura tinha 5linhas quando na verdade tinha 4. E eu pensei... “Espera lá! Eles são 14 alunos e quase metade está a enganar-se nisto! Eu devo estar a ver isto mal”. Perguntei a um aluno “Explica-me lá o que é que vocês estão a contar?” [e este disse] “Ó professor então tu não estás a dizer quantas linhas? Sabemos que as linhas são assim quando fazemos o jogo do SUDOKU, e a coluna assim...”
Sofia: Ah! Eles contavam mesmo a linha, o risco...
Luís: Sim. Eram 7 alunos da turma a fazer este tipo de raciocínio. Para eles o tamanho das linhas e da coluna não era o tamanho do quadrado, era só o risco. (GA, S3)
Nas primeiras sessões que antecederam a aula de investigação, e durante a aplicação da sequência didática, por parte dos participantes, é evidente a consciencialização da dificuldade que os alunos manifestavam na comunicação verbal e escrita das estratégias quando Sofia referiu: “Eu apliquei a tarefa 3 e foi muito fácil. O difícil foi eles explicarem o porquê. Eles conseguem (...) às vezes chegar ao resultado, mas têm muitas dificuldades em explicar as estratégias e verbalizar o pensamento” (GA, S4). Luís acrescentou: “Pois, o porquê. Mas eu também noto muito isso” (GA, S4). A consciencialização das dificuldades dos alunos em expressar o seu pensamento reforçou a preocupação dos participantes para que fossem usadas tarefas que apelassem ao desenvolvimento da capacidade de comunicar, argumentar e justificar as estratégias encontradas, ao mesmo tempo que os docentes iam introduzindo novas situações na sua prática letiva, tornando-os mais atentos ao processo de pensamento dos seus alunos, especialmente quando traziam para debate e reflexão os resultados do desempenho da turma. Esta forte relação estabelecida entre a partilha de experiências e a sua prática de ensino, também evidenciada por outros autores (Ponte et al., 2017; Ni Shuilleabhain & Clivaz, 2017), e o apoio do grupo que Sofia e Luís foram sentindo deu-lhes maior segurança para querer experimentar tarefas de cariz mais exploratório na sua prática letiva.
4.1.2. Conhecimento sobre as estratégias e dificuldades dos alunos.
À medida que as sessões decorriam alguns dos participantes, como Sofia, foram admitindo que “não é assim tão óbvio como nós pensávamos que seria para eles” (GA, S4) referindo-se às dificuldades manifestadas por alguns alunos na realização das tarefas propostas. Exemplo dessa consciencialização ocorreu na partilha das observações sobre o desempenho dos alunos na tarefa, após a aula de investigação, quando Sofia se mostrou surpreendida pelo desempenho inesperado de alguns dos seus alunos:
Luísa: Ele dizia assim: “A calça castanha já a vestiu com a camisola amarela já não a pode vestir com mais nada...”
Sofia: Mas quem é que disse isso? O Diogo ou o João?
Luísa: O João.
Sofia: Pois, eu não estava a prever é que o João tivesse essa limitação no raciocínio. A sério, eu tinha outras expectativas daqueles dois grupos que estiveste a observar...
Luísa: Olha este grupo, o que escreveu (grupo do Xavier e do Vicktor): «Há 6 maneiras de vestir». Este percebeu o que era a combinação. E tanto percebeu como reparem só na organização... Os miúdos que perceberam a combinação distinguem-se logo no modo como dispuseram as peças. Olha a organização dele: Calça azul, calça castanha, calça azul, calça castanha...
Sofia: Este, eu não estava à espera! Eu não pensei que o desempenho do Xavier fosse assim tão bom e apresentasse uma boa organização, nem a Verónica até porque ela esteve uma semana em casa. Eu até me surpreendi. (GA, S9)
Luísa mostrou igualmente a sua surpresa porque “não estava à espera que houvesse miúdos que conseguissem chegar à multiplicação assim logo no primeiro problema. Não foi necessário que introduzisses, ela apareceu” (GA, S9). Note-se que em todas as sessões que antecederam a aula de investigação, a posição de Luísa era a de que os alunos dificilmente iriam conseguir chegar à multiplicação no primeiro problema.
O depoimento de Luís, após a replicação da tarefa na sala de aula com os seus alunos, também deixou evidente a surpresa que teve quando afirmou ter sido “...frustrante porque estava à espera que algum dos meus alunos fosse logo à multiplicação no primeiro problema. Eu queria mais resultados e não tive. Mas no segundo problema já diversificaram as estratégias e chegaram lá” (DB, S10).
Os participantes consideraram que o uso do material concretizador distribuído foi importante para que os alunos tivessem conseguido compreender, através da manipulação, as combinações possíveis. A discussão coletiva, e à semelhança do referido por outros autores (Ponte, 2005; Ponte et al., 2017), foi crucial para consolidar aprendizagens e potenciar a discussão de diferentes estratégias. Para Luísa, se não tivesse havido a discussão com a apresentação de diversas possibilidades de resolução “não teria havido essa diversidade de estratégias apresentadas na segunda parte da tarefa e não tinham chegado tantos alunos ao uso da multiplicação, como chegaram” (GA, S9).
A reflexão sobre o desempenho dos alunos, quer durante a fase de preparação da aula de investigação, quer nesta aula, mostrou aos professores tanto a existência de dificuldades inesperadas por parte de alguns alunos, como a capacidade de outros de formularem estratégias e usarem ideias matemáticas importantes. Estas constatações constituíram um importante enriquecimento do conhecimento sobre os alunos, pelos participantes.
Em síntese, e no que diz respeito à vertente do conhecimento do aluno e dos seus processos de aprendizagem, as evidências sugerem que os participantes ampliaram o conhecimento sobre os seus alunos encontrando-se mais despertos para a construção dos enunciados das tarefas e a escolha das expressões, para a necessidade de criar oportunidades e planificar atividades que apelem ao desenvolvimento da comunicação e à capacidade de explicitação e argumentação do pensamento dos alunos, como momentos potencialmente ricos.
4.2. Conhecimento da prática letiva: planificação e tarefas
A escolha do tópico teve como ponto de partida uma leitura global dos conteúdos previstos para o mês de janeiro. Entre a divisão e a multiplicação, os participantes optaram pela multiplicação por considerarem ser essa a operação em que os alunos manifestam maiores dificuldades. Selecionado o tópico, as sessões seguintes foram dedicadas à leitura e aprofundamento do tema em diversos documentos (Tabela I). Estas leituras preparatórias iniciais nem sempre foram bem acolhidas por alguns dos participantes, especialmente pela falta de hábito de leitura de textos académicos, tendo sido necessário que Gorete e Luísa partilhassem as suas notas no início de cada sessão chamando a atenção para aspetos particularmente importantes, como por exemplo, a existência de uma sequência para a aprendizagem da multiplicação. Esta pesquisa e debate de ideias foi essencial para a consciencialização da importância da planificação da sequenciação didática, da conceção da tarefa e da aula de investigação.
4.2.1. Seleção de tarefas e identificação de conhecimentos prévios.
Seguindo a perspetiva de alguns autores (Brocardo et al., 2005; Mendes, 2012; Rocha & Menino, 2009) no que se refere à planificação das aprendizagens, e para chegar à tarefa com o sentido combinatório da multiplicação da aula de investigação, o grupo concordou em distribuir e explorar os diferentes conceitos com o propósito de promover a aprendizagem de níveis mais baixos de estruturação das operações (sentido aditivo) para níveis mais elevados, mobilizando e desenvolvendo conhecimentos a respeito do processo de ensino. Ao viver a experiência no papel de aluno, quando resolviam as tarefas e relatavam as dificuldades que teriam os seus alunos na sua resolução, permitiu que fossem criadas condições para elaborar e preparar uma sequência de tarefas. Para introdução do cálculo por contagens através de adições sucessivas construíram-se duas tarefas: “pacotes de leite” e “cartas do Lidl”. Na primeira eram distribuídos dois pacotes de leite por aluno e solicitado que fosse calculada a quantidade de pacotes distribuídos apresentando os cálculos no quadro. A partir das representações surgidas (adição repetida) e do diálogo e reflexão daí resultante seria introduzida a simbologia × (vezes) e tudo o que ela representa. A segunda tarefa continha situações problemáticas onde os alunos eram chamados a calcular o número total de cromos sabendo o número de cromos em cada saqueta, podendo socorrer-se da multiplicação, ou da adição repetida.
À medida que o grupo ia discutindo e antecipando qual a melhor estratégia de introduzir a tabuada do 2 tendo em conta o conhecimento dos alunos e dos seus processos de aprendizagem, Luísa sugeriu a possibilidade de se poder recorrer a uma tarefa exploratória. A partir de um exemplo onde era solicitado aos alunos para descobrir o número de sapatos existentes em 10 sacos, sabendo que cada saco tinha um par de sapatos, adaptaram-se algumas das questões de modo a levar os alunos a descobrir regularidades, e a partir destas, construir a tabuada do 2. A discussão seguinte mostra o caminho tomado para a escolha da tarefa:
Luísa: Esta aqui é uma tarefa de descoberta [referindo-se à tarefa dos sacos] porque reparem é uma tarefa onde questiona que regularidades podem encontrar...
Ana: Sim, para descobrirem que a regularidade é de 2 em 2...
Gorete: Então como é que fica? Introduzimos a tabuada com uma tarefa aberta ou fechada?
Luísa: Eu acho que era bom eles começarem a fazer tarefas que os fizessem pensar e comunicar.
Sofia: A tarefa exploratória em vez do exercício porque no fundo nós queremos que eles cheguem à tabuada...não queremos apresentar-lha logo! (GA, S3)
Definida a tarefa, a sua estrutura, o modo e o momento de aplicação seguiu-se a planificação do conceito seguinte atendendo à pertinência para o desenvolvimento da aprendizagem progressiva. Perante a opção de trabalhar a tabuada do 4 e de introduzir a noção do dobro, decidiu-se introduzir a noção do dobro e só depois a tabuada do 4 pelo facto de os participantes considerarem haver “...maior relação” (Luísa, GA, S3), sendo que “a tabuada do 4 pode vir espontaneamente a seguir [ao dobro]. Podíamos utilizar a receita de um bolo para dar o dobro” (Sofia, GA, S3).
Tendo como preocupação a progressão das aprendizagens construiu-se um guião com a sequência das tarefas a aplicar e os conceitos a explorar com os alunos nas aulas que antecederam a aula de investigação (Tabela II).
Tarefa | Conceitos visados |
Tarefa 3 “Linhas e colunas” |
Multiplicação na estrutura retangular e propriedade comutativa da multiplicação. |
Tarefa 4 “tabuada do 2” |
A partir do cálculo de pares de sapatos, e da
descoberta de regularidades no preenchimento de uma tabela, introduzir a tabuada do 2. |
Tarefa 5 “bolo do iogurte” |
Noção de dobro a partir da resolução de um problema
que envolvia a receita de um bolo. |
Tarefa 6 “tabuada do 4” |
Construir a tabuada do 4 a partir da tabuada do 2 e do conceito de dobro. Trabalhar as regularidades dos produtos da tabuada do 4 para introduzir o conceito do quádruplo. |
Tarefa 7 “tarefa combinatória” |
Multiplicação no sentido combinatório. |
A operacionalização da aplicação das tarefas de modo sequencial, e em datas predefinidas, permitia igualmente que, em diversas reuniões, fossem trazidos os produtos das tarefas para que os participantes pudessem, em função da análise dos resultados e das estratégias usadas pelos alunos nas diferentes turmas, (re)orientar a construção da tarefa relativa à multiplicação combinatória para a aula de investigação, assim como conhecer e aprofundar o conhecimento sobre o pensamento dos alunos para melhor antecipar e delinear estratégias de superação de dificuldades.
4.2.2. Conceção da estrutura da aula de investigação.
Na S7, que antecedeu a aula de investigação, a primeira parte foi destinada à resolução da tarefa pelos participantes, à antecipação de dificuldades dos alunos e à definição de estratégias para as ultrapassar. Foram partilhadas e discutidas sugestões de melhoria ao nível da apresentação gráfica dando-se especial atenção à redação dos enunciados, tendo Sofia sugerido que “devemos ter em atenção a linguagem que vamos usar no problema para eles [alunos] perceberem que têm que fazer combinações com as peças e, por isso, seria melhor escrever «conjuntos diferentes»” (GA, S7).
Na segunda parte da sessão procedeu-se à planificação da estrutura da aula de investigação e do trabalho de observação. Foram definidos os segmentos da aula e atribuídos os respetivos tempos a cada um, totalizando 75 minutos, como mostra a Tabela III.
Segmentos | Tempo |
1. Apresentação da tarefa | 5 minutos |
2. Trabalho autónomo | 25 minutos |
3. Discussão | 20 minutos |
3. Trabalho autónomo | 15 minutos |
4. Discussão e síntese final | 10 minutos |
Convencionou-se o modo de apresentação da tarefa, a condução da aula e as indicações e alertas que a professora deveria dar aos alunos, em cada momento, registando-se as decisões num guião. Fez-se a atribuição de papéis (quem fazia o quê), foi planificada a disposição dos alunos na sala de aula, os materiais necessários para cada par, o modo de atuar dos diferentes intervenientes em cada momento e atribuíram-se os alunos aos observadores, tendo cada um deles ficado responsável pela observação de 2 pares de alunos. Todas estas decisões foram aprendizagens importantes para os participantes por considerarem que no seu dia a dia não fazem um estudo e previsão tão minucioso da planificação, aplicação e condução das atividades letivas com objetivos curriculares tão definidos e a pensar no conhecimento que cada aluno possui. Era evidente a surpresa de Luís e de Sofia quando dizem não fazer “ideia de que era necessário ser tão rigoroso na preparação de tudo o que vai acontecer, desde a atribuição de tempos até ao nosso modo de atuar e de conduzir a aula” (Luís, GA, S7).
Por fim, passou-se aos procedimentos da recolha de dados de observação definindo-se o que se iria observar, como e onde poderia ser registado, elaborando-se um guião com as sugestões dadas. Esse episódio da sessão foi particularmente rico nas intervenções tendo os participantes dado sugestões pormenorizadas de registos para os quais teriam que estar atentos durante a observação, o que evidencia uma crescente tomada de consciência do conhecimento do aluno e da cultura de aprendizagem. O ambiente foi sempre muito participado com a exposição e esclarecimento de dúvidas sobre todos os procedimentos a ter em todos os segmentos da aula de investigação demonstrando, por vezes, alguma ansiedade e nervosismo, especialmente por parte de Sofia, porque seria ela a conduzir a aula.
Tarefas. A leitura e discussão, nas primeiras sessões (Tabela I), de textos sobre a natureza das tarefas (Ponte, 2005; Ponte et al., 2017) incidindo sobre a diferença entre tarefas exploratórias e exercícios, a importância da identificação de fases da aula numa aula exploratória, da planificação detalhada do modo de conduzir a aula e a discussão coletiva revelou-se essencial para clarificar o tipo de tarefa a elaborar para a aula de investigação uma vez que, como referiu Luísa, pretendia-se “...conhecer melhor os processos de raciocínio dos alunos e as estratégias usadas para resolver a tarefa em vez de os observar a resolver um simples exercício que não nos dá conhecimento novo”(GA, S2).
Material a utilizar pelos alunos. Por verificarem que nenhuma das tarefas entretanto identificadas se adequava ao objetivo pretendido, os participantes optaram por construir uma tarefa exploratória. Luísa sugeriu “que fosse dado material concretizador aos miúdos porque (...) eles precisam muito de experimentar e de visualizar” (GA, S3). Atendendo à idade e ano de escolaridade pensou-se que o mais adequado seria fazer combinações de peças de roupa (camisolas e calças). Escolhido o tema, teve lugar a discussão de ideias e sugestões que foram levando à tomada de decisões sobre a conceção da tarefa em função do objetivo pretendido -conhecer os processos de raciocínio e as estratégias dos alunos para resolverem situações problemáticas utilizando o sentido combinatório da multiplicação.
Os participantes começaram por decidir que o primeiro problema da tarefa deveria ser acompanhado com material manipulável recortado de modo a que os alunos pudessem usar para experimentar as suas opções “porque o que nos interessa é observar as estratégias utilizadas pelos alunos na tarefa, não é o recorte” (Luísa, GA, S4). Na perspetiva de Luísa, Ana e Sofia, o facto de os alunos poderem manusear e experimentar o material ajudaria aqueles que tivessem maiores dificuldades a visualizar como é que poderiam conjugar as várias possibilidades.
Seguidamente, discutiu-se o número de peças a distribuir pelos alunos. O clima de empatia no seio do grupo contribuiu progressivamente para o aumento da confiança e para a consciencialização da importância de pensar aprofundadamente nos processos de aprendizagem dos alunos, pelo que foram equacionados vários cenários. Os participantes começaram por pensar em distribuir peças de roupa na quantidade mencionada no enunciado (2 calças e 3 camisolas). Ana interveio sugerindo: “Imagina que dás esse número de peças recortadas. Provavelmente muitos dos alunos vão deixar uma camisola de fora porque podem ficar limitados nas possibilidades de poder combinar as calças com as camisolas” (GA, S5). Luísa concordou e acrescentou que “...se deveria dar a mais para os obrigar a pensar mais um pouco” (GA, S5).
Foi então discutida a possibilidade de ser distribuído o número de peças de roupa de acordo com as combinações possíveis (6 calças e 6 camisolas). Contudo, no entender de Luís, “essa possibilidade poderia induzir a resposta e o raciocínio de alguns alunos influenciando o modo como poderiam resolver a tarefa” (GA, S5) uma vez que os alunos ficariam com uma indicação sobre o número de combinações corretas, não sendo, por isso, a opção mais adequada. Por fim, equacionou-se dar mais peças do que a quantidade necessária (7 calças e 7 camisolas). Entendeu-se que era a situação que menos limitava o pensamento dos alunos no que se referia às possíveis combinações a fazer. Além disso, os participantes foram de opinião que essa opção permitiria conhecer melhor o processo de pensamento dos alunos, uma vez que os impelia a ter um raciocínio mais elaborado para perceber que tinham peças de roupa a mais para as possibilidades corretas.
Os participantes decidiram que só no primeiro problema os alunos teriam figuras com as peças de roupa para os ajudar a organizar o seu pensamento. No entanto, estavam conscientes de que estariam a limitar a estratégia usada pelos alunos sendo expectável que a grande maioria, senão todos, recorresse a representações ativas para resolver o problema. O desafio estaria mais no número de combinações que cada par iria conseguir descobrir.
Na segunda parte da tarefa não seria distribuído material e esperava-se que os alunos aplicassem os conhecimentos adquiridos. Para isso, era necessário, no final do primeiro problema, haver lugar para a discussão coletiva das representações e do número de possíveis combinações encontradas por cada um dos pares, mas também de outras que seriam apresentadas pela professora (sob a forma de tabela, esquema em árvore ou expressão numérica), no caso de nenhum grupo as apresentar. Só depois da discussão, os alunos poderiam resolver o segundo problema. O objetivo era poder observar se algum dos pares iria recorrer à expressão «4×3=12» como estratégia de resolução imediata ou, se pelo contrário, após a discussão coletiva, os alunos continuavam a recorrer à representação ativa usada inicialmente, não se observando evolução nas estratégias usadas para resolver o problema.
Estrutura e enunciado da tarefa. Decidido o número de peças a entregar por grupo, as cores das peças de roupa a usar no enunciado e o facto de serem os alunos a pintar as peças, colocava-se outra questão relativa à extensão da tarefa, uma vez que “se os alunos vão pintar as peças temos de limitar o número de problemas porque é necessário dar-lhes tempo para pintar, combinar, colar e responder” (Gorete, GA, S6). Atendendo ao facto de a tarefa ser planeada para um período não superior a 75 minutos, considerou-se que o enunciado não deveria ter mais do que duas situações problemáticas. Contudo, Ana questionou como seria possível estender a tarefa a partir de um só problema:
Ana: Mas é que tu só apresentas um enunciado. É só uma tarefa!!!!
Gorete: Mas podes ter várias perguntas....
Ana: Mas é que... Como é que tu partindo deste problema fazes mais do que uma pergunta? Isso é o que eu quero saber?!
Gorete: Podes, a partir do problema da roupa, estender a tarefa aumentando o número de peças. Podes acrescentar outra pergunta do género: E se o Paulo tivesse 3 calças e 4 camisolas, quantas combinações poderia fazer?
Luísa: Exatamente! Ou: ele recebeu mais uma camisola e outro par de calças...
Ana: Pois... Já percebi! (GA, S6)
Ainda no processo de conceção do enunciado da tarefa, houve lugar ao questionamento sobre os fatores que deveriam surgir na segunda situação problemática, se seriam diferentes, ou iguais. O diálogo seguinte ilustra o modo como se chegou à decisão de serem diferentes:
Luísa: Se ficarem os 2 fatores iguais é mais difícil para eles perceberem qual é o número das calças e qual o das camisolas. Mas podíamos por 4 vezes o 3 em que o 3 corresponde às calças e o 4 às camisolas.(...) Porque pode acontecer o seguinte [um aluno diz] ‘Professora, eu aqui tenho 3×4’ (…) E outros dizerem assim: ‘Mas eu fiz pelas camisolas e foi 4×3...’
Sofia: Sim, é perfeitamente aceitável...
Luísa: E se for 3×3 já é difícil para eles justificarem e não chegamos a perceber se eles perceberam ou não a qual das peças corresponde cada um dos fatores porque os fatores são iguais.
Ana: Concordo.
Sofia: Devemos evitar isso, não é? (GA, S6)
Todas as decisões sobre a estrutura da aula de investigação, do enunciado da tarefa e o material a disponibilizar aos alunos, representaram avanços significativos no percurso de aprendizagem dos participantes ao terem oportunidade para, colaborativamente, contextualizar representações das suas atividades e refletir sobre elas (Bezerra, 2017; Ponte et al., 2016; Soto Gómez & Pérez Gómez, 2015).
4.3. Conhecimento da prática letiva: preparação da condução da aula de investigação
Da análise de conteúdo emergem alguns indicadores que evidenciam aprendizagens no que diz respeito à condução e gestão da aula de investigação. Na S7, que antecedeu esta aula, fez-se a planificação pormenorizada sobre o modo de conduzir o momento da apresentação das estratégias usadas pelos alunos. No momento da discussão, e sob orientação da professora, cada par seria chamado a apresentar a sua estratégia de acordo com o que Sofia foi observando no momento de trabalho autónomo começando por chamar os alunos que apresentavam um raciocínio menos complexo para o mais estruturado (Brocardo et al., 2005; Mendes, 2012; Rocha & Menino, 2009).
Contudo, Sofia manifestou dúvidas sobre como, na prática, deveria conduzir a discussão para levar os alunos ao uso da expressão numérica da multiplicação tendo em conta de que no primeiro problema a tendência seria a de usarem a mesma estratégia de resolução (representação ativa) por lhes ser distribuído material manipulável:
Depois deles apresentarem as suas estratégias como é que faço para chegar à multiplicação se nenhum grupo lá chegar? Como é que se faz a passagem daqui para a tabuada? (GA, S7)
Luísa sugeriu:
Para eles perceberem podemos fazer assim: Então vamos arrumar primeiro as calças azuis e ver as hipóteses que temos. Depois [ir] pelas calças castanhas e ver com quantas camisolas podemos combinar. E para isso usar imagens que ficam no quadro e ir registando as hipóteses. E depois perguntar: Será que podemos usar a multiplicação? Como é que podemos resolver isto sem ser a somar?” (Luísa, GA, S7)
As inseguranças manifestadas por Sofia durante a sessão contrastam, de certa forma, com a confiança transmitida ao longo das sessões anteriores no modo como participou e colaborou na planificação das diferentes tarefas da sequência didática e como partilhou as experiências do desempenho dos seus alunos em contexto de sala de aula. Porém, a sequenciação das ações a desenvolver em cada momento transmitiu-lhe uma maior tranquilidade, para além de tornar mais claro a importância da antecipação e planificação pormenorizada das aprendizagens e do ambiente de sala de aula. O envolvimento e aprendizagem, por parte dos participantes, foram visíveis ao longo da sessão de preparação da aula de investigação pelas diversas questões que foram colocando, não só sobre os aspetos organizacionais e materiais, mas sobretudo da condução da aula, tendo estes momentos de aprendizagem sido referenciados, pelos participantes, como aspetos marcantes na sua aprendizagem em diversos momentos (DB, S7; DB, S9).
5. Balanço da participação no estudo de aula
Na última sessão foi feito um balanço da experiência do EA. Os participantes destacam desde logo o ambiente de partilha e de colaboração que se foi instituindo ao longo das sessões como fatores essenciais na aprendizagem que desenvolveram, como exemplifica o excerto seguinte:
Luís: Eu já desconfiava que isto seria muito enriquecedor. Eu tenho sofrido de isolamento e esta experiência foi uma verdadeira partilha e um verdadeiro trabalho colaborativo.
Sofia: Faz falta isto, não é? Eu também sinto um pouco o isolamento e a falta de partilha...
Luísa: Sabem o que eu acho? Eu já disse isto à Gorete: Eu estou muito contente por estar no grupo e vejo-vos empenhados e gosto de vos ver empenhados. Sinto que isto é que é o verdadeiro trabalho colaborativo...
Ana: E é. (EC, S11)
Na fase da preparação, os participantes destacam a importância da antecipação das dificuldades, o pensar sobre o modo como os alunos poderão reagir à tarefa e a delineação de estratégias de acordo com os objetivos curriculares como etapa essencial ao contribuir para o aprofundamento do conhecimento sobre o aluno e, naturalmente, do conhecimento sobre o ensino. Para Ana, essa consciencialização de anteciparmos “e pensar «eles vão fazer assim, o melhor é ter já isto». Quando estamos sozinhos temos apenas uma visão e quando estamos em grupo uma pensa de uma maneira, outra pensa de outra e isso funciona como espelho que nos alerta: «espera lá, pois é, e se for assim?” (DB, S10), sendo esse processo muito enriquecedor nesta experiência. Sofia destaca o facto de poder “trazer os resultados para poder refletir sobre eles com outras pessoas” (EC, S11) como fator importante na aprendizagem profissional, à semelhança dos resultados de outros estudos (Bezerra, 2017; Ponte et al., 2017; Quaresma & Ponte, 2017).
Quando questionados sobre a fase da realização da aula de investigação, Sofia referiu ter sido bom “passar pela experiência de dar a aula ainda que estivesse muito nervosa no início, porque me obrigou a desempenhar um papel mais contido e isso fez com que estivesse desperta para observar o desempenho dos alunos com outro olhar” (EC, S11). Luísa, a propósito da aula de investigação, e sobre o papel de observadora, referiu que observar e interpretar o pensamento, diálogos e o raciocínio dos alunos foi algo que lhe deu especial satisfação e “se pudesse fazia só isso: observar os miúdos, como é que eles pensam. Eu não queria outra coisa na vida. No dia-a-dia raramente consigo fazer isso, mas gosto muito de o fazer...” (EC, S11).
6. Conclusão
À semelhança do relatado em outros estudos (Bezerra, 2017; Quaresma & Ponte, 2017; Soto Gómez & Pérez Gómez, 2015; Murata et al., 2012; Widjaja et al., 2017) os resultados confirmam o potencial do EA enquanto processo de desenvolvimento profissional trazendo para os participantes novas perspetivas sobre o conhecimento do aluno e do seu processo de aprendizagem, passando a dar mais atenção à linguagem e expressões usadas nos enunciados das tarefas pelo facto de muitas das vezes serem uma barreira ao seu pleno entendimento pelo aluno (Mendes, 2012). Os resultados mostram que os participantes manifestam estar mais despertos para a importância do ensino-aprendizagem exploratório no ensino da Matemática passando a valorizar as tarefas abertas e os momentos de discussão coletiva.
No que se refere à prática letiva reconhecem-se igualmente aprendizagens significativas. Os participantes aprofundaram conhecimentos sobre o modo como os conceitos podem ser trabalhados na aprendizagem da multiplicação para que os alunos se apropriem, e compreendam, a estrutura multiplicativa. Valorizaram aspetos como o diagnóstico, a planificação dos conceitos prévios e a possibilidade de trazer os resultados do desempenho dos alunos para análise, discussão e reflexão coletiva como fatores que contribuíram para um maior conhecimento sobre as dificuldades dos alunos, e do seu processo de aprendizagem.
Emergem ainda aprendizagens significativas referentes à escolha e conceção de tarefas abertas, à planificação da estrutura da aula de investigação e à criação de condições propiciadoras de uma cultura de sala de aula favorável a aprendizagens mais participadas dos alunos. Manifestam estar mais conscientes da importância da preparação antecipada dos momentos de discussão coletiva para a comunicação de estratégias e institucionalização de conhecimentos pela influência que estes têm na compreensão e apropriação dos conceitos pelos alunos.
Quanto à dinâmica do processo formativo, o ambiente contribuiu para o comprometimento do grupo favorecendo o trabalho colaborativo, a partilha e reflexão, e a vontade e segurança para querer experimentar novas práticas. O presente EA traz ainda mais-valias pelo facto de ter sido essencialmente dinamizado de modo interno ao Agrupamento, e ter sido dada uma grande atenção ao trabalho preparatório da construção de um percurso de aprendizagem dos alunos para chegar à aula de investigação, situações pouco presentes em outras investigações. O modo como este EA foi realizado, descrito na metodologia e nos resultados, dá pistas para a realização de EA semelhantes noutros contextos.
Este estudo aprofunda os resultados de estudos anteriores (como Bezerra, 2017; Sack & Vazquez, 2011; Ni Shuilleabhain & Clivaz, 2017; Widjajaet al., 2017), sobre o desenvolvimento do conhecimento didático do professor e a sua mobilização na prática letiva. Incidindo num tópico específico, a aprendizagem da multiplicação, este estudo evidencia as potencialidades do EA na promoção e desenvolvimento do conhecimento didático dos professores ao contribuir para que estes ampliem o conhecimento sobre o aluno e os seus processos de aprendizagem, bem como no que se refere ao conhecimento da própria prática. Saber em que medida estas aprendizagens se tornam visíveis na prática letiva de forma continuada, será matéria para futuras investigações.