I. Introdução
A esfera internacional é organizada por conjuntos normativos mais ou menos vinculantes que são elaborados, muitas vezes, de modo híbrido, por sujeitos de direito internacional e atores privados. Tais atores, por se organizarem em redes transnacionais de poder e não encontrarem obstáculos nas fronteiras estatais, desafiam os modelos clássicos de governança que contrapunham direito internacional e direito interno. Para Eslava,1 na medida em que estas formas indiretas de autoridade são propagadas, as “linhas da responsabilidade global são quebradas” e o “potencial de resistência à ordem normativa internacional é diluído”. Por esse motivo, Kennedy2 argumenta que a ideia de uma ordem jurídica concebida como a simples soma ordenada desses quatro elementos - direito doméstico e internacional, direito público e privado - não é mais plausível.
No campo da saúde global, vasta literatura tem evidenciado como a recente crise sanitária de COVID-19,3 assim como a de HIV/AIDS4 anteriormente, tem sido reveladora “das falhas e das faltas dos esquemas de governança global... ao mesmo tempo em que paradoxalmente revela a inexorabilidade da globalização e da interdependência”.5 Por exemplo, “inter”nacionalmente, o direito internacional contemporâneo tem desafiado a clássica agenda liberal e se ocupado em orquestrar os interesses de uma pluralidade de atores públicos e privados locais através de uma diversidade de regimes jurídicos complexos e frequentemente sobrepostos, de forma que muitas vezes a tutela do direito humano à saúde é obstaculizada pela tutela do direito internacional econômico.6 “Intra”nacionalmente, Slaugther e Burke-White argumentam que o desafio do direito internacional contemporâneo é “fortalecer as instituições domésticas, subsidiá-las e compeli-las a agir”.7
Para indagar como as linhas de responsabilidade global são quebradas no campo da saúde e quais as possibilidades de resistência à ordem normativa internacional, este trabalho discute algumas causas institucionais do acesso desigual à medicamentos entre o Norte e o Sul globais e alguns limites e possibilidades da responsabilidade social das empresas (RSE) farmacêuticas transnacionais por esta desigualdade. Para tanto, a primeira parte investigará quais são os atores, os fatores e os processos da governança sanitária global (II), discutindo como atores privados participam da governança sanitária global (1) e como ela está estruturada em termos de soft-law (2). À luz desses elementos, a segunda parte pensará prospectivamente a RSE (III), debatendo os limites dos seus mecanismos jurídicos (1) e analisando criticamente se o Fundo de Impacto na Saúde é uma estratégia hábil para conciliar os interesses das empresas com seus deveres sociais (2). Metodologicamente, o trabalho faz uma revisão da literatura especializada, análise documental e de dados primários, conduzindo uma abordagem normativa do tema.
II. Atores, fatores e Processos da governança sanitária global
Com a pandemia de COVID-19, a vasta literatura sobre governança sanitária global há tempos debatida nos campos da Ciência Política e das Relações Internacionais também chega ao campo do Direito Internacional. Esta parte do trabalho discute os processos através dos quais a governança global privilegia os interesses de uma pluralidade de atores públicos e privados, dentre os quais as grandes corporações farmacêuticas, sobre os interesses comuns da humanidade (1), e os fatores que levam estes atores a investir em soft law (2).
1. Governança global via atores privados
A literatura é profícua em mostrar que, como reflexo da globalização econômica, se intensificou a interdependência global, contexto em que se transcende aos mecanismos verticalizados de articulação internacional e são formados espaços horizontais de interação, os quais relativizam o papel do Estado como único interlocutor legítimo das relações internacionais, e viabilizam que atores emergentes na sociedade global consigam de forma mais direta e dinâmica, promover seus interesses.8 Por esses fatores, a governança global se tornou “multifacetada” e policêntrica, com muitos atores não-estatais disputando espaços e influência nos processos de tomada de decisão.9 Com a multiplicação das fontes, dos processos e dos atores do direito internacional em questões sanitárias, parte da literatura aponta para a relativização do papel do Estado soberano,10 enquanto outros estudos mostram que um dos seus papeis proeminentes é justamente o fortalecimento estatal.11 Nesse cenário complexo e instável, o campo do Direito Internacional absorve algo que é de longa data sabido pelos formuladores de políticas e tomadores de decisão: a superação das compartimentações tradicionais - interno-internacional, público-privado - e o reconhecimento da agência de uma pluralidade de atores não-estatais e de processos institucionais arrojados operados a partir de novos tipos normativos.12
A superação das dicotomias interno-internacional e público-privado não resulta em um espaço político anárquico, tampouco um âmbito de liberdade de mercado imune à regulação. Ele é composto por uma fina teia de regras resultante da preocupação com um projeto intenso e contínuo de regulação e gestão.13 O direito internacional clássico era um direito formal de coexistência pacífica das liberdades soberanas dos Estados, sendo composto por direitos absolutos, fundamentais, que se impunham em todas as circunstâncias pelo fato de os seus atores serem Estados.14 Contemporaneamente, segundo Jouannet,15 existem três categorias principais de sujeitos/atores do direito internacional para além do Estado, dotados de personalidade e capacidade jurídica variáveis: as organizações internacionais e outros atores institucionais públicos, os atores cívicos e os atores econômicos privados. Esses últimos detêm um espaço decisório cada vez maior e gozam incontestavelmente de certa personalidade jurídica internacional, a ponto de, inclusive, segundo Jouannet,16 serem capazes de concluir acordos com os Estados, figurar como parte perante a justiça arbitral internacional e definir as decisões prolatadas pelas instituições internacionais.
Contudo, as “formas jurídicas” e as “instituições formais” apenas reconhecem como sujeito do direito internacional aquele que formalmente cria normas e é simultaneamente o seu destinatário imediato. Por isso, qualquer participação de atores privados continua sendo indireta, não oficial e, em grande parte, ad hoc.17 Para lidar com as “formas jurídicas”, a literatura mostra que alguns atores de grande poder político, econômico, técnico e científico, tais como as grandes corporações farmacêuticas, tornaram-se influentes nas instituições globais por meio do recrutamento dos Estados para a defesa de seus interesses.18 Para Souza e Saldanha,19 isso gera um sentimento de impotência em meio a um pluralismo normativo considerado por vezes incompreensível ou opressivo e que permeia os direitos internos, obstruindo o compromisso dos Estados de respeitar os direitos humanos protegidos pelo mesmo direito internacional que lhes coage política e economicamente a violá-los.
Nesse contexto de regulamentação internacional policêntrica e negocial que cada vez mais entrelaça interesses públicos e privados, Ventura20 alerta para a banalização da transformação de questões sanitárias em ameaças, argumentando que, porque elas são combatidas com medidas excepcionais e procedimentos técnicos ou burocráticos - nos quais frequentemente se desrespeita o escrutínio democrático, ainda que suas repercussões na esfera política sejam amplas - gera-se riscos à democracia e aos direitos humanos.
A priorização dos interesses securitários e das instituições econômicas torna as demais temáticas dependentes da “caridade” pública ou privada, como se verifica na OMS, cuja atuação, segundo Ventura,21 nem sempre consegue focar em áreas prioritárias por ter grande parcela de seu orçamento constituído por contribuições voluntárias que apresentam destinação pré-definida, conforme o interesse dos doadores. Esse tipo de doação é chamada de earmarked, por ser “carimbada” para determinada finalidade ou projeto, ainda que com isso sejam distorcidas as prioridades programáticas definidas pelos Estados-membros e dada margem a diversos conflitos de interesses.22
Para Rached e Ventura,23 a aceitação desse “filantrocapitalismo” cria “magos tecnológicos” de elevada autoridade moral no âmbito da governança global sanitária, o que resulta em que indivíduos de sucesso nos setores financeiros ou tecnológicos, mas não necessariamente com conhecimento e experiência no desenvolvimento social e da saúde, ocupem espaços de decisão.24 A Fundação Bill e Melinda Gates é uma das maiores doadora de fundos à OMS, sendo que seu fundador, além de ser considerado um dos maiores atores da governança global sanitária, é um grande aliado da indústria farmacêutica e utiliza sua influência a favor do atual sistema de propriedade intelectual, atitude que macula algumas medidas tomadas pela OMS.25 Ilustra com clareza essa permeabilidade do social ao econômico o discurso de Melinda Gates, na abertura da Assembleia Mundial da Saúde de 2014, quando afirmou que “salvar recém-nascidos se trata de um ato bondoso de amor que apresenta um significado empresarial e pragmático”.26
Para Chimni,27 é preocupante essa tendência de se recorrer a atores privados para financiar organizações internacionais, pois ela gera o perigo de que a reconstituição da relação entre Estado e direito internacional fomente apenas a operação global do capital e a promoção e tutela dos direitos de propriedade. Ademais, essa abertura da OMS aos interesses privados é contraditória em um contexto no qual, ainda que as normas de proteção à saúde lidem com questões que afetam a vida e a dignidade humana - razão pela qual a interação da OMS com os mais diversos atores não-estatais deveria ser considerada como essencial para promover a democracia e consagrar o seu papel diretivo - a sua burocracia inviabiliza que atores privados tenham voz na instituição quando destituídos de forte poder político ou econômico.28 Esse diagnóstico, além de macular a confiança na OMS, espelha o objetivo da globalização econômica que, no entendimento de Chimni,29 é o de criar um espaço econômico unificado que acomoda tão somente os interesses de uma elite transnacional, cuja influência sem precedentes na definição de políticas e leis globais limitou as possibilidades de atuação dos Estados do Sul global e de participação de atores sociais na definição de prioridades globais de saúde que sejam eficientes, sustentáveis e acessíveis aos mais pobres.
Até 2016, a relação da OMS com a sociedade civil internacional era centralizada nas Organizações Não-Governamentais (ONGs), através de relações oficiais ou de trabalho, das quais apenas as primeiras conferiam acesso às sessões da Assembleia Mundial da Saúde e da Diretoria Executiva. Nesses casos, concedia-se a elas o direito de nomear um representante para participar, sem direito a voto, das reuniões e a prerrogativa de enviar notas ao Diretor-Geral, a quem cabia decidir disponibilizá-las ou não para outros participantes nos eventos.30 Assim, a participação das ONGs foi reduzida a discursos formatados ou explicações simples, o que inviabilizava a persuasão e a sua efetiva participação na formação dos consensos.31 A Resolução WHA 69.10, de 2016, viabilizou a participação de atores não-estatais em reuniões da OMS, mas, por permaneceram sem direito a voto, eles continuaram excluídos das decisões sobre desenvolvimento normativo.32
Ainda que do ponto de vista formal o processo deliberativo dos órgãos decisórios da OMS continue promovendo a inclusão efetiva apenas de representantes estatais, na prática isso é relativizado, segundo Rached e Ventura,33 pela agenda dos financiadores privados, que influenciam a definição das prioridades da OMS, e pelo papel dos especialistas. Com o padrão de influência e tomada de decisão cada vez mais ligado às redes de especialistas, executivos e gestores de fundos, os Estados ficam cada vez mais ligados por redes de regras e regimes formais e informais.34 Essas redes de influências são reflexo do que Supiot35 considera como o novo feudalismo característico da sociedade em rede que transforma as relações de poder, antes dominadas pela soberania estatal, em uma relação de suserania regida por atores privados com grande poder econômico e, por conseguinte, capacidade de formar redes de poder. Nesse cenário, os indivíduos, Estados e instituições passam a se sujeitar ao cumprimento desses interesses suseranos, ao invés de observarem as leis.
Com isso, Chimni36 argumenta que as instituições internacionais ideologicamente legitimam as normas da ordem mundial, cooptam a elite dos países periféricos e absorvem ideias contra-hegemônicas, assim como estruturam ativamente as questões para o debate coletivo de maneira a alinhar a estrutura normativa aos interesses dos “Estados” dominantes. Com esse diagnóstico, não é difícil perceber que a OMS relega para segundo plano a sua função de guardiã do direito à saúde para atuar como protetora dos interesses econômicos das corporações farmacêuticas. Além disso, essas ações diminuem a credibilidade da instituição e geram situações que beiram ao escândalo, tal como quando a OMS foi acusada de ter criado uma falsa pandemia da gripe H1N1por influência das empresas farmacêuticas.37
2. Soft law na governança sanitária global
Apesar de vulnerável a diversas críticas, a Organização das Nações Unidas (ONU) liderou a articulação de respostas jurídicas internacionais atinentes ao direito humano à saúde através da OMS, cujo mandato deriva da Carta da ONU, de 1945, de sua Constituição, de 1946, e do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), de 1966. O mandato da OMS permite que ela atue de forma vertical, especialmente na luta contra doenças infecciosas, mas também na área de promoção da saúde. Para atingir os seus objetivos, a OMS opera a partir de três tipos normativos: convenções adotadas pela Assembleia Mundial da Saúde38 (Artigo 19), regulamentos vinculantes (Artigo 21) e recomendações (Artigo 23).
Fiddler39 argumenta que o Artigo 19 não apenas deu à OMS o poder de promover e adotar tratados, mas também, quando lido dentro dos termos gerais do direito à saúde, concedeu à organização um potencial ilimitado para tornar a sua legislação rígida. No entanto, a OMS tem sido cautelosa em usar esses poderes,40 valendo-se principalmente do Artigo 23, o qual possibilita à Assembleia Mundial da Saúde fazer recomendações sobre qualquer competência da organização, as quais apresentam caráter mais técnico e científico e carecem de força cogente. Contudo, o foco nessa prerrogativa, segundo Fiddler,41 é atribuído à cultura organizacional da instituição, dominada por cientistas e médicos especialistas. Com essa atitude, a OMS se torna organizacionalmente inepta para lidar com violações de saúde pública e, ao não se valer de instrumental jurídico vinculante, demonstra o pouco interesse em dar um significado substancial ao direito humano à saúde proclamado em sua Constituição. Por essa razão, Fiddler considera que a atual fraqueza do direito internacional em controlar doenças infecciosas é reflexo mais da estratégia não-jurídica da OMS do que dos problemas inerentes ao próprio direito internacional.
A primazia técnico-científica na OMS fez com que ela produzisse, nas palavras de Ventura e Perez42 “uma normatividade cujo problema não é a ineficiência nem a escassez, mas a opacidade das condições de sua elaboração e dos interesses que contempla”. Com a escolha dessa atitude organizacional, devido a sua viabilidade política, promoveu-se o uso da soft law para tratar dos problemas sanitários globais. Se por um lado esta opção viabiliza a harmonização dos mais diversos interesses, por outro lado ela não tem um caráter vinculante e, por buscar conformar os múltiplos interesses, englobando múltiplos atores, torna-se vulnerável à hegemonia dos atores mais influentes.
No entanto, o recurso à soft law na governança global sanitária encontra obstáculo na hard law, o qual opera obrigações vinculantes e com conteúdo preciso, com seus correspondentes direitos e deveres executáveis.43 Como exemplo de hard law, tem-se o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs, em inglês),44 cujo cumprimento pode ser inclusive imposto/forçado pelo sistema de solução de controvérsias da OMC.45 A soft law, em sentido contrário, tem conteúdo impreciso e, por não ser vinculante, não é coercitiva,46 tal como as recomendações da OMS e diversas declarações de direitos humanos.
Os acordos caracterizados como hard law permitem a sua aplicação doméstica contra atores não estatais, tais como entidades privadas, organizações transnacionais ou a sociedade civil, ainda que eles não sejam partes contratantes no direito internacional público. Essa realidade é atestada pelo acordo TRIPs, cujo arcabouço rígido e coercitivo gerou aos Estados a incumbência de restringir as ações dos atores privados à nível doméstico para proteger os direitos de propriedade intelectual. Essa rigidez é problemática em contextos pandêmicos que asseveram as disparidades entre o Sul e o Norte globais, tal como se verificou nas pandemia de HIV/ AIDS47 e de COVID-19. No caso desta última, em setembro de 2020, mais da metade das doses de vacinas em desenvolvimento contra a doença já haviam sido adquiridas por países ricos, onde vivem apenas 13% da população mundial.48 Tal realidade refletiu na desigualdade da vacinação: enquanto naquele momento os países do Norte global tinham mais de 30% de população vacinada, os países do Sul global não conseguiram alcançar 10% de imunização. Na União Europeia, um terço da população já tinha recebido pelo menos uma dose (33%), o dobro da América do Sul (15%), o sêxtuplo da Ásia (5%) e 20 vezes maior que na África (1,5%).49
Segundo a UNAIDS,50 a pandemia de COVID-19 obstaculizou a manutenção do tratamento antirretroviral (ARV) no Sul global e aumentou a desigualdade no seu acesso, sendo que entre 2020 e 2021, a interrupção do tratamento ocasionou mais de 500 mil mortes na África Subsaariana, regredindo aos níveis de mortalidade por AIDS de 2008. Além disso, a falha no tratamento aumentará a dispersão do HIV, a resistência aos medicamentos de primeira linha e, por conseguinte, majorará os custos para o seu tratamento.51 A despeito do fato que as pessoas soropositivas apresentam maior vulnerabilidade aos efeitos da COVID-19, em 2021 a maioria delas não tinha acesso à vacinas. A África Subsaariana, por exemplo, abriga dois terços das pessoas que vivem com HIV, porém, até julho de 2021, menos de 3% dos habitantes de todo o continente africano tinham sido vacinados com pelo menos uma dose da vacina contra a COVID-19.52 Agravando esse panorama, a UNAIDS alertou que o aumento do custo com medicamentos para COVID-19, somado ao grave impacto econômico da pandemia, deixou muitos países com pouca capacidade de arcar com o aumento de custos em seus programas de tratamento do HIV.53
Como resistência à previsível desigualdade no acesso aos imunizantes, mesmo antes do início das vacinações, em 02 de outubro de 2020, Índia e África do Sul apresentaram na OMC uma proposta de suspensão temporária da aplicação de algumas seções do acordo TRIPs em relação a tecnologias para prevenção, contenção ou tratamento da COVID-19. A proposta foi apoiada por mais de 100 Estados-membros da OMC, os quais alegaram que os países ricos e as corporações farmacêuticas não estavam preocupadas com os efeitos perversos da crise sanitária global, mas apenas com a suas receitas. Necessário destacar que a proposição não é isenta de críticas de muitos países, inclusive do Brasil, que argumentam que o regime patentário não seria um óbice ao acesso à vacina e a capacidade de sua fabricação.54 Na proposta, solicitou-se que fosse concedido aos membros da OMC, durante a pandemia, o direito de não implementar, aplicar ou fazer cumprir certas obrigações relacionadas aos produtos e tecnologias de enfrentamento ao COVID-19 nas Seções 1 (Direitos Autorais e Direitos Relacionados), 4 (Desenho Industrial), 5 (Patentes) e 7 (Proteção de Informações não divulgadas) da Parte II do TRIPs.
A despeito dos desafios impostos pelo TRIPs ao acesso a medicamentos essenciais, outro desafio se relaciona a frequente utilização de soft law para a formalização de instrumentos relacionados a este acesso e a RSE. Este tipo normativo apresenta maior informalidade e se expressa principalmente em fontes não tradicionais de normas, como diretrizes, princípios e relatórios, as quais carecem de caráter vinculante. Para Delmas-Marty,55 os instrumentos de soft law tem três características: mole quanto aos efeitos, por não prever sanções para o caso de não cumprimento, fluído quanto ao conteúdo, se compondo de premissas vagas e/ou imprecisas e doce quanto a obrigatoriedade, por não ser cogente. Logo, um instrumento jurídico de soft law pode ser triplamente soft: quanto ao seu conteúdo, obrigatoriedade e efeitos. Jouannet56 argumenta que essas normas e práticas jurídicas são constituídas por regramentos prospectivos e medidas de incentivo ao invés de sanções, razão pela qual o consenso dos diferentes atores envolvidos é sobrevalorizado. Essas normas são a expressão dos diferentes objetivos substanciais, culturais, sociais, econômicos e exprimem o consenso social obtido entre eles num dado momento social e político, razão pela qual são muito mais maleáveis e sujeitas à permanente negociação.57
A débil coercibilidade dessas normas e práticas gera discussão se elas são ou não autênticas normas jurídicas. Por exemplo, Koskenniemi crítica o fato de os juristas insistirem no que ele chama de teste formal de “pedigree” das fontes normativas, responsável por identificar quais standards se qualificam como normas.58 Nessa senda, Kennedy argumenta que o tecido normativo não é uma tapeçaria unificada e coerente, e, sob um prisma so ciológico, se observa o que é lei conforme seus efeitos jurídicos, não sua validade formal,59 de forma que deve se preocupar mais com os efeitos persuasivos de uma norma do que com o seu “pedigree”. Para González,60 o papel persuasivo das iniciativas de soft law consiste no fato de que elas, apesar de não serem dotadas de exigibilidade, podem criar expectativas sociais e modificar comportamentos. Outrossim, devido à sua flexibilidade e fácil adaptação às mudanças, elas são úteis em circunstâncias nas quais o consenso generalizado é inviável ou quando os governos relutam em aceitar obrigações vinculantes. Por outro lado, Rivera61 argumenta que a soft law, por não ser norma jurídica cogente, perpetua a irresponsabilidade dos atores privados em temas globais como RSE, de forma que esse tipo normativo “não jurídico” deveria complementar normas obrigatórias derivadas do direito internacional e dos ordenamentos nacionais. Sobre esses desafios da RSE se discutirá a seguir.
III. Limites e possibilidades da responsabilidade social das empresas farmacêuticas
A aplicação de obrigações em matéria de direitos humanos a empresas continua a ser uma questão não resolvida no cenário global. Para Santoro,62 com a alta dependência das empresas privadas para atender às necessidades de saúde pública, sempre haverá o desalinhamento entre os interesses públicos e privados, de forma que as instituições públicas deveriam instituir limites à atuação das empresas. Abaixo serão debatidos os limites de alguns instrumentos jurídicos de RSE (1) e como o Fundo de Impacto na Saúde propõe conciliar os interesses das empresas com seus deveres sociais (2).
1. Os limites dos mecanismos jurídicos
Em 2000, os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio convocaram vários agentes nacionais e internacionais, públicos ou privados, para compartilhar responsabilidades em relação aos problemas globais. O Objetivo 8 ressaltava a importância de uma parceria global com as empresas farmacêuticas para a promoção do desenvolvimento, cujo fim é viabilizar o acesso a medicamentos essenciais a um preço razoável em países em desenvolvimento. Com o objetivo de evitar que fossem firmados acordos desproporcionalmente favoráveis às empresas farmacêuticas, a Assembleia Geral da ONU editou a Resolução 2001/33, reconhecendo que o acesso à saúde é um dos mais importantes direitos fundamentais e apregoando que os Estados não deveriam tomar medidas que limitassem as condições de acesso aos medicamentos e às tecnologias biofarmacêuticas de prevenção e tratamento de doenças pandêmicas e as infecções frequentes que as acompanham. Dirigida aos Estados e não se referindo a uma conduta empresarial socialmente responsável, a Resolução convocava os Estados a adotarem as devidas medidas em suas legislações com o objetivo de resguardar o acesso a tais medicamentos ou tecnologias preventivas e curativas, assim como estabelecer políticas públicas adequadas para a alocação de recursos que fomentem o acesso à saúde.63
Contudo, Ventura64 argumenta que uma empresa farmacêutica desvinculada de seu propósito social perpetua a centralidade do Estado na concretização do direito à saúde, ignorando as intervenções nas políticas sanitárias que uma empresa farmacêutica poderia e deveria realizar a fim de melhorar o acesso à medicamentos. Essa visão de uma empresa farmacêutica desvinculada de seu propósito social torna o Estado o seu grande cliente, em especial nos momentos de crise sanitária e/ou econômica, aprofundando a abissal assimetria entre os Estados no acesso a fármacos. Daí a necessidade de se desenvolver uma estrutura viabilizadora do delicado equilíbrio entre a preservação dos interesses econômicos e a ampliação do acesso a fárnacos essenciais a preços acessíveis para os mais pobres. A despeito disso, Martin -Chenut65 mostra que a flagrante assimetria entre a responsabilidade dos Estados e a das empresas não é compensada por um direito internacional que promove a responsabilidade proporcional ao poder exercido pelos diferentes atores, ainda que a detenção de um poder tivesse de gerar um dever e, consequentemente, a responsabilidade. Para a mesma autora, a multiplicação de atores deveria implicar na redistribuição de responsabilidades e não na sua diluição.
Face à importância desses atores privados globais que, apesar de não serem reconhecidos como sujeitos do direito internacional, detém poder decisório na arena multilateral, urge-se de uma profunda discussão acerca de como responsabilizá-los.66 Portanto, ainda que a RSE por violações de direitos humanos - seja pela omissão em pesquisar doenças negligenciadas como o Ebola e o Zika,67 pelos lucros exorbitantes,68 por tratar pessoas como cobaias69 ou por não prestar assistência às pessoas que sofrem de doenças tratáveis em países periféricos70 - não seja uma tarefa simples, posto que inexiste um mecanismo jurídico internacional para isso, as políticas de saúde não podem ser dominadas apenas pelo poder econômico. Nesse sentido, a RSE, ainda que não possa curar por completo os “problemas” acima mencionados, poderia ao menos servir de medida paliativa e inicial na implementação de uma nova ética na estrutura corporativa que reconheça deveres que transcendem àqueles devidos aos acionistas e atingem a proteção de todos que são afetados pelas suas atividades, mas não são consumidores.
Como respostas ao sistema patentário, surgiram padrões voluntários de controle dos atores privados como princípios orientadores, diretrizes e códigos de conduta elaborados pelas empresas.71 Tais instrumentos, ainda que possam apresentar um impacto positivo na prática empresarial, carecem de efeitos jurídicos e sua inobservância não gera custos jurídicos, embora a transgressão desses instrumentos possa macular a reputação das corporações e gerar boicotes. Estes instrumentos buscam estimular comportamentos das empresas na medida em que geram uma melhoria da sua imagem perante a sociedade.72
Um primeiro passo na definição da RSE do setor farmacêutico foi o projeto de Diretrizes para os Estados e Companhias Farmacêuticas sobre o Acesso a Medicamentos, idealizadas pelo Relator Especial sobre o direito à saúde do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Paul Hunt, em 2008.73 O projeto objetivava ajudar os Estados e as empresas a entender melhor e cumprir suas responsabilidades relacionadas ao acesso à medicamentos e ao direito à saúde, tratando de temas como sistemas diferenciados de preços, pesquisa e desenvolvimento, parcerias público-privadas e outros assuntos.74
Outro instrumento é a Estratégia Global e Plano de Ação em Saúde Pública, Inovação e Propriedade Intelectual, elaborada em 2008 pelo Grupo de Trabalho Intergovernamental da OMS para Saúde Pública, Inovação e Propriedade Intelectual (IGWG). Nos seus princípios orientadores é definido que a OMS desempenhará um papel estratégico e central na relação entre saúde pública, inovação e propriedade intelectual e ressaltado que o gozo do mais alto padrão de saúde possível é um direito fundamental de todo o ser humano.75 Eles determinam especificamente que a inovação tecnológica e a transferência de tecnologia devem ser realizadas por todos os Estados e apoiadas pelos direitos de propriedade intelectual (Princípio 3), e que os direitos de propriedade intelectual não devem impedir a promoção e o aperfeiçoamento da transferência de tecnologia entre países desenvol vidos e em desenvolvimento, bem como entre países em desenvolvimento (Princípio 4). No sétimo princípio é definido que a OMS deverá garantir e aprimorar mecanismos de financiamento sustentável e fornecer produtos de saúde e dispositivos médicos para atender às necessidades dos países em desenvolvimento. Por fim, a OMS deverá se esforçar para desenvolver mecanismos para monitorar a implementação da Estratégia Global e do Plano de Ação, incluindo sistemas de relatórios.76 A despeito de tais avanços, a Estratégia Global foi alvo de críticas por não estipular medidas concretas para a reforma do atual sistema de inovação fundado nas patentes.77 Contudo, apesar das críticas, ela se voltou para as necessidades de saúde pública dos países em desenvolvimento, incluindo o financiamento e mecanismos de incentivo à criação de novos medicamentos e outros produtos contra doenças que afetam desproporcionalmente esses países.
Em 2019, a Assembleia Mundial da Saúde aprovou a Resolução A72/A/ CONF./2 intitulada “Melhorar a Transparência dos Mercados de Medicamentos, Vacinas e outros Produtos de Saúde”, cujo mérito é reconhecer que para a diminuição dos custos de medicamentos e produtos de saúde, é necessário transparência em toda cadeia produtiva.78 A transparência é necessária para se verificar quanto do investimento em pesquisa e desenvolvimento é oriundo de verbas públicas, assim como para analisar se países em condições socioeconômicas similares estão pagando de forma paritária,79 ou recebem condições distintas.80 Ainda que pouco vinculante, a Resolução avança ao determinar ações a serem realizadas pelos Estados e pelo Secretariado da OMS. Contudo, para que a Resolução seja efetiva, torna-se necessária a implementação nacional e, visando evitar interpretações limitadas do texto que esvaziem o seu conteúdo normativo, é importante que sejam desenvolvidos instrumentos de accountability.81 Entretanto, no recente contexto de COVID-19, valendo-se de sua posição chave, as corporações farmacêuticas impuseram cláusulas de confidencialidade sob a alegação de que assim seria viabilizada uma melhor distribuição das vacinas. Essa justificativa foi refutada pela ineficiente distribuição e despertou preocupação quanto a possibilidade de que uma negociação desvantajosa afetasse tanto a garantia do direito à saúde e a vida, quanto a gestão eficiente e adequada do dinheiro público.82
Face a estes problemas, a OMS, por meio do documento Resposta à COVID, de 19 de maio de 2020, propôs que quaisquer obstáculos injustificados devessem ser removidos e que as flexibilidades do TRIPs deveriam ser reforçadas.83 No mesmo ano, a Assembleia Geral da ONU aprovou duas Resoluções (AGNU 74/270 e AGNU 74/274) enfatizando a necessidade de dimensionar rapidamente a fabricação e fortalecer as cadeias de abastecimento para garantir acesso eficiente, oportuno, justo, transparente e equitativo e distribuição de diagnósticos, medicamentos e vacinas para COVID-19 para todos aqueles que precisassem, em especial nos países em desenvolvimento. Apesar de servirem de base para iniciativas socialmente responsáveis, estas medidas em nada se assemelham de mecanismos jurídicos de responsabilização. Somente por meio destes seriam mais bem definidos os deveres das empresas farmacêuticas de respeitar o direito à saúde reconhecido pelo Comentário Geral 14, Parágrafo 42, do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU.84
Como resposta solidária fruto da articulação de diversos atores públicos e privados orquestrados pela OMS, se desenvolveu o consórcio COVAX (COVID-19 Vaccine Access). O consórcio visou à distribuição de dois bilhões de doses de vacina para COVID-19 em 2021 e integra o eixo de vaci nação do programa ACT-Accelerator, financiado por fundos de investimento, como o Fundo Monetário internacional (FMI), associações filantrópicas, dentre elas a Fundação Bill e Mellinda Gates, e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).85 O Serum Institute of India é o maior fornecedor individual da Covax, sendo responsável por cerca de metade das vacinas do consórcio. No entanto, ele não realizou remessas ao consórcio nos meses de março, abril e maio de 2021 e o déficit estimado de entrega era de 190 milhões de doses até o final de junho daquele ano. O governo indiano, destacou que seria improvável que o país retomasse as exportações de grandes volumes de vacinas até pelo menos, outubro, já que os imunizantes estavam sendo usados para minorar a crise sanitária local.86
Tal óbice é um dos múltiplos exemplos que corroboram a crítica de Nasser e Papy87 de que o COVAX seria uma iniciativa limitada de governança sanitária com aspiração global, reduzida a mais um fórum de cooperação multilateral, no qual diversos atores visaram precipuamente seus próprios interesses, inviabilizando uma resposta coletiva a um problema coletivo. Resta claro que, no combate à COVID-19, tal como ocorre no combate ao HIV/AIDS, persiste a posição privilegiada de alguns Estados nas políticas de acesso a medicamentos, assim como das multinacionais farmacêuticas, que priorizarem os seus ganhos financeiros sobre a sua responsabilidade social. Do mesmo modo, persiste a ausência de efetiva fiscalização e de qualquer sanção a esses atores e com isso são evidenciados os limites da atuação do Estado no exercício da sua autoridade.88 Face a estes desafios no compartilhamento de responsabilidades na governança sanitária global, acadêmicos e formuladores de políticas prospectaram alternativas para proteger o direito à saúde e o acesso aos medicamentos essenciais. Uma dessas alternativas será discutida a seguir.
2. O Fundo de Impacto na Saúde
Para Pogge, o acesso desigual a medicamentos essenciais é um exemplo de injustiça global, decorrente de um conjunto articulado de instituições e práticas internacionais e domésticas que tutelam os interesses do Norte global contra os interesses do Sul.89 Na sua perspectiva, a desigualdade no acesso não é explicado a partir da ação e reação de sujeitos individuais e coletivos, mas a partir da estruturação institucional das relações internacionais, de forma que todos e todas que direta ou indiretamente participam desse sistema, compartilham algum grau de responsabilidade pelas suas consequências.90
Face ao caráter incipiente dos marcos jurídicos de RSE, e assumindo a sua parcela de responsabilidade pelo desigual acesso a medicamentos essenciais, Pogge propôs a criação do Fundo de Impacto na Saúde como uma possível forma de conciliar os interesses empresariais com a RSE das empresas transnacionais farmacêuticas.91 O Fundo nasceu para contrapor a ideia de que o direito humano à saúde é reduzido a um dever fraco de caridade ou assistência que não contesta os atuais padrões de desigualdade social. Alias, apesar do resguardo da inovação por meio de patentes, é difícil argumentar que o acesso a um medicamento que salva vidas deve ser excluído de corpos de pacientes pobres por causa do alto preço decorrente do monopólio estabelecido pelo fabricante para recuperar seus investimentos. Face a essa primazia dos interesses empresariais, Pozzatti questiona: “qual é o valor das convenções internacionais que garantem padrões mínimos de direitos humanos se essas mesmas regras não preveem seu primado ou pelo menos sua compatibilidade com as regras de investimento?”.92
Para que o direito à saúde não permaneça como uma expressão idealista de um objetivo intangível, Koski93 considera que medidas podem e devem ser tomadas na direção desta compatibilização, e argumenta que, para que mudanças significativas e de longo prazo ocorram, exige-se um realinhamento de responsabilidades por meio do incentivo de boas práticas sem olvidar os interesses econômicos das empresas. Nessa senda, Pogge94 considera que declarações, princípios, conferências ou financiamento e entrega de medicamentos por meio de iniciativas intergovernamentais, programas governamentais, parcerias público-privadas, pool de patentes95 e doações de medicamentos de empresas farmacêuticas, não bastam.
Para que haja uma mudança efetiva e evitados os efeitos letais decorrentes do acordo TRIPs, o referido autor defende que os governos passem a compensar as empresas farmacêuticas por qualquer medicação nova na proporção de seu impacto sobre a carga global de enfermidades, por meio de um Fundo de Impacto na Saúde, sob a condição de que o inventor permita que outras empresas produzam livremente a medicação e a comercializem a preços competitivos. Ao envolver reformas institucionais, essa solução é mais sistêmica e capaz de lidar com a crise global de saúde em sua raiz. Para mobilizar os atores necessários à sua construção e viabilizar o acordo político, Pogge destaca como principais desvantagens do atual regime global de patentes o alto preço, a negligência de doenças concentradas em regiões pobres, a tendência à produção de medicamentos pouco inovadores ou de manutenção (isto é, os de uso contínuo, e não de cura ou preventivo) e o marketing excessivo, quando comparado a pesquisa e desenvolvimento.96Segundo Pogge,97 um primeiro passo seria realizar uma reforma jurídica que compreenda seis elementos: (1) fornecer reais incentivos à inovação; (2) recompensar os medicamentos com base no impacto na saúde humana, e não com base na demanda do mercado; (3) as recompensas disponíveis devem estar ligadas não ao quanto um medicamento é eficaz, mas quais são os seus efeitos globais; (4) esse mecanismo deve atrair inovação e angariar os esforços necessários para garantir efetivo acesso a novos medicamentos à nível mundial; (5) para viabilizar o acesso real aos medicamentos, as recompensas pelo impacto na saúde, devem exigir, como condição, que o preço de venda do medicamento não seja superior ao menor custo possível de produção e distribuição; e (6) as recompensas do impacto na saúde devem ser financiadas pelos governos como um bem público.
Para consubstanciar essas características em uma proposta, Pogge98 sugere a criação de uma nova agência internacional que recompense toda inovação farmacêutica conforme seu impacto na saúde durante a primeira década posterior ao seu lançamento, de forma que o Fundo recompensaria o desenvolvimento de novos medicamentos de alto impacto sem excluir os pobres da fruição de seus benefícios. O financiamento do Fundo seria feito mediante contribuições proporcionais às respectivas rendas nacionais brutas dos Estados membros, por três razões: (1) as contribuições dos vários países parceiros são ajustadas automaticamente de maneira a acompanhar seu enriquecimento e empobrecimento, (2) essa organização evita discussões acerca das proporções de contribuição e (3) assegura a todos os países que qualquer custo extra seja proporcionalmente suportado por todos os outros Estados membros.99
Pogge100 sustenta que se todos os países concordassem em participar do Fundo, cada um deles contribuiria com menos de 0,01% de sua renda nacional bruta nos primeiros U$$ 6 bilhões. Para o mesmo autor, esse montante, além de ser mitigado pelo amplo acesso aos medicamentos registrados no Fundo, é irrisório quando comparado ao seu impacto gigantesco, por ser uma solução sistêmica e completa para os diversos problemas que permeiam o atual sistema patentário, acima discutido. Sopesando esses benefícios, Pogge considera a criação do fundo um caminho politicamente realista a ser seguido em prol da proteção dos pobres sem ignorar os interesses empresariais.
Na proposta, o proprietário de uma patente que tenha obtido autorização de mercado em pelo menos um país poderá optar por ingressar no Fundo por um período de até dez anos, com a condição de que não venderá o medicamento por valor superior ao custo médio de fabricação e distribuição.101 Em troca, ele será remunerado pelo Fundo conforme os benefícios clínicos alcançados pelo medicamento em comparação com outros fármacos registrados. No final do período de dez anos, se o medicamento ainda estiver patenteado, o proprietário deverá oferecer uma licença isenta de royalties de modo a permitir que o medicamento seja fabricado e vendido por terceiros. Optando ou não pelo Fundo, a empresa continua a possuir a patente original.
Como a remuneração seria conforme o impacto na saúde, as empresas teriam um motivo para garantir que o medicamento certo chegue ao paciente certo, na dose certa e no momento certo. Ademais, por não requerer alterações substanciais na estrutura de proteção ou licenciamento de propriedade intelectual, o Fundo possivelmente levaria a relacionamentos mais cooperativos e menos litigiosos, gerando menos despesas jurídicas, entre proprietários de patentes e fabricantes de genéricos. Isso porque os proprietários teriam menos probabilidade de recusar licenças razoáveis e os fabricantes de genéricos seriam menos propensos a violar os direitos de propriedade patentária.102 Ao defender o Fundo, Pogge não ignora que a “linguagem do dinheiro” é necessária para que se convença os atores privados da necessidade de incluir em suas políticas corporativas os problemas dos mais pobres. Contudo, Lidell103 questiona se as empresas teriam interesse em participar de algo novo, dado que o atual sistema já lhes concede diversos privilégios, e defende a necessidade de uma mudança cultural, em especial dos financiadores de pesquisa, para que sejam atingidos objetivos de longo prazo.
De fato, a construção de um novo ethos socialmente mais responsável no campo da saúde global é pressuposto para que mudanças efetivas ocorram. Por outro lado, como destacam Olsen e Santana,104 apesar de a vantagem econômica não poder ser o eixo basilar do respeito aos direitos humanos, é necessário valer-se dela como um “chamariz para o diálogo com as empresas”, abrindo espaço para processos transformadores que possam viabilizar a “promoção de atividades empresariais focadas na geração de valor social”, não na qualidade de filantropia, mas do atento dever de respeito aos direitos humanos. O Fundo parece contribuir para a construção de novos horizontes viabilizadores do equilíbrio entre os diversos interesses envolvendo a temática.
IV. Considerações finais
Este trabalho analisou criticamente a governança sanitária global e verificou que, nos moldes atuais, ela reduz a responsabilidade das empresas farmacêuticas a de gerar lucro, deixando o setor público como o único responsável pela resolução dos problemas sanitários locais, ainda que o papel do Estado seja cada vez mais redimensionado face a multiplicação das fontes, dos processos e dos atores influentes na sociedade internacional. Como as medidas tomadas pela comunidade internacional em prol do acesso a medicamentos essenciais são fundadas precipuamente em soft law -em contraposição a hard law dos instrumentos protetivos do comércio e do regime de propriedade intelectual- manteve-se um ambiente de negócios e a própria governança sanitária global adequado às necessidades do capital transnacional.
Verificou-se que, por serem mole, fluído e doce, os instrumentos de soft law permitem que novas formas indiretas de autoridade sejam propagadas transnacionalmente. Da mesma forma, a agência de uma pluralidade de atores não-estatais faz com que linhas de responsabilidade global sejam quebradas, ao mesmo tempo em que o potencial de resistência a esta mesma ordem institucional, por outros atores, seja diluído. Daí a importância de arrojados projetos institucionais operados pela cooperação de diversos atores domésticos e internacionais, públicos e privados, como o Fundo de Impacto na Saúde, que, se por um lado não é imune a críticas de diversas naturezas, por outro, é um primeiro passo necessário para prospectar um mundo menos desigual. A proposta nos convida a repensar o ambiente de negócios e o sistema regulatório, pois, do mesmo modo que o mercado não pode resolver todos os problemas sociais, o setor público também não precisa ser visto como a única resposta para problemas contemporâneos. Nesse sentido, a combinação de esforços públicos e privados, quando reunidos para alcançar objetivos claros e compartilhados em prol do direito humano à saúde, fornece uma força poderosa que excede a soma de seus esforços separados.
Analisados os atores, os fatores e os processos da governança sanitária global, e como eles interagem com o hard e o soft law, conclui-se que, para a sua transformação sistêmica e a redução da desigualdade no acesso a medicamentos essenciais, são necessárias reformas estruturais. E mais do que isso, a pulverização da RSE não precisa ser vista com um fim em si, mas como uma etapa em um processo para o reconhecimento de que cada setor da sociedade, cada instituição e cada indivíduo com potencial para promover a saúde global detém um papel importante e uma responsabilidade social.