Sumário: I. Introdução. II. A cooperação entre a razão teórica e razão prática: do dever ético à ação política. III. Do dever das pessoas ao dever dos Estados: uma transposição possível?. IV. Além do direito estatal e do direito internacional, um direito cosmopolita. V. Um dever de cooperação internacional na atualidade? Releituras contemporâneas do projeto kantiano. VI. Conclusões. VII. Referências.
I. Introdução
Quando se fala de cooperação internacional se está a falar de um dever dos Estados ou de um mero ato de cortesia internacional? Os Estados cooperam porque querem e quando querem, ou existe um dever internacional que os obriga a cooperar? Existe algum fundamento capaz de afirmar que se trata de um dever? Para investigar estas questões, este trabalho propõe uma reflexão acerca dos fundamentos das teorias normativas que têm impacto nas relações internacionais e que poderiam fundamentar a existência de um dever de cooperação internacional. Assim, na esteira do ressurgimento do interesse pelas teses kantianas do direito cosmopolita, este trabalho tem por objetivo examinar a possibilidade de fundamentar o dever de cooperação internacional na ética prática de inspiração em Immanuel Kant.
É importante ressaltar que neste trabalho não se quer debater Kant, no sentido de praticar uma exegese kantiana no contexto do seu idealismo transcendental, mas tão somente quer-se discutir o uso contemporâneo das suas ideias. Ora, reconhecendo que existe uma tradição de pensamento inspirada no filósofo de Königsberg, este trabalho pretende fazer um uso instrumental de Kant segundo a sua tradição realizada por alguns dos seus comentadores. Dessa forma, frisa-se, o argumento de que existe um dever de cooperação internacional não é feito por Kant, mas a partir de uma inspiração kantiana -juntamente com os seus comentadores contemporâneos- este artigo vai propor tal entendimento.
O objetivo deste trabalho é responder à pergunta: em que medida existe um dever de cooperação internacional? Para responder a essa pergunta proceder-se-á a uma abordagem normativa do tema capaz de fundamentar tal dever. Para tanto, neste artigo será abordada a teoria moral deontológica da tradição kantiana para mostrar de que forma a sua concepção da razão prática, isto é, a capacidade humana racional de deliberação prática, impõe um dever de cooperação internacional. Nesse sentido será visto como é possível transpor o edifício ético kantiano para as relações internacionais através da ideia de um direito cosmopolita, que rege as relações entre Estados e indivíduos de outros Estados.
Para a construção do eixo argumentativo deste artigo, primeiramente serão delineados os elementos da tradição kantiana capazes de afirmar a existência de um dever ético e, em seguido, será visto o impulso dado a ele por Kant na direção da ação política (Parte 1). No segundo momento será visto como se pode transpor o edifício ético kantiano para as relações internacionais (Parte 2) até o desenvolvimento do seu cosmopolitismo moral e jurídico (Parte 3). Por fim, será investigado se o desdobramento contemporâneo de alguns de seus preceitos pode sustentar a ideia de que existe um dever de cooperação internacional por parte dos Estados que seria estabelecido por um direito internacional constitucionalizado (Parte 4).
II. A cooperação entre a razão teórica e razão prática: ]do dever ético à ação política
A filosofia kantiana fornece recursos conceituais de análise para questões concernentes às relações internacionais contemporâneas e, ainda mais especificamente, a partir de Immanuel Kant1 se pode falar em um verdadeiro dever de cooperação internacional a partir do princípio supremo da moralidade.2 Para entender isto, é necessário verificar como se dá a construção do edifício ético em Kant.
Na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes,3 ao tratar da filosofia prática, da ética em geral, Kant assinala que o homem não tem somente uma faculdade cognoscitiva, mas que a sua moralidade se manifesta também no agir. Desse modo, aceitando a clássica distinção entre razão teórica e razão prática, e, dando primazia a esta última, ele observa que, junto à faculdade cognoscitiva, há também no homem uma faculdade racional dirigida à ação.4 Com essa faculdade, o homem dispõe de um dado a priori, de um valor absoluto impossível de negar a existência do dever em cada ação. Trata-se de um dever ético, que é usado neste artigo para propor a fundamentação da cooperação internacional.
1. Direito e moral em Kant
Para possibilitar esta empreitada argumentativa, inicialmente é importante fazer a distinção entre direito e moral para poder entender se, quando se fala de dever de cooperação internacional, se fala de um dever moral ou de um dever jurídico.
É princípio fundamental da ética kantiana a autonomia da razão prática. Assim, para que uma vontade possa querer por puro dever, é necessário que não esteja submetida a uma lei estranha, mas que seja legisladora de si mesma. Destarte, só obedecerá à própria lei, que é, por seu turno, lei universal. Com isso, a autonomia da vontade torna-se princípio de todas as leis morais e dos deveres que a elas se conformam.5 Da autonomia da vontade provêm a legislação moral e a legislação jurídica. As leis jurídicas referem-se às ações externas, enquanto que as leis morais dizem respeito às ações internas do homem.6
Assim, para Kant, a ética abarca todos os deveres do homem, sejam internos (moral) ou externos (direito). Ele distingue, assim, no âmbito da conduta humana, a legislação interna da legislação externa. Ambas se diferenciam pelo seu objeto: o direito se ocupa da legislação prática externa de uma pessoa em relação às outras, na medida em que seus atos possam exercer influência uns sobre os outros.
A legislação moral tem um objetivo mais amplo do que a jurídica, uma vez que esta só prescreve, segundo Kant, atos externos, enquanto aquela prescreve, ademais, a intensão das ações.7 Por isso, o direito se conforma com a mera legalidade, isto é, a concordância do ato externo com a lei sem levar em conta a sua intenção. Ao revés, a lei moral requer intenção, ou seja, o cumprimento da ação por puro (e autônomo) dever. Significa dizer: a conformidade com a ideia do dever que deriva da lei chama-se moralidade.8
Sintetiza Kant: “A conformidade ou a não conformidade pura e simples de uma ação com a lei, sem ter em conta os seus motivos chama-se legalidade ou ilegalidade. Porém essa conformidade, na qual a ideia do dever deduzida da lei é ao mesmo tempo um móvel da ação, é a moralidade da ação”.9
Assim, “a legislação que de uma ação faz um dever e que ao mesmo tempo dá tal dever por motivo, é a legislação moral. No entanto, aquela que não faz entrar o motivo na lei, que, consequentemente, permite outro motivo à ideia do próprio dever é a legislação jurídica”.10 Na moral exige-se uma adesão total da ação à lei moral, incluído o motivo da ação. Disso resulta que o tema da legalidade da conduta jurídica se resolve na própria ação, enquanto que o tema da moralidade, na intenção da ação. Entretanto, para o direito, a intenção só se torna relevante quando se exterioriza, isto é, quando se confronta com a esfera da liberdade do outro. Na legislação moral predomina o momento interno da ação, inobstante o motivo seja, sempre, agir pela lei moral.
Observe-se que tanto a moral quanto o direito têm o mesmo objetivo: assegurar a liberdade do homem, impedindo que esse possa ser rebaixado à condição de simples meio (não sendo, pois, considerado um fim em si mesmo). Ocorre que, enquanto a moral busca a liberdade interna, a independência do sujeito em relação a todo o dever que não seja o dever autônomo, o direito realiza a liberdade do agir externo na convivência com os demais. Isso porque no direito, é fundamental que a ação se exteriorize, deparando-se com a instância do arbítrio de outro ser humano.11
Daí a definição kantiana de direito como o conjunto de condições sob as quais o arbítrio de cada um pode conciliar-se com o arbítrio dos demais segundo uma lei universal de liberdade.12 Essa lei universal do direito é expressa da seguinte maneira: “age exteriormente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa se conciliar com a liberdade de todos segundo uma lei universal”.13
Assim, o direito consiste na relação entre dois arbítrios de modo que, o que funda o direito é a condição geral que deve convir ao mesmo tempo a todos os arbítrios. Tal condição é a liberdade. Nesse sentido, Kant afirma que:
...o conceito de um direito externo em geral decorre totalmente do conceito de liberdade na relação externa dos homens entre si e nada tem a ver com o fim, que todos os homens de modo natural têm (o direito de felicidade), nem com a prescrição dos meios para aí chegar; pelo que também este último fim não deve absolutamente mesclar-se naquela lei como princípio determinante da mesma. O direito é a limitação da liberdade de cada um à condição de sua consonância com a liberdade de todos, enquanto esta é possível segundo uma lei universal.14
Destarte, o direito é a forma universal da coexistência das liberdades individuais, de modo que a liberdade de cada um é limitada exclusivamente em função das liberdades das outras pessoas, com base na igualdade dos direitos de liberdade. Por serem os homens iguais e livres, faz-se necessário introduzir o elemento coerção no direito, visto que o direito não tem o dever como móbil, mas a preservação da liberdade dos indivíduos. Por isso, a coercibilidade é o instrumento através do qual se anulam as possibilidades de obstaculizar o uso da liberdade dos outros.15
Desta forma, com Kant, “a coerção justifica-se para limitar a coação que o outro me exerce, contrariando a minha ação, configurando um obstáculo à minha liberdade”. O obstáculo ao obstáculo à liberdade é justo, porquanto concorda com a liberdade segundo leis universais.16 Assim, o respeito do outro como pessoa é a mais profunda dimensão ética do direito, onde está ligada a noção de amor ao próximo, o que implica “pensar pondo-se no lugar de um qualquer outro”17 o que pressupõe o exercício da corresponsabilidade pois os homens estão ligados entre si porque são homens, pela sua humanidade.
É nesses termos que se pode pensar um dever de cooperação quando se trata de realizar os direitos humanos mais básicos. Trata-se do agir para com o outro da forma como eu gostaria que o outro agisse comigo. É o que Kant chama de “pensar no lugar de todo o outro”, como sendo um “pensar alargado”, em uma lógica de consciência da reciprocidade.18 Ao referir-se à pessoa de mentalidade alargada, quer dizer que essa não se “importa com as condições privadas subjetivas do juízo”, e sim “reflete sobre o seu juízo desde um ponto de vista universal (que ele somente pode determinar enquanto se transpõe para o ponto de vista dos outros).19 Para ele, então, a máxima do pensar alargado nada mais é do que o exercício da “faculdade do juízo”.20
Disso se pode afirmar que a cooperação, de uma forma ampla, pode ser entendida como um dever moral e também como um dever jurídico. Trata-se de um dever moral porquanto é eticamente desejável cooperar com o outro pois se espera do outro a mesma cooperação. A cooperação será um dever jurídico quando sua norma for positivada e puder ser executada pela estrutura política institucional.
2. Imperativo categórico e dignidade humana
A ética kantiana foi construída encima da ideia de que a moralidade pode resumir-se num princípio fundamental, a partir do qual se derivam todos os deveres e obrigações da humanidade. Kant chamou a este princípio de imperativo categórico,21 o qual exprimiu da seguinte forma, em oposição ao imperativo hipotético:
Quando penso um imperativo hipotético em geral, não sei de antemão o que poderá conter. Só o saberei quando a condição me seja dada. Mas se pensar um imperativo categórico, então sei imediatamente o que é que ele contém. Porque, não contendo o imperativo, além da lei, senão a necessidade da máxima que manda conformar-se com esta lei, e não contendo a lei nenhuma condição que a limite, nada mais resta senão a universalidade de uma lei em geral à qual a máxima da ação deve ser conforme, conformidade essa que só o imperativo nos representa propriamente como necessária. O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.22
Esta é a formula básica do imperativo categórico. Trata-se de um imperativo formal, pois somente prescreve a forma e não o conteúdo (matéria) da ação.23 A fórmula “não concerne à matéria da ação e ao que deve resultar dela, mas à forma e ao princípio do qual ela própria se segue, e o que há de essencialmente bom na mesma consiste na atitude, o resultado podendo ser o que quiser”.24
No entanto, na mesma obra, Kant deu outras formulações do princípio moral essencial: “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza”;25 “Age de tal maneira que tomes a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como fim, nunca meramente como meio”;26 e “todas as máximas, por legislação própria, devem concordar com a ideia de um reino possível dos fins, como um reino da natureza”.27 Essas fórmulas evidenciam as duas características do imperativo categórico: a universalidade e o caráter de necessidade (dever) que ele impõe à ação.
Dentro dessa perspectiva a cooperação também pode ser vista como um imperativo categórico, devido à sua universalidade (satisfação dos projetos alheios, que, em última análise, são os meus projetos) e a sua necessidade (primeiramente porque é condição necessária para a concretização de muitos direitos humanos, e, por isso, se trata de um dever e não de mera cortesia). Nessa perspectiva, a concretização da dignidade humana se coloca como o fundamento maior do dever de cooperação.
Ora, da crença de Kant de que a moralidade exige que as pessoas sejam tratadas “sempre como um fim e nunca apenas como um meio” vem todo o humanismo da sua obra. Esse humanismo está presente na ideia de que o valor dos seres humanos “está acima de qualquer preço”. Para Kant isso não tem apenas um efeito retórico, mas sim um juízo objetivo sobre o lugar dos seres humanos na ordem das coisas.28 Assim, as pessoas têm “um valor intrínseco, isto é, dignidade”, porque são agentes racionais, ou seja, agentes livres com capacidade para tomar as suas próprias decisões, estabelecer os seus próprios objetivos e guiar a sua conduta pela razão.29
Como a lei moral é a lei da razão, os seres racionais agem de acordo com a lei moral porque assim o devem fazer. Esse dever é a única coisa com “valor moral” para Kant, e deve ser exercido em consonância com as condições que tornam factível a moralidade assim definida. Tais condições são os chamados postulados da razão prática, dentre os quais está a liberdade. Assim, o diálogo entre a razão teórica e a prática concretiza-se através da liberdade, consubstanciada na obrigação moral.30
Por ser racional, o ser humano é moral. E dessa moralidade advém a ideia de tratar os outros de forma que tal tratamento pudesse se tornar uma lei universal. Nessa lei universal estão inseridos a solidariedade e o “dever de hospitalidade”, conceitos que Kant empresta ao presente trabalho a fim de fundamentar o dever de cooperação. Para embasar esse dever de “hospitalidade jurídica”, urge que a jurisdição tenha uma mentalidade alargada, humanizada e não restrita ao conforto do Estado nacional.
Assim, pode-se encontrar o fundamento da cooperação na ética kantiana, de tal forma a verificar-se que, através da ideia de solidariedade, pode-se compreender a ideia de cooperação internacional. Essa compreensão é indispensável para o desenvolvimento da hipótese desse trabalho, de que a cooperação não é um ato de cortesia entre os Estados, mas um verdadeiro dever.
III. Do dever das pessoas ao dever dos Estados: uma transposição possível?
A fim de cuidar da analogia entre a ética das pessoas e das instituições políticas é importante a obra À Paz Perpétua de Kant, de Soraya Nour. A autora, na esteira de Kant, refere que, da mesma forma que se pode encontrar no conceito de pessoa um princípio fundamental, “assim, também o Estado, a partir de uma analogia que Kant constrói entre pessoas e instituições políticas, não é considerado uma coisa da qual se pode dispor como se queira, e sim uma “pessoa moral”... que dispõe de soberania”.31
Portanto, da mesma forma que a liberdade de cada indivíduo não deveria ultrapassar a esfera da liberdade dos demais indivíduos, Kant passa a se preocupar com a relação da liberdade dos Estados e a sua coabitação em um espaço finito.32 Assim, da mesma forma que o direito estatal deve apenas se limitar a garantir a liberdade dos homens, o direito cosmopolita deveria ser limitado às condições da hospitalidade universal.33
Para atingir esse ideal de relações internacionais colaborativas, Kant revigora o direito cosmopolita, discurso que já havia sido abordado por muitos pensadores de diversas matizes, desde a Antiguidade Clássica.34 Porém, foi Immanuel Kant, com a obra Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, de 1784, quem “deu à luz científico-filosófica” ao cosmopolitismo.35 Nesta obra Kant reconhece que “o maior problema para a espécie humana, a cuja solução a natureza a obriga, é alcançar uma sociedade civil que administre universalmente o direito”.36 Este problema, segundo ele, será o último a ser resolvido pela espécie humana, uma vez que a vasta maioria dos homens tem necessidade de líderes (ou senhores), que os obriguem a obedecer à vontade “universalmente válida”.
Compreendendo o “estado de natureza” como um estado de guerra, Kant acredita que a paz deva ser assegurada por estruturas jurídicas institucionais, conferindo, dessa forma, relevância ao direito público.37 Kant constata a “insociável sociabilidade dos homens, ou seja, sua tendência a entrar em sociedade que está ligada a uma oposição geral que ameaça constantemente dissolver esta sociedade”,38 levando o homem ao mesmo tempo à concórdia e à discórdia.
Assim, “uma sociedade na qual a liberdade sob leis exteriores encontra-se ligada ao mais alto grau a um poder irreversível, ou seja, a uma constituição civil perfeitamente justa deve ser a mais elevada tarefa da natureza para a espécie humana”.39 Mas, “o problema do estabelecimento de uma constituição civil perfeita depende do problema da relação externa legal entre Estados e não pode ser resolvido sem que este último o seja”.40
Dessa forma, a solução encontrada por Kant é a criação de uma “federação de nações”,41 o que alguns comentadores vão chamar erroneamente de estado civil mundial, ou ainda, estado cosmopolita:
A mesma insociabilidade que obrigou os homens a esta tarefa [estabelecimento de uma constituição civil] é novamente a causa de que cada república, em suas relações externas -ou seja, como um Estado em relação a outros Estados-, esteja numa liberdade irrestrita, e consequentemente deva esperar do outro os mesmos males que oprimiam os indivíduos e os obrigavam a entrar num estado civil conforme leis.42
Segundo Katrin Flinkschuh, não se trata de um estado civil mundial, mas de uma federação mundial:
Tradicionalmente, os teóricos das as relações internacionais tendem a associar o cosmopolitismo de Kant, ou seja, a sua ideia de ‘cidadãos do mundo’ (Weltburger), com um apelo a um Estado mundial - uma proposta que, como políticos realistas, elas foram extremamente cauteloso, não sobretudo por causa de a perda implícita de soberania do Estado.43
Assim, Katrin Flinkschuh constata a analogia que Kant faz entre indivíduos e Estados, por serem dois tipos de pessoas morais, ao mesmo tempo que esclarece a ausência de qualquer autocontradição na expressão estado federal mundial:
Uma vez que Kant faz uma analogia explícita entre indivíduos e estados como dois tipos de pessoa moral, a exigência de que estados ceder (parte da) a sua soberania, a fim de se submeter a uma autoridade superior não é mais contraditória do que a demanda de que os indivíduos desistir de sua liberdade sem lei no momento da entrada na sociedade civil.44
Entretanto, a autora argumenta que, embora existam leituras divergentes acerca de se tratar de um Estado mundial ou uma associação federativa, impõe-se uma leitura em favor desta última, não somente por uma questão pragmática (Estados simplesmente não estariam preparados para abrir mão de sua soberania), mas porque os Estados perderiam a sua liberdade ao se submeterem a um estado mundial, o que contradiria toda a construção kantiana da existência do direito. Para Katrin Flinkschuh:
Nesta leitura, a ideia de um Estado mundial contradiz as razões para a sua criação, na medida em poderes coercivos de um estado mundial minariam as possibilidades de estados associarem-se livremente uns com os outros. Unificação sob um Estado mundial seria baseado na ameaça de coerção, o que é contrário à afirmação de Kant de que uma paz duradoura mundial deve ser premissa a rejeição, em princípio, de recorrer à ameaça ou uso da força entre os Estados.45
Então, ao invés de estado mundial, este estado civil poderia ser chamado de estado cosmopolita, que seria uma verdadeira “federação de nações em que todo Estado, mesmo o menor deles, pudesse esperar sua segurança e direito não da própria força ou do próprio juízo legal, mas somente desta grande confederação de nações (Foedus Amphictyonum) de um poder unificado e da decisão segundo leis de uma vontade unificada”.46
Kant reconhece que, “tão fantástica quanto essa ideia possa parecer, e embora, enquanto tal se preste ao riso no Abée de Saint-Pierre ou em Rousseau... é a saída inevitável da miséria em que os homens se colocam mutuamente”.47 Esse movimento que levou o homem selvagem a renunciar a sua liberdade é um movimento objetivo da natureza humana, que, “depois de várias revoluções e transformações, finalmente poderá ser realizado um dia aquilo que a natureza tem como propósito supremo, um estado cosmopolita universal”.48 E este estado cosmopolita universal impõe aos Estados o dever de cooperação entre eles, como será visto a seguir.
IV. Além do direito estatal e do direito internacional, um direito cosmopolita
O Estado cosmopolita mundial desempenha entre os Estados o papel de um imperativo categórico, cujo instrumento de realização é o direito cosmopolita, construção esta que aparece no terceiro artigo da Paz Perpétua como uma terceira condição positiva para a efetivação da paz, ao lado da existência do direito interno e do internacional.
Quanto a essa terceira condição, Katrin Flinkschuh diz que:
Kant reconhece três níveis distintos, embora relacionados, de relações jurídicas: o “Direito de um estado” especifica relações de direito entre pessoas dentro de um estado; o “Direito de nações” pertence às relações de direito entre os estados; e `o direito para todas as nações’ ou “Direito cosmopolita” diz respeito às relações de direito entre pessoas e Estados estrangeiros.49
Quanto a esta terceira dimensão do direito, Soraya Nour diz tratar-se do “direito dos cidadãos do mundo, que considera cada indivíduo não membro de seu Estado, mas membro, ao lado de cada Estado, de uma sociedade cosmopolita”.50 Assim, o direito cosmopolita não se confunde com o direito interno ou o internacional, pois considera ao mesmo tempo os homens e os Estados nas sua relação externa de influência recíproca, como cidadãos de um estado cosmopolita de toda a humanidade, que não se confunde com um estado mundial.51 Assim, o cosmopolitismo não pressupõe a existência de um Estado supranacional e nem confunde o direito cosmopolita com um direito supranacional.
Como não existe um estado mundial que se ocupasse do estabelecimento de uma cidadania mundial em detrimento das cidadanias locais, o direito cosmopolita agasalha uma cidadania que se soma às cidadanias nacionais. Nesse sentido:
...cidadãos globais são cidadãos sem um Estado mundial que mantêm sua cidadania em relação aos estados individuais dos quais eles são membros. A ideia do cidadão do mundo como um cidadão sem um Estado mundial ganha cada vez mais força entre os debatedores de justiça global, seja este no contexto de uma federação europeia, o debate internacional dos direitos humanos, ou que o direito internacional em geral.52
Kant expõe de forma mais acabada a sua ideia de cosmopolitismo em A paz perpétua, de 1795, ao revelar que a premissa para as três dimensões do direito (estatal, internacional e cosmopolita) é absolutamente a mesma: a recíproca influência física dos homens. Ora, como a Terra não é uma superfície infinita, mas sim fechada sobre si mesma,53 não se pode evitar a proximidade espacial com outras pessoas, de modo que os habitantes de toda a Terra passam a constituir um sistema em que “o ataque a um direito em um lugar da Terra é sentido em todos”.54
Kant é categórico ao afirmar o caráter jurídico do direito cosmopolita: “trata-se aqui, como nos artigos precedentes, não de filantropia, mas de direito”.55 Com essa afirmação, Kant se preocupa em dotar de tangibilidade o seu projeto de paz perpétua, negando o seu caráter utópico.56
Nesse sentido, elucida Katrin Flinkschuh, afirmando que “O status de direito cosmopolita como um ‘direito estrito’, ou seja, quanto externamente executório, portanto, sujeito a institucionalização e implicando obrigações por parte do titular do direito”.57 E segue a autora alegando serem os direitos humanos universais a materialização do discurso do direito cosmopolita:
Se alguém aceita o direito cosmopolita dos indivíduos à hospitalidade como um direito estrito, as suas obrigações e os requisitos para a aplicação da lei institucionalizada correspondentes impor restrições à agência internacional que sejam mais estritas do que o conteúdo escasso de direito cosmopolita pode, inicialmente, sugerir. Isto não é negar que a concepção de Direito cosmopolita de Kant requer alguma extensão nas condições atuais da globalização. Como já indicado, isso agora é muitas vezes feito por meio de vinculação Direito cosmopolita de Kant às disposições atuais sobre direitos humanos.58
Da mesma forma, na Doutrina do Direito, de 1797, o projeto de paz ganha maior tangibilidade: “Esta ideia racional de uma comunidade pacífica perpétua de todos os povos da Terra (mesmo quando não sejam amigos), entre os quais podem ser estabelecidos relações, não é um princípio filantrópico (moral), mas um princípio de direito”.59
De uma forma geral, o direito cosmopolita assim como todo o edifício jurídico kantiano decorrente da “coexistência inevitável” dos homens, e de nenhum princípio metafísico. Isto fica claro no parágrafo 42 da Doutrina do Direito: “Do direito privado no estado de natureza surge, então, o postulado do direito público: deves, em vista da relação de coexistência inevitável com todos os outros, sair do estado de natureza para entrar num estado jurídico, quer dizer, num estado de uma justiça distributive”.60
Quanto ao conteúdo do direito cosmopolita, o terceiro artigo definitivo à paz perpétua assevera que “o direito cosmopolita deve se limitar às condições de uma hospitalidade universal”.61 O direito cosmopolita é estabelecido a partir do princípio de que todos, originalmente, têm o mesmo direito sobre o solo e, assim, “ninguém tem mais direito que um outro de estar em um lugar da Terra”.62 Assim, do direito à liberdade tão caro à filosofia política kantiana decorre o “direito de visita”,63 ou seja, “o direito do cidadão da Terra de tentar a comunidade com todos e, para esse fim, de visitar todos os lugares da terra”64 e o “direito de hospitalidade”.65 que é o direito de, “na tentativa de se relacionar com o outro, não ser tratado pelo estrangeiro como inimigo”.66 Nas suas palavras:
...hospitalidade significa aqui o direito de um estrangeiro a não ser tratado com hostilidade em virtude de sua vinda ao território de outro. Este pode rejeitar o estrangeiro, se isso puder ocorrer sem a ruína dele, mas enquanto o estrangeiro se comportar amistosamente no seu lugar, o outro não deve confrontar com hostilidade. Não existe nenhum direito de hóspede... mas um direito de visita, que assiste todos os homens para se apresentar à sociedade, em virtude do direito de propriedade comum da superfície da terra, sobre a qual, enquanto superfície esférica, os homens não podem estender-se até o infinito mas devem finalmente suportar-se uns aos outros, pois originariamente ninguém tem mais direito do que outro a estar num determinado lugar da Terra.67
Observe-se que uma decorrência do fato de o direito cosmopolita ser um direito sem Estado faz com que ele tenha um conteúdo um tanto quanto restrito - de onde se poderia afirmar um dever de cooperação, mas não de intervenção:
O Rechtslehre define direito cosmopolita, ou seja, os direitos dos particulares contra um Estado estrangeiro, como ‘o direito de hospitalidade’. Cada indivíduo tem o direito de não ser maltratados ou perturbado nas suas possessões quando em território estrangeiro. De uma forma mais geral, , eles têm o direito de `oferta para se envolver no comércio com o outro’, e ‘a direito para tentar estabelecer comunidade com tudo, e para este fim, para visitar todas as regiões da terra’. No entanto, o direito de hospitalidade não é o direito de um convidado para ficar o tempo que quiserem, nem é um direito de cidadania daquele Estado. O direito de hospitalidade é estritamente limitado a um direito de residência temporário e o direito de ser tratado com justiça para a duração de sua estadia.68
Mas não são só direitos que advém da ideia de direito cosmopolita, mas também deveres, já que o direito de não ser maltratado pelos indivíduos ou governo de um estado estrangeiro engloba a obrigação de respeitar a lei da terra e de não atacar sujeitos ou o governo da do Estado ou comunidade em questão.69
Dessa forma, o ideal kantiano pressupunha um mundo de grande interação, reconhecedor da notável influência que os abalos produzidos em um Estado produzem em todos os outros Estados, o que lastreia a aplicação do pensamento kantiano no mundo contemporâneo, onde é grande a interação entre os Estados. Assim, percebe-se que muitos dos temas contemporâneos das relações internacionais são essencialmente kantianos, como a sociedade civil global, as instituições jurídicas internacionais e o cosmopolitismo. Igualmente, a cooperação internacional nos dias de hoje é, em boa medida, um tema kantiano, que pode ser entendida na esteira da ideia cosmopolita de hospitalidade.
A lógica da cooperação causa um impacto direto na ideia de autodeterminação do Estado. Ora, a independência de um Estado, ser moral, não pode ser exagerada a ponto de autorizar a violação dos direitos de outro Estado, e mais do que isto, de obstaculizar a cooperação internacional para a efetivação de direitos humanos, por exemplo. Nesse sentido deve se constatar que o dever de cooperação impõe limites autonomia do Estado, devendo ser seguida por uma verdadeira reorganização da teoria político-jurídica da modernidade.
Note-se que este “estreitamento” ao nacional, que deve ser superado, e o “alargamento” ao cosmopolita, que deve ser alcançado, decorrem, em boa medida, da prática da solidariedade que, pode-se dizer, radica no coração da ideia de “mentalidade alargada”, na medida em que essa somente se realiza em consideração ao “outro”, mas também exige um esforço de imaginação, um tipo de “pensamento nômada”.
Assim como são tantos os desdobramentos do pensamento kantiano, muitas são as suas críticas. Uma das principais censuras feitas ao pensamento kantiano é o seu idealismo. Ora, trata-se de uma das tantas desfuncionalidades da gramática realista a ser abordada nesta pesquisa, onde o -necessário- idealismo é pejorativo, e não benfazejo. Preocupados com essas críticas, e determinados em operacionalizar a teoria kantiana na atualidade, importante as considerações de Otfried Höffe e Jürgen Habermas que serão desenvolvidas a seguir.
V. Um dever de cooperação internacional na atualidade? Releituras contemporâneas do projeto kantiano
Otfried Höffe é um autor que atualiza o pensamento kantiano aplicando-o às relações internacionais contemporâneas. Ele apresenta “a globalização como o crescimento e consolidação das relações internacionais”, o que demandaria a atualização da proposta kantiana para um cosmopolitismo multifacetado com a integração entre a esfera local e a internacional, e entre as esferas locais.70 Essa perspectiva complexa e realista do cosmopolitismo é capaz de fundamentar um dever de cooperação internacional.
Ora, é inegável que a globalização afeta as premissas em que se funda o tradicional modelo de Estado e de direito. Nesse sentido, igualmente o conceito de cidadania está modificado para abarcar a “cidadania cosmopolita”.71 Dessa forma, para ser cidadão do mundo, não é crível que se renuncie às identidades locais. A proposta de Höffe destaca o cosmopolitismo graduado que envolva uma república mundial complementar aos Estados e refuta a ideia de um estado mundial homogêneo:
...o estado mundial que, como resultado do imperativo legal e político universal é confiada à humanidade em sentido jurídico-moral, deve ser estabelecido como um complemento, subsidiário e também república mundial federal. Dentro dele, seremos cidadãos do mundo, mas não sentido exclusivo, mas complementares. O conceito único responde ao que o cosmopolitismo que... nos coloca de estar na frente da vida política concreta; e, geralmente, um sentimento de superioridade moral, diz que não é alemão, francês ou italiano, mas só cidadão do mundo. Aqui um Estado mundial tomando o lugar dos Estados individuais aparecer, e direito cosmopolita irá substituir a lei civil nacional; nesse estado mundo globalista uniforme, você é um cidadão do mundo, em vez de um cidadão de um Estado.72
Mesmo se pensando o cosmopolitismo como uma utopia, Höffe apresenta-se como uma possibilidade para repensar alguns dos problemas decorrentes da crise de pertencimento e de deliberação democrática nos dias atuais, na medida em que o reconhecimento da alteridade, da dignidade e solidariedade, apresenta-se como fundamental ao futuro da humanidade. A partir desses topoi se pode pensar outras composições da ideia de soberania, posições estas justificadas no fato de que, atualmente os direitos humanos não têm pátria nem país, ao contrário, caracterizam-se pela universalidade. Justamente motivado por esses múltiplos pertencimentos é que Höffe propõe a ideia de múltiplas cidadanias: local, nacional e mundial. O importante é ressaltar que a cidadania mundial não exclui a cidadania de um país, mas deve conviver com ela, no que se poderia chamar de dupla natureza jurídica da cidadania.73
Nessa perspectiva, com Höffe, se poderia argumentar que, por haver direitos humanos universais, existem direitos que pertencem às pessoas independentemente de elas serem cidadãos desse ou daquele Estado. A existência desses direitos humanos universais -que dão conteúdo à cidadania cosmopolita e ao estado mundial de Höffe- exige uma determinada ação colaborativa dos Estados para a sua concretização. Mais do que isso, a governança internacional emergente da existência de direitos humanos universais exige dos Estados ações colaborativas buscando a efetivação dos mesmos. Assim, a cooperação entre os Estados -para a concretização dos direitos humanos- não seria uma mera cortesia internacionais, mas um verdadeiro dever dos Estados.
Outro importante filósofo contemporâneo a dar continuidade ao projeto cosmopolita kantiano é Jürgen Habermas, para quem a crescente interdependência das sociedades favoreceria a implementação da paz no mundo.74 O seu pensamento político representa uma contribuição importante para a problematização de temas como a constitucionalização do direito internacional, cidadania e governança global. Diferentemente de Höffe que defende um estado mundial federalizado, Habermas defende a criação de uma instituição mais branda: uma aliança ou uma federação de nações.
Na época em que Kant escreveu A paz perpétua, ainda não havia se desenvolvido a estrutura capitalista que resultou no crescente conflito de classes sociais. Por isso Habermas diz que algumas premissas kantianas, trabalhadas no século XVIII, encontrariam dificuldades conceituais atualmente, necessitando de certas reformulações. Mas qual proposta Habermas apresenta para que o projeto kantiano da paz perpétua possa manter-se vivo após 200 anos de sua edição?
O primeiro passo para delinear uma proposta cosmopolita é a revisão de alguns dos fundamentos propostos por Kant, já que a história não demonstrou a validade de alguns dos seus principais postulados. O pacifismo das repúblicas não se sustentou face aos nacionalismos e a distinção entre soberania interna e soberania externa. A defesa kantiana da força socializante do comércio não previu que o desenvolvimento capitalista conduziria a uma oposição entre classes sociais que ameaçaria duplamente tanto a paz e a característica supostamente pacífica das sociedades liberais. Por sua vez, a ideia de um espaço público foi degenerada pela manipulação das mídias de massa e pela atomização dos indivíduos.
Além das inconsistências anteriores, Habermas aponta para a deficiência mais marcante no projeto de paz kantiano que é a ideia de uma aliança federativa entre os povos. Habermas entende que nesse ponto Kant fez uma concessão ao realismo estatalista. Explica-se, na visão de Kant, seria suficiente uma aliança federativa de povos em que os Estados, cientes de suas obrigações morais, abandonariam o equilíbrio de forças. Habermas não se contenta com essa assertiva e afirma que Kant não estabeleceu a devida forma jurídica capaz de obrigar os Estados a permanecer na proposta aliança federativa. A crítica de Habermas é no sentido de que ao confiar no voluntarismo dos Estados, Kant fragilizou qualquer possibilidade de um direito público verdadeiramente internacional.75
Ainda Habermas denuncia uma lacuna conceitual no projeto kantiano por não definir se trata-se de uma república mundial ou de uma federação de Estados livres. Para Habermas -acompanhando Katrin Flinkschuh- não é viável pensar um Estado mundial a partir do estudo do constitucionalismo e da análise das diferenças existentes entre a domesticação do poder no âmbito interno dos Estados, nas relações internacionais e nas relações entre os Estados e os cidadãos.
A dificuldade essencial seria transportar para o nível das relações internacionais o mesmo raciocínio contratualista que pode ser desenvolvido no âmbito doméstico.76 Então, para tratar da questão da superação do voluntarismo dos Estados na ordem internacional Habermas desenvolve uma concepção de constitucionalização do direito internacional “que leve em conta o equilíbrio federativo e a disseminação do poder em mecanismos procedimentalizados de participação cívica”.77 Segundo ele, “adotando o ponto de vista de uma constitucionalização do direitos das gentes, o qual, para além do status quo, aponta com Kant para um futuro estado jurídico cosmopolita”,78 seria uma forma de perquirir a existência de uma ordem jurídica internacional. E essa ordem jurídica imporia um dever de cooperação internacional entre os Estados.
Nas suas palavras, a “constitucionalização do direito internacional não pode ser entendida como a continuação lógica da domesticação de um poder estatal que surgiu naturalmente”, já que “o ponto de partida para a juridificação pacificadora das relações internacionais é constituído de um direito internacional que, do ponto de vista da sua forma clássica, inverte a relação entre Estado e constituição”.79
Essa inversão reside na assimetria de poder entre os Estados que, embora formalmente iguais, não se relacionam como sujeitos livres e iguais na mesma forma dos cidadãos no âmbito interno. Ademais, há a ausência de um poder de polícia supranacional capaz de impor aos Estados soberanos a realização das possíveis regras tal como acorre no plano doméstico.80 Quanto à constitucionalização do direito internacional:
O direito internacional clássico já é uma espécie de constituição na medida em que produz uma comunidade jurídica entre as partes que formalmente têm direitos iguais. Traços essenciais desta proto-constituição do direito internacional a distinguem da constituição republicana. Não é composta por sócios jurídicos individuais, mas por atores coletivos; também não tem a função de constituir governos, mas sim formar poderes. Além disso, para ser uma constituição, em sentido estrito, falta à comunidade dos sujeitos do direito internacional a força do compromisso das obrigações jurídicas recíprocas.81
Nesse ponto, Habermas não confia apenas no voluntarismo dos Estados. No argumento de Habermas, é o direito que produz o fechamento da abóbada do edifício moral kantiano. Para o direito regular as ações da comunidade cosmopolita, os Estados devem abandonar o exercício irrestrito de sua soberania para submeterem-se as leis públicas elaboradas em uma comunidade politicamente constituída. Nas palavras de Habermas: “...com a declaração voluntária da proscrição das guerras de agressão, os membros de uma liga de povos já satisfazem uma auto-obrigação que, mesmo sem um poder coercitivo supraestatal, gera um compromisso mais forte do que o de costumes jurídicos ou acordos interestatais”.82
Assim, a “liga dos povos” se ampara no compromisso de abolir a guerra para fundamentar o direito internacional, sendo este o fundamento último do cosmopolitismo. A liga de Estados necessita de uma complementaridade jurídica num plano transnacional que se encarregue da criação de órgãos e aplicação do direito, bem como da possibilidade de impor sanções aos membros da comunidade federativa. É justamente neste ponto que Habermas aprimora o pensamento kantiano com a ideia de um constitucionalismo no plano global.83 Para exemplificar como aconteceria esse adensamento de juridicidade das relações internacionais Habermas cita três instituições que demonstram o desenvolvimento de uma ordem global sem Estado mundial: a Organização das Nações Unidas, a Organização Mundial do Comércio e a União Europeia.84
A partir desses exemplos ele denota a existência de uma ordem política mundial sem governo mundial caracterizado pela descentralização, ausência de um poder estatal e a multidimensionalidade.85 A sua proposta demanda o aprimoramento da relação de atores diferentes em diversos níveis para a sedimentação dessa ordem mundial. Em primeiro lugar é necessário o estabelecimento de um parlamento mundial que se converta em uma espécie de congresso federal. Nesse parlamento os povos estariam representados como totalidade dos cidadãos do mundo, mas não por seus governos, e sim por representantes diretamente eleitos.86 Em segundo lugar está a construção de atores multilaterais que conduziriam a formação de processos de regulação a nível mundial e regional em temas como ecologia, imigração, desenvolvimento e cooperação regional.87 Em terceiro lugar está a superação da dicotomia entre a soberania interna e a externa, a adequação da tomada de suas decisões no âmbito interno aos compromissos internacionais, e o reconhecimento de que suas decisões podem afetar os demais Estados e indivíduos de outros Estados.88
Na visão de Habermas, é necessário redesenhar as instituições para a constitucionalização do direito internacional. Feito isso, a formação de uma ordem mundial cosmopolita deve ainda estar atrelada a legitimação democrática, que pode se dar através dos canais já existentes nos Estados e também através de uma opinião pública mundial.89 Daí a importância da construção de uma esfera pública mundial que teria função acessória à esfera pública estatal. Um dos argumentos mais difíceis de ser rebatido pelos adversários no discurso habermasiano é que, amparada em uma esfera pública mundial, a sociedade cosmopolita não precisará das exigências de valorações éticas, pautadas em “traços pré-políticos”.90
É elemento essencial de uma legitimação verdadeiramente democrática a distinção entre soberania popular e soberania estatal. Nesse sentido, Habermas afirma que “o ceticismo mais persistente em relação a uma juridificação democrática da dominação política, que aponta para além das fronteiras nacionais, nutre-se, contudo, de uma incompreensão coletiva ao confundir soberania popular e soberania do Estado.91
Habermas advoga pela prevalência da soberania popular, dando ênfase na pessoa humana, denotando o quão comprometido ele está com o projeto cosmopolita kantiano. Entretanto, a ênfase no indivíduo não negligencia o papel do Estado na construção da ordem cosmopolita. Se referindo ao Estado-nação, Habermas afirma que “só com ele é que se constrói uma simetria entre a ordenação jurídica do trânsito social e político, para além e para aquém das fronteiras do Estado”.92 Daí o caráter derivativo da constitucionalização do direito internacional:
A constitucionalização do direito internacional, que restringe a dominação, mas é destituída de Estado, só poderá satisfazer as condições de legitimação de um ‘estado cosmopolita’ quando, seja no plano da ONU, ou no dos sistemas de negociação transnacional, tiver algum “respaldo” de processos democráticos de formação da vontade e opinião. Processos estes que -independentemente da complexidade destes Estados federativamente construídos e de dimensão continental- só poderão ser plenamente institucionalizados em Estados constitucionais de direito. A constitucionalização fraca, desprovida de Estado não pode prescindir da legitimação concedida pelas ordens constitucionais centradas em Estados.93
É justamente isto que Habermas chama de ordem internacional multifacetada, já que “os Estados nacionais formariam, ao lado dos cidadãos do mundo, o segundo sujeito constituinte da comunidade mundial”.94 Essa ordem “não pode ser alcançada pelo caminho de uma moralização, mas apenas pela regulamentação jurídica das relações internacionais”.95 Daí a proposta habermasiana de amparar essa constelação pós-nacional na solidariedade cosmopolita (direito e política internacional) ao invés de fazê-lo em elementos morais, pré-políticos96.
Assim, o direito internacional não decorre de uma concepção jusnaturalista. Antes, a “força civilizadora da juridificação democrática”97 se funda na solidariedade e reciprocidade. Essa solidariedade cosmopolita pode -e deve- ser entendida como o fundamento maior de um dever de cooperação internacional.
VI. Conclusões
Em que medida existe um dever de cooperação internacional? Esta foi a pergunta que norteou o desenvolvimento desta pesquisa. Após trilhar o percurso investigativo, se concluiu que se pode sustentar que existe um dever de cooperação internacional e este dever tem uma dimensão tanto moral quanto jurídica. Essa resposta foi possível a partir de uma abordagem normativa do tema capaz de fundamentar tal dever.
Esse trabalho fundamentou o dever de cooperação internacional na teoria moral deontológica da tradição kantiana para mostrar que a sua concepção da razão prática impõe um dever de cooperação internacional. Para a construção deste argumento, este trabalho foi dividido em quatro partes, cada uma delas correspondendo a uma parte do eixo argumentativo proposto. Primeiramente foi visto como a ideia de dever ético se articula na direção da ação política, e, em seguida, foi visto que é possível transpor o edifício ético kantiano para as relações internacionais através do desenvolvimento de um cosmopolitismo moral e jurídico capaz de afirmar a existência de uma federação mundial.
Por fim, foi verificado que o desdobramento contemporâneo de alguns desses preceitos pode sustentar a ideia de que existe um dever de cooperação internacional por parte dos Estados. E este dever tem um caráter moral e jurídico, conforme a argumentação de Otfried Höffe e Jürgen Habermas, respectivamente. No argumento habermasiano, é o direito que produz o fechamento da abóbada do edifício moral kantiano, de forma que, para o direito regular as ações da comunidade cosmopolita, os Estados devem abandonar o exercício irrestrito de sua soberania para submeterem-se as leis públicas elaboradas em uma comunidade politicamente constituída -e verdadeiramente democrática. Ao ressaltar a fragilidade da bondade, Habermas afirma que essa ordem não pode ser alcançada pelo caminho de uma moralização, mas apenas pela regulamentação jurídica das relações internacionais -o que ele chama de constitucionalização do direito internacional.
Assim, restou evidente que existe um dever de cooperação internacional, dever este que se desdobra em uma imposição moral e jurídica. Entretanto, os desafios à implementação de um cosmopolitismo esbarram em uma sedimentada gramática estatalista. Enquanto o Estado for o astro rei no espaço global, a cooperação internacional não conseguirá romper com o paradigma estatalista, já que sua efetividade esbarra no nacionalismo exacerbado dos Estados. Nesse sentido, a perspectiva kantiana ajuda a perceber que são os indivíduos que estão por detrás de todas as movimentações estatais e internacionais, exigindo a solidariedade cosmopolita.