SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.26 número2La ansiedad hacia la enseñanza de las matemáticas en maestros en formación inicial índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Links relacionados

  • No hay artículos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Revista latinoamericana de investigación en matemática educativa

versión On-line ISSN 2007-6819versión impresa ISSN 1665-2436

Relime vol.26 no.2 Ciudad de México jul. 2023  Epub 17-Sep-2024

https://doi.org/10.12802/relime.23.2624 

Artigos

Investigando a prática do professor no ensino de frações num contexto de trabalho colaborativo

Investigating teacher practices on fractions in a collaborative work context

* CIEC-Universidade do Minho. Braga, Portugal. paula.c.cardoso@outlook.com

** CIEC-Universidade do Minho. Braga, Portugal. emamede@ie.uminho.pt


Resumo

Este estudo tem como objetivo compreender as práticas de ensino de professores do 1º ciclo do Ensino Básico na introdução do conceito de fração aos seus alunos. Procura responder-se às questões: 1) Como o professor introduz o conceito de fração aos seus alunos? 2) Como o professor explora as interpretações de fração nas suas aulas? 3) Que dificuldades manifesta o professor no ensino de frações? Adotou-se uma metodologia qualitativa numa abordagem de estudo de caso para análise de seis aulas observadas de uma professora que participou num programa de trabalho colaborativo, centrado no ensino de frações. Os resultados sugerem algumas fragilidades no conhecimento matemático e didático do professor sobre frações, nomeadamente nas interpretações de fração, sua abordagem e articulação na aula de matemática.

Palavras chave: Ensinar frações; Aprender frações; Conhecimento do professor; Trabalho colaborativo

Resumen

Este estudio tiene como objetivo comprender las prácticas de enseñanza de los docentes del 1er ciclo de Educación Básica al momento de introducir el concepto de fracciones a sus estudiantes. Se busca responder a las preguntas: 1) ¿Cómo introduce el docente el concepto de fracción a sus alumnos? 2) ¿Cómo explora el profesor la interpretación de fracciones en sus clases? 3) ¿Qué dificultades experimenta el docente al enseñar fracciones? Se adoptó una metodología cualitativa en un enfoque de estudio de caso para analizar seis clases observadas de un docente que participó de un programa de trabajo colaborativo, enfocado en la enseñanza de fracciones. Los resultados sugieren algunas debilidades en el conocimiento matemático y didáctico del profesor sobre fracciones, concretamente en la interpretación de las fracciones, su abordaje y articulación en las clases de matemáticas.

Palabras clave: Enseñanza de fracciones; Aprendizaje de fracciones; Conocimiento del profesor; Trabajo colaborativo

Abstract

This study aims to understand the teaching practices of teachers in the 1st cycle of Basic Education when introducing the concept of fractions to their students. It seeks to answer the questions: 1) How does the teacher introduce the concept of fraction to his students? 2) How does the teacher explore fraction interpretations in his classes? 3) What difficulties does the teacher experience in teaching fractions? A qualitative methodology was adopted in a case study approach to analyze six observed classes of a teacher who participated in a collaborative work program, focused on teaching fractions. The results suggest some weaknesses in the teacher’s mathematical and didactic knowledge about fractions, namely in the interpretations of fractions, their approach and articulation in mathematics classes.

Key words: Teaching fractions; Learning fractions; Teacher’s knowledge; Collaborative work

Résumé

Cette étude vise à comprendre les pratiques pédagogiques des enseignants du 1er cycle de l’Éducation de base lors de l’introduction de la notion de fractions à leurs élèves. Il cherche à répondre aux questions: 1) Comment l’enseignant introduit-il la notion de fraction à ses élèves ? 2) Comment l’enseignant explore-t-il les interprétations des fractions dans ses cours? 3) Quelles difficultés l’enseignant rencontre-t-il dans l’enseignement des fractions? Une méthodologie qualitative a été adoptée dans une approche d’étude de cas pour analyser six classes observées d’un enseignant ayant participé à un programme de travail collaboratif axé sur l’enseignement des fractions. Les résultats suggèrent certaines faiblesses dans les connaissances mathématiques et didactiques de l’enseignant sur les fractions, notamment dans l’interprétation des fractions, leur approche et leur articulation dans les cours de mathématiques.

Mots clés: Enseigner les fractions; Apprendre les fractions; Connaissances des enseignants; Travail collaborative

1. Introdução

Em Portugal, as mais recentes orientações curriculares (Direção Geral de Educação [DGE], 2021) antecipam um contato mais aprofundado ao conceito de fração, nos níveis iniciais do Ensino Básico (6-10 anos de idade), sendo sugeridas atividades para a aula que envolvam diferentes interpretações de fração, nomeadamente quociente, parte-todo e operador. Contudo, estas diferentes interpretações não parecem ser totalmente dominadas pelos professores.

O conceito de fração é frequentemente, e muitas vezes exclusivamente, abordado nas interpretações parte-todo e operador (Behr et al., 1992; Cardoso e Mamede, 2023; Kerslake, 1986; Monteiro e Pinto, 2005). Muitas vezes, o professor apresenta uma figura geométrica (retângulo ou círculo) dividida em partes iguais, estando uma destas partes sombreada (Cardoso e Mamede, 2021, 2023; Mamede et al., 2021). A fração surge assim como uma relação entre a parte sombreada e o número total de partes em que a figura foi dividida. Contudo, este tipo de ensino fornece aos alunos uma visão limitada do conceito de fração. Nomeadamente, limita o desenvolvimento da ideia de que uma fração pode ser maior do que ‘um’. De fato, e de acordo com Kerslake (1986), o procedimento de apresentar-se a fração como um ‘todo’ dividido em partes iguais não se adequa facilmente a frações maiores do que a unidade. Assim sendo, as atuais orientações curriculares (ver DGE, 2021) implicam a mobilização de conhecimento matemático e didático, considerado inovador na realidade portuguesa, requerendo, portanto, ao professor maior conhecimento nesses âmbitos. Desejavelmente, o professor deverá dominar a representação, a ordenação e a equivalência de frações, bem como as suas diferentes interpretações, para poder ajudar os alunos a construir um completo conceito de número racional (ver Behr et al., 1983; Behr et al., 1992).

Torna-se então fundamental caraterizar as práticas correntes dos professores portugueses, nos níveis iniciais do Ensino Básico, relativamente ao ensino de frações, com vista a identificar aspectos que possam ser melhorados, beneficiando a comunidade escolar.

2. As interpretações de fração

O pleno domínio do conceito de fração pressupõe o domínio da representação e da operação com frações em todas as suas interpretações (Behr et al., 1983; Nunes et al., 2004). É possível encontrar na literatura diferentes classificações de interpretações de fração. Kieren (1976) apresenta os seguintes subconstructos de número racional: frações; frações decimais; classes equivalentes de frações; números da forma pq, com p e q inteiros e q≠0; operadores multiplicativos; elementos de um campo ordenado infinito; e medidas ou pontos numa reta numérica. Behr et al. (1983), por sua vez, sugeriram os subconstructos parte-todo, decimal, razão, quociente, operador e medida. Mais tarde, Kieren (1993) considerou os subconstructos de medida, quociente, razão e operador. Mack (2001) propôs uma outra classificação, utilizando o termo ‘partitioning’ para abranger as interpretações parte-todo e quociente. Posteriormente, Nunes et al. (2004) sugeriram uma classificação baseada no significado dos valores envolvidos na fração, distinguindo as situações quociente, parte-todo, operador e quantidades intensivas.

Na interpretação quociente, o denominador e o numerador da fração representam, respetivamente, o número de recetores e o número de itens inteiros contínuos a dividir pelos recetores (ex.: 2/3 representa 2 barras de chocolate repartidas por 3 crianças). Nesta situação, a fração representa ainda a parte de item que cabe a cada recetor (ex.: 2/3 representa a quantidade de chocolate que cada criança recebe). Na interpretação parte-todo, o denominador da fração representa o número de partes em que o todo é dividido e o numerador indica o número dessas partes que são retiradas (ex.: 2/3 de uma barra de chocolate significa que a barra foi dividida em 3 partes iguais e 2 dessas partes foram consideradas). Na interpretação operador, estão envolvidas quantidades discretas: o denominador representa o número de grupos iguais em que o conjunto de elementos foi dividido e o numerador representa o número dos grupos que lhe foram retirados (ex.: 2/3 de 12 contas significa que foram formados 3 grupos iguais de contas e retirados 2 desses grupos) (Nunes e Bryant, 2008). Por último, na interpretação medida, a fração ab (a e b são números inteiros; b ≠ 0) é utilizada repetidamente para determinar-se uma distância - frequentemente, a fração é acompanhada por uma reta numérica ou uma imagem de um instrumento de medida, de modo a que os alunos, expectavelmente, meçam a distância de um ponto a outro em termos de 1b unidades (ex.: 2/3 indicam que a medida 1/3 foi usada 2 vezes). Nas orientações curriculares portuguesas em vigor (DGE, 2021), a introdução ao conceito de fração deve ocorrer no 2.º ano de escolaridade (7-8 anos de idade), envolvendo diferentes interpretações de fração, nomeadamente parte-todo e quociente, e a partir do 3.º ano as restantes interpretações.

3. O conhecimento do professor para ensinar

A ideia de que existe um conjunto de conhecimentos que são específicos para o ensino é amplamente aceite entre a comunidade científica internacional (Ball et al., 2008; Shulman, 1986). Shulman (1986) sugere a classificação do conhecimento necessário para ensinar em três categorias: a) conhecimento de conteúdo - conhecimento de teorias, princípios e conceitos de uma disciplina em particular; b) conhecimento pedagógico de conteúdo - vai para além do conhecimento de conteúdo, na medida em que trata do conhecimento necessário para ensinar, incluindo o conhecimento de estratégias que tornem o conteúdo compreensível para os alunos; c) conhecimento curricular - conhecimento do currículo, envolvendo, por um lado, a capacidade de relacionar conteúdos que os alunos estão a aprender simultaneamente noutras disciplinas (articulação horizontal) e, por outro, o conhecimento daquilo que os alunos aprenderam em anos anteriores e do que aprenderão em anos posteriores, na disciplina (articulação vertical).

Mais recentemente, Ball et al. (2008) apresentaram um quadro teórico do conhecimento do professor para o ensino específico da Matemática. Com base no modelo universal de Shulman (1986), aqueles autores sugerem que o conhecimento de conteúdo proposto por este pode ser subdividido em conhecimento de conteúdo comum e conhecimento de conteúdo especializado, incluindo ainda neste domínio um terceiro elemento - o conhecimento do horizonte matemático. Os mesmos autores sugerem ainda a subdivisão do conhecimento pedagógico de conteúdo de Shulman em conhecimento de conteúdo e alunos, conhecimento de conteúdo e ensino e conhecimento curricular.

O conhecimento de conteúdo comum é o conhecimento matemático utilizado noutros contextos para além do ensino, podendo incluir a capacidade de reconhecimento de erros, a capacidade de uma correta realização de cálculos e a capacidade de uma correta utilização de termos técnicos. Trata-se de conhecimento exigido para ensinar, muito embora não sendo específico ou exclusivo desse contexto. O conhecimento de conteúdo especializado é definido por Ball e colegas (2008) como o conhecimento matemático exclusivamente destinado ao ensino da Matemática. Inclui a capacidade de reconhecer a natureza dos erros dos alunos, bem como de interpretar esses mesmos erros. Trata-se, portanto, de um conhecimento profundo que confere a capacidade de compreender os alunos e de comunicar-lhes conteúdos num formato acessível. O conhecimento de conteúdo e alunos combina o conhecimento matemático com o conhecimento dos alunos, incluindo a capacidade de antecipação das ideias e conceções erradas dos alunos, traduz-se na familiaridade com o pensamento matemático dos alunos. O conhecimento de conteúdo e de ensino combina o conhecimento de conteúdos matemáticos com conhecimentos sobre o ensino desses mesmos conteúdos. Refere-se às decisões que são tomadas para ensinar um determinado conteúdo. Para os autores, consta desta categoria o conhecimento da sequência de procedimentos a adotar e do método para ensinar um determinado conteúdo, a capacidade de avaliação das vantagens e desvantagens de diferentes representações e a capacidade de apresentar exemplos que sejam fundamentais para promover uma compreensão dos temas mais profunda por parte dos alunos. Finalmente, o conhecimento do horizonte matemático traduz-se na consciência da relação entre os tópicos matemáticos a ensinar e a variedade de tópicos incluídos no currículo (Ball et al., 2008). A Figura 1 ilustra o quadro teórico apresentado por Ball et al. (2008).

Figura 1 Domínios do conhecimento para o ensino da Matemática (Ball et al., 2008

3.1. Conhecimento dos professores sobre frações

Estudos centrados no conhecimento dos professores sugerem que estes são consideravelmente menos confiantes e menos bem-sucedidos no domínio dos números racionais do que no domínio dos números inteiros (Ball et al., 2005). No âmbito do Rational Number Project (RNP), Post et al. (1991) conduziram um estudo em que participaram 218 professores (níveis 4-6), pretendendo-se traçar o perfil dos mesmos relativamente ao seu conhecimento sobre os números racionais. Particularmente sobre frações, os autores identificaram dificuldades com as interpretações de fração, com a ordenação e equivalência de frações.

Tirosh et al. (1998) procuraram avaliar o conhecimento de alunos da formação inicial de professores do ensino elementar (N=147). Estes autores sublinharam que o conhecimento dos participantes é segmentado e rígido, nomeadamente na redução da Matemática a uma coleção de técnicas de cálculo desprovidas de justificação formal, e muitas vezes até utilizadas de forma intuitiva. Mais ainda, concluíram que os futuros professores tendem a aplicar inapropriadamente propriedades dos números inteiros aos números racionais.

Alvarez (2010) entrevistou e observou aulas de ensino de frações de uma professora do 5.º ano do ensino fundamental. Recolheram-se dados em duas fases: a primeira antes da professora participar num curso de mestrado e a segunda durante a participação nesse mestrado. Os resultados da primeira fase sugerem uma acentuada dependência, relativamente ao manual escolar, na planificação das aulas, manifestando fraca criatividade e autonomia. Na segunda fase, a professora considerou já diferentes interpretações de fração nas aulas. No entanto, registaram-se dificuldades em sequenciar conteúdos matemáticos de forma a incluir tais interpretações.

Em Portugal, os resultados obtidos por Pinto e Ribeiro (2013) através da aplicação de um questionário a 27 alunos da formação inicial de professores para o 1.º Ciclo do Ensino Básico revelam um conhecimento limitado de número racional. Identificaram-se dificuldades com as interpretações de fração (quociente, parte-todo e operador), com a compreensão do papel da unidade de referência e com a equivalência, ordenação de frações, entre outros aspectos. Num outro estudo, Mamede et al. (2021) aplicaram um questionário a 86 alunos (futuros professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico) para analisar o seu conhecimento sobre rações. Dos resultados destacam-se: dificuldades com a compreensão do papel da unidade de referência; desconhecimento de interpretações de fração, nomeadamente da interpretação quociente; difuculdades na representação de frações na reta numérica, quando números diferentes de 1 são usados como referência na reta e quando é necessária uma redefinição de escala; dificuldades com a ordenação e equivalência de frações.

Também Copur-Gencturk (2021) realizou um estudo sobre conhecimento das operações com frações de professores dos 4.º e 5.º anos de escolaridade (N=303). Os resultados recolhidos através de um questionário online sugerem que os professores possuem uma compreensão limitada das operações com frações, particularmente da divisão. Mais centrado no conceito de fração, Powell et al. (2022) entrevistaram 19 professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental procurando saber se uma fração unitária, 1/n, resulta apenas de um todo equipartido em n partes. Cerca de 3/4 dos participantes revelaram possuir um conhecimento limitado da interpretação parte-todo, pois, para alguns, 1/3 de uma quantidade materializava-se exclusivamente numa seção que fosse uma de três partes; para os restantes, uma secção não podia ser 1/3 de um objeto particionado em três secções desiguais.

Centrando-se no ensino de frações, Cardoso e Mamede (2023) entrevistaram 31 professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico, analisando as concepções e ideias sobre as suas práticas no ensino de frações. Os resultados evidenciaram fragilidades no conceito de fração, nas diferentes interpretações de fração, e na tradução dos diferentes modos de representação de frações. Identificaram-se, ainda, dificuldades na resolução de problemas com frações, particularmente em situações que envolviam quantidades discretas e na marcação de números fracionários na reta numérica.

Apesar das dificuldades dos professores com o conceito de fração e seu ensino (ver Alvarez, 2010; Cardoso e Mamede, 2021, 2023; Copur-Gencturk, 2021; Li e Kulm, 2008; Mamede et al., 2021; Pinto e Ribeiro, 2013; Powell et al., 2022), continua a ser escassa a investigação centrada no ensino de frações. Em Portugal, as recentes alterações às orientações curriculares (ver DGE, 2021) preconizam mudanças na prática de ensino de frações. Contudo, sabe-se que, frequentemente, mudanças no currículo originam aos professores dificuldades de implementação. Dada a complexidade do conceito, esta dificuldade pode ver-se agravada (ver Mamede et al., 2021; Pinto e Ribeiro, 2013; Post et al., 1991; Tirosh et al., 1998), pelo que importa perceber se pode ser antecipada, já que condiciona a qualidade das aprendizagens dos alunos sobre frações. As dificuldades dos professores no ensino de frações, identificadas em Portugal, podem ser comuns a professores de outros países que têm visto o trabalho com números racionais fortemente marcado pela representação na forma de dízima, mas que ambicionam alargar à representação fracionária, o trabalho com estes números, nos níveis iniciais do Ensino Básico.

Conscientes do atual currículo português para o ensino da matemática, que antecipa um contato aprofundado com as frações, a pesquisa por nós desenvolvida teve como objetivo compreender as práticas de ensino de professores do 1º Ciclo do Ensino Básico na introdução do conceito de fração aos seus alunos. Procura responder-se às questões: 1) Como o professor introduz o conceito de fração aos seus alunos? 2) Como o professor explora as interpretações de fração nas suas aulas? 3) Que dificuldades manifesta o professor no ensino de frações?

4. Metodologia

Nesta pesquisa, adotou-se uma metodologia qualitativa, dado que se pretende uma descrição e interpretação de fenómenos educativos no seu ambiente natural (ver Bogdan e Biklen, 2010). Optou-se por um design de estudos de caso múltiplos (ver Yin, 2010), dado que esta opção é particularmente adequada quando se pretende responder a questões do tipo “como?” e “porquê?” e se pretende uma profunda compreensão dos acontecimentos.

4.1. Participantes

Participaram nesta investigação quatro professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico de uma escola pública do distrito de Braga: Maria, docente com dezanove anos de serviço, treze destes a lecionar no 1.º Ciclo do Ensino Básico; Ana, docente com dezoito anos de serviço no 1.º Ciclo do Ensino Básico; João, docente com nove anos de serviço a lecionar no 1.º Ciclo do Ensino Básico; Inês, docente com treze anos de serviço, dez destes a lecionar no 1.º Ciclo do Ensino Básico. Todos os docentes possuem formação especializada (Licenciatura em Educação Básica e Mestrado Profissionalizante) para leccionar no 1.º Ciclo do Ensino Básico.

4.2. Design

Aquando da introdução dos seus alunos ao conceito de fração, os professores (incluindo a Maria) estiveram envolvidos num programa de trabalho colaborativo com a investigadora - uma das autoras deste artigo. Vários autores sublinham a importância do trabalho colaborativo entre professores como forma de promoção do desenvolvimento profissional (ver Day, 2001; Roldão, 2007; Saraiva e Ponte, 2003), outros ainda referem vantagens do trabalho colaborativo entre professores e investigadores (ver Lieberman, 1992; Ponte, 2001). Saraiva e Ponte (2003) referem que a colaboração entre professores e investigadores favorece uma desejável aproximação entre a prática profissional do professor e a investigação educacional. O investigador, por seu lado, vê facilitado o acesso à prática do professor e à reflexão do professor sobre essa prática (Saraiva e Ponte, 2003).

Boavida e Ponte (2002) sublinham que no trabalho colaborativo tem lugar o desenvolvimento de atividade para atingir determinados fins, pensando, preparando, refletindo, formando e empenhando-se, pelo que a colaboração requer do professor partilha e interação do que a simples realização de diversas operações. Assim, o programa colaborativo desenvolvido organizou-se em ciclos de atividades, consistindo cada ciclo na seguinte estrutura padrão: a) reuniões conjuntas com todos os professores participantes, para reflexão sobre aulas observadas, esclarecimento de dúvidas e preparação de aulas a observar; b) observação de aulas de cada um dos professores participantes; c) entrevista individual, no final da aula, entre cada professor e a pesquisadora, para reflexão sobre a aula observada (Figura 2).

Figura 2 Ciclo padrão do programa de trabalho colaborativo 

Foram realizados cinco ciclos de atividades, cada um implementado no intervalo de uma semana. Em cada ciclo foram observadas uma a duas aulas, com duração aproximada de noventa minutos cada uma. As reuniões conjuntas para preparação das aulas incluíram: a) discussão conjunta das diferentes interpretações de fração referidas nas orientações curriculares; b) discussão conjunta das propostas dos professores e da investigadora para a introdução ao conceito de fração, seleção de tarefas para a aula, e esclarecimento de dúvidas no âmbito do conhecimento matemático e didático; c) análise e reflexão conjunta de espisódios de aulas dos professores por eles selecionados e também episódios de aulas observadas pela investigadora. Ao professor era dada autonomia para a implementação das tarefas previamente discutidas na reunião conjunta na sua aula. As tarefas apresentadas nas reuniões conjuntas incidiam sobre diferentes interpretações de fração (quociente, parte-todo, medida e operador) e debruçavam-se sobre a representação, a ordenação e a equivalência de frações nestas interpretações. O cerne do presente artigo consiste na análise de alguns episódios de seis aulas observadas da professora Maria.

Maria lecionava numa turma do 3.º ano de escolaridade (8-9 anos de idade). De acordo com Maria, o único contacto formal com frações por parte destes alunos fora realizado no ano letivo anterior, quando aqueles frequentavam o 2.º ano de escolaridade, tendo esse contacto consistido somente na dobragem de uma folha em duas partes iguais, identificando-se cada uma das partes como “metade”. Maria acrescentou que os alunos haviam respondido a “tarefas do género pintar metade de algo dividido em dois”. No ano em que este estudo foi desenvolvido, os alunos não haviam tido qualquer contacto formal com as frações antes das reuniões de trabalho com a investigadora.

4.3. Recolha e análise de dados

Os dados foram recolhidos através de gravações áudio, notas de campo realizadas pela investigadora, registos fotográficos e material produzido pelos professores. A análise de dados recolhidos baseou-se no modelo sobre o conhecimento do professor apresentado por Ball et al. (2008). Assim sendo, a interpretação da informação recolhida passou pela categorização dos diversos aspectos analisados, segundo os parâmetros daquele modelo: os do conhecimento de conteúdo e os do conhecimento pedagógico de conteúdo (ou conhecimento didático), da professora, relativamente ao ensino do conceito de fração.

5. Resultados

Tal como foi já referido, o caso da Professora Maria, discutido no presente artigo, enquadra-se numa investigação mais alargada que envolveu quatro professores. Não cabendo, neste artigo, uma exposição detalhada de toda a investigação realizada, a opção por apresentar-se apenas um dos casos prende-se com a vantagem de uma análise mais coesa e também mais vívida das situações da aula em foco. A legitimidade desta opção fundamenta-se ainda no fato das situações selecionadas remeterem, por um lado, para as principais conclusões da investigação alargada, e por outro, refletirem formas de abordar as frações que são comuns aos outros participantes da mesma investigação. Os aspectos mais críticos das aulas observadas prendem-se, mormente, com a abordagem às interpretações quociente e parte-todo, que suscitaram fragilidades notórias entre os professores - serão estes os aspectos aqui em foco. Apresentam-se ainda, para as situações de fragilidade, possíveis alternativas de ensino que potenciem a compreensão das diferentes interpretações de fração entre os alunos.

Nas transcrições dos diálogos apresentados, a letra “A” representa a intervenção de um aluno, sendo o número que se lhe segue estipulado consoante a ordem pela qual diferentes alunos surgem em cada diálogo; “Prof.” representa a intervenção do professor; e “Avv” representa a intervenção simultânea de vários alunos.

Todo o trabalho deste projeto teve início com reuniões conjuntas como forma de aceder mais facilmente ao conhecimento e crenças dos professores. Estas reuniões eram orientadas pelo pesquisador, um dos autores deste artigo, e alimentadas pelas contribuições dos professores, resultantes de dúvidas concetuais, crenças sobre o ensino e aprendizagem de frações, além de experiências prévias. As reuniões conjuntas dos professores procuraram melhorar as suas ideias sobre frações, promovendo o conhecimento de conteúdo especializado. Nelas identificaram-se e atenuaram-se fragilidades no conceito de fração e seu ensino, discutiram-se abordagens e tarefas para a aula, antecipando possíveis dificuldades dos alunos, promovendo assim o conhecimento de conteúdo e ensino e de conteúdo e alunos para o ensino de frações. As reuniões conjuntas contribuíram, assim, para o planejamento de novas práticas sobre frações. Num outro momento, cada professor planeava e implementava a sua aula individualmente, espelhando as suas crenças sobre o ensino de frações, operacionalizando os seus conhecimentos prévios e adquiridos com o trabalho colaborativo.

5.1. As interpretações quociente e parte-todo

A abordagem à interpretação quociente foi um dos temas abordados na reunião que precedeu a aula da professora Maria sobre este assunto. Maria questionou o grupo, “Ao ensinar a interpretação quociente não estou a ensinar também a interpretação parte-todo?”. A investigadora relembrou que, na interpretação quociente, estão envolvidas duas variáveis de natureza diferente, não acontecendo o mesmo na interpretação parte-todo. Reforçou que os alunos deverão ser capazes de representar quantidades por meio de frações, seja na interpretação parte-todo, seja na interpretação quociente. Os alunos devem ter contacto com ambas as interpretações, ainda que não necessitem de conhecer as respetivas designações formais, e a partir daí será com naturalidade que reconhecem quantidades representadas por frações em ambas as situações.

Na reunião, Maria procurou, ainda, ter a certeza de que, na interpretação quociente, poderiam estabelecer-se correspondências entre os recetores e os itens previamente divididos em partes iguais. Maria argumentou que os alunos iriam recorrer a estas correspondências, tornando-se esse procedimento incomportável quando estivessem envolvidas frações com numeradores e denominadores de maior magnitude:

Podemos dividir os itens, não é? Dividimos a pizza, por exemplo, para vermos quanto fica para cada menino […] Os alunos vão dividir… vão dividir os itens que têm de repartir. Por exemplo, se for 1 item para 2 meninos. Vão dividir em duas partes. Uma para cada menino. [Maria faz um desenho e estabelece uma correspondência entre cada uma das partes da pizza e cada menino] Se forem muitos itens vai ser muito complicado. Os alunos não vão conseguir fazer isso…

A investigadora esclareceu que estas correspondências poderiam ser estabelecidas, mas que não eram necessárias para que se completasse a tarefa. Mais ainda, quando se iniciasse o trabalho com frações na interpretação quociente, era expectável que os alunos começassem por proceder desta forma, mas isso aconteceria quando estivessem em causa frações envolvendo numeradores e denominadores com menor magnitude. Passada esta fase, certamente que os alunos iriam abandonar este processo exaustivo, uma vez que, da exposição do professor, resultaria, desejavelmente, a compreensão, por parte dos alunos, de que, na interpretação quociente, a fração representa, não só uma relação entre os itens e os recipientes, mas também a quantidade que cabe a cada recipiente.

Aquando da aula observada, Maria começou por apresentar tarefas que envolviam a interpretação quociente. Os alunos respondiam às questões nas suas folhas de trabalho, sendo depois realizada a correção no quadro por um aluno e/ou pelo professor, em diálogo com a turma.

Entre as tarefas realizadas pelos alunos, uma dizia respeito à partilha de uma tablete de chocolate entre duas crianças. Neste problema, os alunos tinham de apresentar a fração que representava a quantidade de chocolate que cada criança receberia. Nesta ocasião, Maria referiu os significados do numerador e do denominador de uma fração apresentada numa situação quociente, associando o numerador ao número de itens a partilhar e o denominador ao número de elementos envolvidos na partilha (Figura 3).

Figura 3 Correção, no quadro, de um problema de partilha equitativa de 1 tablete de chocolate entre 2 amigos 

Foram apresentadas outras tarefas envolvendo frações na interpretação quociente, semelhantes àquela acima mencionada. Os alunos responderam com sucesso a estas tarefas, recorrendo aos significados do numerador e do denominador naquela interpretação. Contudo, no decurso da aula, Maria induziu os alunos a levarem a cabo a divisão dos itens, perguntando à turma “Como é que podemos dividir as tabletes de chocolate?” - este procedimento não era necessário. A Transcrição e Figura que se seguem referem-se a uma situação em que, no âmbito de uma partilha equitativa de 3 itens entre 2 recetores, se observa uma divisão dos itens.

Prof.: Temos, por exemplo, 2 amigas (Ana e Susana) a partilhar 3 chocolates. Vamos fazer um número fracionário que represente o que cada menina comeu na partilha de 3 chocolates por 2 meninas. [Maria representa no quadro os três chocolates divididos ao meio, identificando com uma letra maiúscula a parte que corresponde a cada menina - Figura 4] Cada menina come 12 de cada chocolate. A Ana vai comer um chocolate inteiro?

Avv: Não. Vai comer metade.

Prof.: A Ana vai comer metade deste chocolate [apontando para o primeiro chocolate]. A Ana vai comer uma parte destas duas partes em que o chocolate foi dividido. Então, se eu quiser colocar aqui um número, qual será [apontando para a primeira metade do primeiro chocolate]?

A1: Um meio.

Prof.: A Ana vai comer 12 deste chocolate. Uma parte das duas em que o chocolate foi dividido. [Escreve a fração “12” em cada uma das primeiras metades dos chocolates - Figura 4] Quantos meios é que a Ana vai comer?

Avv: Três. São 32.

Prof.: Então nós podemos fazer isto. [Maria apresenta uma soma para ilustrar a parte de chocolate que cada menina come - Figura 4] Um meio mais 12 mais 12 é 32 [apontando para a soma que escreveu no quadro - Figura 4]. Reparem, o algarismo de cima adiciona-se e o de baixo fica igual.

Figura 4 Correção, no quadro, pela professora, de um problema sobre a partilha equitativa de 3 itens entre 2 recetores 

No contexto de um problema sobre a partilha equitativa de 3 chocolates por 2 meninos, Maria procedeu à divisão dos itens em partes iguais e à soma 12+12+12=32. Ao sublinhar a relação parte/todo, referindo que “A Ana vai comer uma destas duas partes em que o chocolate foi dividido” (ver Trasncrição acima), reduziu a interpretação quociente à interpretação parte-todo. Tendo em conta que o problema foi apresentado na interpretação quociente, afigurava-se desnecessário levar a cabo a divisão dos itens, já que o numerador representa o número de itens envolvidos na partilha e o denominador representa o número de recipientes (32 representa a quantidade de item que cabe a cada recetor numa partilha de 3 itens por 2 recetores). Assim, verificou-se que, apesar de ter introduzido corretamente a representação de frações na interpretação quociente, a maior familiaridade da professora com a interpretação parte-todo acabou por sobrepor-se, fazendo com que este problema não fosse completamente abordado na interpretação quociente. A redução da interpretação quociente à parte-todo condiciona a construção do conceito de fração pelos alunos, tornando-o incompleto, já que os alunos deverão contactar com todas as interpretações e representações de fração. Adicionalmente, sempre que se leva a cabo a divisão dos itens a partilhar e se interpreta a fração como a parte de um todo, perde-se a possibilidade de abordar a interpretação quociente (relação itens/recetores) e, consequentemente, poderão estar a ser limitadas as possibilidades de os alunos desenvolverem o raciocínio proporcional. Este tipo de raciocínio é particularmente promovido quando a interpretação quociente é explorada (ver Nunes et al., 2004; Mamede et al., 2005; Streefland, 1991).

Assim sendo, apesar das discussões conjuntas da reunião anterior sobre as diferenças entre abordar-se a interpretação parte-todo (relação entre número de partes retiradas e número de partes em que o todo foi dividido) e a interpretação quociente (relação entre itens e recetores), Maria, perante uma tarefa de partilha de itens por recetores (interpretação quociente), efetuou a divisão dos itens em partes iguais e apresentou a fração de item que cabe a cada recetor como uma relação entre as partes retiradas e o número total de partes em que o item foi dividido (interpretação parte-todo). Maria revela, assim, fraco conhecimento especializado sobre a abordagem da interpretação quociente na aula, comprometendo o conhecimento de conteúdo e ensino e de conteúdo e alunos. As reuniões de trabalho conjunto, apesar de uma boa oportunidade de discussão destes assuntos, foram manifestamente insuficientes para que Maria compreendesse todo o potencial que a interpretação quociente comporta, nomeadamente o estímulo ao raciocínio proporcional, o que a impediu de explorar esta interpretação com a mesma segurança atribuída à interpretação parte-todo. Contudo, a facilidade com que Maria aceitou integrar a interpretação quociente nas suas práticas sugere que as reuniões conjuntas contribuíram para mudanças nas suas conceções sobre ensino das frações.

5.2. Dividir figuras geométricas em partes iguais

Aquando da abordagem a tarefas que envolviam a representação de frações na interpretação quociente, os alunos dividiram as figuras, por vezes, em partes desiguais, não tendo Maria procedido a uma correção - Maria aceitou tacitamente aquelas divisões incorretas, apenas advertindo os alunos de que teriam de “imaginar” que as partes seriam iguais (“Temos aqui um retângulo dividido em três partes iguais. Temos de imaginar que as partes são iguais”). Como exemplo de uma destas situações, a Figura 5 ilustra uma divisão incorreta de um retângulo em 3 partes iguais, realizada no quadro. Numa outra ocasião, quando Maria solicitou a um aluno que marcasse um terço na reta numérica, a divisão da unidade em 3 partes iguais foi realizada corretamente (Figura 6).

Figura 5 Divisão incorreta de um retângulo em três partes iguais, realizada no quadro por um aluno 

Figura 6 Divisão correta de um retângulo em três partes iguais, realizada no quadro por um aluno 

Numa outro momento, em que a realização de uma tarefa requeria a divisão de um círculo em seis partes iguais, Maria corrigiu já uma divisão incorreta feita por um aluno, argumentando que “as partes não eram iguais” e que “a divisão não seria justa” (Figura 7). Constata-se então que, no âmbito da divisão de figuras geométricas, Maria não foi constante nas suas observações. Manter o rigor nos procedimentos e nos argumentos previne o aparecimento de dúvidas, entre os alunos, relativamente a uma ideia basilar na compreensão do conceito de fração como parte de um todo: a ideia de que o todo é dividido num número de partes iguais.

Figura 7 Divisão incorreta de um círculo, em seis partes iguais, realizada por um aluno, no quadro 

Na reunião após a aula observada, Maria referiu que não corrigiu desde logo o retângulo dividido em três triângulos (ver Figura 5), porque:

[…] as partes são quase iguais. Os alunos imaginam que cada menino recebe uma parte igual da tablete de chocolate […] Quando foi o caso do círculo era óbvio que as fatias de pizza eram diferentes […] Se calhar devia ter começado por aí… devia ter começado por falar na divisão do círculo, do retângulo.”.

Maria reconheceu também, a posteriori, a necessidade de realizar-se uma divisão graficamente correta dos itens, para que não se crie, entre os alunos, ideias erróneas que enviesem a sua forma de pensar frações. Com efeito, as partes devem ser todas iguais, e esta deve ser uma ideia claramente transmitida aos alunos. Neste sentido, a divisão de figuras geométricas em partes iguais deverá ser abordada, previamente, pelo professor.

Em suma, e em primeiro lugar, Maria induziu os alunos, uma vez mais, a levar a cabo a divisão, em partes iguais, dos itens a partilhar, reduzindo, desta forma, a interpretação quociente de fração à interpretação parte-todo. Construir-se um conceito de fração ancorado numa só interpretação - a interpretação parte-todo - enfraquece grandemente o conhecimento matemático dos alunos sobre os números racionais (Behr et al., 1983; Nunes et al., 2004). Adicionalmente, Maria foi inconsistente nas propostas de realização de divisões dos itens em partes iguais: inicialmente, permitiu-se aos alunos a realização de divisões desiguais dos itens, desde que “imaginassem” que as partes eram iguais; posteriormente, divisões similarmente incorretas foram corrigidas, de modo a obter-se partes iguais.

Um conhecimento de conteúdo e alunos, por parte do professor, que reflita uma abordagem consistente à interpretação quociente, i.e., sem uma redução desta à interpretação parte-todo, promove entre os alunos, tal como é desejável, uma visão mais completa do conceito de fração. Além disso, uma antecipação de eventuais dificuldades dos alunos e um esclarecimento sobre os procedimentos a adotar revela um conhecimento de conteúdo e alunos mais sólido.

5.3. A interpretação quociente e a equivalência de frações

Maria manifestou alguma resistência em abordar a equivalência de frações na interpretação quociente, ainda que este tema surgisse naturalmente das observações dos alunos, o que não surpreende dada a sua longa experiência de ensino. Contudo, a abordagem mais profunda e completa às frações, exigida pelas orientações curriculares recentes, constituem um desafio pela sua novidade.

Apesar da sua experiência de ensino, Maria confessou desvalorizar nas suas aulas a partilha equitativa na abordagem às frações, trabalhando as frações maioritariamente na interpretação parte-todo. A reunião conjunta provocou mudanças no seu conhecimento especializado, mas também nas suas crenças sobre a aprendizagem de frações dos alunos, a ponto de incluir a interpretação quociente nas suas aulas. Apresenta-se de seguida, como exemplo, uma situação, de uma aula de Maria, sobre a partilha de 2 pizzas por 6 crianças, previamente discutida nas reuniões conjuntas.

Prof.: Imaginem que as pizzas têm diferentes ingredientes. Como é que as podem dividir?

A1: [Com a ajuda da professora, divide cada pizza em 6 partes iguais, e depois coloca o nome dos recetores em cada parte - Figura 8].

Prof.: Cada criança come 16 de cada pizza. Por isso, cada criança come 36.

A2: Professora, eu acho que a tarefa não pede isto. Aqui não diz que cada criança tem de comer das duas pizzas! Podia ser 3 crianças para cada pizza… 13

A3: Deveria ser 23.

Prof.: Porque é que deveria ser 23?

A2: Eram 3 crianças para cada pizza… dava 13.

Prof.: Nós podíamos também dizer 13 de cada pizza… também está certo… mas nós vamos fazer isto de uma forma geral…

Figura 8 Divisão dos itens, em partes iguais, sugerida pela professora no âmbito de um problema sobre a partilha equitativa de 2 pizzas por 6 crianças 

Face à tarefa em causa (ver transcrição acima), um aluno (A2) respondeu que cada criança receberia 13, revelando ter compreendido que poderia realizar a correspondência de uma pizza para cada 3 crianças. Contudo, Maria não se sentiu confortável com esta resposta e induziu o aluno a responder 26. Talvez por entender que o propósito da tarefa seria apenas abordar a representação simbólica da fração na interpretação quociente, Maria desvalorizou o contributo brilhante do aluno, assente no raciocínio proporcional, que lhe permitiu responder 13. Maria tende então a induzir os alunos a apresentar, exclusivamente, uma fração cujos valores do numerador e do denominador sejam iguais, respetivamente, ao número de itens a partilhar e ao número de recetores envolvidos na partilha.

Na reunião após a aula observada, Maria, perante esta mesma tarefa, disse:

Neste caso, cada criança recebe 26. Também podíamos considerar que cada criança recebe 13 de cada pizza, mas eu queria fazer isto de uma forma geral […] Sim… não existe uma forma geral… quis que fosse uma forma de todos compreenderem. […] Claro que poderia ter posto também a hipótese de as pizzas terem o mesmo sabor […] Se podia ter chamado mais atenção para a resposta 13?… Sim, podia… não quis que os alunos se confundissem.

Deste modo, Maria não explorou a possibilidade de os alunos compreenderem que frações distintas podem representar a mesma quantidade, i.e., que 13 e 26 são frações equivalentes, ainda que esta tenha sido uma sugestão de um dos alunos da turma. Maria parece não ter antecipado a possibilidade de os alunos apresentarem respostas alternativas ao problema que selecionou para a aula, apesar de na reunião conjunta se terem antecipado diferentes formas de pensar dos alunos, o que parece ser indicador de que mudanças na prática de ensino não são conseguidas num período tão curto. Maria revelou, assim, fragilidades no domínio do conhecimento de conteúdo e ensino e de conteúdo e alunos.

5.4. Ordenar frações na interpretação quociente

Maria apresentou tarefas sobre a ordenação de frações, com numeradores iguais, na interpretação quociente. Os alunos tendiam a responder corretamente, raciocinando sobre a variação proporcional do número de itens e recetores. Por exemplo, aquando da correção de uma tarefa que envolvia as frações 14, 13 e 12 numa situação de partilha equitativa de um bolo entre 3 meninos e de um outro bolo, igual ao anterior, entre 4 raparigas, um aluno argumentou que “o grupo de três meninos iria comer mais porque são menos e têm um bolo… as raparigas são mais… são quatro…”. Maria concluiu que “quanto mais as crianças partilhavam o bolo, menos cada criança comeria”. Este tipo de raciocínio promove a compreensão da relação inversa entre a magnitude da fração e o valor do denominador, quando os numeradores são iguais. Para compreender-se o conceito de fração é fundamental compreender-se esta relação. As dificuldades que os alunos frequentemente apresentam têm origem, justamente, na ausência da compreensão de que, entre números naturais e racionais, há diferentes ideias envolvidas: um erro comum entre os alunos é pensarem que, por exemplo, 12 de uma tablete de chocolate é menor do que 13 da mesma, apenas porque 2 é menor do que 3.

Maria apresentou também tarefas sobre a comparação entre frações com denominadores iguais. Por exemplo, apresentou uma tarefa sobre a comparação entre 24 e 14, estando envolvidas situações quociente (Figura 9). Numa das situações, 1 tablete de chocolate era partilhada equitativamente entre 4 meninos e, numa outra situação, 2 tabletes eram partilhadas entre 4 meninas. Um aluno argumentou que “cada menina come mais porque as meninas têm 2 tabletes de chocolate e os meninos têm apenas 1”. Maria aceitou esta resposta sem fazer qualquer referência ao fato de o número de recetores ser o mesmo, em ambas as situações, apesar de este aspeto ter sido discutido, e aparentemente compreendido, nas reuniões conjuntas. Este último aspeto é fundamental para concluir-se corretamente sobre a ordenação das frações. Assim sendo, não ficou claro se o aluno apenas comparou os inteiros 1 e 2 ou se, de fato, tomou em consideração a magnitude das frações do problema. É essencial promover-se, entre os alunos, a compreensão da diferença que existe entre frações e números inteiros: no âmbito do conjunto de frações, dois símbolos numéricos são utilizados para representar-se uma única quantidade, i.e., é a relação entre os números, e não cada valor independente, que representa a quantidade pretendida.

Figura 9 Correção, no quadro, de um problema sobre a comparação entre as frações 24 e 14

Na reunião após a aula Maria reconheceu que pode não ter clarificado devidamente a ideia de que na comparação de frações é menor a fração com menor numerador quando se têm denominadores iguais, ou seja, quando o número de recetores é igual, caso contrário o raciocínio não se aplica:

Por vezes posso não ter dito que os denominadores são iguais mas essa ideia está lá... o número de meninos era o mesmo em cada situação... Claro que os alunos têm de ter isso presente... O profesor deve ir lembrando... se calhar numa ou outra situação posso não ter sido tão clara... Quando os denominadores não são iguais não se pode pensar assim e os alunos costumam errar nesse tipo de situações... é verdade.

5.5. A interpretação parte-todo e a unidade de referência

Maria introduziu os alunos aos significados do numerador e do denominador da fração, na interpretação parte-todo. Depois de apresentar um retângulo dividido em duas partes iguais, referiu que uma das partes podia representar-se por 12: “o denominador representa o número de partes em que o retângulo foi dividido e o numerador representa o número de partes destacadas”. Outras tarefas semelhantes foram apresentadas nesta mesma interpretação. A reação positiva dos alunos manifestou-se nas respostas corretas apresentadas. De fato, Maria fez uma clara introdução à interpretação parte-todo, realçando frequentemente os significados do numerador e do denominador da fração nesta interpretação. Contudo, não discutiu com os alunos qual a unidade de referência relativa a cada tarefa. Mais ainda, não procurou diversificar a mesma, que oscilou sempre entre um círculo, um retângulo, um quadrado, etc. − i.e., tratava-se sempre de um único elemento. Por exemplo, 13 de 1 retângulo em que a unidade de referência é um retângulo não é o mesmo que 13 de 3 retângulos em que a unidade de referência são três retângulos. A abordagem a este último tipo de raciocínio permite uma reflexão sobre o fato de duas frações que são simbolicamente iguais poderem representar quantidades diferentes, dependendo do todo a que se referem.

Maria solicitou também aos alunos a reconstrução de um “todo”, sabendo-se que dois quadrados representavam metade da unidade pretendida. Apenas um problema deste tipo foi apresentado. Os alunos não conseguiram responder ao mesmo, aparentemente por não terem entendido aquilo que lhes era pedido. Pode então concluir-se que a ideia de unidade de referência deveria ter sido previamente abordada por Maria, sublinhando-se o fato de que, para obter-se uma resposta correta, deve refletir-se sobre qual a unidade de referência presente em cada problema.

Uma abordagem muito incipiente à ideia de unidade de referência sugere fragilidades docentes nos domínios do conhecimento de conteúdo e ensino e do conhecimento de conteúdo e alunos. Deve por isso selecionar-se um conjunto variado de tarefas, diversificando-se o tipo de unidade para que, desde os anos iniciais de escolaridade, se combatam eventuais ideias incorretas que os alunos frequentemente desenvolvem relativamente à ideia de unidade de referência.

5.6. Equivalência de frações na interpretação parte-todo

Maria fez uma introdução à equivalência de frações utilizando 12 e 24, sendo que os alunos tenderam a acompanhar o seu raciocínio. Foi apresentado aos alunos um círculo dividido em 4 partes iguais, estando 2 delas sombreadas (Figura 10). Perante esta situação, os alunos foram questionados sobre se outras frações, para além de 12 e 24, poderiam representar a seção sombreada. Os alunos sugeriram algumas frações equivalentes e Maria concluiu que “quando o numerador é metade do denominador, a fração é equivalente a 12”. O excerto de diálogo abaixo transcrito refere-se ao momento de introdução da equivalência de frações na interpretação parte-todo.

Prof.: [Apresenta um círculo dividido em 4 partes iguais] Que fração representa estas 2 partes?

A1: Dois quartos.

Prof.: Existirá alguma fração diferente que também pode representar estas partes?

Avv: Um meio

Prof.: Porquê?

A1: Porque 24 é o mesmo que 12 .

Prof.: Muito bem! As frações são equivalentes porque representam a mesma quantidade [escreve no quadro: “12 = 24 ” - Figura 10]. Posso escrever aqui mais frações?

Avv: Sim.

A1: Três sextos.

Prof.: Sempre que o numerador é metade do denominador, a fração é equivalente a 12.

Figura 10 Correção, no quadro, de um problema sobre a equivalência de 12 e 14 na interpretação parte-todo 

A introdução clara, de Maria, à equivalência de frações na interpretação parte-todo parece ter sido bem recebida pelos alunos. Porém, e com vista a consolidar-se o conhecimento sobre a equivalência de frações, poderiam ter sido sugeridas tarefas neste âmbito (envolvendo, por exemplo, 13 e 26). Mais ainda, e tendo a equivalência de frações sido já abordada na interpretação quociente, poderia articular-se as interpretações parte-todo e quociente realçando-se o significado dos valores do numerador e do denominador nestas duas interpretações.

Em suma, a equivalência, e acima de tudo a ordenação, de frações na interpretação parte-todo foi abordada de forma demasiado incipiente, o que sugere fragilidades no conhecimento de conteúdo e ensino da professora no conhecimento de conteúdo e alunos. De fato, o domínio da comparação de frações é essencial para a construção de um completo conceito de fração.

5.7. Articulação entre interpretações de fração

A abordagem às interpretações de fração foi, de modo geral, demasiado segmentada: a professora raras vezes interpolou tarefas que envolvessem diferentes interpretações de fração - Maria começou por abordar a interpretação quociente, e depois a interpretação parte-todo, sem estabelecer uma articulação entre estas duas interpretações. Este tipo de procedimento sugere que Maria, ou não reconhece a importância da articulação entre interpretações quando se constrói o conceito de fração, ou não se se sente confortável em fazer esta articulação, ou, talvez ainda, ambas as situações. A articulação entre diferentes interpretações de fração promoveria uma consolidação e uma integração de conhecimento, revelando ainda um conhecimento mais forte no domínio do conhecimento pedagógico relativamente ao ensino de frações.

De fato, é consensual, entre os investigadores, a necessidade de proporcionar-se ao aluno a possibilidade de contactar com todas as interpretações de fração. Não se pretende, porém, uma abordagem às interpretações que estipule fronteiras muito rígidas entre as mesmas. Pretende-se, antes, garantir que o aluno tenha a oportunidade, não só de raciocinar em cada uma delas, mas também de articular as mesmas entre si.

6. Discussão e conclusão

Os resultados apresentados revelam o empenho da professora na introdução do conceito de fração aos seus alunos, com recurso à interpretação quociente, abordando a representação, a ordenação e equivalência de frações. Seguidamente, introduziu a interpretação parte-todo, tendo explorado a representação e comparação de frações. Durante as aulas observadas, a docente conseguiu envolver os alunos, motivando-os para este tema. Nesta introdução do conceito de fração nestas interpretações houve uma preocupação da docente em diversificar tarefas e discutir procedimentos de resolução.

Contudo, a professora manifestou algumas fragilidades no seu conhecimento de conteúdo e no conhecimento pedagógico de conteúdo. Surgiram fragilidades nos subdomínios do conhecimento de conteúdo especializado, conhecimento de conteúdo e ensino, e de conteúdo e alunos (Ball et al., 2008; Shulman, 1986) relativamente ao ensino de frações. Na abordagem à interpretação quociente, aquelas fragilidades manifestaram-se no recurso quase sistemático à interpretação parte-todo - reduzindo-se aquela a esta - ainda que as tarefas apresentadas dissessem respeito à interpretação quociente, numa clara evidência de falhas no conhecimento especializado, repercutindo-se no conhecimento pedagógico. Há uma maior familiaridade com a interpretação parte-todo e um recurso frequente a esta interpretação na aula, surgindo dificuldades em manter explicações pedagógicas exclusivamente focadas na interpretação quociente, indicador de um fraco conhecimento especializado, comprometendo o conhecimento pedagógico.

Frequentemente, os alunos foram induzidos a dividir em partes iguais os itens envolvidos numa situação de partilha, mesmo quando tal era claramente desnecessário. Deste modo, os alunos levaram a cabo a divisão do todo em partes iguais em vez de estabelecerem correspondências entre os itens a serem partilhados e os recetores. O esquema de correspondência surge naturalmente na interpretação quociente de fração (ver Mamede et al., 2005; Nunes et al., 2004), uma vez que o numerador e o denominador são, entre si, de naturezas diferentes. Esta divisão desnecessária dos itens evidencia um limitado conhecimento de conteúdo e alunos.

Por outro lado, o esquema de correspondência pode ser a base para o raciocínio proporcional. De acordo com Nunes e Bryant (2007), as crianças têm facilidade em estabelecer correspondências para produzirem partes iguais, ao passo que apresentam mais dificuldades em dividir quantidades contínuas. A utilização do esquema de correspondência promove ainda a compreensão da equivalência de frações, uma vez que os alunos têm, através dele, oportunidade de efetuar o seguinte tipo de raciocínio: se existir o dobro dos itens a serem partilhados e o dobro dos recetores, então a parte que cabe a cada recetor é a mesma. Este tipo de raciocínio é baseado numa relação direta entre as quantidades envolvidas no problema.

Já no esquema de divisão, o raciocínio envolvido é o seguinte: se um todo é cortado no dobro de partes, o tamanho de cada parte será então metade do tamanho inicial. Este segundo tipo de raciocínio é baseado numa relação inversa entre as quantidades envolvidas no problema. Contudo, os alunos compreendem melhor relações diretas do que relações inversas (Nunes e Bryant, 2007; Streefland, 1991). O fraco conhecimento de conteúdo especializado neste âmbito compromete, assim, o conhecimento pedagógico, nomeadamente, o conhecimento de conteúdo e ensino, que afeta as explicações da professora na aula, e o conhecimento de conteúdo e alunos que impossibilita antecipar as dificuldades dos alunos.

Ainda no âmbito da abordagem à interpretação quociente, deve sublinhar-se que a relação inversa entre o valor do denominador e a magnitude da fração - quando o numerador é constante - tende a ser compreendida pelos alunos. Contudo, uma nota deve ser feita à frequente utilização de tarefas, na aula, sobre a ordenação de frações com igual valor de denominador, o que sugere fragilidades docentes no conhecimento de conteúdo e alunos e no conhecimento de conteúdo e ensino (Ball et al., 2008): este último tipo de tarefas promove um sucesso ilusório dos alunos na compreensão da relação inversa entre a magnitude da fração e a magnitude do denominador, uma vez que a simples comparação entre os números inteiros favorece substancialmente uma resposta correta às tarefas. Numa situação deste género, os alunos comparam as frações exclusivamente através dos valores dos numeradores, sem que o seu raciocínio inclua o fato de os denominadores serem iguais, i.e., comparam dois números inteiros em vez de compararem a magnitude das frações. A literatura apresenta dificuldades de alunos dos primeiros anos de escolaridade na ordenação de frações, dificuldades essas decorrentes, justamente, de uma sobrevalorização do método incipiente de comparação acima mencionado. Nunes et al. (2006) reporta elevados níveis de sucesso quando alunos dos 4.º e 5.º anos comparavam frações de igual denominador (37 e 57), tendo-se registado apenas um quarto deste sucesso quando os numeradores eram iguais (35; 34). Os autores argumentam que, quando os numeradores das frações são iguais e os denominadores são diferentes, os alunos têm de raciocinar sobre a magnitude das frações de uma forma que não acontece nos números naturais. Este fenómento foi também identificado em estudos anteriores (ver Behr et al. 1983; Behr et al. 1984; Kerslake 1986).

Tal como referido, a professora participante na nossa investigação tendem a reduzir a interpretação quociente à interpretação parte-todo. Contudo, a abordagem a esta interpretação nem sempre foi rigorosa aquando da divisão do todo em partes iguais. Ao introduzir-se um conceito matemático que é novo para os alunos, é particularmente importante que o professor mantenha a precisão e coerência nos procedimentos que adota. Tal requer um bom conhecimento especializado do professor, que lhe permita alicerçar o seu conhecimento de conteúdo e alunos (ver Ball et al., 2008). Todavia, é assinalável a opção por modelos contínuos para trabalhar frações, pois modelos de área ajudam as crianças a compreender o conceito de fração (ver Behr et al., 1983). Os modelos contínuos podem até ser exigentes para o professor, se, por exemplo, o todo estiver dividido em partes desiguais (ver Powell et al., 2022).

Relativamente à interpretação parte-todo, os resultados analisados sugerem fragilidades num outro aspecto: trata-se do papel da unidade de referência, um aspecto essencial na compreensão desta interpretação, tendencialmente pouco abordado na aula. Ao longo das aulas observadas, e no contexto de tarefas sobre a representação pictórica de frações na interpretação parte-todo, a unidade de referência foi compreendida, apenas tacitamente, como o total da figura geométrica apresentada (um retângulo, um círculo, um quadrado), uma vez que não era feita qualquer referência clara a esse aspecto. Diversos autores identificam, justamente, dificuldades dos alunos com a ideia de unidade de referência (ver Hart, 1981; Lesh et al. 1987; Post et al. 1991; Tirosh et al. 1998), o que sugere, mais veementemente, a necessidade de cuidado e de clareza no ensino deste tópico particular.

Ainda no âmbito da interpretação parte-todo, é de assinalar a inclusão de modelos contínuos na abordagem do conceito de fração com os alunos, já que estes constituem um recurso ajustado à compreensão da comparação de frações, sendo, portanto, compatível com o processamento cognitivo dos alunos (ver Powell, 2023). O recurso a estes modelos traduz conhecimento de conteúdo e ensino do professor para ensinar frações. Contudo, a abordagem demasiado incipiente à ordenação e à equivalência de frações sugere fragilidades no conhecimento de conteúdo e ensino, dado que a comparação de frações é essencial para o desenvolvimento de um completo conceito de fração. Este tópico deve pois ser incluído na planificação de aulas dos professores, relativamente a todas as interpretações.

No ensino das frações é ainda importante que sejam criadas oportunidades de os alunos estabelecerem relações entre as várias formas de representação de frações. Contudo, este aspecto raramente foi promovido nas aulas observadas, onde, geralmente, as tarefas tendem a ser implementadas de uma forma segmentada, i.e., quando uma interpretação de fração é utilizada, apenas tarefas nessa interpretação são selecionadas. Estas opções didáticas implicam uma inconveniente ausência de articulação entre interpretações de fração, o que espelha falta de conhecimento de conteúdo especializado e, consequentemente, falta de conhecimento didático. Na verdade, é desejável que, à medida que os alunos vão aprendendo novas interpretações de fração, a seleção de tarefas inclua também as interpretações de fração anteriormente abordadas. Segundo Bright et al. (1988), os professores parecem inter-articular facilmente os diferentes modos de representação, embora, muitas vezes, não estejam conscientes de que fazem essa articulação. Os mesmos autores, porém, fazem a ressalva de que os alunos precisam de ajuda concreta para aprender a realizar tais articulações.

Em suma, os resultados do presente estudo sugerem algumas fragilidades no conhecimento de conteúdo e pedagógico de conteúdo da professora, relativamente ao ensino das frações. Apesar de não serem passíveis de uma generalização, os resultados obtidos sugerem fragilidades que podem facilmente ser identificadas junto de outros professores portugueses do 1.º Ciclo do Ensino Básico. Foi com manifesto entusiasmo que a docente aqui em causa se dedicou ao ensino de frações aos seus alunos, mas cedo se apercebeu de que este é um tópico matemático desafiante e difícil de ensinar, tendo em conta a sua complexidade e a sua novidade nos primeiros anos de escolaridade. Apesar de diversos assuntos sobre frações e seu ensino terem sido discutidos nas reuniões conjuntas, foram várias as dificuldades de Maria em ensinar frações. Este facto sugere ser necessário um trabalho colaborativo mais prolongado no tempo, para dar oportunidade ao professor de conseguir mudanças efetivas, que assegurem práticas de qualidade. As fragilidades da docente aqui identificadas sugerem também que as modificações nas orientações curriculares nem sempre são acompanhadas de correspondentes modificações nas práticas de ensino.

Assim, deveria ser regularmente disponibilizada formação contínua aos professores, preferencialmente intercalada com aulas observadas. Mais ainda, impõe-se uma reflexão séria sobre o tipo de formação de professores atualmente proporcionada. Futuros professores e professores em exercício deveriam ser sensibilizados para estes aspectos através da discussão e reflexão sobre os mesmos, com base na investigação mais recente, aumentando, assim, a ligação entre a investigação e a prática, melhorando as suas crenças sobre o ensino de frações e promovendo práticas de ensino de qualidade. Por último, mais investigação é necessária relativamente ao ensino de frações, tanto na realidade portuguesa como noutros países, com vista a melhoria do seu ensino e aprendizagem.

Agradecimentos

Este trabalho foi financiado por Fundos Nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito dos projetos do CIEC (Centro de Investigação em Estudos da Criança da Universidade do Minho) com as referências UIDB/00317/2020 e UIDP/00317/2020.

Referências

Alvarez, M. (2010). Dificultades experimentadas por el maestro de primaria en la enseñanza de fracciones. Revista Latinoamericana de Investigación en Matemática Educativa, 13(4-II), 423-440. [ Links ]

Boavida, A. M. e Ponte, J. P. (2002). Investigação colaborativa: Potencialidades e problemas. Em GTI (Org.), Reflectir e investigar sobre a prática profissional (pp. 43-55). APM. [ Links ]

Ball, D., Hill, H. e Bass, H. (2005). Knowing Mathematics for Teaching. Who knows mathematics well enough to teach third grade, and how can we decide? American Educator, 29(3), 14-46. [ Links ]

Ball, D., Thames, M. e Phelps, G. (2008). Content Knowledge for Teaching: What Makes It Special? Journal of Teacher Education, 59(5), 389-407. [ Links ]

Behr, M., Harel, G., Post, T. e Lesh, R. (1992). Rational Number, Ratio, and Proportion. Em D. A. Grouws (Ed.), Handbook of Research on Mathematics Teaching and Learning (pp. 296-333). MacMillan Publishing Company. [ Links ]

Behr, M., Lesh, R., Post, T. e Silver, E. (1983). Rational-Number Concepts. Em R. Lesh e M. Landau (Eds.), Acquisition of Mathematics Concepts and Processes (pp. 92-127). Academic Press. [ Links ]

Behr, M., Wachsmuth, I., Post, T. e Lesh, R. (1984). Order and Equivalence of Rational Numbers: A Clinical Teaching Experiment. Journal for Research in Mathematics Education, 15(5), 323-341. [ Links ]

Bogdan, R. e Biklen, S. (2010). Investigação qualitativa em educação: Uma introdução à teoria e aos métodos. Porto Editora. [ Links ]

Bright, G., Behr, M., Post, T. e Wachsmuth, I. (1988). Identifying fractions on number lines. Journal for Research in Mathematics Education, 19(3), 215-232. [ Links ]

Cardoso, P. e Mamede, E. (2021). Ensinar frações nos primeiros anos de escolaridade. In E., Mamede, H. Pinto e C. Monteiro (Eds.). Contributos para o desenvolvimento do sentido de número racional (pp. 247-268). APM. [ Links ]

Cardoso, P. e Mamede, E. (2023). Saber e ensinar frações: concepções e práticas de professores do ensino fundamental. Educação E Pesquisa, 49, e261007. https://doi.org/10.1590/S1678-4634202349261007 [ Links ]

Copur-Gencturk, Y. (2021). Teachers’ conceptual understanding of fraction operations: results from a national sample of elementary school teachers. Educational Studies in Mathematics, 107, 525-545. https://doi.org/10.1007/s10649-021-10033-4 [ Links ]

Day, C. (2001). Desenvolvimento profissional de professores: Os desafios da aprendizagem permanente. Porto Editora. [ Links ]

Direção Geral de Educação. (2021). Aprendizagens Essenciais de Matemática para o 1.º ciclo do Ensino Básico. DGE. https://www.dge.mec.pt/noticias/aprendizagens-essenciais-de-matematicaLinks ]

Hart, K. (1981). Fractions. Em K. Hart (Ed.), Children’s Understanding of Mathematics: 11-16 (pp. 66-81). John Murray Publishers. [ Links ]

Kerslake, D. (1986). Fractions: Children’s Strategies and Errors - A Report of the Strategies and Errors in Secondary Mathematics Project. NFER-NELSON. [ Links ]

Kieren, T. (1976). On the Mathematical, Cognitive and Instructional Foundations of Rational Numbers. Em R. Lesh (Ed.), Number and Measurement: Paper from a Research Workshop (pp. 101-144). ERIC/SMEAC. [ Links ]

Kieren, T. (1993). Fractional numbers: from quotient fields to recursive understanding. Em T. P. Carpenter, E. Fennema e T. Romberg (Eds.), Rational Numbers: An Integration of Research (pp. 49-84). Erlbaum. [ Links ]

Li, Y. e Kulm, G. (2008). Knowledge and confidence of pre-service mathematics teachers: the case of fraction division. ZDM Mathematics Education, 40, 833-843. https://doi.org/10.1007/s11858-008-0148-2 [ Links ]

Lieberman, A. (1992). The meaning of scholarly activity and the building of community. Educational Researcher, 21(6), 5-12. [ Links ]

Lesh, R., Post, T. e Behr, M. (1987). Representations and Translations among Representations. Em C. Janiver (Ed.), Problems of Representations in the Teaching and Learning of Mathematics (pp. 33-40). Lawrence Erlbaum. [ Links ]

Mack, N. (2001). Building on Informal Knowledge Through Instruction in a Complex Content Domain: Partitioning, Units, and Understanding Multiplication of Fractions. Journal for Research in Mathematics Education, 32, 267-295. [ Links ]

Mamede, E., Nunes e T., Bryant, P. (2005). The equivalence and ordering of fractions in part-whole and quotient situations. In Chick, H. L. e Vincent, J. L. (Eds.), Proceedings of the 29th Conference of the International Group for the Psychology of Mathematics Education (Vol. 3, pp. 281-288). University of Melbourne. [ Links ]

Mamede, E., Ribeiro, C. e Pinto, H. (2021). Conhecimento de futuros professores do ensino básico sobre frações. In E. Mamede, H. Pinto e C. Monteiro (Eds.), Contributos para o desenvolvimento do sentido de número racional (pp. 205-219). APM. [ Links ]

Monteiro, C. e Pinto, H. (2005). A Aprendizagem dos números racionais. Quadrante, 14(1), 89-104. [ Links ]

Nunes, T. e Bryant, P. (2007). Paper 3: Understanding rational numbers and intensive quantities. Key understandings in mathematics learning (pp. 1-31). Nuffield Foundation. [ Links ]

Nunes, T. e Bryant, P. (2008). Rational Numbers and Intensive Quantities: challenges and Insights to Pupils’ Implicit Knowledge. Anales de Psicología, 24(2), 262-270. [ Links ]

Nunes, T., Bryant, P., Pretzlik, U., Evans, D., Wade. J. e Bell, D. (2004). Vergnaud’s definition of concepts as a framework for research and teaching. Em Annual Meeting for the Association pour la Recherche sur le Développement des Compétences. [ Links ]

Nunes, T., Bryant, P., Hurry, J. e Pretzlik, U. (2006). Fractions: Difficult but Crucial in Mathematics Learning. Teaching and Learning Research Programme, 13, 1-4. http://www.tlrp.org/pub/documents/no13_nunes.pdfLinks ]

Pinto, H. e Ribeiro, C. (2013). Conhecimento e formação de futuros professores dos primeiros anos - o sentido de número racional. Da Investigação às Práticas, 3(1), 80-98. [ Links ]

Ponte, J. (2001). A investigação sobre o professor de Matemática: Problemas e perspectivas. Educação Matemática em Revista, 11, 10-13. [ Links ]

Post, T., Harel, G., Behr, M. e Lesh, R. (1991). Intermediate Teachers’ Knowledge of Rational Number Concepts. Em E. Fennema, T. Carpenter e S. Lamon (Eds.), Integrating research on teaching and learning mathematics (pp. 177-198). State University of NY Press. [ Links ]

Powell, A. (2023). Enhancing students’ fraction magnitude knowledge: A study with students in early elementary education. The Journal of Mathematical Behavior, 70, 101042. https://doi.org/10.1016/j.jmathb.2023.101042 [ Links ]

Powell, A., Alqahtani, M., Temur, O. e Tirnovan, D. (2022). Elementary school teachers’ understanding of unit fractions. Boletim Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Matemática, 80, 231-248. https://doi.org/10.4322/gepem.2022.05 [ Links ]

Roldão, M. (2007). Colaborar é preciso - Questões de qualidade e eficácia no trabalho dos professores. Noesis, 71, 24-29. [ Links ]

Saraiva, M. e Ponte, J. (2003). O trabalho colaborativo e o desenvolvimento profissional do professor de Matemática. Quadrante, 12(2), 25-52. [ Links ]

Shulman, L. S. (1986) Those who understand: Knowledge growth in teaching. Educational Researcher, 15(2), 4-14. [ Links ]

Streefland, L. (1991). Fractions in Realistic Mathematics Education: A Paradigm of Developmental Research. Kluwer Academic Publishers. [ Links ]

Tirosh, D., Fischbein, E., Graeber, A. e Wilson, J. (1998). Prospective elementary teachers’ conceptions of rational numbers. The United States-Israel Binational Science Foundation. http://jwilson.coe.uga.edu/Texts.Folder/Tirosh/Pros.El.Tchrs.htmlLinks ]

Yin, R. (2010). Estudo de caso. Planejamento e métodos (4.ª ed.). Bookman. [ Links ]

Recebido: 27 de Dezembro de 2021; Aceito: 14 de Dezembro de 2023

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons