SUMÁRIO: I. Introdução. II. A proteção internacional da propriedade intelectual de cultivares-União Internacional para a Proteção das Obtenções Vegetais (UPOV) e Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (ADPIC/TRIPs). III. O Regime jurídico de propriedade intelectual de cultivares no Brasil. IV. Os limites ao direito de proteção da propriedade intelectual sobre as cultivares no Brasil. V. Considerações finais. VI. Bibliografia.
I. Introdução
O avanço da ciência e da biotecnologia na área agrícola e a aproximação entre a ciência e o Mercado pelo fomento aos investimentos na área, levam à pretensão de proteção dos direitos de propriedade intelectual sobre a inovação o produzida na área. Uma das formas de proteção da criações de vegetais são as cultivares.
Pretende-se apresentar a proteção da propriedade intelectual sobre cultivares, considerando o tratamento da União Internacional para Proteção de Obtenções Vegetais (UPOV) e o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (ADPIC/TRIPs), identificando os limites ao direito de proteção da propriedade intelectual sobre cultivares no Brasil. O Brasil optou por um sistema sui generis de proteção, adotando o modelo UPOV, Ata 1978.
A atualidade do tema da proteção das cultivares aliada à polêmica sobre a necessidade de proteção que leva a apropriação do conhecimento gerado, e, por outro lado, a importância do investimento em pesquisas na área de melhoramento vegetal, demarcam os desafios na busca de um equilíbrio entre os direitos dos obtentores (interesses privados) e interesses coletivos (interesses públicos). Esta complexidade justifica o desenvolvimento do presente artigo, na tentativa de verificar como a legislação brasileira trata a temática e se é possível alcançar esse equilíbrio por meio de limites (adequados) aos direitos de propriedade intelectual sobre cultivares.
Os métodos utilizados foram o dialético, o dedutivo e o monográfico e a técnica de pesquisa utilizada foi e bibliográfica em fontes secundárias.
O artigo desenvolve-se a partir da proteção internacional da propriedade intelectual sobre cultivares e a evolução dos regulamentos internacionais sobre o tema, para, em seguida, analisar o regime jurídico de propriedade intelectual sobre cultivares no Brasil, com a delimitação dos limites ao direito de propriedade intelectual sobre cultivares previstos na legislação brasileira, visando apontar se há o equilíbrio entre interesse privado e público no marco regulatorio.
II. A proteção internacional da propriedade intelectual de cultivares-União Internacional para a Proteção das Obtenções vegetais (UPOV)1 e Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (ADPIC/TRIPs) 2
As variedades vegetais contam com a evolução de milhões de anos, combinando a ação humana, a ação dos fatores climáticos e mudanças de ambiente, geraram alterações genéticas. Sempre foram de livre acesso aos agricultores. As alterações produzidas pelo homem primitivo, resultavam da procura de tipos mais adequados para satisfazer a suas necessidades e ocorriam naturalmente (século XVIII). A partir do século XIX, alguns práticos selecionaram plantas que apresentavam diferenças e que podiam ser de interesse econômico.3 A partir dessa possibilidade, surgem questionamentos sobre a apropriação temporária de ativos intangíveis, bem como quanto ao estabelecimento de direito de exclusividade sobre plantas e outros organismos vivos.
No século XX o melhoramento de vegetais, com a modificação dirigida dos caracteres hereditários, por meio da biotecnologia moderna, possibilitou aos melhoristas a criação de novas variedades vegetais e a exploração comercial das sementes, como mercadoria. Esse cenário acelera o surgimento da proteção sobre cultivares por meio de regulamentos internacionais e internos sobre o tema.
As cultivares são novas variedades cultivadas de vegetais. Resultam do emprego de técnicas de melhoramento, desde a seleção e cruzamento, até modernos métodos de engenharia genética. O direito de propriedade intelectual sobre as cultivares, conferido ao melhorista, garante ao titular um privilégio exclusivo sobre a utilização de sua obra, por um período determinado de tempo (direito de usar, fruir e dispor do bem imaterial), dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio.
Tradicionalmente eram amparados pela propriedade intelectual as invenções mecânicas e as criações artísticas, pela propriedade industrial ou pelo direito de autor. A concessão de direitos de propriedade intelectual a seres vivos é algo relativamente recente no mundo e bastante controverso.4 Os marcos iniciais da internacionalização da proteção à propriedade intelectual5 foram a Convenção da União de Paris (CUP), de 1883, e a Convenção de Berna, de 1886. A CUP trata da proteção à propriedade industrial (patentes e marcas). Sua principal modificação foi feita em Estocolmo, em 1967. Esse acordo é administrado pela World Intellectual Property Organization (WIPO). As principais cláusulas do Tratado dizem respeito ao tratamento igual aos nacionais de qual o titular de uma patente num país membro da convenção, o estabelecimento de certo número de regras comuns nas legislações dos países membros. A Convenção de Berna protege o direito de autor e estabelece o reconhecimento do direito de autor entre nações soberanas, Antes da Convenção, as nações frequentemente recusavam reconhecer em seus territórios os direitos de autor de estrangeiros. Até então, obras protegidas em seu país de origem podiam ser livremente reproduzidas em outros países.
Esses tratados são mecanismos de harmonização das legislações nacionais, de interação multilateral e, principalmente, de garantia de direitos de propriedade nos países que deles participam. Nesses tratados, entretanto, não se cogitava a inclusão de plantas, ou de suas partes.6
Especificamente a proteção de novas variedade vegetais ou obtenções vegetais é uma forma de propriedade intelectual mais recente. Diferente de outras áreas tecnológicas, a proteção de cultivares apenas começa a ser referida, de maneira expressa, em acordos internacionais, com a criação da União Internacional para a Proteção de Novas Variedades de Plantas (UPOV), em 1961. A UPOV é uma organização intergovernamental com sede em Genebra, na Suíça. Foi estabelecida por meio da Convenção para a Proteção de Novas Variedades de Plantas, criada em 1961, em Paris; com posteriores revisões em 1972, 1978 e 1991.
A UPOV tem a função de regular, no âmbito internacional, direitos e deveres relativos à propriedade intelectual sobre novas variedades vegetais. Fornece o marco conceitual que baliza as legislações nacionais de seus países-membros sobre direitos dos obtentores de plantas.7 O objetivo da UPOV é proteger o direito de propriedade intelectual no campo do melhoramento vegetal, e sua missão é fomentar um sistema eficaz de proteção, com vistas ao desenvolvimento de novas cultivares para o benefício de toda a sociedade, padronizando, padronizar e estabelecendo requisitos uniformes para a concessão e anulação dos direitos de propriedade intelectual sobre cultivares. A cooperação internacional entre os países membros, também é objetivo da UPOV, por meio da viabilização de um sistema, pelo qual, um membro aceita os testes realizados em outro membro, da variedade a ser protegida,8 reduzindo custos de proteção em vários países-membros.
Em países da Europa e nos Estados Unidos da América os melhoristas procuravam garantir a proteção para os frutos do seu trabalho ainda no final do século XIX. Inicialmente às variedades de vegetais foi concedido o registro de marcas, com a finalidade de preservar sua denominação. Na França, por exemplo, "a legislação de 1925, que regulamentava o comércio de sementes, exigia que nas embalagens de trigo constasse sua procedência, com o nome e endereço do produtor".9 O produtor, a partir de 1922, poderia interditar a utilização por terceiros. Os EUA implantou em 1930, a Lei de Patentes de Plantas (Plant Patent Act, PPA), que limitava a proteção para as plantas reproduzidas assexuadamente e para as novas variedades propagadas por tubérculos.10 A Holanda foi precursora do direito nos moldes do que viria a ser UPOV, em 1961, cujo objetivo foi o de uniformizar a proteção dos direitos dos melhoristas. Os EUA, em 1970 seguem "a tendência européia das proteções especiais fora do sistema de patentes, nos quadros do UPOV".11
Sobre a possibilidade de proteção de material vivo, tem-se como marco inicial o julgamento do caso Dianmond versus Chakrabarty (que mais tarde ficaria conhecido apenas como Caso Chakrabarty), no qual a Suprema Corte Americana decidiu pela concessão de patente a uma bactéria obtida artificialmente, e estabeleceu que microorganismos engenheirados poderiam ser patenteados como manufacture or composition of matter. A argumentação utilizada foi de que a bactéria não existia anteriormente na natureza e tinha aplicabilidade específica, preenchendo os requisitos de novidade e utilidade, e caracterizando-se como uma invenção.12 Embora a decisão contrariasse as determinações do Escritório de Patentes americano (United States Patent and Trademark Office, USPTO), que defendia que coisas vivas não poderiam ser patenteadas, mas sim deveriam ser protegidas por outros regulamentos já existentes. O caso reabriu a discussão sobre a patenteabilidade de seres vivos, até então negada em todos os países.13
A decisão administrativa foi proferida pelo Escritório de Patentes americano, no caso Hibberd, quando a Comissão de Apelação e Interferência de Patentes, em 1985, foi admitido pela primeira vez o patenteamento de plantas pelo regime geral das leis de patentes nos Estados Unidos e:
mais uma vez, a rivalidade entre a lei de patentes e os dois estatutos de proteção às plantas e suas variedades foi examinada... A União Internacional de Proteção de Novas Variedades de Plantas (UPOV) também teve sua objeção rejeitada, mas o caso constituiu um avanço, ao identificar a cultura de tecidos como patenteável.14
Ocorre uma "redefinição" do conceito de planta, seguindo os mesmos critérios das máquinas e dos produtos industriais. A partir daí foram atribuídas, nos EUA, milhares de patentes relativas a plantas.15
Entre as formas de proteção, vários países adotaram um sistema sui generis de proteção das variedades vegetais, escolhendo o modelo da UPOV. Importante observar, no entanto, que a obrigação assumida pelos países signatários do TRIPs em criar uma legislação para a proteção de variedades vegetais, e a opção por um sistema sui generis, não implicava, necessariamente, na obrigatoriedade de adesão do país à UPOV. Mas a adesão à UPOV acabou sendo a opção de muitos países concedendo direitos exclusivos de exploração aos obtentores em bases internacionalmente harmonizadas e em nível internacional.16
A UPOV foi adotada inicialmente por cinco países e a participação estava limitada a associados europeus. Para ampliar a adesão dos países que já tinham legislações sobre o tema, a Convenção da UPOV sofreu revisões ao longo dos anos, merecendo destaque as Atas de 1978 e de 1991. As atas promoveram diferentes efeitos para os países em desenvolvimento e megadiversos. Um dos aspectos é o relativo ao registro de uma nova variedade de vegeral. "En el Acta de 1978 el agricultor necesita de la autorización del obtentor sólo para comercializar el material de reproducción (semilla, esqueje); por lo tanto, puede realizar libremente trueques de semillas o donaciones de las mismas",17 conforme previsto no artigo 5o. "1) El derecho concedido al obtentor tendrá como efecto someter a su autorización previa la producción con fines comerciales, la puesta a la venta, la comercialización del material de reproducción o de multiplicación vegetativa, en su calidad de tal, de la variedad".18
A Ata UPOV de 1978 prevê proteções brandas para novas cultivares e a proibição da dupla proteção para uma mesma espécie botânica (art. 2o.), ou seja, desautoriza que haja uma proteção por patente e outra, concomitante, mediante um sistema sui generis, como o aplicado no Brasil, para a proteção de cultivar.19
Com a Ata de 1991, estabelecem-se proteções mais rígidas e não restringe a dupla proteção, pois o agricultor "debe solicitar autorización para cualquier disposición que pretenda realizar del material de reproducción, sea oneroso o gratuito".20 Veja-se:
Artículo 14. Alcance del derecho de obtentor. 1) [ Actos respecto del material de reproducción o de multiplicación] a) A reserva de lo dispuesto en los Artículos 15 y 16, se requerirá la autorización del obtentor para los actos siguientes realizados respecto de material de reproducción o de multiplicación de la variedad protegida: i) la producción o la reproducción (multiplicación), ii) la preparación a los fines de la reproducción o de la multiplicación, iii) la oferta en venta, iv) la venta o cualquier otra forma de comercialización, v) la exportación, vi) la importación, vii) la posesión para cualquiera de los fines mencionados en los puntos i) a vi), supra.21
A previsão em uma e outra Ata demarca o nível de direitos reconhecidos aos agricultores, como o direito de voltar a plantar com o resultado de sua colheita, com ou sem pagamento de royalties, pela utilização da semente protegida no primeiro plantio. De acordo com a Ata de 1978, caso o agricultor promova algum melhoramento, dando surgimento a uma nova variedade, poderia ter o seu direito de melhorista reconhecido se a "nova" variedade atendesse aos requisitos previstos em lei, e obter privilégio sobre o seu reconhecimento, "sin tener que compartir derechos o regalías con el titular anterior". Mas, de forma diversa, a Ata de 1991 prevê a categoria "variedade essencialmente derivada". Por esta previsão o agricultor melhorista que g produz uma nova variedade, a partir de outra já registrada, "el fitomejorador puede registrar esta nueva variedad pero reconociendo al titular derechos sobre la variedad que sirvió de base y de la cual la nueva variedad deriva esencialmente, en especial deberá compartir las regalías obtenidas." Percebe-se que a Ata de 1991 foi mais rígida na proteção das criações ao outorgar a possibilidade de dupla proteção "de una planta mediante patente y registro de obtentor, lo cual prohíbe UPOV 1978".22
Segundo Rafael Perez Miranda "uno de los beneficios más importantes es el compromiso de los Países Partes de adherir al Acta UPOV 1991 y otorgar patente a los derivados de plantas (semillas, esquejes, genes vegetales), así como segundos usos en materia de fármacos". A proteção das cultivares reconhecida pela UPOV, restrige os direitos dos agricultores "la posibilidad del agricultor de volver a sembrar la semilla obtenida de su siembra sin necesidad de volver a pagar regalías, por un lado, y la de realizar trueques con sus vecinos para obtener nuevas variedades más aptas para la zona de siembra, vieja tradición de los agricultores".23
Em 1986 iniciou-se, no âmbito do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), uma série de negociações para fortalecer a proteção da propriedade intelectual relacionada ao comércio. Essas negociações culminaram na criação, em 1993, do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (ADPIC/TRIPs). O Acordo TRIPs estabelece um padrão internacional de proteção dos direitos de propriedade intelectual, fixando requisitos mínimos que deverão ser reconhecidos e implementados internamente por todos os países signatários-membros da OMC. Nesse contexto, a inclusão dos direitos de propriedade intelectual nas negociações do General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), tiveram resistência de muitos países, e a questão da propriedade intelectual sobre seres vivos foi particularmente controvertida.24
O AcordoTRIPs estabelece no artigo 27.3.(b) de forma clara a obrigação de proteger as obtenções vegetais, seja sob a modalidade de patentes, seja através de um sistema eficaz sui generis, ou ainda sob uma combinação de ambos. Assim, o Acordo TRIPs estabelece a obrigatoriedade de proteção de tais obtenções sob uma das categorias de propriedade intelectual indicadas, dentro das opções assinaladas.25
Na redação do texto do acordo TRIPs:
Artigo 27
Matéria Patenteável
...3.- Os Membros também podem considerar como não patenteáveis:
a) métodos diagnósticos, terapêuticos e cirúrgicos para o tratamento de seres humanos ou de animais;
b) plantas e animais, exceto microorganismos e processos essencialmente biológicos para a produção de plantas ou animais, excetuando-se os processos não-biológicos e microbiológicos. Não obstante, os Membros concederão proteção a variedades vegetais, seja por meio de patentes, seja por meio de um sistema sui generis eficaz, seja por uma combinação de ambos. O disposto neste subparágrafo será revisto quatro anos após a entrada em vigor do Acordo Constitutivo da OMC.
O TRIPs deixa a cargo de cada país a decisão sobre a melhor forma de proteção para plantas. Os países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) "não estão obrigados a adotar um sistema sui generis de proteção ou um sistema de patentes, mas sim, a criar uma legislação que melhor se adapte a sua realidade".26
Com a ratificação do TRIPs, os países criaram leis e/ ou reeditaram para a proteção da propriedade intelectual, incluindo as invenções biotecnológicas e cultivares, inclusive o Brasil. A pressão externa exercida diretamente pela aprovação do TRIPs e indiretamente por certos países desenvolvidos, como os EUA, impôs para diversos países, em especial os em desenvolvimento, este aparato de proteção.
III. O regime jurídico de propriedade intelectual de cultivares no Brasil
O Brasil, como membro da Organização Mundial do Comércio (OMC), adotou as disposições do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (ADPIC-TRIPs), que especifica a proteção das variedades vegetais pelo sitema de patentes ou por um sistema sui generis. O Acordo foi internalizado no Brasil por meio do Decreto Presidencial n° 1.355/94. O Acordo determina na Seção 5 a obrigatoriedade de se constituir alguma forma de proteção em todos os setores tecnológicos.
No âmbito da União para a Proteção de Obtenções Vegetais (UPOV), vigoram dois tratados Ata de 1978 da UPOV a Ata 1991 da UPOV (UPOV, 2015). O Brasil aderiu ao primeiro e optou pela proteção sui generis nos moldes da UPOV de 1978, por meio de uma legislação específica voltada à proteção da propriedade intelectual sobre cultivares. A Lei de Cultivares brasileira, n° 9.456, foi promulgada em 25 de abril de 1997 e criou mecanismos institucionais e incentivos para que as empresas privadas desen volvam novas cultivares. Antes desse marco legal, a atividade de pesquisa na área era realizada quase que exclusivamente pelo setor público. O setor privado passa a pesquisar este campo (das novas variedades de das semestes) a partir da ampliação das condições de apropriação dos ganhos.
A Lei n° 9.456, conceitua cultivar no art. 3o., inciso IV, como uma variedade, de qualquer gênero ou espécie vegetal superior, que seja claramente distinguível de outras cultivares conhecidas por margem mínima de descritores; que possua denominação própria; que seja homogênea e que seja estável quanto aos descritores em gerações sucessivas.27 Portanto, propõe-se a proteção uma nova obtenção vegetal, que seja distinguível de outras cultivares e espécies vegetais por um conjunto mínimo de características morfológicas, fisiológicas, bioquímicas ou moleculares, herdadas geneticamente. Essas características, denominadas descritores, devem se mostrar homogêneas e estáveis através das gerações sucessivas.28
Verifica-se que não se pretende a proteção de cultivares "melhores" do que aquelas já existentes, mas, sim, de cultivares "diferentes" daquelas já existentes. As exigências para a proteção das cultivares são a distintividade, a homogeneidade e a estabilidade. Fazendo um paralelo entre as exigências da proteção pelas patentes e pelas cultivares, verifica-se que a exigência da "novidade" das patentes é para as cultivares o critério de distintividade. O parâmetro da UPOV impõe que a variedade seja distinta de outras de conhecimento geral, deixando livre às legislações nacionais. A necessidade da cultivar ser distinta será apurada a partir da comparação a outras variedades já existentes. A distintividade é, na verdade, um critério agrotécnico: uma planta se distingue de outra por suas cores, sua resistência a pragas, entre outros aspectos. Exigindo-se o requisito da distinguibilidade, portanto, evita-se o que Varella29 denomina como "melhoramento cosmético", ou seja, evita-se "as fraudes no campo biotecnológico, que poderiam ser realizadas alterando alguma pequena característica de pouca importância na planta, assim constituindo-se uma nova planta". Assim, cultivares com diferenças irrelevantes não podem ser objeto de proteção.
Outro critério para a proteção da nova variedade é a homogeneidade que exige a similaridade entre si dos vários exemplares de uma mesma variedade para merecer identificação varietal. As características similares entre si - as características que as compõem devem ser bastante parecidas e com um grau de variabilidade mínimo no plantio em escala comercial: "aquelas que apresentam uniformidade nas suas características... levando em consideração as particularidades de reprodução ou de multiplicação".30
O critério de estabilidade implica que, após várias séries de reprodução ou propagação, ao longo dos seus ciclos de reprodução e de multiplicação, a variedade mantenha suas características descritas.
Para obter-se a proteção de cultivares no Brasil é preciso que se cumpram as condições exigidas pela lei, as quais derivam, por um lado da natureza biológica do objeto de proteção e formam parte integrante da noção de o variedade (homogeneidade, estabilidade), e por outro lado, das necessidades materiais e formais para instaurar um direito de proteção eficaz (caráter distinto, novidade).31
O requisito da novidade refere-se aos prazos de comercialização da cultivar no país, que não pode em relação à data do pedido de proteção, a cultivar não pode ter sido oferecida à venda no Brasil há mais de doze meses, em relação à data do pedido de proteção e em outros países, com o consentimento do obtentor, há mais de seis anos para espécies de árvores e videiras ou há mais de quatro anos para as demais espécies, conforme art. 3o., V da LPCe em outros países há mais de quatro anos (espécies em geral) ou seis anos (árvores e videiras).32
Cada cultivar tem que ter uma denominação própria, distinta de outras preexistentes dentro da mesma espécie, para que seja possível a sua identificação quanto às suas características. Essa é uma regra da UPOV para que a cultivar passe a ser a sua nomenclatura genérica em todos os países membros da Convenção, diferente de todas as denominações já outorgadas pelos países-membros.33
O direito de proteção é outorgado no Brasil mediante a concessão de um título de propriedade que constitui direitos -o Certificado de Proteção da Cultivar-, conforme determina o artigo 2o. da Lei n° 9.456.34 A proteção recai sobre o material de reprodução ou de multiplicação vegetativa, conforme preceitua o artigo 8o. da Lei no 9.456, já que a proteção "exclusiva não é conferida à cultivar, mas sobre sua função de propagação".35
Durante o período de proteção, o titular terá o direito de reproduzir comercialmente a cultivar com exclusividade no território nacional, conforme determina o o art. 9o. da Lei n° 9.456. Como observa Bruch,36 "trata-se de um direito positivo, combinado com o direito negativo de excluir terceiros". Quem vender, o oferecer à venda, a reproduzir, importar, exportar, embalar ou armazenar para esses fins, do material de propagação da cultivar, sem autorização do titular, estará sujeito às sanções civis, penais e administrativas previtas no artigo 37 da Lei.
A proteção o Brasil é realizada perante o Serviço Nacional de Proteção de Cultivares (SNPC). O SNPC foi criado pela Lei n° 9.456/1997. O órgão está ligado ao Departamento de Propriedade Intelectual e Tecnologia da Agropecuária (DEPTA) da Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e Cooperativismo (SDC) no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Sua missão é garantir o exercício do direito de propriedade intelectual dos obtentores, zelando pelo interesse nacional no campo da proteção de cultivares, além de representar o Brasil junto à UPOV. A legislação brasileira também prevê "a obrigatoriedade de que toda cultivar, independente da espécie, para ser comercializada, como semente ou mudas no País, deverá ser inscrita no Registro Nacional de Cultivares". O "registro" no RNC, por sua vez, é fundamentado na legislação de sementes e não outorga direito de propriedade ao requerente, apenas habilita a cultivar para produção e comercialização no território nacional.
IV. Os limites ao direito de proteção da propriedade intelectual sobre as cultivares no Brasil
O direito à propriedade é uma garantia constitucional, previsto no artigo 5 o., inciso XXII e agrega a necessidade da propriedade atender à função social. A concepção de propriedade prevista no texto constitucional busca compatibilizar a fruição individual da propriedade com sua função social, visando eliminar a propriedade improdutiva.
Especificamente, o direito de propriedade sobre criações intelectuais está inscrito como garantia constitucional, no art. 5o., inciso XXVII, "aos auto- o res pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar", direito de autor; e o inciso XXVIII faz referência aos direitos conexos e aos direitos de participação nos resultados econômicos das obras protegidas pelo direito de autor. No inciso XIX tem-se a proteção das marcas, patentes: "a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País".37
Os limites aos direitos de propriedade, portanto, abrangem tudo aquilo que impede que esse direito tenha caráter absoluto. São restrições legalmente impostas ao uso/gozo do direito, destacando-se aquelas decorrentes do interesse pública ponto de se confundi-lo com o interesse coletivo.
Sobre as limitações aos direitos sobre propriedade intelectual, o TRIPs autoriza os países signatários do acordo a estabelecerem determinadas limitações a esses direitos em suas legislações nacionais, no art. 30: "Os Membros poderão conceder exceções limitadas aos direitos exclusivos conferidos pela patente, desde que elas não conflitem de forma não razoável com sua exploração normal e não prejudiquem de forma não razoável os interesses legítimos de seu titular, levando em conta os interesses legítimos de terceiros". O Acordo traz a previsão restrições ao direito, no artigo 31, ao permitir o licenciamento compulsório, desde que obedecidas certas condições elencadas.38
Na Convenção da UPOV existem regras referentes a limitações ao direito de proteção das novas variedades. Tanto a Ata de 1978, quanto a de 1991, apresentam uma série de limites ao direito de propriedade intelectual sobre cultivares. Os limites referem-se ao benefício do agricultor (Farm's Right) e ao benefício do melhorista ou pesquisador (Breeder's Right) -licença compulsória por abuso de direito e por interesse público-. A legislação brasileira prevê limitações territoriais, temporais, ao direito exclusivo do titular e benefícios legais concedidos a terceiros.
Em relação aos limites territoriais, a abrangência do direito de propriedade intelectual, em se tratando de proteção de cultivares, sujeita-se aos limites territoriais de cada Estado ("o da soberania das nações e da autodeterminação dos povos").39
Os limites temporais refere-se ao prazo determinado de proteção. Passado este período estabelecido em cada país, os direitos de propriedade intelectual são extintos e a cultivar cai em domínio público, ou seja, qualquer pessoa poderá utilizá-la e reproduzi-la, sem necessidade de autorização do obtentor ou pagamento de royalties. A legislação brasileira estabelece o mesmo tratamento da UPOV de 1978 em termos de prazos: a partir da data da "concessão do Certificado Provisório de Proteção, pelo prazo de quinze anos, excetuadas as videiras, as árvores frutíferas, as árvores florestais e as árvores ornamentais, inclusive, em cada caso, o seu porta-enxerto, para as ե quais a duraç ão será de dezoito anos".40
A Convenção da UPOV de 1978 autoriza que haja restrições ao direito exclusivo do titular, nos casos de interesse público, sempre mediante remuneração equuitativa, conforme se vê do seu artigo 9o., 1):
O livre exercício do direito exclusivo concedido ao obtentor só pode ser restringido por razões de interesse público. [e 2)] Quando essa restrição for aplicada a fim de assegurar a difusão da variedade, o Estado da União interessado deverá tomar todas as medidas necessárias para que o obtentor receba uma remuneração equuitativa.
Na Lei brasileira os limites ao direito exclusivo do titular foram divididos em duas categorias: a licença compulsória e o uso público restrito.
A possibilidade de licença compulsória está disposta no art. 28 da Lei n° 9.456 e deverá se dar assegurando:
I- a disponibilidade da cultivar no mercado, a preços razoáveis, quando a manutenção de fornecimento regular esteja sendo injustificadamente impedida pelo titular do direito de proteção sobre a cultivar; II- a regular distribuição da cultivar e manutenção de sua qualidade; III- remuneração razoável ao titular do direito de proteção da cultivar.41
Caberá ao CADE, a requerimento de um "legítimo interessado" (produtor de sementes, por exemplo), conceder ou não a licença. A partir da concessão da licença pelo CADE, será autorizada a exploração da cultivar independentemente da autorização de seu titular, pelo prazo de três anos (prorrogável por iguais períodos).
A faculdade de declarar uma cultivar de "uso público restrito", prevista no artigo 36 da Lei n° 9.456, é do:
Ministro da Agricultura e do Abastecimento, com base em parecer técnico dos respectivos órgãos competentes, no exclusivo interesse público, para atender às necessidades da política agrícola, nos casos de emergência nacional, abuso do poder econômico, ou outras circunstâncias de extrema urgência e em casos de uso público não comercial.
O parágrafo único explica que o "uso público restrito" de cultivar se dá por meio de ato do Ministro da Agricultura e do Abastecimento, determinando que uma cultivar possa ser "explorada diretamente pela União Federal ou por terceiros por ela designados, sem exclusividade, sem autorização de seu titular, pelo prazo de três anos, prorrogável por iguais períodos, desde que notificado e remunerado o titular na forma a ser definida em regulamento" .42 Esse ato visa atender ao interesse público, uma necessidade pública, demarcando a interferência estatal no mercado, a fim de restringir a instalação de monopólios ou oligopólios no abastecimento de sementes de cultivares protegidas.
Os benefícios legais concedidos a terceiros permitem o equilíbrio entre os interesses do titular e da sociedade. Entre os benefícios está o "direito do agricultor" (Farm's Right), direito de "uso próprio" ou uso sem fins comerciais. Essa restrição ao direito do obtentor referente à multiplicação (ou à produção de sementes) de uma cultivar protegida. Ao agricultor é permitido reservar uma parte do material de sua colheita para fundar nova lavoura na próxima temporada, sem necessidade de obter autorização do titular para isso.
Na Ata de 1978, da UPOV, no art. 5o. estabelece que a proteção recai sobre a produção com fins comerciais do material de reprodução ou de multiplicação vegetativa da cultivar, sem mencionar a proteção quando o produto for destinado para "uso próprio", sem fins comerciais. Entretanto, a mesma Convenção deixa a critério da legislaçãoo de cada país estabelecer a extensão da proteção concedendo ou nãoo "privilégio do agricultor". No art. 10 da Lei de Cultivares está expressa a limitação à proteção "da reserva e planta sementes para uso próprio, em seu estabelecimento ou em estabelecimento de terceiros cuja posse detenha.43 Esse benefício do agricultor é reforçado com a autorização, também, a que os pequenos produtores rurais multipli- s quem sementes, exclusivamente para doação ou troca com outros pequenos produtores (programa "troca x troca").
Outra situação sustentada no interesse público e que se enquadra como benefício de terceiros e reconhecida internacionalmente, é o privilégio do pesquisador ou direito do melhorista, por meio da qual é permitido o direito de uso para fins de pesquisa ou obtenção de outras cultivares (art. 10, III, da Lei n° 9.456).
No caso da venda para consumo, a limitação ao direito do titular permite o uso ou venda do produto obtido a partir da cultivar como alimento ou matéria-prima para fins não reprodutivos. Esta limitação vem reforçar que o uso da cultivar que está protegido pelo direito de exclusividade é o comercial. Nesse sentido o art. 10, II, prevê: "Não fere o direito de propriedade sobre cultivar protegida aquele que... usa ou vende como alimento ou matéria-prima o produto obtido do seu plantio, exceto para fins reprodutivos".44 Como já abordado nos itens anteriores, a Ata de 1978 e a Ata de 1991 da UPOV tratam de forma diferente a matéria. A Ata de 1978 protege a cultivar somente do uso da variedade para multiplicação, enquanto que na Ata de 1991 o direito se estende para o produto final, abrangendo também outros usos.
V. Considerações finais
A evolução dos marcos regulatórios dos direitos de propriedade intelectual aos melhoristas vem atrelada ao processo de globalização, que impulsionou o desenvolvimento e a exploração comercial de novas varidades de vegetais. Os avanços biotecnológicos no melhoramento de plantas resultou num aumento dos custos, exigindo maior investimento para o desenvolvimento científico e tecnológico.
Na área das cultivares a apropriação dos resultados se dá pela propagação das sementes e mudas, revertendo em royalties, retro-alimentando o complexo sitema global de inovação tecnológica.
A CUP e a Convenção de Berna, marcos iniciais da proteção da propriedade intelectual, não previam a proteção de matéria viva. Portanto, a proteção de cultivares é mais recente. A matéria passa a ser objeto de um novo sistema sui generis de proteção estabelecido pela Convenção Internacional para a Proteção das Variedades Vegetais (UPOV). Com o TRIPs, no âmbito da OMC, vários países passaram a adotar alguma forma de proteção para as cultivares.
A UPOV possui duas Atas vigentes, a de 1978, com proteções mais brandas para os direitos dos obtentores, e proíbe a dupla proteção das cultivares e a Ata de 199, que buscou reforçar os direitos de propriedade intelectual dos obtentores, trazendo proteções mais rígidas e a possibilidade de dupla proteção. O Brasil ratificou a Ata 1978 e, em 1997, aprovou a Lei de Cultivares, optando pela forma sui generis de proteção das novas vaiedades vegetais.
Os limites ao direito de proteção no Brasil incluem as restrições apontadas pela UPOV de 1978, especialmente as referentes ao direito do agricultor e direito do melhorista, bem como o limite legal referente à venda do produto da cultivar para consumo, junto aos limites territoriais, temporais, a licença compulsória e do uso público restrito, que se constituem em limitações ao direito do titular aplicáveis em decorrência de uma atuação inadequada de sua parte, ou tendo em vista uma necessidade pública.
As limitações são frutos da mobilização social em defesa dos direitos dos agricultores na busca do interesse público e visam equilíbrar os direitos dos titulares do direito de proteção e o interesse público.
A forte pressão econômica de grandes grupos produtores de cutivares, fomentar a alteração da Lei de Cultivares brasileira. Vários projeto de ampliação dos direitos do obtentor já foram apresentadas e a mais recente em 2015, está em análise na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados. Basicamente pretende-se a cobrança da "germoplasma" cada vez que o produtor salvar sementes, atendendo reivindicação das empresas produtoras de sementes, sob o argumento que grande percentual da produção brasileira é oriunda de sementes em situação irregular.
O projeto deixa claro o interesse econômico com a vinculação das novas cultivares ao pagamento de "royalties", potencializando a monopolização da propriedade intelectual das novas cultivares por grandes corporações. As alterações adaptariam a atual Lei de Proteção de Cultivares à Ata de 1991 da UPOV, que permite o estabelecimento de novas restrições aos direitos dos agricultores (de uso próprio das sementes) e proíbe o intercâmbio de sementes e aumenta do prazo de proteção e do objeto, inclusive produtos derivados.
O desafio para o Brasil é criar alternativas por meio de políticas de desenvolvimento voltadas à soberania alimentar e em prol do direito humano ao desenvolvimento, numa constante busca de equilíbrio entre o desenvolvimento tecnológico e o desenvolvimento num conceito mais amplo, incluindo a área social, cultural, ambiental e humana.