SUMÁRIO: I. Introdução: tensões na função consultiva da Corte Interamericana. II. Expansão material nas opiniões consultivas da CtIDH: business as usual? III. A expansão da jurisdição contenciosa através da jurisdição consultiva: problemas recentes. IV. Pontos de força, riscos e consequências da expansão da Corte em via consultiva. V. Conclusões. VI. Bibliografia.
I. Introdução: tensões na função consultiva da Corte Interamericana
A tendência dos Estados membros do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (“SIDH” ou “Sistema”) de requisitar opiniões consultivas à Corte Interamericana de Direitos Humanos (“CtIDH” ou “Corte”) em relação aos direitos protegidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (“CADH” ou “Convenção”) gera efeitos jurídicos e de política judiciária que impactam a jurisdição contenciosa da Corte.1 Em suma, os direitos desenvolvidos e interpretados pela Corte em via consultiva são posteriormente aplicados na jurisdição contenciosa. Se, por um lado, é um direito dos Estados “consultar a Corte sobre a interpretação [da] Convenção ou de outros tratados concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados americanos”,2 por outro, a competência da Corte está limitada a “conhecer de qualquer caso relativo à interpretação e aplicação das disposições desta Convenção que lhe seja submetido”.3 Parece existir uma tensão entre os direitos que a Corte reconhece no âmbito de sua jurisdição consultiva e os impactos deste reconhecimento na posterior aplicação contenciosa da Corte.
Desde sua criação, cortes e tribunais internacionais enfrentam o problema de produção normativa através de decisões judiciais.4 Com base na teoria clássica de produção normativa do ordenamento internacional,5 o papel relegado aos órgãos jurisdicionais seria o de aplicação das normas jurídicas existentes produzidas por outros sujeitos do ordenamento internacional, nomeadamente os Estados. A partir do momento em que instâncias judiciais começaram a expandir o alcance de determinadas normas, desenvolvendo o direito internacional, problemas começaram a emergir em relação aos limites e poderes da constelação judicial internacional. Hersch Lauterpacht admoestava, já em 1958, que juízes podem ser “ao mesmo tempo dóceis servidores do passado e tiranos do futuro”.6 O fenômeno foi descrito sob diversas alcunhas como international judicial lawmaking ou international judicial activism. Embora a questão seja uma realidade desde a metade do século XX, o problema parece se agudizar na medida em que cortes e tribunais internacionais utilizam destes expedientes para expandir a própria jurisdição,7 alargando o alcance de seus poderes e de situações que estejam aptas a decidir.
O problema não se faz ausente no âmbito da jurisprudência da Corte Interamericana. Como uma corte cuja vocação hermenêutica é a de amálgama de direitos humanos, categoria de direitos historicamente significativa, é esperado determinado posicionamento vanguardista.8 Em diversas ocasiões a Corte foi responsável por consolidar a interpretação pro persona, dando significado aos direitos que é chamada a aplicar de acordo com a Convenção Americana.9 Atividade típica de cortes de direitos humanos, tais técnicas interpretativas de cunho teleológico ou evolutivo foram objeto de análise da ciência jurídica.10 Contudo, um problema emerge quando as técnicas utilizadas por uma corte servem não unicamente para expandir o significado dos direitos que é estatutariamente chamada a proteger, mas também para expandir a jurisdição da própria Corte, interferindo nas competências e nas balizas do que os Estados lhe atribuíram para decidir. A Corte Internacional de Justiça (CIJ) já observou que a “jurisdição é sempre baseada no consentimento das partes”11 assim como foi bem pontuado academicamente que “é um truísmo que a jurisdição judicial internacional é baseada no e deriva do consentimento dos Estados”.12 A expansão da jurisdição da Corte Interamericana via opinião consultiva pode possuir diferentes impactos na autoridade e na legitimidade de uma corte internacional.
Como ocorre em outros tribunais internacionais, embora não sejam obrigatórias, as opiniões consultivas da Corte Interamericana tendem a ser seguidas posteriormente pelo órgão jurisdicional, sobretudo quando realiza a expansão de sua competência -situação que ocorre desde o seu primeiro parecer-.13 Por exemplo, não raras vezes a Corte se pronunciou sobre questões concernentes ao funcionamento da Comissão Interamericana e da própria Corte, bem como sobre o conteúdo de determinados direitos prescritos na CADH. Por consequência, sua produção consultiva possui efeitos na jurisdição contenciosa. O que se busca no presente artigo, todavia, é apontar como a CtIDH alargou substancialmente sua competência contenciosa em dois pareceres consultivos, de números 22 e 23, de 2016 e 2017, respectivamente.
A questão analisada é dúplice. Em primeiro lugar, busca-se compreender e analisar as técnicas interpretativas empregadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos para, através da via consultiva, aumentar o alcance de sua jurisdição contenciosa. A segunda questão afrontada são os potenciais impactos deste exercício à autoridade e legitimidade da Corte Interamericana. Para responder a esses dois questionamentos, será realizada uma análise tanto das decisões da Corte bem como da literatura especializada e do posicionamento de alguns Estados em relação à Corte. Num contexto de resistência e contestação de cortes internacionais,14 sustenta-se que a atividade de expansão da jurisdição da Corte pode possuir efeitos positivos e negativos em relação à sua autoridade e legitimidade, mas que uma maior cautela em relação à expansão de sua jurisdição e ao uso do artigo 26 para circunscrever o consentimento dos Estados evitaria quaisquer efeitos negativos.
O artigo estrutura-se da seguinte forma. Na primeira seção analisa-se a prática anterior de expansão da CtIDH para demonstrar as técnicas utilizadas pela Corte para expandir a interpretação da CADH. Na segunda seção, verifica-se de que maneira a CtIDH expandiu sua jurisdição nas recentes opiniões consultivas e demonstra-se de como essa expansão representa um evitar do consentimento dos Estados para sua jurisdição, em análise das dissidências exibidas no caso Comunidades Indígenas Miembros de la Asociación Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) vs. Argentina. Na terceira sessão exploram-se alguns potenciais pontos negativos e positivos para esse exercício por parte da Corte. Nas considerações finais, defende-se maior cautela por parte da Corte Interamericana em relação a interpretação do artigo 26.
II. Expansão material nas opiniões consultivas da CtIDH: business as usual?
A utilização recente da função consultiva da Corte Interamericana de Direitos Humanos para expansão da jurisdição contenciosa contrasta com sua prática anterior. Nesta seção, demonstraremos como a Corte buscou traçar limites à sua própria jurisdição consultiva, de modo a não interferir em sua jurisdição contenciosa. Demonstraremos como a expansão de direitos materiais ocorria, antes das OCs 22 e 23, com o uso de técnicas interpretativas que não impactavam amplamente nos contornos jurisdicionais contenciosos.
A Corte Interamericana possui a competência consultiva com maior emissão de pareceres, em comparação com os demais sistemas regionais de proteção de direitos humanos,15 o que pode estar relacionado à mudança principal contida na Convenção Americana em relação a modelos notados em demais tribunais internacionais: a possibilidade de os Estados do sistema as solicitarem.16 Um número maior de opiniões consultivas permitiu à Corte delimitar sua jurisdição, ainda que muitas vezes de modo expansivo17 pela aplicação do princípio kompetenz kompetenz. A Corte se atribuiu amplos poderes jurisdicionais tanto na interpretação da Convenção quanto ao próprio funcionamento do Sistema Interamericano18 e os utilizou, por exemplo, para determinar quais documentos normativos poderiam ser objeto de sua interpretação no âmbito consultivo.19
Assim, o exercício da função consultiva da Corte Interamericana foi limitado no âmbito de sua própria jurisprudência. A prática judicial interamericana demonstra que, sempre que um parecer é requerido, existem tentativas processuais de convencimento da Corte de não pronunciamento. Numa recente opinião, a Corte sistematizou os critérios que motivam sua recusa a tramitar e responder a uma solicitação de parecer consultivo, de maneira a indicar que um pedido:
a) não deve encobrir um caso contencioso ou pretender obter prematuramente um pronunciamento sobre um tema ou assunto que poderia eventualmente ser submetido à Corte por um caso contencioso; b) não deve utilizar-se como um mecanismo para obter um pronunciamento indireto de um assunto em litígio ou em controvérsia no nível interno; c) não deve ser utilizada como um instrumento de um debate político interno; d) não deve abarcar, de maneira exclusiva, temas sobre os quais a Corte já se pronunciou em sua jurisprudência; e) não deve buscar a resolução de questões fáticas, a não ser que busque averiguar o sentido, propósito e razão das normas internacionais sobre direitos humanos e, sobretudo, contribuir com os Estados membros e os órgãos da OEA para que cumpram de maneira cabal e efetiva suas obrigações internacionais.20
Alguns elementos interessantes emergem da lista indicada pela Corte. O primeiro deles é o fato de que a Corte, ao menos em teoria, realiza uma estrita divisão entre a função contenciosa e a consultiva: não pode a função consultiva servir para tergiversar o consentimento em relação a uma controvérsia ou sobre fatos existentes (itens [a], [b] e [e]).21 O segundo elemento é o fato de que a jurisdição consultiva CtIDH não deve ser instrumentalizada para resolver questões internas no interior dos Estados (itens [b] e [c]). O terceiro elemento que emerge é particularmente interessante. Ao limitar sua jurisdição consultiva, a Corte reafirma (item [e]) que a função desta é a elucidação de normas internacionais a fim de que Estados membros possam efetivar suas obrigações internacionais. Contudo, a Corte não limita a própria expansão ou alargamento das obrigações já existentes. Poder-se-ia sugerir que a Corte parece estar ciente da capacidade expansiva de sua jurisdição na medida em que não se autolimita em relação ao seu campo de atuação ao mesmo tempo que não reconhece unicamente a Convenção como sua fonte de interpretação, abrangendo também outras “normas internacionais sobre direitos humanos”.
Não por acaso, a delimitação de forma ampla da competência consultiva pela Corte foi alvo de crítica por analistas, seja pela sua incerteza de aplicação22 ou pela sua própria tendência expansiva em comparação aos limites normativos.23 Outros, contudo, indicam o surgimento desses critérios limitadores supracitados como algo criticável para o papel da Corte no contexto interamericano,24 vez que a Corte os utiliza de maneira flexível.25
Isso se mostra mais problemático ao perceber que a produção consultiva não possui efeitos autocontidos, porque gera consequências na atividade contenciosa da Corte. Pode-se destacar, dentre elas, a discussão das funções da Comissão (OC-15/97 e OC-19/05) e até de regras procedimentais,26 além do estabelecimento de interpretações acerca do conteúdo dos direitos materiais contidos na Convenção Americana. Ademais, existe amplo debate sobre a obrigatoriedade das opiniões consultivas.27 Fato é que, na prática, a interpretação de direitos em via consultiva é comumente seguida pela Corte nos casos contenciosos diante dela sublevados. Tal circunstância lança sombras à tentativa de hermética dissociação entre função consultiva e contenciosa sugerida pela Corte Interamericana.
Essa incerteza não colocava maiores problemas jurídicos em relação aos impactos, no âmbito contencioso, das opiniões que analisavam obrigações e critérios de aplicação de direitos materiais. Isso porque, em utilização do chamado método interpretativo evolutivo,28 as determinações da Corte traziam análises de compatibilidade de condutas e o estabelecimento de standards mais elevados para execução das obrigações associadas a esses direitos.
Dessa forma, em aplicação de técnicas de valorização da abertura normativa,29 o comportamento da Corte em relação à análise material nas OCs anteriormente era marcado por uma identificação da compatibilidade de certas condutas com a proteção de direitos estabelecida na CADH. Assim, na OC-3-83 a Corte conclui que a pena de morte é expressamente proibida à luz do direito à vida (artigo 4o.).30 Na OC-5/85, a Corte determina que a coligação obrigatória de periodistas é incompatível com a liberdade de expressão (artigo 13).31 Nas OCs 8 e 9, de 1987, estriba-se a interpretação de que garantias judiciais e de devido processo são irrevogáveis em contextos de exceção. Todos esses exemplos demonstram que a Corte utiliza sua via consultiva para alargar o alcance dos enunciados normativos da Convenção a específicas situações de fato. O resultado de tal exercício é uma expansão material do conteúdo da Convenção.32
As opiniões da década de 2000 também se utilizam do método de interpretação expansiva, principalmente pela técnica de utilização dos conceitos de não discriminação (texto convencional) e vulnerabilidade (desenvolvido jurisprudencialmente). A Corte Interamericana aproveita a presença na Convenção do princípio da não-discriminação (artigo 1.1) para pôr fim às situações estruturais em que os indivíduos e/ou grupos tenham sofrido uma conduta discriminatória, a partir de uma perspectiva histórica, sociológica, econômica ou política. Assim, resultou-se a construção, no contencioso, de um direito indígena e da luta contra estereótipos de indivíduos LGBTQIA+,33 posteriormente reforçados, respectivamente, pela OC-22/16 e pela OC-24/17. Nesses casos, as opiniões consultivas são utilizadas para consolidação de interpretações anteriormente desenvolvidas.
Outra atenção se deu, já no âmbito consultivo, aos direitos dos trabalhadores migrantes, na OC- 18/03, e das crianças, nas OC-17/02 e 21/14, para que se beneficiem de uma proteção jurídica elementar.34 Dessa forma, ao reconhecer grupos como vulneráveis, supõe-se a adoção de medidas especiais para garantir suas proteções,35 de modo que o conteúdo dessas decisões contém verdadeiras delimitações de obrigações específicas, ao que chamaram políticas públicas.36
Ademais, como exemplos de decisões impactadas pelos pareceres, um dos primeiros casos analisados pela CtIDH, Velásquez Rodríguez vs. Honduras, em que o país foi condenado pela violação à liberdade e integridade pessoal da vítima, cuja fundamentação se valeu da OC-6/86, que estabeleceu o dever de respeito e garantia das obrigações dos Estados em relação aos direitos da CADH.37 Outro exemplo pode ser verificar no julgado Manuel CepedaVargas vs. Colômbia, em que a Corte recorreu, também dentre outras, à OC-3/83, para avaliar a proporcionalidade das medidas estatais com o fim de sancionar agentes públicos que cometeram delitos contra membros da oposição.38
Em suma, é possível apontar que a Corte expande direitos e os efeitos de suas violações via pareceres consultivos que, no mínimo, não estavam claros nas fontes normativas que interpreta. Um problema emerge no âmbito de duas opiniões mais recentes. Na ocasião, a expansão de jurisdição não se ateve ao âmbito consultivo, vez que a Corte se pronunciou sobre regras que alteram os limites de sua competência contenciosa. Assim, aumenta-se as possibilidades de novos casos serem submetidos para análise jurisdicional da Corte, e os efeitos desse fenômeno já podem ser percebidos em julgamentos recém decididos.
III. A expansão da jurisdição contenciosa através da jurisdição consultiva: problemas recentes
Que as interpretações sobre o corpus juris internacional dos direitos humanos desenvolvidas pela Corte Interamericana no âmbito consultivo são adotadas no âmbito contencioso não parece ser particularmente surpreendente, sobretudo à luz da prática contenciosa de outras cortes internacionais.39 É uma questão de consistência jurisprudencial que a solicitação de interpretação sobre um dispositivo da Convenção seja posteriormente congruentemente aplicado pelo órgão jurisdicional diante de casos concretos. Todavia, em duas opiniões consultivas recentes, técnicas interpretativas expansivas foram utilizadas no âmbito consultivo com implicações diretas na delimitação do escopo jurisdicional contencioso da Corte. Em outras palavras, a Corte Interamericana de Direitos Humanos expandiu sua jurisdição contenciosa através da resposta a uma opinião consultiva requerida por um Estado.
Uma primeira expansão diz respeito à competência ratione personae, vez que a Corte firmou, na OC-22/16, versando sobre a titularidade de direitos de pessoas jurídicas no Sistema Interamericano, a possibilidade de peticionamento ao sistema por entes que originalmente não possuíam capacidade postulatória perante o sistema. É o caso de sindicatos, federações e confederações, pessoas jurídicas que foram reconhecidas como detentoras dos direitos de associação e liberdade de funcionamento, previstos no artigo 8.1.a do Protocolo de San Salvador. Esses direitos de proteção já haviam sido abordados em casos anteriores,40 mas pela primeira vez a CtIDH “concluiu a titularidade dos direitos estabelecidos no artigo 8.1 do Protocolo dos sindicatos, das federações e das confederações, o qual lhes permite apresentar-se perante o sistema americano em defesa de seus próprios direitos”.41 Esse é um desenvolvimento interessante, vez que, ao realizar tal reconhecimento, a CtIDH alarga o rol de entes peticionários e, por consequência, o número de clientes de sua jurisdição.
A Corte lançou mão de diversos argumentos para chegar a esta conclusão. Aduziu ter empregado as técnicas de interpretação de tratados da Convenção de Viena (artigos 31 e 32),42 a fim de realizar essa conclusão em 5 aspectos [(1) a (5)]. (1) Quanto à terminologia, deduziu que a escrita do artigo 8.1.a enseja a conclusão de que sindicatos, federações e confederações constituem pessoas jurídicas distintas de seus associados, com capacidades diferentes para contrair obrigações e adquirir e exercer direitos.43 (2) Isso estaria alinhado aos objetivos do Protocolo de San Salvador, que desde o preâmbulo anuncia a essencialidade desses direitos para salvaguardar a dignidade humana, a democracia e o direito dos povos do continente, de modo que a proteção desses direitos aos entes garante, inclusive, melhor gozo dos direitos dos trabalhadores.44
(3) Além disso, em uma interpretação sistêmica, destacou que a Carta da OEA, essencial para o Sistema, consagra no artigo 45.c a proteção da liberdade e independência das associações de trabalhadores e, no artigo 45.g, reconhece a contribuição dos sindicatos à sociedade.45 Essa interpretação se alinharia até mesmo ao princípio pro persona, pois não exclui ou limita o efeito que podem ter outros instrumentos.46 (4) Outro argumento usado pela Corte nessa opinião seria de que essa interpretação concede ao artigo 8.1.a o fim de “maior efeito útil”, de maneira a reforçar a importância dos direitos civis e políticos e dos direitos econômicos sociais e culturais.47 (5) Por último, de forma complementar, a CtIDH ainda examinou os trabalhos preparatórios, cuja discussão do artigo 19.6, o qual determina os direitos que a Corte pode reconhecer contenciosamente, sugeriria que a intenção dos Estados sempre foi de garantir os direitos das organizações sindicais como direitos de exigibilidade imediata.48
O uso dessas técnicas interpretativas pela Corte não é particularmente inovador. A singularidade do exercício é a sua conclusão expansiva de peticionários49 -inferência que parece contrastar com o texto da Convenção Americana-. Em outras palavras, a Corte não empregou nenhuma técnica interpretativa diferente das que já empregara no passado para realizar a expansão de sua jurisdição a novos peticionários.
Um segundo exemplo, talvez ainda mais cristalino, em que a CtIDH expandiu sua jurisdição ocorreu na OC-23/17 sobre O Meio Ambiente e Direitos Humanos. A relação entre meio ambiente e direitos humanos tem sido um tópico de recente atenção por parte de órgãos internacionais, cortes e doutrina, e a questão também se verifica no âmbito interamericano.50 Recordase que o litigar de questões ambientais autonomamente perante jurisdições de direitos humanos é um aspecto bastante limitado destas cortes internacionais.51 No momento do design institucional da Corte, o número de direitos a ser individualmente litigados envolviam, em essência, direitos civis e políticos. Não por acaso os direitos econômicos sociais e culturais foram relegados a um segundo documento, o Pacto de San Salvador. A Corte Interamericana, contudo, aproveitou a ocasião do pedido de parecer consultivo requerido por parte da Colômbia para concluir que direitos ambientais poderiam ser adjudicados diretamente em relação à Convenção -algo que não se encontra previsto no texto do tratado-.52Na ocasião da opinião 23, a Corte parece ter sido inovadora e, por consequência, expandido sua jurisdição em relação a pelo menos três aspectos: (a) inseriu o meio ambiente como direito autônomo sob o artigo 26 da CADH; (b) alargou a noção de jurisdição para fins de responsabilização internacional; (c) incorporou à obrigação de respeito ao meio ambiente sadio standards protetivos em relação ao meio ambiente bastante avançados.
(a) A Corte considerou o direito ao meio ambiente sadio como integrante53 do artigo 26 da Convenção,54 primeiramente em referência à Carta da OEA, pois o dispositivo da CADH protegeria os direitos nela contidos derivados das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência, e cultura.55 A Corte utiliza-se da regra de interpretação do artigo 29 da Convenção Americana para atribuir ao artigo 26 os direitos da Carta da OEA, da Declaração Americana e de outros tratados internacionais da mesma natureza, replicando a fundamentação criada desde o caso Lagos del Campo vs. Peru, de 2017. Na ocasião, a Corte expandiu pela primeira vez o escopo do artigo 26, permitindo litigar direitos trabalhistas e de liberdade de associação abarcados pelo dispositivo a título de desenvolvimento progressivo.56
Ulterior argumento utilizado pela Corte para justificar a autonomia de direitos ambientais sob o artigo 26 foi o reiterar da interdependência e indivisibilidade existente entre os direitos civis e políticos com os econômicos, sociais e culturais.57 A interpretação expansiva da Corte inserindo o direito autônomo ao meio ambiente sadio sob a rubrica do artigo 26 é inovadora. Não por acaso, no âmbito da própria Corte, a tese gerou resistências. Em seu voto dissidente à opinião, o juiz Vio Grossi aguilhoou a decisão da Corte sob o argumento de que “os direitos sob análise não se encontram compreendidos ou contidos na Convenção e, por isso, não podem ser objeto do sistema de proteção que ela [a Corte] contempla”.58 Vio Grossi parecia antever a possibilidade de, uma vez declarada a autonomia esses direitos, tê-los como objeto do contencioso individual.
(b) A segunda questão em que a Corte parece ter inovado na opinião 23 refere-se ao alcance de sua jurisdição. Isto porque pronunciou-se sobre novo critério de aplicação extraterritorial dos direitos associados ao meio ambiente. Segundo a Corte “uma pessoa está submetida à jurisdição de um Estado, no que diz respeito a uma conduta cometida fora do território desse Estado (condutas extraterritoriais) ou com efeitos fora desse território”, em situações em que “referido Estado está exercendo autoridade sobre a pessoa ou quando se encontre sob seu controle efetivo, seja dentro ou fora de seu território”.59 Ainda que tenha salientado que esse controle extraterritorial é excepcional, existe um claro entendimento que as obrigações incumbentes a um Estado parecem ter se expandido no novo entendimento da Corte a qualquer atividade de entes sob seu controle fora do território.
A novidade se encontra no expresso reconhecimento do critério de controle efetivo, cuja definição no âmbito da jurisprudência da CtIDH é incerta.60 A expansão da competência ligada a esse novo critério é dupla. Surge uma nova possibilidade de a Corte julgar um caso cuja suposta violação de um direito ocorre em um “local” diferente do tradicionalmente abarcado por sua jurisdição. Ademais, essa violação extraterritorial poderia atingir pessoas que anteriormente não seriam consideradas vítimas peticionantes perante o sistema, por estarem sob jurisdição de um Estado que não reconheceu a competência da Corte. Tal parecer encontrou alguma perplexidade por parte dos comentadores.61
(c) A Corte parece ter sido particularmente inovadora também quando incorporou e reconheceu a existência de certas obrigações para os Estados cujo reconhecimento no campo do direito internacional público é ainda aberto à discussão. Um exemplo nesse sentido é o expresso reconhecimento da obrigatoriedade do princípio da precaução no direito internacional.62 Alguns Estados preferem a defesa de uma “abordagem precaucional”, como apontado pela jurisprudência de outros tribunais internacionais.63 Nessa passagem, a CtIDH dá a impressão de ter incorporado ao seu corpus juris obrigações ainda em formação no âmbito da comunidade dos Estados.
As três expansões acima indicadas possuem impacto no futuro contencioso da Corte Interamericana vez que robusteceu os direitos litigáveis contenciosamente sob o artigo 26 (incluindo claramente o direito ao meio ambiente sadio e outros),64 alargou a noção de jurisdição extraterritorial e, ainda, incorporou standards internacionais mais avançados na correta interpretação desses direitos. Esses recentes passos parecem contrastar com uma atividade mais contida da Corte, inclusive, ao se comparar com o desenvolvimento anterior no seio da competência consultiva relativo aos direitos econômicos, sociais e culturais e ambientais (DESCA).65 Por exemplo, na OC-18/03, optou-se pela via da não-discriminação para declarar que todos os migrantes trabalhadores gozam de igualdade perante a lei, sem importância de seu status migratório, de modo a desenvolver com cautela direitos trabalhistas, adotando-se de um fundamento jurídico menos controverso,66 posição essa não mais adotada.
Quanto aos efeitos desses pareceres já constatados no contencioso, pode-se apontar que as conclusões da OCs 22 ainda não repercutiram no contencioso da Corte. Todavia, recente decisão da Corte Interamericana aplicou o reconhecimento dos direitos ao meio ambiente saudável, à água, à alimentação e à participação e atividade cultural como incluído no artigo 26.
Na sentença de 6 de fevereiro de 2020, no caso Comunidades Indígenas Miembros de la Asociación Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) vs. Argentina, a Corte Interamericana encontrou ocasião para aplicar os raciocínios desenvolvidos no âmbito da OC-23. Em síntese apurada, o caso cuida de 132 comunidades indígenas que tiveram seus direitos à terra diversas vezes desrespeitados aos longos dos anos e, em seu território, atividades de criollos causaram danos ambientais e redução da biodiversidade, o que foi comprovado por peritos.67 Por tais razões, a Corte, inter alia, condenou a Argentina pela violação do direito a um meio ambiente sadio, à alimentação adequada, à água, e à participação da vida cultural e identidade cultural. Vez que tais direitos não estão expressamente previstos na Convenção Americana, a Corte incluios sob a rubrica de desenvolvimento progressivo do artigo 26. Se, num primeiro momento, a estratégia da Corte foi confiar em sua jurisprudência anterior de incluir os DESC no rol de direitos litigáveis, a Corte ancorou-se no raciocínio desenvolvido na OC-23 para “se pronunciar sobre os direitos a um meio ambiente sadio, à alimentação adequada, à água e a participar da vida cultural a partir do artigo 26 da Convenção”.68 Por fim, condenou o Estado pela violação do artigo 26 e atribuiu reparações a cada um dos direitos autonomamente.
Contudo, tal decisão relativa à judicialização dos DESCA no âmbito do artigo 26 ocorreu no cenário de uma Corte dividida. A divisão dos juízes no caso, que foi solucionada pelo infrequente voto de minerva da Presidente da Corte,69 revela parte das tensões presentes na câmara de deliberação. Para os que estavam com a maioria, a ratio do princípio pro persona justificava a expansão e judicialização dos DESCA. O juiz Mac-Gregor Poisot parece também ter levado em consideração o fato de que o Estado argentino não contestou a competência da Corte para adjudicar individualmente direitos ambientais (e outros) sob a rubrica do artigo 26.70 Não reconhecer a autonomia dos DESCA sob o artigo 26 implicaria, segundo ele, num retrocesso contrário à jurisprudência. Lógica similar parece se depreender do voto concorrente do juiz Pazmiño Freire, para quem, em certas circunstâncias, “se impõe implementar uma hermenêutica mais expansiva da norma para garantir uma melhor proteção do ser humano”.71
Na voz dos três dissidentes alguns elementos e argumentos interessantes emergem. O juiz Manrique, por exemplo, claramente encampa a narrativa de uma Corte dividida em relação aos DESCA, cuja judicialização inicia-se em 2017. Tal divisão parece reforçar a ciência da Corte que seu exercício é o de inovação jurisprudencial. Dentre os juízes dissidentes que não concordaram com a violação autônoma do artigo 26, o juiz Manrique é aquele que oferece uma posição intermediária, sugerindo a violação dos DESCA juntamente a outros direitos reconhecidos na Convenção. Para ele “a Corte tem o dever convencional de fazer justiça nos casos concretos dentro dos limites previstos pelo direito dos tratados”.72 Sua sugestão parece assemelhar-se à posição da Corte Europeia na matéria.73
As opiniões dissidentes mais contundentes parecem revelar algumas fragilidades da lógica expansiva da Corte. O juiz Vio Grossi opta pela argumentação da tradicional interpretação normativa nos termos da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados. Em exegese pormenorizada analisando o texto do artigo 26 bem como outros documentos do corpus juris interamericano, Vio Grossi reprisa seu argumento aduzido na OC-23 de que as técnicas tradicionais de interpretação de tratado não permitem incluir DESCA como judicializáveis. Para Vio Grossi, a interpretação empregada pela Corte privilegia o método teleológico em detrimento de outros métodos haja vista a indicação textual. O juiz chileno parece sugerir que a interpretação da Corte é até mesmo contra legem na medida que negligencia o texto, permitindo a justiciabilidade destes direitos, quando sugere que a Corte não emprega “adequadamente os meios de interpretação previstos na Convenção de Viena, [conduzindo] a um resultado contrário à lógica e jamais desejado nem previsto na Convenção”.74
O juiz Sierra Porto oferece uma opinião contundente na matéria: a de que a CtIDH não tem competência para adjudicar DESCA.75 Para o juiz colombiano, a Corte não possui competência expressa “nem pela Convenção Americana, nem pelo artigo 19.6 do Protocolo… interpretados à luz dos artigos 30 e 31 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados”.76 Sierra Porto arvora seu posicionamento no fato de que os Estados membros do Protocolo de San Salvador só permitiram litigar alguns direitos, não estando meio ambiente (inter alia) entre eles. Conclui ainda que é problemático a referência a instrumentos internacionais de soft law por conveniência.77
A crítica presente nas opiniões dos três juízes é lancinante e revela a fratura no interior da Corte que expande sua competência para adjudicar DESCA. Contudo, parece haver algo ausente nas opiniões dos juízes: o fato de que a expansão dos direitos ambientais ocorreu no alargamento da opinião 23 e não apenas no litígio dos DESCA.
Se a Corte cita expressamente no caso Lhaka Honhat a OC-23/17 para fundamentar a expansão de direitos ambientais, direito à alimentação, à água, e de participação e identidade cultural, é interessante verificar que os juízes dissidentes negligenciam este argumento em sua dissidência. Eles não enfrentam o fato de que a Corte já decidira por sua justiciabilidade no passado e que porventura seria incongruente mudar essa posição em via contenciosa. Parece existir uma dissociação por parte dos magistrados que foi não apenas no âmbito contencioso, mas eminentemente através da jurisdição consultiva, que o principal alargamento dos DESCA ocorreu.78 Tal alargamento e aplicação contenciosa dos direitos desenvolvidos em âmbito consultivo obviamente possui desdobramentos e questionamentos.
A postura expansiva da Corte levanta uma série de interrogativos. Por exemplo, pode-se questionar se, à luz da nova interpretação da Corte, todos os direitos elencados no Pacto de San Salvador podem ser litigados diretamente sob a rubrica do artigo 26. A Corte também não esclarece se somente entidades coletivas como povos indígenas estariam legitimados a contestálos. Quais serão as reações dos Estados e dos atores sociais interamericanos diante dessa postura mais ampla da Corte? As decisões da Corte irão influenciar de alguma maneira em sua efetividade e no cumprimento das decisões? Estados estarão mais inclinados a resistir decisões baseadas no artigo 26 da Corte? As decisões baseadas nas interpretações de direitos sociais sob o artigo 26 ou postuladas por atores não originalmente reconhecidos serão tratadas de maneiras distintas pelos Estados e terão seus cumprimentos afetados? A prática futura oferecerá indicações para esses questionamentos, que influenciarão tanto os debates em relação à autoridade quanto de legitimidade da Corte.
IV. Pontos de força, riscos e consequências da expansão da Corte em via consultiva
O exercício de expansão da jurisdição de uma corte internacional através de opiniões consultivas não é desprovido de desdobramentos, impactos e riscos. A imediata reação e divisão da Corte no caso Lhaka Honhat confirma essa tese. Nesta seção, três desses potenciais desdobramentos são explorados. O primeiro deles (I) são os pontos de força que tal exercício pode gerar em relação ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O segundo desdobramento (II) é o potencial impacto da expansão da jurisdição da CtIDH em matéria de DESCA no que se refere ao controle de convencionalidade e, eventualmente, à aplicação dos critérios pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O terceiro desdobramento (III) analisa os riscos de resistência à atitude expansiva da Corte e sua posterior recepção pelos Estados.
(I) Não se ignora que o exercício de expansão de jurisdição -que de uma maneira geral se insere numa tendência expansiva e protetiva da Corte- pode possuir pontos positivos. O primeiro deles é o fato de que a Corte realiza algo que os Estados dificilmente realizarão num momento de resistência ao direito internacional:79 atribuir maior jurisdição a uma corte de direitos humanos num assunto de essencial interesse e de amplos contornos como o meio ambiente. Um exemplo bastante ilustrativo são as discussões envolvendo a Amazônia brasileira e a eventual responsabilização internacional do Brasil pelos alegados danos ocorridos em virtudes de incêndios.80 Dificilmente o atual governo brasileiro estaria inclinado a expandir a jurisdição da CtIDH aderindo expressamente à possibilidade de litigar questões ambientais. Obviamente que permanece o questionamento se o fato de que os Estados não adeririam não significa que a Corte está, efetivamente, evitando o consentimento dos Estados.
Outro aspecto positivo do exercício da Corte é a realização de uma efetiva aplicação do artigo 26 dando concreto significado à ideia de “desenvolvimento progressivo”: a lógica seria de que, vez que os Estados há quarenta anos entenderam que aquele ramo do direito deveria se desenvolver, uma série de movimentos e documentos internacionais legitimariam o agir da Corte.81 Na qualidade de um catalisador de novas tendências, o exercício da Corte estaria dando efeito útil a um dispositivo esquecido da Convenção e atualizando-o à luz do que há de mais inovador no direito internacional dos direitos humanos. Estaria a CtIDH enfim criando “condições que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos”.82 Ou, nas palavras da própria Corte, tal interpretação “permite atualizar o sentido dos direitos derivados da Carta que se encontram reconhecidos no artigo 26 da Convenção”.83
Contudo, este movimento vanguardista protetivo da Corte dependerá essencialmente da vontade dos Estados para confirmar os dois argumentos positivos anteriormente solevados. Caso os Estados-parte da Convenção bem recepcionem os casos futuramente litigados em matéria ambiental e relativas a outros DESCA (como, e.g., o direito à água), o exercício da Corte se provará uma interessante técnica para inserir no seu rol de direitos protegidos também os direitos conexos ao meio ambiente. Um contexto de resistência à Corte Interamericana por parte de alguns países, sobretudo no ámbito de suas cortes supremas,84 parece indicar que tal recepção não ocorrerá de maneira pacata tampouco uniformemente. Um argumento que favorece o argumento da Corte, inclusive indicado na opinião 23, é o fato de que a proteção do meio ambiente é comumente inserida no rol de direitos protegidos no âmbito das constituições latinoamericanas.85 A Corte parece particularmente atenta em suas decisões a indicar as normas e as jurisprudências nacionais em relação ao direito litigado, num exercício muito similar (embora com distinções significativas) à técnica do “consenso europeu”.86 Talvez, em vez de confirmar suas decisões nas decisões nacionais dos Estados, uma alternativa para atenuar os efeitos da expansão de sua jurisdição contenciosa através da consultiva é realizar uma maior indicação aos Estados quando tal situação ocorrer. Em situações extremas onde o próprio consentimento dos Estados pode estar em xeque (como litigar direitos não previstos na Convenção) uma consulta direta possa ser idealizada e seria bemvinda.
(II) O segundo essencial desdobramento da expansão jurisdicional da Corte relaciona-se à exigência do controle de convencionalidade por parte dos poderes internos dos Estados membros da Convenção87 e a aplicação dos DESCA no âmbito da Comissão Interamericana. Um cenário que é agudizado pela função proto-constitucional que a CtIDH é atribuída.88 Desde a OC-21/14, a Corte Interamericana adota a posição de que o conteúdo de seus pareceres consultivos, enquanto norma interpretada, deve ser aplicado pelos Estados.89 A legitimidade dessa interpretação já esbarra em inúmeras críticas da doutrina ao controle,90 bem como de uma adoção díspar pelos membros do Sistema.91
Particularmente à OC-23/17, depreende-se que os Estados deverão incorporar todas as noções ambientais desenvolvidas progressivamente no âmbito da Corte. Isso pode gerar discrepâncias entre direitos ambientais e outros direitos, ponderações comumente realizadas no âmbito das supremas cortes de acordo com os interesses das agendas dos governos. No mais, ainda que se alegue que os sistemas internos possuem normas relativas à proteção do meio ambiente, os critérios adotados e princípios reconhecidos no parecer apresentam um avanço em relação ao próprio direito internacional ambiental, como o critério de extraterritorialidade, o que poderia suplantar o procedimento legislativo interno,92 a determinação de políticas públicas e o diálogo sócio-político denso acerca dessa temática ainda em desenvolvimento.93
A especificidade de aplicação do controle de convencionalidade às disposições contidas em opiniões consultivas diz respeito ao modo como direitos, princípios e critérios são nelas reconhecidos. O fato de não estarem atreladas a um caso específico pode gerar a discussão de normas de maneira abstrata, que resultam em conceitos vagos e com difícil aplicação, por exemplo, aos julgamentos concretos, a exemplo da noção de controle efetivo não definida na OC-23/17. Em igual sentido, a possibilidade de se apontar “políticas públicas”, também sem maior detalhamento de sua aplicabilidade e avaliação material de sua execução caso a caso, já foi alegada como violadora do princípio da subsidiariedade94 e coloca diversos problemas práticos caso se queira exigir da Corte um julgamento sobre a não implementação das recomendações das OCs por algum Estado que reconhece sua competência.
Problema similar se verificaria no âmbito da aplicação dos parâmetros desenvolvidos pela Corte em relação aos DESCA no contencioso da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Enquanto órgão quase-judicial, muito do exercício evolutivo no sistema se origina de sugestões feitas por suas relatorias, como a REDESCA e da decisão quanto ao encaminhamento de um caso à Corte.95 Ainda, no processamento de petições, aplicam-se as intepretações da Corte realizadas, inclusive, em sede consultiva, como a OC-21/14 apontou após a discussão do controle de convencionalidade.96 Assim, a possibilidade de se contestar essas mudanças no contexto da Comissão é pequeno.
(III) O terceiro desdobramento que a atividade de expansão jurisdicional da Corte envolve o impacto geral na legitimidade e autoridade da Corte em relação aos Estados e demais atores sociais do sistema interamericano.
Estudos recentes propõem-se a analisar a importância e os elementos que contribuem ou não para a autoridade e legitimidade de cortes internacionais e também da Corte Interamericana.97 Se a legitimidade pode ser descrita, para se empregar o célebre conceito de Thomas Franck, como um “impulsionar na direção do cumprimento”,98 diversas são as forças da Corte Interamericana que podem reforçar a sua legitimidade. Em síntese, a legitimidade de uma corte internacional pode advir de diversas fontes: normativas, sociológicas, políticas. Ela pode ser também influenciada pela percepção de seus clientes de que seus julgamentos são bem fundamentados ou que operam de modo balanceado de acordo com as expectativas dos atores sociais envolvidos. Como observou o juiz Manrique em seu voto no caso Lhaka Honhat, “é importante considerar que a legitimidade do Tribunal se funda na solidez de seus raciocínios e em seu apego ao direito e à prudência de suas decisões”.99 Também os juízes Sierra Porto e Vio Grossi se preocuparam com os impactos e ondulações causadas pela estratégia da Corte em relação aos DESCA em sua legitimidade.
Não é somente a capacidade de convencimento em relação ao direito e a fundamentação de uma decisão que influencia a legitimidade de uma corte internacional. A assim chamada legitimidade normativa é talvez uma das mais cardinais por lidar exatamente com o consentimento dos Estados. Cuida-se da legitimidade que verifica se uma corte age no interior da moldura que lhe foi desenhada, a qual pode ser enfraquecida caso a corte ultrapasse os limites dos poderes normativamente atribuídos a ela. Isso pode afetar seus clientes e o número de Estados parte do sistema, bem como desestimular a adesão de outros Estados que ainda não aceitam a jurisdição da Corte Interamericana.100 O fato de que a Corte expandiu sua jurisdição admitindo a justiciabilidade dos DESCA através de opiniões consultivas sem uma ampla participação dos Estados não reforça sua legitimidade, antes pelo contrário.
A expansão da jurisdição contenciosa (em atores peticionantes, matérias litigáveis não previstas na Convenção e direitos não previstos anteriormente) através da consultiva pode oferecer resistência por parte de atores sociais envolvidos no processo jurídico interamericano e sensibilizar a legitimidade da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Se a Corte oferecer a impressão que está se atribuindo poderes tergiversando o consentimento dos Estados, é possível que haja por parte dos Estados reações relativas tanto ao cumprimento quanto à própria autoridade da Corte, podendo inclusive afetar a sua membresia. Tais reações podem afetar a missão principal da Corte que é a de proteger direitos humanos.
Isso não significa que a Corte não tenha alternativas para mitigar eventuais problemas de legitimidade sem necessariamente revisar seu posicionamento de justiciabilidade dos DESCA ou das expansões desenvolvidas até o presente momento. Uma posição mais cautelosa e com maior diálogo com os Estados em relação aos avanços da jurisdição contenciosa e suas potencialidades parece ser uma saída intermediária possível. Uma melhor ponderação em relação aos efeitos das opiniões consultivas no contencioso indica a garantia tanto da missão da Corte de proteger direitos humanos no continente americano quanto a garantia dos Estados de que eles enfrentarão um contencioso nos limites de seu aceite da jurisdição.
V. Conclusões
A função consultiva em cortes internacionais foi originalmente pensada como um exercício não judicial para oferecer opiniões que esclareçam ou identifiquem questões jurídicas, comumente ligadas a temáticas controversas. Contudo, o limite entre declarar um direito existente, desenvolver direitos e lawmaking é inexato e, por isso, o significado da força e natureza dos pareceres consultivos permanece incerto.101 Em não poucas ocasiões na história do contencioso internacional opiniões consultivas serviram para tangenciar levemente o consentimento dos Estados. A Corte Interamericana de Direitos Humanos no passado utilizou-se estrategicamente de seus poderes consultivos para expandir o alcance protetivo de sua jurisdição. As consequências das recentes escolhas da Corte de, através da via consultiva, expandir sua jurisdição em questões envolvendo DESCA e permitindo o litígio estratégico de questões ambientais estão ainda para se descortinar.
Esse novo comportamento no âmbito consultivo em análise dos direitos materiais da CADH se deflagrou em um contexto cujo arquipélago de fatores também recentes solevam diversas questões passíveis de impactar a legitimidade do órgão. Dentre eles têm-se as discussões sobre a judicialização dos DESCA (direitos econômicos, sociais, culturais e -agora- ambientais), a adjudicação deles com base somente no artigo 26 da Convenção, o questionamento da doutrina do controle de convencionalidade, o movimento na Corte de retração da interpretação evolutiva. Em virtude de todos esses fatores, defende-se que a Corte deve proceder com maior moderação ao expandir seus poderes através da via consultiva.
A resposta dos Estados às possíveis decisões condenatórias, medidas provisórias e demais impactos na gestão de suas ações domésticas,102 em exercício desses novos contornos da jurisdição contenciosa, será essencial para avaliar os rumos das discussões atualmente muito contidas na Corte Interamericana, principalmente para o exercício da sua tradicionalmente celebrada ampla competência consultiva.
No primeiro caso de judicialização de direitos ESCA, o juiz Sierra Porto rememorou que “somente a crítica sincera e o debate aberto e público podem ajudar a mitigar, até certo ponto, os riscos de legitimidade e insegurança jurídica que podem se desprender dessa sentença”.103 Como verificado, a estratégia de expandir a jurisdição da Corte através de sua função consultiva comporta riscos. Seria interessante se a Corte estivesse atenta às vozes da sociedade civil, mas também dos Estados em relação a essa expansão de jurisdição, promovendo maior cautela e diálogo nesse exercício. Dados os contornos flexíveis e um tanto quanto discricionários da atividade consultiva, é uma questão de política judiciária escolher quais são os campos que vale a pena avançar no corpus iuris de direitos humanos. A divisão no interior da Corte no caso Lhaka Honhat demonstra que certas questões ainda não são unanimidade nem mesmo no interior da Corte.
As reações futuras dos Estados provarão se a política judiciária da Corte Interamericana de litigar direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais foi uma boa estratégia. Verdade é que, para parafrasear a célebre expressão de Bruno Simma, o gênio dos DESCA escapou da lâmpada na jurisprudência da Corte Interamericana.104 Em vez de tentar comprimi-lo de volta, a Corte pode ter a ocasião, também em via consultiva, de modelar a sua expansão.