Sumário:
I. Introdução. II. A natureza e a formulação da obrigação de não-reconhecimento nos Artigos sobre Responsabilidade Internacional da CDI. III. A obrigação de não-reconhecimento na jurisprudência da CIJ. IV. A aplicabilidade da obrigação de não reconhecimento ao caso Palestina v. Estados Unidos. V. Conclusão. VI. Bibliografia.
I. Introdução
Em 6 de dezembro de 2017, o Presidente dos Estados Unidos da América (EUA) emitiu uma declaração unilateral reconhecendo Jerusalém como capital de Israel.1 A declaração enfatizava que a política externa dos Estados Unidos era resultado de uma observação realista e pragmática de fatos políticos e que a condição de Jerusalém como capital de Israel tratava-se, justamente, de um fato.2 A Casa Branca afirmou que “o Estado de Israel fez de Jerusalém sua capital - a capital do povo judeu estabelecida desde os tempos antigos”3 e que, por esse motivo, transferiria a embaixada norteamericana -até então instalada em Tel Aviv- para aquela cidade. O despacho provocou reação subsequente: em setembro de 2018, a Palestina recorreu à Corte Internacional de Justiça (‘CIJ’ ou ‘Corte’), alegando que a realocação da missão diplomática dos EUA -concluída em maio de 2018- constituía, por si só, uma violação do artigo 3o. da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (CVRD).4
Embora a Palestina tenha se limitado, em sua petição à Corte, a mencionar a violação do artigo 3o. da CVRD como fundamento para sua queixa, uma segunda obrigação parece estar envolvida: a declaração dos EUA poderia expressar, em hipótese, o reconhecimento de uma situação gerada e mantida graças a um ato ilícito internacional perpetrado por um Estado. A transferência da embaixada poderia ser compreendida como um reconhecimento dos direitos territoriais israelenses sobre toda a cidade de Jerusalém -inclusive sua metade oriental. Tal atitude seria considerada em contraste com a regra costumeira de não-reconhecimento expressa no Artigo 41 (2) dos Artigos sobre Responsabilidade Internacional (DARS) da Comissão de Direito Internacional da ONU (CDI) uma vez que demonstraria a disposição de um Estado-terceiro de engajar-se em relações diplomáticas com Israel naquele território à revelia da violação de uma norma peremptória. Este trabalho tem como objetivo considerar a pertinência da violação da obrigação de não-reconhecimento enquanto passível de ser incorporada ao julgamento pela Corte em eventual análise do mérito do caso.
Em que pese a ausência de qualquer menção à obrigação de não-reconhecimento na petição palestina, aquela já foi apontada por Estados em seus pronunciamentos no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) e na Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) bem como em resoluções de ambos os foros sobre o conflito israelo-palestino. Entretanto, ainda não há consenso quanto ao fato de que a declaração bastaria para configurar o reconhecimento acusado, bem como há críticas as quais notam uma tentativa de se exigir da Corte uma sentença ultra petita caso aquela optasse por adjudicar sobre a obrigação. Logo, o trabalho propõe uma análise da natureza e do conteúdo da obrigação, bem como das circunstâncias particulares ao caso, para reconhecer nele a pertinência de se aviltar a violação de uma suposta obrigação de não-reconhecimento. A tal análise serão dedicadas as seções seguintes.
Para tanto, o artigo examinará, em uma primeira seção, a natureza da obrigação de não-reconhecimento tal qual expressa nos Artigos produzidos pela Comissão de Direito Internacional (CDI) de 2001. Em seguida, considerará a jurisprudência contenciosa e consultiva da CIJ na qual a obrigação de não-reconhecimento foi notada, de modo a compreender o papel da Corte na formulação do seu conteúdo e de sua execução. Em uma terceira seção, tendo em vista os fundamentos apresentados pelas divisões anteriores, ponderará sobre a relevância de se notar uma possível violação da obrigação de não-reconhecimento no caso Palestina v. Estados Unidos.
A hipótese defendida é a de que há pertinência em se notar uma possível obrigação de não-reconhecimento adjacente à queixa apresentada pela Palestina, majoritariamente em função de três fatores: i) seria impossível responder à demanda palestina sem adjudicar sobre os direitos territoriais de Israel, o que poderia conduzir a interpretar a transferência da embaixada como um ato de expressão de reconhecimento; ii) as resoluções do CSNU apontam para a confirmação de um estado de ilegalidade no que concerne à presença de Israel sobre o território no qual está instalada a embaixada, o que conduziria ao mesmo resultado da afirmação anterior; iii) a obrigação de não-reconhecimento nesse caso, tal qual definida na jurisprudência da Corte, decorreria de uma situação mantida graças à violação da autodeterminação e da integridade territorial palestinas, possuindo natureza costumeira. Além disso, a prática anterior do CSNU e da própria CIJ apontam para o fato de que a obrigação também estende-se aos atos que possam veicular o reconhecimento de uma dada situação -e.g. o estabelecimento de relações diplomáticas.
Embora o presente artigo limite-se a investigar o mérito do caso Palestina v. EUA -pressupondo hipoteticamente a superação das objeções preliminares- deve-se notar os obstáculos para que a Corte exerça sua jurisdição. Três óbices parecem ser evidentes: i) o título territorial disputado sobre a cidade de Jerusalém;5 ii) a condição da Palestina enquanto Estado6 e iii) a objeção quanto à possível adjudicação de direitos de titularidade alheia às partes -i.e. os títulos territoriais de Israel- cuja adjudicação fica proibida pelo chamado princípio Monetary Gold e pelo próprio Estatuto da CIJ.7 As três objeções, contudo, exigem um exame de aspectos processuais que extrapolaria o escopo deste trabalho -sendo imprescindível notar que as objeções, cada uma à sua maneira, apresentam dificuldades notáveis para que o caso avance à etapa de mérito.
II. A natureza e a formulação da obrigação de não-reconhecimento nos Artigos sobre Responsabilidade Internacional da CDI
Em 2001 a Assembleia Geral da ONU tomou nota do conjunto de artigos produzidos pela CDI sobre responsabilidade dos Estados. Embora inicialmente orientado por uma concepção bilateral de responsabilidade, o projeto converteu-se definitivamente em direção a um tom comunitarista a partir da ascensão de Roberto Ago à posição de rapporteur na década de 1970.8 A percepção já vinha presente no entendimento de Ago, o qual concebia a responsabilidade como uma ficção jurídica ‘objetiva’ e não ‘intersubjetiva’,9 de modo a permitir a existência de uma comunidade de Estados juridicamente regulada, e não somente um rol de obrigações sinalagmáticas devidas pelos Estados entre si. A alteração sutil operada por Ago provocou consequências notáveis -e. g. a distinção entre o conceito de ‘crime internacional’ e ‘delito internacional’.10 Embora o termo ‘crime’ não tenha sido mantido no projeto apresentado à AGNU em 2001,11 o conceito permaneceu inscrito no Capítulo III daquele sob o título de ‘sérias violações de obrigações advindas de normas peremptórias do Direito Internacional geral’ as quais incitariam oponibilidade erga omnes.12
É o artigo 41 do capítulo III dos DARS o qual guarda maior correlação com o caso Palestina v. Estados Unidos. Em seus dois primeiros parágrafos, o artigo estipula duas consequências das violações de normas peremptórias, atribuíveis a todos os Estados: (i) o dever de cooperar para levar ao fim a situação criada pela violação (obrigação de cooperação)13 e (ii) o dever de não reconhecer como legal uma situação gerada pela violação, bem como de não oferecer assistência ou suporte capaz de perpetuá-la (obrigação de não-reconhecimento).14 Ambas as disposições foram inseridas ao projeto de artigos apenas em 1982.15
A obrigação exortada no parágrafo 2o. expressa um dever objetivo de não-reconhecimento não apenas do ato violador, mas igualmente da situação produzida em sua decorrência -o exemplo arquetípico, segundo Crawford, é a ocupação de um território como consequência do uso ilegal da força e da não-observância do direito à autodeterminação.16 Além disso, proíbe os Estados de oferecem assistência ou suporte capaz de perpetuar a situação -dever que, por sua vez, perdura enquanto durarem os efeitos do ato violador.17 As formas como o não-reconhecimento e a recusa à assistência podem se dar não são estipuladas pelos Artigos, e casos concretos revelam desde uma recusa a travar relações diplomáticas até sanções econômicas coordenadas por organizações regionais ou pela própria ONU.18
Embora a formulação da obrigação de não-reconhecimento apontada no artigo 41(2) seja bastante clara, resta o questionamento em relação à sua generalidade, isto é, sua natureza costumeira. A autoridade19 dos DARS é amplamente notada por cortes e tribunais internacionais, mas dispositivos específicos ainda suscitam dúvidas quanto a sua normatividade -o artigo 41(2) entre eles.20 Logo, a única maneira de se demonstrar a autoridade de obrigações específicas dos DARS é verificar se aquelas refletem o costume internacional, uma vez que aqueles não foram transformados em uma convenção multilateral capaz de produzir obrigações convencionais aos Estados. Em que pese a incerteza em relação à natureza costumeira de outros dispositivos dos Artigos (notadamente, os dedicados ao tema das contramedidas) é custoso argumentar contra a generalidade da obrigação de não-reconhecimento, especialmente na circunstância de uma ocupação territorial via uso ilegal da força.21 Isso se dá em função dos fatores a seguir apresentados.
Em primeiro lugar, a obrigação de não-reconhecimento compõe o rol de princípios estipulados na Declaração de Princípios do Direito Internacional (1970), a qual, segundo a CIJ no caso Nicaragua,22 reflete o costume internacional em sua totalidade. Alguns críticos, no entanto, colocam em xeque o posicionamento da Corte -em virtude da extensão da Declaração e da diversidade de obrigações nela presentes- embora o contexto do caso Nicaragua reforce a tese de que o dever de não-reconhecimento insurge em situações de uso ilegal da força e suas consequências.23
Em segundo lugar, a mesma Corte, em 2004, expediu uma Opinião Consultiva requerida pela AGNU relativa à legalidade da construção de um muro em territórios palestinos ocupados por Israel, e nela asseverou que a proibição de aquisição de territórios por ameaça ou pelo uso da força tratava-se de uma norma costumeira.24 Trata-se de uma disposição especialmente notável, pois está inserida em contexto semelhante ao caso Palestina v. Estados Unidos. Nesse caso, a objeção dirige-se ao fato de que a Corte não mencionou diretamente o artigo 41(2) dos DARS, embora tenha optado pelo mesmo enunciado daquele, ipsis litteris.25
Enfim, o rapporteur especial James Crawford, em seus comentários aos DARS, afirmou que a obrigação de não-reconhecimento de violações de normas peremptórias provavelmente refletiria o costume internacional.26 Nesse caso, é preciso levar em consideração o fato de que os comentários foram emitidos antes da Opinião Consultiva de 2004, isto é, antes da Corte afirmar que a obrigação compunha o costume internacional.
Quanto às objeções referentes à formulação e ao conteúdo do dever de não-reconhecimento conforme disposto no DARS, ao menos três são no-táveis. Em primeiro lugar, não é taxativa a afirmação de que o dever de não-reconhecer seria auto executório, uma vez que a CDI não estipulou em quais condições aquele poderia insurgir. Durante o período de debates do 6o. Comitê da AGNU sobre o anteprojeto dos DARS, em 2001, alguns Estados27 manifestaram-se em favor do entendimento contrário, ou seja, em prol de que uma determinação de um ‘órgão de segurança coletiva’ (i.e. o Conselho de Segurança) seria necessária para que se verificasse a execução da obrigação -a qual não seria oponível aos Estados na ausência daquela, de modo que estes estariam livres para reconhecer ou não a situação gerada pela violação em conformidade com a sua interpretação dos fatos-,28 restando apenas o dever de recusa à assistência no sentido de perpetuar a situação pretensamente ilegal.
Em segundo lugar, restam questionamentos relativos à formulação do dever de não-reconhecimento, conforme expresso nos DARS. Alguns o compreendem como uma consequência do princípio ex injuria jus non oritur, ao evitar que Estados-terceiros se beneficiassem de uma situação gerada e mantida à revelia de uma violação do Direito Internacional’. Por outro lado, o não-reconhecimento pode também provocar a nulidade do ato violador e seus efeitos, bem como das obrigações e direitos contraídos por terceiros cujo objeto estivesse imediatamente conexo à situação pelo ato produzida. Enfim, a obrigação pode também impor aos Estados-terceiros o dever de não reconhecer a situação em qualquer hipótese, sem, contudo alegar a nulidade dos atos geradores.29 Essa última hipótese, segundo Pert, comportaria duas interpretações distintas (particulares à hipótese de uma violação que conduziu à anexação territorial): por um lado, o dever implicaria a obrigação de não-reconhecer integralmente a soberania do Estado infrator sobre o território apreendido. Por outro, o reconhecimento da aquisição territorial ou situação como lícita exigiria “uma distinção entre o reconhecimento da legalidade da situação (de jure) e o reconhecimento, ou aceitação, da realidade da situação (de facto)”.30
Em terceiro e último lugar, levantam-se questionamentos quanto à duração da obrigação de não-reconhecimento - isto é, se ela permaneceria oponível aos Estados mesmo em situações cuja consolidação já se deu de maneira efetiva, em que pese a ilegalidade do ato que as consumou.31 O trabalho disputará as objeções à formulação do artigo 41(2) dos DARS elencadas acima ao discutir sua pertinência ao caso Palestina v. Estados Unidos na quarta seção. A seguir, levantará quais foram as contribuições oferecidas pela jurisprudência da Corte Internacional de Justiça para a formulação do conteúdo do dever de não-reconhecimento.
III. A obrigação de não-reconhecimento na jurisprudência da CIJ
A Corte adjudicou sobre casos os tangenciavam obrigações de não-reconhecimento em três oportunidades no curso de sua jurisprudência - em duas Opiniões Consultivas (em 1971 e 2004) e em um caso contencioso (em 1995) o qual não obteve acesso à jurisdição. Embora as decisões tenham estipulado efeitos importantes para os Estados nela referidos, elas também cumpriram o papel de clarificar questões sobre o conteúdo, a execução e o alcance da obrigação, de modo a preencher lacunas no direito costumeiro e no projeto da CDI, assim como interpretar as resoluções do Conselho de Segurança que impuseram aos Estados o dever de não-reconhecer um ato ilícito. Enfim, a Corte, ao expedir sua Opinião Consultiva sobre a construção do muro em territórios palestinos ocupados, em 2004, também fornece informações importantes para o exame de responsabilidade internacional no caso Palestina v. Estados Unidos.
1. A Opinião Consultiva sobre a presença sul-africana na Namíbia
Em 21 de junho de 1971, a Corte expediu sua Opinião Consultiva sobre as consequências legais para os Estados da contínua presença sul-africana na Namíbia (então Sudoeste Africano) a despeito da Resolução 276 do CSNU. O apelo à CIJ fora estipulado na Resolução 284 do Conselho, em face do descumprimento da Resolução 276 pela África do Sul, bem como de outras resoluções do mesmo órgão e na esteira de resoluções da AGNU.32
Julgado no ano anterior pela CIJ, o caso Barcelona Traction Light & Power apontava para existência de obrigações ‘devidas à comunidade internacional como um todo’ ou erga omnes, em sua maioria advindas da violação de normas peremptórias. Todavia, a Corte evitou estipular o conteúdo das obrigações decorrentes da violação de normas daquela natureza.33 Nesse cenário, a Resolução 276 tornou-se ilustrativa, uma vez que o CSNU nela previa não apenas a condenação de jure da contínua presença sul-africana no território do Sudoeste Africano, mas também estabelecia a obrigação concreta aos países-membros das Nações Unidas de não se engajarem na contração de direitos e obrigações (i. e. ratificação de tratados ou acordos de qualquer natureza) referentes ao território ocupado com o governo da África do Sul - sob risco de que tais atos fossem considerados inválidos.34 Haveria, tão logo, um dever de não-reconhecimento dos direitos sul-africanos para o exercício de atos típicos aos entes soberanos, pois o Estado ocupante não poderia expressar o animus da Namíbia ao obrigar-se internacionalmente, e seus atos administrativos e legislativos relativos ao território ocupado deveriam ser considerados nulos.35 Ao examinar as consequências do descumprimento da resolução, a CIJ adicionou que a obrigação deveria ser oponível a todos os Estados, inclusive aqueles não-signatários da Carta das Nações Unidas, bem como os exortou a não travar relações diplomáticas no território ocupado.
A Opinião Consultiva avançou o debate em relação à obrigação de não-reconhecimento em algumas frentes: por um lado, emendou o argumento apresentado em Barcelona Traction no sentido de conceber consequências palpáveis da violação de normas peremptórias -de modo a conferir uma dimensão positiva (um ‘fazer’) ao conteúdo da obrigação- e, por outro, apontou no sentido de garanti-la um caráter geral, oponível a todos os Estados pois decorrente de uma resolução do CSNU.36 Com o intuito de estipular o conteúdo do dever, a Corte exortou os Estados a não se engajarem em tratados cujo objeto era, em todo ou em parte, o território ocupado, bem como de não travar nele relações diplomáticas - o que favoreceria a tese palestina de que missões diplomáticas não deveriam ser instaladas em territórios sob ocupação.
2. O caso concernente ao Timor Leste (Portugal v. Austrália)
Em 30 de junho de 1995, a Corte expediu sua sentença no caso concernente ao Timor Leste, o qual opôs Portugal e Austrália numa disputa relativa à execução do Tratado da Zona de Cooperação Econômica firmado entre Austrália e Indonésia em 1989, na esteira de tratados anteriores responsáveis pela delimitação das plataformas continentais dos Estados.37 Ao apresentar sua petição inicial à Corte, Portugal alegou que a Austrália, ao assinar e ratificar o referido tratado, bem como adotar as medidas legislativas necessárias para sua execução, ofendeu o direito do povo do Timor Leste à auto determinação e à soberania sobre seus recursos naturais, bem como os direitos de Portugal como Estado-administrador e as resoluções 384 e 389 do CSNU.38 Nas palavras do então Ministro dos Negócios Estrangeiros da Austrália em 1978, os tratados responsáveis pela delimitação da plataforma continental firmados com a Indonésia ao longo da década de 1970 significariam “o reconhecimento de jure da incorporação do Timor Leste [pela Indonésia]”, apesar “da oposição consistentemente sustentada pelo governo [australiano] em relação ao método de incorporação”.39 O caso não obteve, contudo, acesso à jurisdição da Corte.40
Sem fazer menção à obrigação de não-reconhecimento, o caso East Timor revela algumas importantes características de sua natureza. Em primeiro lugar, estipula a estreita conexão entre a existência de resoluções de órgãos de segurança coletiva (notadamente, o CSNU) e a execução da obrigação em análise, de modo a relativizar sua eficácia em casos em que tais resoluções são ausentes. É interessante notar que, embora as resoluções 384 e 389 do CSNU não exortem os Estados diretamente a ‘não-reconhecer’ a ocupação do Timor Leste, mas apenas a ‘cooperar para levar ao fim’ tal situação, a petição portuguesa parece avançar a tese de que as obrigações presentes no artigo 41 dos DARS são indissociáveis, e que uma das formas de se ‘cooperar para levar ao fim’ é, justamente, evitar o reconhecimento de atos ilícitos. A petição assevera que não apenas a assinatura e ratificação do tratado de cooperação entre Austrália e Indonésia são evidências suficiente do reconhecimento australiano da ocupação territorial sobre o Timor, mas também são o próprio objeto do caso.41 A réplica australiana alegou a existência não de um ‘dever’ de não-reconhecimento, mas de uma ‘liberdade’ tutelada pelos Estados para reconhecer ou não anexações territoriais conduzidas por seus pares. Esta tese pode ser lida em contraste com a interpretação sugerida das resoluções do CSNU e com o dictum da própria Corte na Opinião Consultiva sobre a Namíbia de 1971.
Em segundo lugar, com fundamento no desenvolvimento da prática das Nações Unidas e na própria Carta da ONU, a Corte afirma ser ‘irretocável’ a alegação portuguesa de que o direito à autodeterminação tem caráter erga omnes42 e, portanto, enseja as obrigações próprias de tais normas as quais possuem também natureza peremptória caso sejam violadas - e.g. a obrigação de não-reconhecimento. O caso nota, tão logo, a condição singular das situações de anexação territorial mediante uso ilegal da força dentre as demais violações de normas peremptórias no que concerne ao dever de não-reconhecimento.43
Em terceiro lugar, o caso denota a separação entre a dimensão material e processual dos litígios adjudicados pela Corte, afirmando que a natureza erga omnes da obrigação violada não é suficiente para superar o óbice de uma base de jurisdição ausente relativa a um Estado-terceiro afetado pelo julgamento. As três considerações são de vital relevância para o caso Palestina v. Estados Unidos.
3. A Opinião Consultiva sobre a construção do muro em território palestino ocupado
Em 9 de julho de 2004 a Corte expediu sua Opinião Consultiva sobre as consequências jurídicas da construção de um muro em território palestino ocupado, requisitada pela AGNU em dezembro de 2003 por força da resolução ES 10/14.44 Ao realizar uma análise detida do traçado e das características do muro construído por Israel, bem como do direito aplicável, a Corte notou a ilegalidade das incursões e assentamentos realizados por aquele Estado de 1967 em diante no território oriental à linha traçada no Plano de Partição de 194945 bem como inúmeras violações de convenções de Direito Humanitário e de Direitos Humanos, de resoluções do CSNU e da AGNU e de resoluções do Comitê de Direitos Humanos da ONU, algumas das quais continham obrigações devidas à comunidade internacional como um todo.46
A Corte notou que diversos Estados, em suas observações orais e es-critas, argumentaram que a construção do muro produziria consequências jurídicas não apenas para Israel, enquanto detentor da obrigação principal, mas também para outros Estados e para a comunidade internacional. Nesse sentido, a Corte afirmou que todos os Estados estariam sob a obrigação de uma vez comprovada a ilegalidade dos atos cometidos por Israel, não reconhecer a situação deles decorrente, bem como não oferecer nenhum auxílio capaz de perpetuá-la e cooperar para levá-la ao fim por meio da garantia de reparações.47
Em função da coincidência geográfica com o caso Palestina v. Estados Unidos, a Opinião Consultiva sobre o muro construído por Israel não apenas reitera o caso East Timor ao afirmar a natureza erga omnes da obrigação de não-reconhecimento de uma situação gerada em função de uma violação ao direito à autodeterminação, mas o faz em relação ao mesmo contexto aviltado em 2018 pela Palestina. Além, embora não faça referência direta aos DARS, a Corte formulou o texto de sua Opinião Consultiva em conformidade com os artigos 41(2), 48 e 5448 e afirmou que a obrigação de não-reconhecer a aquisição de território por via de um ato de agressão compõe o costume internacional.49 Neste sentido, a CIJ avançou ao reconhecer não somente o caráter erga omnes do direito à autodeterminação, mas também das obrigações decorrentes de sua violação.50 Este precedente é, tão logo, de vital importância para o caso sob análise, uma vez que confirma, por meio da decisão de um tribunal internacional, a ilegalidade dos atos cometidos por Israel em 1967 e da situação por eles instaurada já indicada anteriormente pelo CSNU.51
IV. A aplicabilidade da obrigação de não reconhecimento ao caso Palestina v. Estados Unidos
1. A suposta ilegalidade da transferência da embaixada dos EUA
A embaixada dos United States of America em Jerusalém está instalada em um imóvel localizado no bairro de Arnona, cuja extensão se encontra majoritariamente em Jerusalém Ocidental e, parcialmente na no man’s land -um título precário enquanto definição jurídica e compreendido analogamente como terra nullius ou zona desmilitarizada. Por consequência, a Palestina, em sua petição inicial, alegou que a embaixada fora instalada em território ocupado, e não em território israelense, uma vez que a no man’s land não compõe o hemisfério ocidental de Jerusalém.
Os antecedentes da demarcação desta zona remontam à Resolução 181 (II)52 de 29 de novembro de 1947, a qual tinha o objetivo de criar o Estado de Israel e propor um plano de partição do então território britânico da Palestina entre judeus e muçulmanos. A AGNU determinou que 55% do território seria destinado a Israel, enquanto 45% à Palestina, e Jerusalém seria considerada um corpus separatum sob a administração das Nações Unidas.53 Contudo, as disposições do Plano foram rejeitadas pela Liga Árabe e igualmente ignoradas pelas forças militares israelenses no curso da Guerra Árabe-Israelense, as quais anexaram quase 60% da área anteriormente concebida como território palestino.54 Israel ocupou Jerusalém Ocidental e outras zonas, como Jaffa, Galileia e parte da Cisjordânia. Ao repartir o território palestino -e Jerusalém- a linha do Armistício foi esboçada por líderes militares de Israel e da Jordânia. Sob os termos do cessar-fogo, a região a leste da linha traçada seria administrada pela Jordânia, enquanto a região a oeste ficaria sob a soberania de Israel. Entre essas linhas, no entanto, uma terceira área foi traçada no centro de Jerusalém: quase 750 acres de território foram designados como no man’s land.55 A AGNU, por sua vez, reiterou a afirmação de que Jerusalém deveria permanecer como um corpus separatum em sua resolução 303(IV).56
A situação permaneceu relativamente estável até 1967 - exceto pela breve invasão da península do Sinai por Israel em 1956, durante a Crise de Suez. Com o início da Guerra dos Seis Dias em junho de 1967 e, em particular, com a tomada de Jerusalém Oriental em 25 de junho daquele ano, toda a cidade ficou sob jurisdição israelense e o status internacional de Jerusalém tornou-se mais nebuloso.57 Um memorando do Ministério das Relações Exteriores de Israel declarou a soberania não apenas sobre Jerusalém Oriental, mas também sobre a no man’s land, confirmando a ocupação de toda a Cidade Santa.58
Em 22 de novembro de 1967, logo após o início dos ataques armados israelenses contra seus vizinhos árabes, o CSNU aprovou a Resolução 242. A resolução foi uma tentativa de se conciliar as teses israelenses e árabes sobre a questão de Jerusalém, bem como de cessar as atrocidades entre os beligerantes. Enquanto os países árabes exigiam a retirada das tropas israelenses de todos os territórios ocupados como condição para o estabelecimento de um acordo de paz, o governo de Israel somente consentiria com a retirada se seus supostos direitos territoriais fossem assegurados.59 Entretanto, a resolução não exortou diretamente a retirada de Israel de todos os territórios ocupados após 5 de junho de 1967, optando pela solução de compromis, a qual requisitou “a retirada das forças armadas de Israel de territórios ocupados no recente conflito.” (CSNU, 1967). A omissão notável é a palavras ‘todos’ precedente a ‘territórios’, sem a qual a delimitação de quais dentre os territórios ocupados deveriam ser abandonados pelas forças armadas tornou-se praticamente impossível a partir da Resolução 242.60
Logo, desde 1967, a seção oriental de Jerusalém vem sendo considerada pela prática dos Estados no CSNU como território ocupado, de modo que alguns optaram por instalar suas missões diplomáticas na cidade costeira de Tel Aviv. A força vinculativa da resolução 242 foi também disputada por Israel sob o argumento de que aquela fora adotada no âmbito do Capítulo VI (Resolução pacífica de controvérsias) da Carta das Nações Unidas, o qual, ao contrário do Capítulo VII (ameaças à paz, violações da paz e atos de agressão), não tem expressamente garantida a natureza compulsória das resoluções produzidas sob seus artigos, independente de sua elaboração pelo próprio CSNU. Como consequência, Israel utilizou a origem da resolução como um álibi para legitimar sua jurisdição sobre a cidade inteira.61 Alguns Estados se opuserem ao notar a ilegalidade da argumentação, uma vez que a proibição da aquisição de territórios pelo uso da força é corolário do disposto no artigo 2(4) da Carta da ONU e reflexo das normas de direito costumeiro e jus cogens, bem pelo fato de ir de encontro com as competências e o poder de decisão do CSNU descritos pela CIJ em Namibia.
Não obstante, o CSNU reafirmou sua convicção relativa à ilegalidade da ocupação israelense dos territórios invadidos em 1967 em resoluções subsequentes à 242 -notadamente, nas resoluções 252 (1968), 267 (1969), 271 (1969) e 298 (1971). Em 1980, por ocasião da promulgação da Lei Básica (Basic Law) em Israel, a qual declarou Jerusalém como “una e indivisa capital do Estado de Israel”62 o CSNU adotou sua resolução 476 cujo texto exortava Israel a cessar todas as ações administrativas e legislativas destinadas a alterar o status internacional da cidade de Jerusalém.63 Nesse sentido, a resolução 476 aponta também para a violação da própria resolução 242, uma vez que Israel falhou ao tentar convencer outros Estados de que seu título territorial sobre a cidade era legítimo e, não obstante, manteve-se nos territórios ocupados. Em função da recusa israelense ao cumprir a resolução 476, em 1982 o CSNU adotou a resolução 478, a qual exortava todos os Estados a não reconhecer qualquer ato administrativo ou legislativo de Israel cujo intuito seria alterar o status de Jerusalém, bem como a retirar suas representações diplomáticas da cidade.64
Entre 1980 e 2016 a política externa americana relativa a Israel conheceu um período de pragmatização, de modo a gradualmente aproximar-se de uma solução negociada entre a Palestina e aquele Estado a qual garantisse o título territorial israelense sobre Jerusalém.65 O Congresso dos EUA promulgou, em 1995, o Jerusalem Embassy Act, o qual exortava o Presidente e o Departamento de Estado a transferir a embaixada instalada em Tel Aviv para Jerusalém. Em virtude da oposição do então Presidente e do Departamento de Justiça -os quais enxergavam a lei como uma usurpação da competência constitucional presidencial- o Congresso aprovou uma segunda versão que garantia ao Presidente o poder de postergar a transferência.
A declaração norte-americana de 2017 impulsionou uma nova fase de debates sobre a questão da soberania israelense sobre Jerusalém nas Nações Unidas. O CSNU foi convocado em 8 de dezembro para ouvir o relatório sobre o tema elaborado pelo Coordenador Especial para o Processo de Paz no Oriente Médio e pelo Representante do Secretário-Geral.66 Além disso, os projetos de resolução escritos no âmbito da AGNU pelo Iêmen e pela Turquia foram aprovados no escopo da Resolução ES 10/19, que, por sua vez, reafirmou a nulidade de atos unilaterais que visem a alteração do status de Jerusalém como um corpus separatum, lembrando a Resolução 478 do CSNU e o artigo 2 da Carta da ONU.67 A Resolução foi aprovada com o placar de 128 votos favoráveis, 9 contrários (Guatemala, Honduras, Israel, Ilhas Marshall, Micronésia, Nauru, Palau, Togo e Estados Unidos), 21 faltantes e 35 abstenções.68 O veto dos EUA impediu que a resolução proposta pelo Egito em 18 de dezembro de 2017, a qual sugeria a ilegalidade da declaração norte-americana e da transferência da embaixada, fosse aprovada no CSNU.69 Em que pese a falta de uma resolução vinculativa, a declaração dos EUA foi prontamente considerada ilegal por quase todos os estados presentes na AGNU e no CSNU.70 A resolução egípcia foi aprovada por todos os outros 14 Estados-membros do Conselho, incluindo os quatro membros permanentes, com a exceção dos EUA. Em particular, os Estados levantaram o dever de não reconhecer a aquisição de territórios pelo uso ilegal da força como a principal sustentação de seus posicionamentos, interpretando a transferência da embaixada dos EUA como um ato de reconhecimento da ocupação de Jerusalém Oriental por Israel.71
A suposta ilegalidade foi fundamentada por dois raciocínios distintos: em primeiro lugar, o fato de que Israel anexou Jerusalém Oriental e a no man’s land por meio de um ato de agressão justificado como legítima defesa em 1967. A anexação consistiria em uma violação do artigo 2 (4) da Carta das Nações Unidas, a qual é reflexo (i) da norma costumeira de proibição da agressão e (ii) da norma de jus cogens de proibição da agressão -e de seu corolário que proíbe a anexação territorial por meio daquela. Em segundo lugar, o fato de que a presença israelense em Jerusalém Oriental também violaria o tratado de armistício de 1948 com a Jordânia, o qual limitaria a soberania israelense à metade ocidental da cidade. Este último argumento, no entanto, é contestável, uma vez que a Jordânia abdicou definitivamente de seus direitos sobre qualquer território palestino em 198872 e, por consequência, alega-se que Israel não deveria manter as obrigações pactuadas em 1949.73 Em todo caso, o título territorial de Jerusalém Ocidental pertenceria a Israel -por força do Tratado de Armistício com a Jordânia de 1949, de um lado, ou da aquiescência da comunidade internacional, de outro, enquanto Jerusalém Oriental e a no man’s land seriam considerados, ambos, territórios ocupados por Israel desde 1967.74 Para além das evidentes limitações políticas, contudo, nada impede a argumentação de que Jerusalém, una e indivisa, segundo o Plano de Partição de 1947, trata-se de um corpus separatum de qualquer Estado, de modo que o exercício de qualquer título territorial sobre a cidade seria manifestamente contrário ao Direito Internacional.
Em função do exposto acima, é possível notar que, caso a interpretação palestina do artigo 3 da CVRD prove-se verdadeira -i.e. a obrigatoriedade de que as representações diplomáticas devam compulsoriamente ser instaladas em territórios não ocupados pelo Estado acreditado- há condições para se defender que a embaixada dos EUA recém-instalada em Jerusalém está localizada em território ocupado. Note-se que não há necessidade de se adjudicar em relação ao título territorial da no man’s land -se aquele é ou não de posse palestina- mas tão somente verificar que este, assim como Jerusalém Oriental, não são parte do território israelense -afirmações corroboradas pelas resoluções do CSNU e pela Opinião Consultiva da CIJ discutidas anteriormente-. Nesse sentido, a violação da obrigação de não-reconhecimento insurgiria como consequência da realocação da embaixada em um imóvel localizado, ainda que parcialmente, em território sob ocupação, a qual demonstraria a aquiescência, por parte dos Estados Unidos, do título territorial israelense sobre toda a cidade, bem como produziria responsabilidade internacional ao Estado acreditante.
2. Objeções à obrigação de não-reconhecimento em Palestina v. Estados Unidos de América
Diversas objeções foram elencadas anteriormente quanto à existência, o conteúdo e a execução de uma obrigação de não-reconhecimento em geral as quais, indubitavelmente, podem ser levantadas no caso sob análise. É preciso verificar se as circunstâncias encontradas em Palestina v. Estados Unidos são suficientes para afastar tais questionamentos.
A primeira objeção diz respeito ao fato de que alguns Estados se manifestaram no sentido de disputar a qualidade auto executória da obrigação de não reconhecimento, alegando que sua execução estaria condicionada à existência de uma resolução de um órgão de segurança regional ou global que comandasse a sua execução expressamente. Trata-se de uma objeção razoável, dado o número irrisório de prática em que os Estados, na ausência de uma resolução do CSNU, exortaram a si mesmos a não reconhecer a situação gerada por um ato ilícito cometido por um de seus pares. Não há, contudo, nos termos do artigo 41(2) dos DARS, nenhuma relação de dependência entre resoluções do Conselho e a recusa ao reconhecimento.75
Ainda, o CSNU já dispôs aos Estados uma obrigação de não-reconhecimento da ocupação de territórios palestinos por Israel na Resolução 478 a mesma a qual comandou os Estados a retirarem suas missões diplomáticas de Jerusalém. Logo, não há de se falar em ausência de coordenação multilateral no processo de execução da obrigação de não reconhecimento em Jerusalém. Em adição, o dever de não-reconhecimento foi o principal argumento levantado pelos Estados no CSNU durante a sessão emergencial que debateu a transferência da embaixada dos EUA em 18 de dezembro de 2017 e foi igualmente reafirmada em 21 de dezembro do mesmo ano pela AGNU em sua Resolução ES-10/L.22.76 Arcari nota que, ao sustentarem seus votos no CSNU e na AGNU, grande parte dos Estados fez menção à norma costumeira (ou princípio geral) inscrito na Declaração de Princípios do Direito Internacional de 1970 que proíbe a aquisição de território por meio de um ato de agressão -o que advoga em favor de uma execução independente da obrigação, visto que não há requisito equivalente de coordenação multilateral para a execução de outras normas costumeiras.77
Ainda sobre a execução, Arcari recorda que, ao sustentar seu veto no CSNU, os EUA afirmaram que a Resolução 478 de 1980 não impunha nenhuma restrição ao seu direito de estabelecer relações diplomáticas com Israel conforme a vontade de ambos os Estados. Todavia, o representante da França no Conselho refutou o argumento ao asseverar que a Resolução 478 tão somente reafirmava o compromisso dos demais Estados-membros com o Direito Internacional, não criando nenhuma obrigação original, mas sim afirmando sua existência enquanto norma costumeira. No entanto, embora não adotada sob o Capítulo VII da Carta da ONU, a compulsoriedade da resolução poderia ser facilmente argumentada com fundamento no poder geral de decisão garantido ao Conselho pelo art. 25 da Carta -o qual fora sublinhado pela própria CIJ por ocasião da Opinião Consultiva sobre a Namíbia.78
Vale recordar que a sensível natureza política do CSNU já foi suscitada enquanto argumento para sustentar sua ineficácia como organismo de coordenação de represálias a violações de normas peremptórias -notadamente durante os anos 1940-1970. Inúmeras propostas foram introduzidas, no âmbito do 6º Comitê da AGNU e na própria CDI (pelo então rapporteur especial Arangio-Ruiz), no sentido de arquitetar novas estruturas e mecanismos de resposta a graves violações independentes do Conselho. Todavia, o caráter utópico e pouco funcional das propostas, as quais coordenavam um sem-fim de agências da Organização, acabaram por conhecer o ceticismo dos Estados e foram abandonadas.79 Logo, uma possível execução de obrigações erga omnes relativas ao status de Jerusalém e articulada no seio das Nações Unidas ainda permaneceria largamente sob responsabilidade do CSNU.
Uma crítica mais contundente diz respeito à declaração de alguns Estados no âmbito do CSNU de que o não-reconhecimento da transferência da embaixada dos EUA tornaria este ato ‘inválido e nulo.’ É bastante improvável que um ato de não-reconhecimento coletivo produzisse uma invalidade de jure, de modo a anular o consentimento dos Estados nele envolvidos. O que parece se almejar com a obrigação de não-reconhecimento é antes provocar a ineficácia de um ato em contraste com o Direito Internacional do que a sua invalidade, no sentido de impedir que o Estado que praticou o ato de reconhecimento extraia dele benefícios.80 Todavia, aqui é preciso notar que a Resolução ES- 10/19 da AGNU -a qual exorta os Estados a não reconhecer todas as decisões ou ações visando a alteração do status internacional de Jerusalém- recai não apenas sobre os atos que alteram tal status diretamente (como a ocupação levada a cabo por Israel) mas também indiretamente (como a transferência da embaixada dos EUA).81 Tal afirmação pode ser lida em contraste com o artigo 41(2) dos DARS, o qual assevera que apenas a violação de uma norma peremptória poderá suscitar a obrigação de não-reconhecimento e a nulidade dos atos que conduziram à violação, o que não é o caso da transferência da embaixada.82 Logo, o caso Palestina v. EUA comporta, em última análise, duas obrigações de não-reconhecimento: uma devida por todos os Estados a seus pares, a qual os exorta a não reconhecer a ocupação territorial conduzida por Israel -pretensamente violada pelos EUA- e outra cujo objeto é a própria transferência da embaixada que, por sua vez, não pode produzir oponibilidade erga omnes aos Estados, uma vez que não se deu por resultado de uma violação de uma norma de peremptória. De acordo com Castellarin:
A situação é incomum: o objeto da [obrigação de] não reconhecimento é o próprio reconhecimento. Ou seja, trata-se de um caso em que a obrigação de não reconhecimento opera tanto como norma secundária (consequência da violação de jus cogens por Israel), como norma primária (violada por Estados Unidos) e novamente como norma secundária (consequência do ato ilícito dos Estados Unidos). Embora, em teoria, o não reconhecimento possa ser objeto de uma obrigação primária, na prática internacional, aquele é essencialmente uma norma secundária, que só se aplica como consequência da violação grave de um subconjunto de normas primárias, imperativas. O não-reconhecimento do status de Jerusalém estabelecido por Israel enriquece a prática já estabelecida, enquanto o não reconhecimento das medidas norte-americanas dá início a uma nova prática. 83
Esta distinção aparentemente tecnicista traz consigo outra dificuldade: a Resolução ES-10/19 da AGNU não afirma o caráter costumeiro da obrigação de não-reconhecimento referente à realocação em momento algum -a propósito, utiliza tão somente documentos onusianos (i.e. resoluções anteriores da própria AGNU e do CSNU) como fonte da obrigação, sem lançar mão do Direito Internacional geral.84 Por consequência, uma vez que a obrigação de não-reconhecimento relativa à transferência da embaixada dos EUA não insurgiu graças à violação de uma norma de jus cogens, mas sim na esteira de uma obrigação erga omnes antecedente e, somado a isso, não teve seu caráter costumeiro afirmado pela resolução, não é possível aceitar a sua oponibilidade erga omnes. Em outras palavras, a não ser que fosse possível afirmar o caráter costumeiro de todas as obrigações de não-reconhecimento -e não somente daquelas, nos termos dos DARS, oriundas da violação de normas peremptórias- resta impossível afirmar que todos os Estados estariam sob a obrigação de não reconhecer a nova embaixada dos EUA em Jerusalém, bem como de evitar travar relações diplomáticas com a missão nela lotada. Nesse caso, os Estados estariam diante de uma faculdade para não reconhecer, e não de uma obrigação strictu sensu.85
No que concerne ao conteúdo da obrigação, é difícil delimitar quais atos estariam sob sua incidência para além daqueles de natureza puramente formal -por exemplo, a emissão de declarações unilaterais de protesto ou os a denúncia de tratados cujo objeto é a embaixada.86 Castellarin pondera que, enquanto a participação em um coquetel de recepção do novo embaixador dos EUA pode ser interpretado como um reconhecimento de facto, comparecer a uma reunião diplomática oficial na embaixada -em virtude de sua importância e relação com direta com os temas políticos afetos ao Estado acreditante- poderia ser compreendida como um reconhecimento de jure.87 Ressalvada a distinção por vezes ilusória entre as duas modalidades de reconhecimento, o exemplo revela que o conteúdo da obrigação, embora conscrito às atividades praticadas por e para aquela missão diplomática, não pode ser afirmado a priori, cabendo à discricionariedade dos Estados considerar quais atos reconhecem, endossam ou auxiliam a perpetuar a situação ilícita. A questão agrava-se quando o ato de reconhecimento praticado é capaz de provocar, indiretamente, benefícios à Palestina -por exemplo, caso a embaixada em Jerusalém passasse a servir como consulado-geral acessível também ao povo palestino.
Previamente à expedição da declaração em dezembro de 2017 e a realocação da embaixada em maio de 2018, os EUA estavam sob a obrigação de não-reconhecer a soberania israelense sobre os territórios ocupados. O conteúdo desta obrigação poderia ser executado de diversas maneiras: (i) na recusa de estabelecer relações convencionais cujo objeto era, em todo ou em parte, o território ocupado (ou um bem nele instalado); (ii) na recusa de instalar missões diplomáticas no território ocupado (iii) na recusa em travar relações econômicas e comerciais cujo objeto era o território ocupado; (iv) na recusa de reconhecer como legítimos os atos administrativos, judiciais ou legislativos emitidos pelo Estado ocupante cujo objeto é o território ocupado ou pessoas nele domiciliadas, dentre outras.88 A transferência marcou a violação da obrigação e, paralelamente, ensejou uma nova obrigação de não-reconhecimento por parte dos Estados-terceiros -a qual, por carecer de natureza erga omnes e depender da discricionariedade dos Estados para ser executada, incita ainda mais dúvidas em relação ao seu conteúdo.89 Qual é a obrigação (ou faculdade) conferida ao Estados frente a instalação de uma embaixada americana em Jerusalém?90
Enfim, alguns críticos apontam para o fato de que a jurisdição israelense sobre Jerusalém Oriental e sobre os demais territórios ocupados trata-se de um ‘fato consumado’, e que os Estados não poderiam ser coibidos por organizações internacionais a reconhecer de facto uma situação irreversível. Ora, o reconhecimento de facto só tem sentido se for capaz de produzir efeitos benéficos ao Estado que emitiu o reconhecimento, de modo a expandir suas relações diplomáticas -o que, inevitavelmente, exigiria um reconhecimento de jure e, por consequência, violaria o princípio ex injuria jus non oritur. Além disso, um reconhecimento tácito ou explícito dos direitos territoriais de Israel sobre a metade oriental de Jerusalém iria, inevitavelmente, na contramão da prática dos Estados -os quais vem se opondo bilateralmente e no âmbito do CSNU a tal reconhecimento. As resoluções do CSNU não perecem caso a execução das obrigações nelas contidas não seja verificada, e ainda menos as obrigações próprias deixam de existir quando gozam de oponibilidade erga omnes.91
V. Conclusão
Em 1932, o então Secretário de Estado dos EUA, Henry Stimson, formulou a doutrina de não-reconhecimento de anexações territoriais via agressão -a qual foi sustentada por muitos de seus sucessores e por outros Estados na Liga das Nações- em face da anexação da província chinesa da Manchúria Pelo Japão. Pouco mais de 90 anos depois a doutrina de política externa parece ter oficialmente adentrado o regime de responsabilidade dos Estados: uma obrigação de não-reconhecimento de atos ilícitos, notadamente aqueles cometidos em violação de normas peremptórias, insurge como parte do costume internacional e com oponibilidade erga omnes.
As conclusões obtidas nesta breve investigação apontam para a existência de uma obrigação internacional de não-reconhecimento cujo objeto são os territórios sob ocupação israelense, em particular no hemisfério oriental da cidade de Jerusalém. A Corte Internacional de Justiça, em eventual exame do mérito do caso Palestina v. Estados Unidos da América, poderia reconhecer, no ato de realocação da embaixada norte-americana de Tel Aviv para Jerusalém, a violação daquela obrigação e o ensejamento de responsabilidade internacional dos Estados Unidos. Nesta hipótese, o trabalho demonstra que (i) a execução de tal obrigação não estaria necessariamente condicionada a um comando de um órgão de segurança coletiva, ainda que ela já tenha sido exortada por resoluções anteriores do CSNU concernentes à Jerusalém; (ii) a obrigação não incita inequivocamente a nulidade da declaração dos EUA e do ato do Departamento de Estado que realocou a embaixada, mas tão somente obriga os Estados a não reconhecê-los e a privá-los de eficácia; (iii) há uma segunda obrigação de não-reconhecimento direcionada aos Estados cujo objeto é a própria transferência da embaixada -a qual não parece gozar de oponibilidade erga omnes, pois não é consequência de uma séria violação de normas peremptórias; (iv) não há de se falar em duração ou caducidade da obrigação, de modo que esta deve perdurar enquanto a situação produzida pela violação subsistir e (v) o conteúdo da obrigação investigada comporta condutas diversas, como a recusa em estabelecer missões diplomáticas no território ocupado, em contrair obrigações convencionais cujo objeto é o território ocupado ou bens nele localizados, o não-reconhecimento de atos administrativos, legislativos ou judiciais os quais envolvam o território ocupado ou pessoas nele domiciliadas, a interrupção de linhas aéreas, rodoviárias e ferroviárias, dentre outros.
Em eventual exame de mérito, a Corte adjudicaria sobre a cessação e a compensação devidas pelos Estados Unidos à parte lesada, bem como aplicar eventuais medidas de satisfação e garantias de não-repetição. Em igual medida, poderia sugerir novas consequências para a violação do dever de não-reconhecimento, bem como estipular seu conteúdo com fundamento na prática dos Estados.
Em abril de 2020, o então candidato à presidência dos EUA pelo Partido Democrata, Joe Biden, afirmou que, caso eleito, não revogaria a declaração 9683 e não realocaria a missão instalada em Jerusalém, embora discordasse da medida tomada por seu antecessor. A assertiva implica na continuidade do procedimento instaurado na CIJ, o qual, até o presente momento, ainda não conta com as observações em resposta da parte requerida.