Sumário:
I. Introdução. II A insustentabilidade antropocêntrica e o novo paradigma jurídico ecocêntrico aplicado, sob o viés crítico, ao direito ambiental internacional. III. A complexidade como paradigma epistemológico e ecológico de justiça. IV. Natureza e reconhecimento pelo direito: exemplos que partem do “Sul-Global”. V. Considerações finais. VI. Referências.
I. Introdução
Vivemos um momento de transição forçada. Mesmo que não queiramos, os caminhos trilhados pela humanidade no decorrer do período moderno, quando se construiu o primeiro sistema mundo, chamado colonial, não se sustenta mais. A gravidade do momento que vivemos é, entretanto, maior, pela falta de compreensão do que está acontecendo por uma parcela imensa da humanidade, especialmente por parte daqueles que se encontram exercendo os poderes políticos e econômicos e, logo, detêm o controle sobre a comunicação global e a construção de sentidos, ideologias e valores hegemônicos.
Pode parecer ingênuo afirmarmos que as pessoas que se encontram no mega poder global não saibam o que estão fazendo. Contudo uma hipótese pode ser levantada para possível comprovação: o sistema mundo colonial moderno nos trouxe até um momento de extrema complexidade, onde um gigantesco sistema de relações sociais, culturais, econômicas, políticas e comerciais funciona de forma acelerada em meio a novos mecanismos de busca por hegemonias que, por meio de guerras híbridas, confundem, propositadamente, a compreensão do mundo, seu sentido e sua possibilidade de controle. Em outras palavras, ninguém, nenhuma potência militar, econômica e financeira, nenhuma organização internacional ou nacional, nenhum movimento social global ou local têm, hoje, a possibilidade de parar a máquina em movimento ultra acelerado ou mudar seu rumo. Estamos todos aprisionados dentro da máquina moderna, inclusive os que aparentemente detêm o seu controle.
O desafio que se apresenta, novamente, é o que fazer e como fazer. O que fazer talvez seja mais fácil, construir algo completamente diverso, respeitando o equilíbrio necessário ao bom funcionamento dos ecossistemas da Terra, ou seja, abandonar imediatamente o sistema mundo colonial moderno de hiperconsumo e acelerada exploração da natureza. O que parece difícil é responder como fazer.
Se é difícil sabermos o que estamos fazendo e para onde vamos, por estarmos mergulhados em uma percepção autopoiética que não se resume, é claro, a uma racionalidade específica, mas que está mergulhada em turbilhões de sensações e sentidos que condicionam nossa percepção, não sabemos, também, quais são os meios de parar ou desviar essa máquina de proporções gigantescas e incrivelmente acelerada.
A questão, entretanto, ocorre dentro de nossos corpos, diz respeito à nossa percepção da vida e pode se resumir a um acontecimento dentro de nós mesmos e à nossa relação com a Natureza, logo, com a vida. Qual acontecimento será capaz de mudar nossa percepção da vida e nos mobilizar em torno da construção de um outro mundo urgente e possível? Neste artigo vamos pensar sobre o Sistema Mundo Moderno, procurando pistas para entender a construção da racionalidade moderna, individualista e competitiva que nos trouxe até aqui. Compreender é o primeiro passo para transformar, de forma radical, nossa relação com o “Outro” e com o todo do qual somos partes e, assim, alcançar novos direitos, equilíbrio e entendimentos plurais de justiça.
II. A insustentabilidade antropocêntrica e o novo paradigma jurídico ecocêntrico aplicado, sob o viés crítico, ao direito ambiental internacional
O termo Antropoceno ganhou repercussão internacional quando o químico atmosférico Paul Crutzen o utilizou afirmando que as mudanças ocasionadas no mundo (Earth System 1 ), pelo ser humano, não mais nos permitem permanecer no Holoceno, provocando a adesão de comunidades científicas das mais diversas áreas ao termo e debates, no âmbito da geologia, sobre a compreensão do atual estágio geológico do planeta Terra.
O Antropoceno ou “Era da Solidão”,2 reflete a posição de centralidade do ser humano em relação ao todo, restando à natureza, subjugada pela perspectiva econômica e técnica da modernidade mecanicista, a condição de propriedade, objeto, matéria -prima. Para Faccendini, esta corrente remete à concepção de que a natureza não passa de um grande stock a serviço da humanidade, como se estivéssemos em um shopping ou supermercado, onde podemos nos servir à vontade, nos preocupando, unicamente, com as necessidades de nossa espécie.3 O pensamento antropocêntrico, portanto, é aquele que considera o homem como núcleo de um sistema- mundo, ao redor do qual orbitam os demais seres submetidos ao império da razão e ao individualismo. Essa filosofia de cunho cartesiano e espírito colonizador, alicerce da hierarquia entre “o senhor e o escravo”, da alienação do ser humano pela exploração do trabalho, onde tudo é passível de apropriação, divisibilidade e atribuição de valor (mercadoria), é a mesma que justifica a coisificação da natureza. “Cogito, ergo sum”, este é o pensamento ocidental que serve de alimento ao ego para colonização do “Outro”, humano ou não.
Suas consequências são violência, ausência de alteridade e segregação.
A modernidade, representada por homens brancos, proprietários e ricos, procura conhecer as leis da natureza para dominá-la, como um objeto que conta apenas com corpo físico, desprovido de espírito e por isso comparado às máquinas. O objetivo da ciência moderna, não reside em conhecer o mundo, mas em fabricar um outro mundo que atenda a essa visão dicotômica, que tenta impor a lei dos homens às leis da natureza.4 Esse distanciamento da “teia da vida”,5 ou seja, a separação do homo sapiens do contexto histórico-natural do planeta, enquanto método e artifício do pensamento moderno, representa uma relação de poder que almeja garantir por meio da dominação do “Outro” e da instrumentalização da natureza, a alienação e a incorporação de uma “liberdade negativa”6 ou “liberdades estabelecidas”, mantidas pela prática do consumo, facilitadoras da concentração de riquezas, da propriedade privada, dos submundos ou “subcidadanias”.7
A atual crise ambiental, decorrente do processo de Grande Aceleração, exploração e extrativismo, sustentado pelos discursos filosóficos, jurídicos e econômicos da modernidade, necessita de enfrentamento proporcional aos os riscos sociais e ecológicos produzidos pelo homo technicus e homo economicus, ambos a serviço do proprietário, do “sujeito de direitos”, do “homem moderno” e do capitalismo. Ulrich Beck, define risco como “el enfoque moderno de la previsión y control de las consecuencias futuras de la acción humana, las diversas consecuencias no deseadas de la modernización radicalizadas”. 8 Para Beck, os sucessos e os fracassos da humanidade desafiam nossa forma de estar no mundo, de pensar sobre o mundo e de fazer política;9 as crises ecológicas eliminam as fronteiras do tempo e do espaço; os perigos essenciais tornam-se mundiais e a preocupação com o todo não é mais uma opção, mas uma conditio na sociedade de risco mundial.10
O líder indígena e escritor brasileiro Ailton Krenak, ressalta a gravidade de deixarmos uma marca tão pesada no planeta a ponto de configurar uma era (Antropoceno) e afirma que tal fato “deveria soar como um alarme nas nossas cabeças”,11 já que seus efeitos podem permanecer mesmo quando não estivermos mais aqui. Para o ambientalista, isso significa o esgotamento das fontes de vida; demonstra estarmos diante da exclusão do que não se integra ao mundo da mercadoria e de “uma humanidade que exclui todas as outras e todos os outros seres”.12
Para Sarlet e Fensterseifer, diante do atual “estado ambiental planetário”, uma nova compreensão jurídica quanto aos direitos da natureza, capaz de se dissociar da “tradição filosófica moderna antropocêntrica de matriz cartesiana”, se faz necessária e pressupõe um novo paradigma jurídico ecocêntrico como resposta aos desafios trazidos pelo Antropoceno ao Direito Ambiental contemporâneo.13
Uma crise de paradigmas, conforme Kuhn, provoca mudanças conceituais e procedimentais por evidenciar anomalias que conduzem determinado campo do saber a novos compromissos e novas bases científicas, conforme se demonstra a seguir:
De forma muito semelhante (ao que ocorre nas revoluções políticas), as revoluções científicas iniciam-se com um sentimento crescente, também seguidamente restrito a uma pequena subdivisão da comunidade científica, de que o paradigma existente deixou de funcionar adequadamente na exploração de um aspecto da natureza, cuja exploração fora anteriormente dirigida pelo paradigma... o sentimento de funcionamento defeituoso, que pode levar à crise, é um pré-requisito para a revolução.14
Paradigma jurídico ecocêntrico, se contrapondo ao direito tradicional clássico, propõe uma alteração ontológica da nossa compreensão da natureza e, consequentemente, do nosso relacionamento com ela. O homo sapiens, de acordo com essa visão, “abandona sua postura de conquistador e degradador irresistível e assume seu papel de membro pleno e cidadão de uma comunidade ampliada, a Natureza”.15
Enquanto tipo de racionalidade, o ecocêntrismo, é adotado pela corrente que defende, por uma abordagem crítica, a ecologização do direito. Para o Direito Ecológico, o pluralismo está presente tanto em âmbito político quanto jurídico, a Natureza antes tida como recurso, passa a ser reconhecida como sujeito de direitos, a responsabilidade prioriza a prevenção e a precaução e a lógica do capital é substituída pelo desenvolvimento sustentável, pela lógica dos comuns.16
Capra e Mattei, demonstram que armadilhas cartesianas cercam o ordenamento jurídico de tal maneira que uma mudança profunda (deep ecology) na compreensão do ser humano, enquanto parte indissociável da natureza, é fundamental para resgatar valores centrais do direito, permitindo uma “revolução ecolegal” no sistema jurídico.17
A fundamentação ética do Direito Ambiental Internacional exerce influência não só sobre direitos e deveres, como, também, sobre políticas e interesses. Caminhar para uma Nova Era que assegure a integridade do sistema planetário e fortaleça democracias requer uma ética ecológica e participativa que ab-rogue a postura predatória capitalista, regulamente os padrões de qualidade ambiental e promova a evolução dos princípios que fundamentam a Declaração Mundial do Estado de Direito Ecológico, garantindo direitos ambientais procedimentais18 e a efetivação dos compromissos assentidos por atores internacionais, após debates ocorridos de forma transdisciplinar, em 2016 no Rio de Janeiro.
O combate à opressão e à dominação, é condição sine qua non para a emancipação dos direitos humanos enquanto resultados provisórios de lutas sociais, algo comum em países desiguais, que se contrapõem aos contextos impostos, impróprios e opostos à neutralidade, à universalidade e à simplificação. Como um “gênero inconformista”,19 o pensamento crítico, não se alia ao empiricamente dado ou posto e se contrapõe à ideia de que os direitos humanos se concretizam pela sua positivação, descontextualização ou a-historicidade. Essa visão da complexidade colabora para a análise e condução dos limites planetários e dos riscos. A junção da ecologia ao direito, pressupõe a abertura a métodos científicos transdisciplinares e sistêmicos, que não negam o desconhecido e as incertezas.
A diminuição da camada de ozônio, as mudanças climáticas, a perda de biodiversidade, a contaminação dos solos, a acidificação dos oceanos, as queimadas, o extermínio dos povos originários, as enchentes, os rompimentos de barragens, a falta de água potável, assim como as pandemias são alguns exemplos que evidenciam a relação de dependência do ser humano em relação ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à Natureza. Juridicamente, podemos afirmar que “os Direitos Humanos se interpretam e realizam em um contexto ecológico, do qual seus titulares não podem se dissociar”.20
O direcionamento ecocêntrico do Direito Internacional em matéria ambiental pressupõe uma lente sistêmica e crítica como instrumento jurídico de interpretação da sociedade e proteção dos ecossistemas da Terra, considerando seu valor intrínseco. O alcance de mudanças conceituais e procedimentais, assim como o preenchimento de lacunas legais se apresentam como verdadeiros desafios, postos pelo Antropoceno, ao universo jurídico.
III. A complexidade como paradigma epistemológico e ecológico de justiça
Edgard Morin21 trata o problema do conhecimento como um desafio, à medida que o conhecimento do todo só é possível quando se compreende as partes e estas, por sua vez, não podem ser conhecidas sem o conhecimento do todo. Essa é a base crítica do pensamento complexo que propõe a superação da dualidade, da simplicidade e da neutralidade adotadas pela modernidade para compreender de forma transdisciplinar o fenômeno, como conjunto organizado de partes. “Ao negar tudo que é complexo (ou o que escapa ao seu método), Descartes acaba por mutilar a realidade e, consequentemente, deformá-la. A busca pelo indubitável se transforma no fechamento de possibilidades do pensamento”.22 O modelo racionalista cartesiano, diante da incapacidade de considerar o contexto e o complexo, produz inconsciência e irresponsabilidade; não é um modelo racional, mas racionalizador.23
Hodiernamente, pensar o Direito enquanto fonte de produção de conhecimento em busca de ideais de Justiça, pressupõe pensar sobre uma realidade multidimensional, considerando como as ações humanas afetam a existência em suas diversas formas. Fraser,24 ao tratar o reconhecimento como uma questão de justiça por meio do modelo de status social, evitando a psicologização, demonstra que reivindicações antiecologistas, por esta perspectiva, violam os padrões deontológicos de paridade participativa. A globalização da crise ecológica torna inevitável a junção da complexidade à ecologia, provocando uma guinada epistemológica rumo a uma necessária mudança de paradigma, que nos possibilite encontrar meios de navegar em um futuro incerto, elevando nossa esperança e enfrentando nossas incertezas.25
A análise da imprevisibilidade decorrente dos efeitos das ações humanas, rompe com o paradigma reducionista e determinista da modernidade, abrindo campo para a teoria crítica e para o pensamento complexo, compromissados com os Direitos Humanos, com os Direitos da Natureza e com a promoção da Justiça.
Em “busca da segurança perdida”,26 é crucial superar o oportunismo que trouxe vitórias à modernidade e enfrentar as vulnerabilidades sociais (e suas origens), presentes nas desigualdades globais face ao risco, visando impedir ameaças existenciais. Nesse cenário, apresentam-se discussões acerca de novos tipos penais internacionais, como o ecocídio, por colocar em risco não só a fruição pacífica de um grupo em determinado território, mas, também, o futuro da comunidade internacional como um todo. Seu reconhecimento jurídico soa como uma garantia às gerações futuras e proteção à natureza, contra atos praticados por nós mesmos; o contrário alcançaria a esfera do injusto, pois, de forma geral, “nenhuma pena passará da pessoa do condenado” e nem mesmo aos sócios é conferida (pelo menos inicialmente) a responsabilidade pelas dívidas assumidas pela empresa. Eco vem do grego “oikos” e significa casa, habitat; cídio ou “caedo”, provém do latim e significa “fazer cair”,27 matança, sacrifício de vítimas, vender em hasta pública, ou seja, destruir. Nada mais elucidativo e educativo do que a etimologia, no auxílio à compreensão e transformação do humano universo ético e jurídico.
Discussões como essas, ultrapassam o sentido de degradação ambiental e alcançam temas inter-relacionados, complexos, como o sentido e o alcance da dignidade para além da pessoa humana e a dimensão ecológica desta, tal qual as lutas por inclusão, por participação nas decisões ambientais, pelas demarcações de territórios naturalmente pertencentes aos povos originários e o preenchimento de lacunas para proteção daqueles que cruzam fronteiras em busca de segurança em função de desfavoráveis condições climáticas. Cenários como os descritos ilustram lutas por justiça (diante de um contexto histórico-ambiental de injustiças e violência estrutural).
Bullard desenvolve o conceito de justiça ambiental elucidando que o paradigma da justiça ambiental possui abordagem holística e que para impedir a sujeição de comunidades a exposições diferenciadas e proteção desigual é necessário a criação de uma estrutura capaz de eliminar condições e decisões injustas, parciais e iníquas, o que traz à baila “questões éticas e políticas sobre quem possui o quê, quando, como e quanto”.28
Gould, no mesmo sentido, defende que a distribuição dos riscos ambientais, como consequência das economias capitalistas, são desiguais à medida que os benefícios econômicos da produção se concentram nas camadas mais altas do sistema de estratificação, enquanto os riscos gerados pela produção são suportados pelas camadas inferiores do sistema de estratificação.29
A contaminação da água, do solo e do ar por efluentes industriais tóxicos e suas consequências negativas sobre a saúde humana, impacta desproporcionalmente trabalhadores e desempregados, ao passo que proprietários, dirigentes e investidores podem usar a riqueza ganha da produção para comprar moradias em áreas ambientalmente seguras... A distribuição de poder nas unidades de produção reflete a distribuição da riqueza, mas está inversamente relacionada à distribuição do risco ambiental. Como resultado, aqueles com poder de fazer com que mudanças prómeio ambiente ocorram são o grupo menos provável de perceber a necessidade de fazê-lo. E aqueles que têm mais probabilidade de perceber como necessárias tais mudanças pró-ambientais são os que têm menos poder para efetuá-las.30
Giménez elucida que no caminho para a justiça global encontramos a justiça climática, ecológica e ambiental e demonstra que reduzir complexidades e simplificar o sistema não é a melhor maneira de superar a crise de eficácia e de legitimidade do ordenamento jurídico, uma vez que o direito é um fenômeno social e sua legitimidade está nas faculdades humanas e nos processos de emancipação social e cidadania:
Los problemas de justicia que plantea el Antropoceno contribuye al desarrollo de las nuevas teorías de la justicia en curso (Upendra Baxi (2016): la teoría de la justicia climática (TCJ), la teoría de la justicia ecológica (TEJ) y la teoría de la justicia global (TGJ). Hay una justicia de acuerdo con la ley (legalidad) y una justicia detrás de la ley, por encima de ella (legitimidad). La justicia detrás de la ley es la que nos ayuda a repensar la ley y la política. En la política global que imponen los Estados y las instituciones y organizaciones internacionales es infrecuente el fenómeno del análisis medioambiental, sin embargo, sí está presente en la conciencia ciudadana, las protestas de la sociedad civil, y los movimientos sociales de resistencia.31
Assim, desafiando padrões teóricos clássicos, movimentos por justiça ambiental que, inicialmente, combatiam as contaminações tóxicas e o racismo ambiental, deram luz a entendimentos plurais de justiça, alargando a sua concepção e oferecendo motivos para profundas mudanças legislativas. A abordagem do conceito de justiça pela perspectiva ecológica, propõe uma compreensão ampla que, segundo Schlosberg, engloba em seu conceito distribuição, reconhecimento, participação e capacidade, havendo uma íntima relação de cada um dos elementos com os demais e aplicabilidade às relações humanas com as diferentes formas de vida.32
IV. Natureza e reconhecimento Pelo direito: exemplos que Partem do “Sul-global”
Parece loucura querer que a natureza tenha direitos. Em compensação, parece normal que as grandes empresas dos EUA desfrutem de direitos humanos, conforme foi aprovado pela Suprema Corte, em 1886.33
Construir uma nova base epistemológica, filosófica, conceitual e principiológica que abandone o precedente socrático de que apenas matérias relativas ao universo humano podem alcançar a moral e desenvolver uma racionalidade ecológica, com o objetivo de construir uma crítica jurídicoambientalista imbuída de alteridade e capaz de reconhecimento é mecanismo que vem sendo adotado por países do “Sul-Global”.34
Martínez e Acosta35 lembram que a essência do direito é emancipadora e a luta pelo reconhecimento do direito de ter direitos envolve a estipulação de limites à exploração, assim como a possibilidade de pensar sobre direitos desconhecidos, como os direitos da Natureza que tem sido vítima de severas simplificações, também, em âmbito jurídico. No mesmo sentido, Milaré defende que pelo fato de alguns integrantes do ecossistema planetário não serem capazes de assumir deveres e reivindicar direitos de forma direta e não contando a ciência com poder de coação, é essencial a tutela, pelo Direito, do ecossistema planetário.36
A Constituição do Equador de 2008 e a Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia de 2009, refletem um aspecto cultural importante, pois são oriundas da cosmovisão dos povos originários da América Latina e revelam seu aspecto plural, que rompe com a uniformização hegemônica moderna ocidental e com o monismo europeu. Ao alterarem suas constituições, esses países “do lado de lá da linha”,37 apresentam uma nova forma de cidadania, amparada pela diversidade e pela harmonia do agir humano com a Pacha Mama,38 analisando o contexto e a complexidade da vida. Esses são seus preceitos básicos para transformar a realidade e alcançar o buen vivir ou vida buena,39 repensando o direito e a justiça.
Boaventura de Souza Santos afirma que “as formas de pensamento não-ocidental têm sido tratadas de um modo abissal pelo pensamento ocidental”.40 Linhas visíveis e invisíveis fundamentam um sistema de distinções que divide a realidade social entre os que se inserem “deste lado da linha” (sociedades metropolitanas) e os “Outros” que habitam o “outro lado da linha” (territórios “inexistentes”, coloniais). Essas linhas abissais permanecem vivas na estruturação do conhecimento e do direito, requerendo a superação da injustiça cognitiva global e para isso requer-se um novo pensamento: o pensamento pós-abissal.41
A Constituição Plurinacional Boliviana, apresenta ao constitucionalismo uma nova proposta de natureza pluriétnica e plurinacional, que resgata a trajetória histórico-cultural dos povos originários da América Latina, com a proposta de reconhecimento do “Outro” para a construção de um espaço coletivo. No mesmo sentido a “Ley Marco de la Madre Tierra y Desarrollo Integral para Vivir Bien” de 2012, “tiene por objeto establecer la visión y los fundamentos del desarrollo integral en armonía y equilibrio con la Madre Tierra para Vivir Bien”.42 Seus princípios centrais são a compatibilidade e complementariedade de direitos, obrigações e deveres; não mercantilização das funções ambientais; integralidade; precaução; garantia de restauração; responsabilidade histórica; prioridade de prevenção; participação plural; água para a vida; solidariedade entre seres humanos; relação harmônica; justiça social; justiça climática; economia plural; complementariedade e equilíbrio e diálogo de saberes.
O ecocêntrismo equatoriano, demonstrou grande avanço ao comprovar a possibilidade de se reconhecer os direitos subjetivos inerentes à natureza dentro do ordenamento jurídico, considerando a Mãe Terra como um organismo vivo com direitos constitucionalmente garantidos.43In verbis: “La naturaleza será sujeto de aquellos derechos que le reconozca la Constituición”.44 Também é dever do Estado incentivar seu respeito e proteção:
La Naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos. Toda persona, comunidad, pueblo o nacionalidad podrá exigir a la autoridad pública el cumplimiento de los derechos de la Naturaleza. Para aplicar e interpretar estos derechos se observarán los principios establecidos en la Constitución, en lo que proceda. El Estado incentivará a las personas naturales y jurídicas, y a los colectivos, para que protejan la Naturaleza, y promoverá el respeto a todos los elementos que forman un ecosistema.45
A nova Constituição da Cidade do México, traz como objetivo “reconocer y regular la protección más amplia de los derechos de la naturaleza conformada por todos sus ecosistemas y especies como un ente colectivo sujeto de derechos”.46 As Constituições Políticas dos Estados Livres e Soberanos de Guerrero e Colima, também, reconhecem a Natureza como sujeito de direitos. Em El Salvador, recentemente, foi apresentada à Assembléia Legislativa, uma proposta de emenda constitucional no mesmo sentido:
En América Latina, incluir a la Naturaleza como sujeto de derechos dentro de la máxima ley de una nación no sería algo nuevísimo [...] Además, culturalmente es aceptado y científicamente está ampliamente probado que la Naturaleza es un ser vivo (Gaia según los griegos y Pacha Mama según nuestros ancestros), y por ello debemos entenderla como un organismo con derecho a existir de manera íntegra, perpetuando las funciones ecológicas que permiten nuestra propia vida y la de los demás seres vivos dentro de ella. En este sentido, convertir a la Naturaleza en un sujeto de derechos, implica que éstos sean defendidos y garantizados por el Estado.47
Na esfera local, dialogando com o ecocêntrismo regional, os municípios de Bonito e Paudalho no Estado de Pernambuco (Brasil), reconheceram, em 2017 e 2018 respectivamente, o direito da natureza de existir, prosperar e evoluir.48 No mesmo sentido, com a alteração de sua Lei Orgânica, por meio da Emenda No. 47/2019,49 o município de Florianópolis, no Estado de Santa Catarina, reconheceu à natureza a titularidade de sujeito de direitos. A lei orgânica florianopolitana, prevê a defesa e preservação do meio ambiente como obrigação do poder público municipal, em conjunto com outros poderes ou isoladamente, visando a proteção e a preservação da fauna e da flora, em especial das espécies ameaçadas de extinção, vulneráveis ou raras, bem como proíbe práticas que submetam os animais à crueldade.50
Importante, todavia, observar a distinção entre direitos ambientais como parte integrante dos Direitos Humanos, da representação dada aos Direitos da Natureza, que alcançam todos os seres vivos e a Madre Tierra em si mesma, tanto quanto ressaltar que a vigência desses direitos requer mudanças de perspectivas profundas e civilizacionais.51
Aderindo ao denominado “giro ecocêntrico”, que vem se expandindo (de maneira não uniforme) por diversos países da América Latina, a Corte Constitucional Colombiana, na sentença T-622/16, reconheceu ao Rio Atrato o status de sujeito de direito, in verbis: “Reconocer al río Atrato, su cuenca y afluentes como una entidad sujeta de derechos a la protección, conservación, mantenimiento y restauración a cargo del Estado y las comunidades étnicas, conforme a lo señalado en la parte motiva de este proveído en los fundamentos 9.27 a 9.32”.52
A decisão supramencionada abriu espaço para que diversos tribunais do país aderissem à corrente, sendo, posteriormente, reconhecido a outros rios a mesma titularidade. Em 2018, a corte colombiana, declarou que a Amazônia colombiana deve ser protegida em sua integralidade, reconhecendo-a como “ecossistema vital para a evolução global”.53 Interessante ressaltar que essa ação foi proposta por um grupo de pessoas de idade entre 7 e 25 anos, que vivem em locais considerados de maior risco devido às mudanças climáticas; vulnerabilidade ambiental. Embasados nos compromissos assumidos pelo Estado Colombiano no Acordo de Paris, no que se refere ao desflorestamento e as taxas de emissão de gases de efeito estufa em um contexto de mudanças climáticas, denunciaram o aumento do desmatamento da Amazônia e demonstraram que suas consequências alcançam não só a região amazônica, como também o ciclo da água e todos os outros ecossistemas do território pátrio. Comprovaram que os impactos do desmatamento alteram suas condições de vida, retirando-lhes o direito a um ambiente saudável, sustentável e equilibrado e afirmaram fazer parte das gerações futuras que enfrentarão os efeitos do “cambio climático”. 54
Em um futuro próximo, será julgada, pela Justiça do Equador, uma ação movida por advogados britânicos em nome do urso-de-óculos (espécie encontrada na Floresta Protegida Los Cedros), com objetivo de impedir que a mineração local provoque a extinção dessa espécie animal. O caso apresenta como fundamento os Direitos da Natureza, previstos pela Constituição do Equador e os compromissos constitucionalmente assumidos pelo país para sua salvaguarda.
Destarte, o novo constitucionalismo latino-americano em seu movimento ecocêntrico e decolonial, demonstra que o reconhecimento da dignidade da Natureza, que lhe permite a titularidade de direitos próprios, o pluralismo político e jurídico e a ênfase dada à participação da popular, renovam não só o universo jurídico do “Sul-Global”, mas acrescentam esperança e abrem novos caminhos para a construção de um futuro digno não só para a raça humana, mas para a vida em geral.
V. Considerações finais
As reflexões apresentadas nesse trabalho acerca do ecocêntrismo e do pensamento complexo como paradigmas capazes de responder aos desafios postos ao Direito Internacional em matéria ambiental no Antropoceno, resultam da insuficiência das formas jurídicas da modernidade,55 das meditações cartesianas, do individualismo e do avanço da tecnologia à “ferocidade matemática”.56 O liberalismo econômico frustrou expectativas e evidenciou crises ecológicas e democráticas. A exaltação da razão iluminista, o almejado “futuro dos modernos”57 e o “advento do reino da máquina”58 nos colocam, hoje, diante do equivalente a “sexta extinção em massa das espécies”,59 do mundo dos riscos, de um corpo social contaminado não só pelo vírus, mas, também, pelo racismo, pelo extrativismo e pelo patriarcado.
Desde o início da pandemia do novo coronavírus, que é considerada uma crise global sem precedentes devido a magnitude e a velocidade do colapso na saúde e na economia pelo International Monetary Fund 60 e uma alegoria, para Boaventura de Souza Santos,61 à onipresença do mercado, verificouse (devido às medidas de isolamento social) consideráveis reduções dos índices globais de poluição e degradação ambiental e a indissociabilidade entre questões econômicas, jurídicas e políticas das questões ambientais. A pandemia evidencia que somos parte do todo e que o equilíbrio deste depende da integração harmônica entre suas partes.
Mudanças de paradigmas desafiam o direito e suas bases epistemológicas e se mostram importantes para colaborar com o resgate da capacidade de autossuperação e resiliência da Terra, enquanto organismo vivo, assim como com a capacidade humana de imaginar o futuro da civilização, encontrando bases sistêmicas e mais abrangentes para fortalecer o direito, a comunicação e a cooperação. A emergência de uma cidadania planetária e plural desafia o direito à uma compreensão inclusiva que permita, de forma democrática, sustentável, heterogênea e participativa, reconhecer novos conceitos de justiça. Nesse sentido, podemos citar o Acordo de Escazú,62 desenvolvido por países da América Latina e Caribe, com diretrizes voltadas à promoção de uma governança climática e ambiental democrática, participativa e plural, sendo o primeiro do mundo a conter disposições específicas para promoção e proteção dos defensores de direitos humanos em assuntos ambientais. “Con ese horizonte en mente, esta publicación constituye, sin duda, un valioso aporte para la discusión sobre la democracia ambiental en América Latina y el Caribe”.63
Desse modo, faz-se mister reconhecer que a crise atual é sistêmica64 e que para evoluir é imprescindível e inevitável combater o paradigma dualista cartesiano que sustenta práticas racistas e machistas, legitimadoras da dominação dos corpos femininos e de cor,65 bem como práticas extrativistas, escravagistas e oportunistas, que garantem altas taxas de lucro a um reduzido grupo de grandes empresários do globo e de juros abusivos aos bancos, restando à Natureza, aos povos originários e aos pobres (despossuídos) das “periferias do mundo”, agressão, destruição e um horizonte sem perspectivas, cada vez mais poluído, sem cor. Estamos vivendo em um presente construído e programado (forjado), única e exclusivamente, pelo e para o patriarcado. Necessários serão os esforços para que, tendo esse “presente” como espelho, optemos por conduzir a raça humana por novos caminhos, mais solidários e, por isso, sábios.
Práticas seletivas e controladoras, provenientes do sistema-mundo-moderno, que, ainda hoje, atuam como força motriz de sistemas políticos e jurídicos monistas, em nome da ordem, da segurança, do desenvolvimento e do progresso e que propagam o burlão universalista dos direitos humanos (como algo dado e não como algo conquistado), precisam ser superadas, porque ao negarem a complexidade e premiarem o individualismo (em prol da meritocracia e da razão), acabam servindo de fertilizante à alienação, à cegueira e à indiferença social, fortalecem a “indústria da obsolescência programada”,66 a exploração, a ascensão de governos negacionistas e, consequentemente, o reducionismo simplista que leva à exclusão.
Combater a distribuição desigual das riquezas e dos riscos, o consumo excessivo e o desperdício, os entraves à participação, nas decisões ambientais, dos movimentos sociais e das minorias (mais vulneráveis e expostas a perigos), assim como efetivar o direito natural à terra inerente aos povos originários, tal qual tonar possível, no âmbito do Estatuto de Roma, a tipificação de novos crimes como o de “ecocídio” ou a criação de um Tribunal Internacional específico para o enfrentamento das questões ambientais - ecológicas - planetárias, são encargos que devem ser assumidos por esta geração. São estratégias fundamentais à emancipação do exercício da cidadania, que demandam uma rede de cooperação e solidariedade internacional, intergeracional e interespécies; pressupõem responsabilidades iguais, mas diferenciadas; respeito à vedação ao retrocesso; ubiquidade; alteridade; publicidade e acesso à justiça em espaços plurais e, principalmente, periféricos. Essas vertentes do direito internacional em matéria humana e ambiental, são instrumentos capazes de colaborar na construção de um novo “pacto político-jurídico”, em busca de equidade, segurança e equilíbrio.
Refletimos sobre compromissos assumidos em prol do cuidado, enquanto atitude consciente que nos leva a pensar antes de agir e perceber a amplitude, a fragilidade e a importância do “todo”, da saúde de cada “parte”. Talvez, o principal desafio da nossa geração seja desenvolver a alteridade e transportá-la ao universo jurídico, político. Valorizar a memória, a história e a verdade, não tratar a Natureza e as pessoas como coisas descartáveis e ampliar o sentido de democracia para além do voto, como instrumentos de consciência cidadã capaz de promover liberdade. Como dizia o mestre Paulo Freire: “As pessoas se libertam em comunhão”.67
Controlar os medos e estruturar novas reflexões ressignificando o texto jurídico, deixando emergir novos paradigmas ecocêntricos, que não neguem a complexidade, são desafios do nosso tempo, tempo de crises de todos os tipos que ultrapassam fronteiras dos Estados e nos colocam diante do “Outro”, da urgência de alteridade. De acordo com Milton Santos, a partir de uma visão sistêmica, “podemos enxergar as situações e as causas atuantes como conjuntos e localizá-los como um todo, mostrando sua interdependência”68 e tal apreciação crítica nos permite a integração à comunidade, à nação e ao planeta, compreendendo nosso papel e nossa história. Pensemos na construção de um outro mundo, um novo discurso, uma nova metanarrativa, um novo grande relato.69