Introdução
Inserindo-se no debate social e acadêmico acerca da democratização, interculturalização e descolonização da universidade, o presente trabalho tem como objetivo problematizar como tem se dado o processo de in/exclusão educacional de estudantes indígenas Kaingang no ensino superior público brasileiro, focalizando a importância e o lugar assumidos pela interculturalidade nesse processo. Para tanto, parte da análise das narrativas produzidas por cinco mulheres Kaingang1 matriculadas no “Curso Interdisciplinar em Educação do Campo: Ciências da Natureza, Licenciatura”, ofertado pela Universidade Federal da Fronteira Sul/UFFS, Rio Grande do Sul, Brasil, uma instituição de ensino superior pública criada pela Lei Nº 12.029, de 15 de setembro de 2009, e organizada no formato “multicampi” (total de cinco campi distribuídos por municípios dos três estados da região Sul do Brasil: Chapecó/Santa Catarina; Laranjeiras do Sul e Realeza/Paraná; Cerro Largo e Erechim/ Rio Grande do Sul).2
As narrativas foram produzidas em situação de entrevista individual e grupal e possibilitaram a identificação dos sentidos que as participantes da pesquisa conferem à experiência universitária e à interculturalidade nela praticada e/ou aspirada. A entrevista grupal realizada com as cinco estudantes (doravante designados pelos nomes fictícios Rosa, Açucena, Dália, Violeta e Iris3) teve aproximadamente três horas de duração, enquanto as entrevistas individuais, conduzidas com três delas (as que puderam participar dessa segunda etapa do trabalho) duraram cerca de uma hora e meia cada. Ainda em relação às entrevistadas, cabe informar que são todas oriundas de aldeias indígenas localizadas no norte do estado do Rio Grande do Sul (aldeias Kandóia/ Votouro - Benjamin Constant/RS), Ligeiro - Charrua/RS) e Serrinha - Nanoai/ RS). Com média de idade de 22 anos, variando entre 19 e 24 anos, elas representam bem o perfil da maioria dos/as estudantes que frequentam o Curso de Educação do Campo da UFFS, uma vez que dos 143 alunos/as com matrícula ativa no curso no ano em que foi realizada a pesquisa (2020), 123 eram indígenas e, entre estes/as, havia 70 mulheres na faixa etária dos 19 aos 58 anos (idade média de 31 anos, sendo que 65% das estudantes indígenas possuem menos de 35 anos).
Acolhendo a sugestão feita, no contexto de entrevista individual, por uma das participantes da pesquisa (Violeta), optamos por realizar também a análise de um documentário que reúne depoimentos de quatorze estudantes indígenas de diferentes fases do Curso de Educação do Campo/UFFS. Trata-se do documentário “Vozes do horizonte”, produzido pelo curso e lançado em 2020. Com acesso disponibilizado no site da universidade4, ele expõe situações e narrativas nas quais os/as estudantes, protagonizando a realização das gravações, falam de si e da vida nas aldeias em que moram, ao mesmo tempo em que revelam como é sua relação com a universidade. Esses depoimentos registrados abordam questões também reportadas pelas entrevistadas, possibilitando aproximações e contrastes entre os dados obtidos em uma e outra fonte de pesquisa. Por fim, cabe esclarecer que “Vozes do horizonte” (2020) está sendo tomado como uma fonte documental. Partimos do entendimento de que o documento representa uma fonte valiosa de dados e “... muito frequentemente, ele permanece como o único testemunho de atividades particulares ocorridas num passado recente” (Cellard, 2008, p. 295).
Em relação à análise dos dados obtidos, uma vez realizadas as entrevistas, procedemos com a transcrição e análise de conteúdo (Bardin, 1977) dos dados audiogravados. Foram realizadas diversas leituras do material, procedendose, num segundo momento, com a organização do texto em unidades de análise (eixos temáticos), para sua posterior descrição e interpretação. O cotejamento dos dados analisados com a revisão da literatura especializada, tendo em perspectiva os objetivos propostos para a pesquisa e o referencial teórico adotado, constituíram outra etapa importante do processo que, uma vez concluída, possibilitou a produção destes escritos. O material videogravado (documentário referido anteriormente) foi analisado da mesma maneira.
No que concerne à fundamentação teórico-metodológica, a pesquisa se apoia na concepção de identidade narrativa proposta por Paul Ricoeur, que pensa a constituição identitária em sua relação com a alteridade. A partir do referencial ricoeriano, entendemos que as experiencias educativas, entre outras, são construídas na relação que cada sujeito estabelece com seus outros significativos e com seu mundo de cultura (Ricoeur, 1995, 2009, 2010). Dessa forma, a elaboração de narrativas, assim como a construção identitária, é um processo intersubjetivo, possibilitado pelas experiências que nascem a partir do diálogo com o outro, seja no contexto de interações que tomam a forma de cooperação seja nos que se apresentam como competição ou luta5 (Ricoeur, 2010, p. 98). A análise apresentada sobre o lugar ocupado pelos povos indígenas em nossa sociedade e nas universidades também se baseou em contribuições dos estudos pós-coloniais em diálogo com os estudos decoloniais latino-americanos, assim como produções de intelectuais indígenas brasileiros.
A seguir, são apresentadas as principais contribuições teórico-conceituais que nortearam o trabalho e, na sequência, a discussão dos resultados da pesquisa, finalizando-se o artigo com breves considerações finais.
Os povos indígenas na sociedade brasileira e no ensino superior
No Brasil, a ampliação do acesso à educação pelos grupos considerados socialmente vulneráveis tem sido objeto de interesse e debate social crescente, especialmente ao longo das últimas décadas, quando se intensificaram as investidas do Estado em prol da concretização da universalização do acesso à educação condicionada à ampliação da obrigatoriedade escolar. Documentos legais como a Constituição Federal, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei no 9.394/1996) e o Plano Nacional de Educação 2014-2024 (Lei no 13.005/2014) registram a preocupação em garantir, em lei, esse direito. Também vimos constituir-se, no período das últimas décadas, o reconhecimento, pelo ordenamento jurídico brasileiro, de demandas e reivindicações feitas pelos povos indígenas nessa esfera, as quais resultaram em conquistas no campo dos direitos coletivos. Essas conquistas derivaram, portanto, de mobilizações políticas cuja força e voz se fizeram notar sobretudo em função do protagonismo dos movimentos indígenas que se fortaleceram a partir das décadas de 1980 e 1990 (Cohn, 2001; Cohn e Dal Bó, 2016).
Não obstante os importantes avanços e conquistas, proporção considerável dos indígenas brasileiros são alvos, na atualidade, de exclusão social, sendo esta última entendida como “a impossibilidade de um grupo social participar plenamente das esferas social, política, cultural e econômica da sociedade” (Oakley, 2001 citado por Hooker, 2006, p. 91). Ainda conforme Hooker (2006, p. 92), as desigualdades socioeconômicas enfrentadas por esses sujeitos, de forma similar ao que ocorre com grupos indígenas de outros países latinoamericanos e com os afrodescendentes, não derivam apenas da “exclusão histórica”6 a qual foram submetidos no passado, mas de um “processo ativo e presente de discriminação racial”, alimentado por fatores que tendem a perpetuar a situação de vulnerabilidade socioeconômica que os atinge, a exemplo da falta de acesso a bens e serviços sociais básicos (educação, saúde etc.) e de oportunidades de trabalho que lhes proporcionem uma renda digna.
Complementando essa análise, podemos entender que às marcas deixadas pela exclusão histórica, proporcionada pelo colonialismo, somam-se as limitações impostas pela colonialidade/modernidade 7 (Quijano, 2009), ou seja, um conjunto de processos essenciais à manutenção da estrutura de poder capitalista eurocentrada, os quais têm por base a adoção de critérios racistas/etnicistas para o estabelecimento de relações de dominação, exploração e conflito entre diferentes nações, culturas, grupos sociais etc. O protótipo de seu funcionamento, segundo Quijano (2009), nasce no final do século XV, com a colonização das Américas, como forma de atender às necessidades do capitalismo, tanto no plano econômico e social, quanto no cognitivo.
No sistema de poder capitalista, a distribuição desigual de recursos materiais e simbólicos entre a população mundial é justificada e tem sua perpetuação garantida graças a processos de classificação social que se alimentam de hierarquizações (de classe, de gênero, raciais, sexuais, geográficas, linguísticas, epistemológicas, entre outras) produzidas em consonância com o projeto da modernidade e afirmadas como naturais. Assentadas na lógica binária ou dicotômica, estruturada geralmente em torno de dois polos (homem/mulher; branco/indígena; civilizado/selvagem, por exemplo), essas hierarquias encaixam, no polo hegemônico, a figura do homem branco/ ocidental-europeu/cristão/cis heterossexual, considerado superior; e, no lugar de subalternidade, todos aqueles tidos como diferentes e inferiores em relação ao polo hegemônico: mulheres, indígenas, afrodescendentes, orientais, não-cristãos, não-heterossexuais etc. (Quijano, 2009; Lugones, 2014; Mignolo, 2020).
Em diálogo com a teorização produzida por Quijano, Mignolo (2020, p. 36) nomeia como “diferença colonial” essa classificação da população mundial operada pela colonialidade do poder. Conforme argumenta o autor, relegar ao lugar de subalternidade esses “outros” e seus conhecimentos/experiências é o que possibilita a constituição da Modernidade, assim como, do ponto de vista epistêmico, também o faz a interpretação do saber e das histórias locais europeias como projetos globais, posicionando a Europa como referência central do/para o mundo. O eurocentrismo torna-se, dessa maneira, “uma metáfora para descrever a colonialidade do poder, na perspectiva da subalternidade” (Mignolo, 2020, p. 41).
Outra questão fulcral é a existência, subjacente às hierarquias e dicotomias constitutivas do discurso moderno/colonial, de uma concepção de humanidade que não apenas naturaliza diferenças sociais como as citadas, mas também as converte em desigualdades. É o que ressalta Lugones (2014), ao agregar novas considerações à análise proposta por Quijano, empregando o termo colonialidade para também designar “o processo de redução ativa das pessoas, a desumanização que as torna aptas para a classificação, o processo de sujeitificação e a investida de tornar o/a colonizado/a menos que seres humanos” (Lugones, 2014, p. 239).
Ao contemplar a posição dos/as indígenas brasileiros/as nesse cenário, interessanos problematizar as experiencias que eles/as têm podido acessar e construir no/a partir do contexto universitário. Para tanto, precisamos levar em conta não apenas o quadro social e histórico mais abrangente, descrito anteriormente, mas questões específicas relacionadas ao ensino superior brasileiro na atualidade. Desse modo, cabe assinalar que as iniciativas voltadas à efetivação do ingresso e permanência de estudantes indígenas nas universidades de nosso país começaram a ser, de fato, implementadas apenas recentemente (a partir da década de 1990), podendo ser caracterizadas como uma “política pública nascente” em nosso país, especialmente quando consideramos a presença dos indígenas no ensino superior público (Bergamaschi et al., 2018, p. 38).
Ademais, qualquer política pública é construída “entre divergências e esforços de convergências no ambiente democrático” (Jardim et al., 2009, p. 15), dependendo do protagonismo de diversos atores sociais participantes do debate político para se tornarem realidade ou, como afirma Munduruku (2012) ao se referir especificamente ao caso dos direitos dos povos indígenas, dependendo da ação coordenada dos “indígenas em movimento”, do “Movimento Indígena” e de outros segmentos de nossa sociedade. Afinal, está previsto na Constituição de1988 (Brasil, 1990) o reconhecimento dos indígenas como cidadãos brasileiros, sem que isso implique o apagamento de suas diferenças (cultural, étnica, epistêmica, etc.) ou a negação de seu direito à diferença. Mas a realidade, sendo complexa, nos confronta com a grande distância ainda existente entre a promulgação das leis e sua plena efetivação.
No contexto das discussões que tematizam os aspectos históricos relacionados à escolarização indígena e aos avanços legais conquistados ao longo das últimas décadas, os quais amparam o acesso dessa parcela da população brasileira ao ensino superior, tem sido dirigida atenção crescente aos processos de afirmação étnica associados à presença de indígenas no espaço acadêmico. Questão que integra um debate emergente alimentado também por pesquisadores indígenas de diversas etnias (Duarte, 2017; Freitas, 2008; Munduruku, 2012, 2020, entre outros).
Assim como identificado por estes e outros estudiosos do tema (Sguissard, 2015; Heringuer, 2018), não podemos perder de vista o fato de que, no Brasil, a democratização do ensino superior constitui um projeto/promessa cuja efetivação é colocada em xeque cotidianamente por diferentes desafios e estes afetam a forma como vem se desenhando a relação dos povos indígenas com a questão. A promulgação da Lei Federal n° 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas, que prevê a reserva obrigatória de vagas, nas instituições federais de ensino superior e técnico, para alunos egressos de escolas públicas, de baixa renda e autodeclarados negros ou indígenas (Brasil, 2012) foi um passo importante nessa direção, assim como outras ações do Estado, anteriores e paralelas a esta, que se destinaram a propiciar o ingresso de estudantes indígenas nesse nível de ensino. Vale citar aqui, a título de exemplo, a criação, pelo Ministério da Educação (MEC), de licenciaturas interculturais específicas, como o Programa de Licenciaturas Interculturais Indígenas (Prolind), bem como a reserva de vagas em cursos regulares, de modo a promover a formação de professores indígenas (Amaral e Baibich, 2012; Bergamaschi et al., 2018).
Mas importa, na mesma medida em que aclamamos os avanços, identificar o que precisa ser mudado na estrutura basilar do modelo de universidade hegemonicamente adotado no país, que ainda se orienta pelo “colonialismo educacional” (Fernandes, 1975, p. 80) e se caracteriza essencialmente pela dependência do país em relação aos referenciais externos, como ocorrido na esfera econômica. É sabido que desde a criação das primeiras universidades8 brasileiras, instituiu-se um padrão de organização e funcionamento do sistema de ensino superior que propicia que as elites ocupem espaço nesses contextos e neles obtenham alguns dos recursos de que precisam para manter seus privilégios.9 Exemplos disso podem ser encontrados na forma como são conduzidos os processos seletivos/exames vestibulares nacionais, estruturadas as grades curriculares dos cursos de graduação ou (des)valorizadas as experiências e saberes dos representantes dos grupos subalternizados (estudantes indígenas, negros, oriundos das camadas populares etc.) que ingressam na universida-de. Estes “tem sido recorrentemente inferiorizados, desqualificados, considerados, e por que não figurados, como primitivos e improdutivos em relação a um modelo de sociedade específica que se quer prescrever” (Mayorga et al., 2010, p. 33). Processo que certamente guarda relação, num plano macrossocial, com a perpetuação de diversas hierarquias e desigualdades que integram a trama social brasileira.
Essa configuração do cenário do ensino superior brasileiro, a qual tem sido cada vez mais problematizada nos debates sociais e acadêmicos recentes sobre o processo de democratização da universidade, não deve ser tomada como estanque e rígida, sob pena de desacreditar a própria viabilidade da democratização. Ademais, “os poderes coloniais não determinam uma história única sobre a universidade no Brasil” (Mayorga et al., 2010, p. 33) e, contemporaneamente, vemos emergir, em função de fenômenos como a globalização, mudanças significativas nos diálogos entre presente e passado (dinâmicas sincrônicas e diacrônicas), global e local, com repercussões inéditas sobre a própria experiencia educativa. Em outras palavras, as sociedades ocidentais são diaspóricas e têm sido marcadas por um intenso processo de fragmentação identitária, no seio do qual ocorre a produção de identificações plurais e híbridas, assim como a emergência de novos padrões/arranjos para a construção das trajetórias biográficas, participação nas relações sociais e adesão ou contestação a projetos políticos mais abrangentes (Hall, 2003, 2011, 2015, 2016).
Se, nesse contexto de disputas de narrativas e exacerbação dos conflitos, resistências e negociações em torno das identidades, novas possibilidades estão sendo forjadas, cabe indagarmos sobre como e com que/quem se identificam os/as indígenas que estão chegando às universidades. Que imagens desses sujeitos têm sido projetadas na e para além da universidade? De que modo vêm construindo e expressando seus sonhos, projetos e realizações?
Na universidade sobre a qual falam os/as participantes desta pesquisa, especialmente no âmbito do “Curso Interdisciplinar em Educação do Campo: Ciências da Natureza - Licenciatura”, que é um dos que mais conta com estudantes indígenas no corpo discente, tais questões parecem estar sendo discutidas por dentro do projeto político pedagógico do curso, no planejamento coletivo, feito por professores e gestores, dos componentes curriculares a serem ministrados, em atividades que possibilitam momentos de diálogo entre estudantes e professores para além da sala de aula, conforme discutiremos mais detalhamente na próxima seção do artigo.
A título de contextualização, vale lembrarmos que tanto o referido curso como a universidade que o oferta à comunidade nasceram num contexto de reivindicações sociais e lutas políticas para que o ensino superior se “interiorizasse” na região, ou seja, alcançasse, pela inclusão educacional, a população do interior do estado do Rio Grande do Sul que, até a criação da Universidade Federal da Fronteira Sul/UFFS, era, em grande parte, desassistida pelo poder público nessa esfera. Como revela o projeto pedagógico do Curso Interdisciplinar em Educação do Campo, Campus Erechim,
A história da Universidade Federal da Fronteira Sul começa a ser forjada nas lutas dos movimentos sociais populares da região. Lugar de denso tecido de organizações sociais e berço de alguns dos mais importantes movimentos populares do campo do país, tais características contribuíram para a formulação de um projeto de universidade e para sua concretização. Entre os diversos movimentos que somaram forças para conquistar uma universidade pública e popular para a região, destacam-se a Via Campesina e Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar da Região Sul (Fetraf-Sul) que assumiram a liderança do Movimento Pró-Universidade (Projeto pedagógico do Curso Interdisciplinar em Educação do Campo, 2013, p. 10).
Do nosso ponto de vista, um dos papéis centrais de qualquer universidade que se afirme como pública e democrática é apostar na concretização de um projeto de emancipação epistêmica dos/as estudantes e dos/as profissionais da educação que integram sua comunidade acadêmica, sem perder de vista as relações com a sociedade mais ampla (famílias, movimentos sociais, associações, sindicatos, organizações políticas populares etc.). Mas para que esse projeto se torne realidade, faz-se necessário investir, como defendem Oliveira e Candau (2010), na:
coexistência de diferentes epistêmes ou formas de produção de conhecimento entre intelectuais, tanto na academia, quanto nos movimentos sociais, colocando em evidência a questão da geopolítica do conhecimento... Nesse processo, também se encontra a estratégia da interculturalidade como princípio que orienta pensamentos, ações e novos enfoques epistêmicos. O conceito de interculturalidade é central na (re)construção do pensamento-outro. A interculturalidade é concebida, nessa perspectiva, como processo e como projeto político (Oliveira e Candau, 2010, pp. 23-25).
Sob inspiração dos argumentos desses autores e considerando o escopo da presente pesquisa, podemos afirmar que urge problematizarmos o legado da colonialidade e suas incidências no universo da educação escolarizada (escolas de educação básica e universidades). Faz-se premente também desconstruirmos concepções e práticas que, nestes contextos e a partir deles, ainda hoje contribuem para silenciar os sujeitos que produzem conhecimentos “outros”, negando a importância de seus saberes e invisibilizando suas identidades e culturas. A interculturalidade pode figurar, nesse contexto, como uma ferramenta valiosa, “como princípio que orienta pensamentos, ações e novos enfoques epistêmicos”, sendo necessária “na (re)construção do pensamento-outro”, se entendida “como processo e como projeto político” (Oliveira e Candau, 2010, p. 25).
Com base no que postula Walsh (2001, 2005, p. 25), Oliveira e Candau (2010) defendem, nesse sentido, a prática de um “posicionamento crítico de fronteira” na diferença colonial, isto é,
um processo em que o fim não é uma sociedade ideal, como abstrato universal, mas o questionamento e a transformação da colonialidade do poder, do saber e do ser, sempre tendo consciência de que estas relações de poder não desaparecem, mas que podem ser reconstruídas ou transformadas, conformando-se de outra maneira (Oliveira e Candau, 2010, p. 25).
Resultados e discussão
Uma importante questão que emergiu nas narrativas produzidas pelas/os estudantes indígenas com quem tivemos a oportunidade de dialogar durante a pesquisa aqui apresentada foi a descrição da universidade como um espaço que lhes tem oportunizado a construção de novos vínculos de pertencimento e de experiências interculturais que marcam positiva ou negativamente suas identidades pessoais e acadêmico-profissionais: seja no contexto das interações ocorridas com outros estudantes indígenas de comunidades e/ ou etnias distintas das suas, e com estudantes e profissionais da educação não indígenas; seja nas experiências que ultrapassam os muros da universidade, mas cuja vivência se torna possível a partir da condição de estudante universitário, como, por exemplo, as viagens de estudos para outras localidades, inclusive fora do estado e/ou do país, os estágios, as pesquisas de campo etcetera.)
Na conversação estabelecida na entrevista em grupo, as participantes da pesquisa destacaram que tipo de experiências vividas na/a partir da universidade permitiram a elas se sentirem verdadeiramente incluídas educacional e socialmente. Foi citado o exemplo dos/as professores/as que propuseram apresentações orais de trabalhos acadêmicos pelos/as estudantes indígenas em suas línguas nativas, para que pudessem partilhar com os/as colegas parte significativa de seus universos culturais de referência. Do mesmo modo, houve também a iniciativa, por parte de algumas turmas, de realizar visitas a aldeias/reservas indígenas da região. As entrevistadas destacaram, ao refletir sobre essas experiências educativas, como a universidade pode proporcionar um maior acolhimento às/aos estudantes indígenas praticando a interculturalidade e reconhecendo que o contexto universitário, por ser muito distinto da realidade cotidiana por elas vivida em suas comunidades, acaba sendo visto/sentido como “hostil” (palavra empregada por Rosa) em vários sentidos.
A convivência ou aproximação com o outro - marcada pela possibilidade de se comunicar na língua nativa e se familiarizar com o português, o polonês, o italiano, o espanhol etc.,10 compartilhando alimentos e artesanatos trazidos de casa, ajudando colegas e sendo ajudados por eles nas atividades acadêmicas, construindo amizades, fazendo visitas às aldeias/reservas e a espaços culturais da cidade, entre outras ações igualmente valorizadas - foi reconhecida, pela maioria, como uma fonte de conhecimentos e aprendizados relacionais e sociopolíticos. E mais: como uma possibilidade de vivenciarem, no ambiente universitário, a valorização de suas identidades, corpos, saberes e culturas, bem como o encontro com outros referenciais identitários, corporais, epistêmicos, culturais etc. Um encontro que pode ser (trans)formador para todos.
No contexto dessa discussão, a questão da identificação cultural foi abordada quando algumas das entrevistadas narraram o orgulho que sentem da cultura Kaingang, expressando o desejo e o compromisso que assumem para si mesmas de mantê-la viva. Considerações sobre a importância da língua Kaingang para o processo de construção de suas identidades pessoais e profissionais, assim como para a preservação da cultura indígena, foram trazidas à tona no diálogo abaixo, no qual as entrevistadas aprofundam a discussão sobre os motivos pelos quais sua língua materna11 tem sido cada vez menos falada. Ao longo do diálogo, elas não deixam de problematizar o teor das mudanças que, na atualidade, afetam a transmissão desse legado linguístico e cultural às gerações futuras.
Rosa: A língua, por mais que esteja se perdendo, ainda tá viva. E é algo que nos identifica, né? Tem vários mo tivos que levam a pessoa…
Pesquisadora: E quais seriam esses motivos?
Dália: Uns pode ser quando a criança nasce os próprios pais não ensinam. Pode ser um dos motivos. Ou, por exemplo se, algum do casal, o homem ou a mulher casa com um não indígena, isso acaba influenciando também, porque o parceiro ou a parceira, ou sendo não indígena, não autoriza o pai falar com a criança.
Iris: A maioria das qualidades já estão sendo... os indígenas já estão nascendo mais pra mestiçagem, né? misturado agora (risos)
Dália: E tem uns que já falam se for a índia a casar com não indígena, essa sim ela vai poder passar, porque a mãe fica o dia inteiro com o filho. No meu caso, eu ia fazer a mesma coisa, porque eu sou casada com um não indígena. (risos)
Iris: Vocês, na reserva de vocês é assim? tipo, lá na nossa se uma indígena chega a casar com um branco ela não pode levar ele a morar lá, e se é um indígena que casa com uma branca ela pode ir la morar, eles aceitam.
Dália: Isto.... Eu pretendo passar tudo [para os filhos] porque ele já experimentou a nossa comida típica e gostou, imagina pro filho, então? eu pretendo passar tudo que é da minha cultura. Quando eu vou lá na mãe eu já falo, né, que eu quero comer só a nossa comida típica (risos). É o que eu sempre falo quando vou passear lá.... passar adiante, daí fortalece mais a cultura ainda, né?
(Entrevista grupal - março/2020)
Açucena: É importante manter viva a nossa cultura, né? A minha própria mãe sabe fazer e nunca me ensinou a fazer artesanato. Eu me interessava. Quando eu era pequena ficava em cima dela incomodando para ela me ensinar a fazer o balaio. Não me ensinou (risos). Ai quando eu vejo alguém fazendo eu tenho aquele desejo de ficar em cima mexendo com as taquaras. Mas eu não sei fazer. Eu também acho muito lindo os artesanatos.
Iris: É um serviço, né? Muitas vezes o indígena que vende esse tipo de trabalho passa a ser olhado com olhar diferente. Às vezes ele é chamado até de vagabundo, mas não é isso. O indígena lá dentro da aldeia trabalha em cima disso, com as cestas que eles fazem. Então artesanato é trabalho.
Rosa: E muitas das vezes eles fazem isso pra mostrar a cultura, levar pra fora e o pessoal saber como é realmente (Entrevista grupal - março/2020)
O que Rosa destaca nesta última frase de seu relato, sobre a importância de “mostrar a cultura”, é algo que foi praticado no documentário “Vozes do horizonte”. A própria iniciativa de realizar o documentário surgiu desse desejo de compartilhar elementos da cultura indígena com a comunidade acadêmica. No vídeo, para além dos depoimentos, há cenas em que os depoentes retratam alguns tipos de dança praticados em suas aldeias, por exemplo. Mais uma vez a universidade se apresenta, nas narrativas das participantes, como um lugar no qual o encontro intercultural emerge como uma possibilida-de real e valorizada de expressão identitária, bem como de construção de novos modos de conhecer e de se posicionar intersubjetivamente na luta por reconhecimento.
Em suas narrativas, algumas das estudantes compartilharam a visão de que atividades como estas podem funcionar como formas de os/as indígenas resistirem ao esquecimento ou à desvalorização das referências socioculturais presentes na língua falada, no artesanato, nas comidas e danças típicas. O diálogo sobre o assunto com colegas e professores, em sala de aula e outros espaços, bem como a busca pelo intercâmbio de saberes e experiências, são estratégias que funcionam a favor desse movimento.
Violeta é uma das participantes que enaltece o fato de que, na universidade, há tanto a oportunidade de aprender coisas novas quanto a possibilidade de ser ouvida e poder compartilhar, com professores e colegas, elementos que são característicos e representativos de sua comunidade de origem. Ela dá exemplos, ao longo de sua narrativa, de momentos vividos em sala de aula nos quais alguns de seus professores buscaram incentivar essa troca de conhecimentos e experiências. Um desses exemplos é explicado detalhadamente quando a estudante menciona a produção do documentário.
Violeta: Tipo a gente vem de lá [da reserva indígena onde vive] e eu tento aproveitar o máximo que eu posso, né? porque durante os ... de 15 em 15 dias na verdade que a gente vem, então eu sempre busco prestar atenção muito nas aulas também, porque tem o “Tempo Comunidade” que a gente tem que fazer lá para poder vir, apresentar trabalho. Eu acho que é, tipo, tentar aproveitar o máximo que eu posso aqui.
Pesquisadora: E como que é esse “Tempo Comunidade”? vocês ficam na comunidade durante 15 dias, mas levam atividades para realizar que os professores propõem no “Tempo universidade”?12
Violeta: Sim. E os professores sempre buscam saber, a gente falar um pouco mais da nossa cultura em relação às aulas, né? Tipo, teve uma parte do seminário que era com o Professor x, que nós fizemos até um vídeo, não sei se tu viu… tá no site da Universidade. Daí nesse vídeo foi falado sobre a dificuldade nossa aqui e como é que ta sendo lá, o impacto que teve. Falamos um pouco como que é, sobre as comidas típicas, como que é feita as danças, teve até vídeo ... conforme nós conseguimos fazer, né, porque não foi fácil, porque a gente não tinha muito acesso a computador, essas coisas, mais era no celular. Mas no celular não dá pra fazer aqueles vídeos [com mais qualidade], sabe?
(Entrevista individual - março/2020)
Cabe destacar que o curso Interdisciplinar de Educação do Campo, com ênfase em Ciências da Natureza, foi criado e autorizado pela Resolução Nº 25/2013 - CONSUNI/UFFS, em consonância com as diretrizes do Edital PRONACAMPO/2012, que previa que ao curso caberia atender as necessidades formativas específicas de docentes inseridos em escolas do/no campo, com prioridade de acesso às vagas ofertadas para professores em efetivo exercício (Projeto pedagógico do Curso Interdisciplinar em Educação do Campo, 2013 p. 38). Não obstante, a busca desse público pelo curso nunca foi tão expressiva como esperado por ocasião de sua criação, ao passo que o número de candidatos indígenas interessados em nele ingressar cresceu ao longo dos anos. Apesar de não se constituir uma licenciatura indígena, o referido curso conta, desde 2016, com presença indígena majoritária no seu corpo discente, composta tanto por indivíduos que já são docentes em escolas indígenas como por quem ainda não atua na área.
O fato de não se ter previsto tal cenário fez com que diversos desafios fossem enfrentados, pois os professores e gestores do curso precisaram de tempo para se adaptar a esse público e construir propostas curriculares e pedagógicas voltadas às suas demandas específicas e às realidades das escolas inseridas nas aldeias, processo que ainda se encontra em andamento.
Mesmo com os esforços coletivos dirigidos ao enfrentamento desses desafios, o curso tem se deparado com índices consideráveis de evasão e de reprovação por frequência e nota. Conforme demonstra estudo realizado por Ascari junto a estudantes do curso, “o índice de reprovação na disciplina de Produção Textual Acadêmica aumentou conforme aumentou o número de indígenas no curso” (Ascari, 2017, p. 70), realidade possivelmente alimentada pelo fato de o português, utilizado em todas as disciplinas do curso, mas estudado a fundo no componente curricular em questão, constituirse uma língua, em geral, aprendida tardiamente por esses estudantes, que tem no Kaingang sua primeira língua. Muitos deles, portanto, teriam dificuldades em se apropriar dos conhecimentos disponibilizados nesse contexto por não compreenderem o que está sendo dito e/ou lido.
Ainda de acordo com Ascari (2017, p. 76), mesmo entre os docentes entrevistados por ela que reconheceram como positiva a presença indígena no curso, houve quem admitiu que a reação não deixa de ser de “espanto” ou “surpresa” quando, em sala de aula, os estudantes começam a falar Kaingang, já que eles, os professores, “não esperavam ter alunos indígenas, muito menos tantos”. Ademais, também entre os estudantes indígenas ocorrem manifestações, dirigidas a outros indígenas, de estranhamento ou conflitos quanto à questão linguística, pois existe, como parte do corpo discente, um grupo que domina o Kaingang e um que não domina, indivíduos inseridos em comunidades que falam o Kaingang como primeira língua e outros que cresceram no contexto urbano, apartados do contato cotidiano com esse idioma, mesmo tendo origem Kaingang, entre outras situações (Ascari, 2017).
Um agravante da situação é a inexistência de professores, no curso, que dominem o Kaingang para tecer mediações, nesse idioma, com os estudantes. Somado a isso, ainda são poucos os docentes familiarizados (por meio de estudo, pesquisas ou trocas dialógicas com colegas mais especializados no tema) com as diversas cosmologias que compõem a forma de ver o mundo e construir conhecimento dos estudantes indígenas.
Face a isso, a realização de eventos, nas comunidades indígenas e na universidade, visando oportunizar uma maior aproximação da comunidade acadêmica (não apenas dos professores, mas também dos estudantes não indígenas) em relação à cosmologia Kaingang tem sido uma abordagem cada vez mais empregada como parte das atividades dos CCRs. Ao mesmo tempo, alguns dos professores do curso passaram a se dedicar à construção de ações e projetos que focalizam o emprego da língua Kaingang na produção escrita e na apresentação oral de trabalhos em sala de aula, bem como na publicação e difusão, em comunidades indígenas e não indígenas, de trabalhos científicos traduzidos para o Kaingang produzidos pelos próprios estudantes, seus professores ou outros autores. Como ilustrativo do primeiro caso, podemos citar o relato que a entrevistada Rosa fez de uma atividade promovida por um de seus professores, que convidou os alunos kaingang a apresentarem um trabalho oralmente, diante da turma, em sua língua materna e, posteriormente, também em português. A experiência, segundo ela, foi muito rica em aprendizados. Representativa do segundo caso é a iniciativa tomada por alguns professores do curso de apoiarem a realização pelos estudantes da tradução, para o Kaingang, de um livro paradidático no formato de HQ intitulado: “Cuidar da Água: responsabilidade de todos” (Coan et al., 2017) ou “Goj Kirῖr: Vỹ tỹ vẽnh kar mỹ ke nῖ” (Coan et al., 2019).13
Essas e outras questões não deixam de ser foco da atenção dos professores nas discussões realizadas em instâncias colegiadas do curso (conforme constatamos a partir do diálogo encetado com alguns deles por ocasião da pesquisa), pois reconhece-se a necessidade de se leválas em consideração ao planejar políticas e ações sistematizadas que deem conta, em médio e longo prazo, de responder satisfatoriamente aos desafios apresentados pela realidade.
Dessa discussão fica salientada a necessidade de as instituições educativas, da educação básica ao ensino superior, não perderem de vista o fato de que a língua é uma dimensão fundamental da cultura e está atrelada à garantia dos direitos humanos, sendo o reconhecimento da legitimidade dos direitos linguísticos um passo importante na construção de processos educacionais mais inclusivos. No caso das minorias linguísticas, como aponta Rodrigues e Beer (2016, p. 670), a garantia de acesso e usufruto desses direitos acaba exercendo impacto significativo no gozo de outros direitos, como os sociais, políticos, econômicos e culturais. Nesse sentido, tais direitos deveriam ser tomados como “norteadores da educação” dos sujeitos que constituem essas minorias (Rodrigues e Beer, 2016, pp. 663-664).
Além das experiências ricas em aprendizados envolvendo a dimensão linguística, Dália e Iris fizeram referência a outros tipos de experiencias proporcionadas pela universidade e que foram significadas por elas como positivas por terem lhes rendido aprendizados não apenas acadêmico-profissionais, mas relacionais e interculturais: os estágios nas escolas de educação básica, os cursos de extensão e as viagens de estudos. Dália afirma ter se surpreendido com seu próprio desempenho diante de uma plateia de professores que a avaliavam quando ministrou sua aula como parte do estágio; enquanto Iris viu a oportunidade de ter viajado para Curitiba, para participar de um evento científico, como uma a chance de expandir seus conhecimentos, estar num lugar no qual nunca havia estado, conviver com colegas e professores fora do ambiente universitário e conhecer outras pessoas. Por ocasião da produção dessas narrativas, as estudantes lembraram ainda de projetos e cursos, ofertados principalmente por professores do curso, em que tiveram acesso a debates e à oportunidade de fazer as suas “místicas” (dinâmicas grupais, exercícios corporais, de dança e canto etc.), manifestando aspectos de sua cultura que acabavam não tendo “espaço” para expressar nas aulas.
Cabe esclarecer que, ao designarmos algumas das experiencias relatadas pelas entrevistadas como manifestações possíveis de diálogo intercultural no contexto universitário, estamos partindo da concepção de interculturalidade (sobretudo de interculturalidade epistêmica) pensada por Catherine Walsh (2019). Esta autora retoma o conceito de interculturalidade referido pelo movimento indígena equatoriano e analisa sua aplicação na Universidade Intercultural das Nacionalidades e dos Povos Indígenas (UINPI), para postular que a interculturalidade epistêmica enquanto “prática política”, assentada na confrontação dos conhecimentos indígenas e ocidentais, pode fazer nascer a “pluriversidade”, em lugar do que hoje entendemos e praticamos como universidade.
O exemplo da UINPI permitiria vislumbrar essa possibilidade de as instituições universitárias praticarem uma “interculturalização” capaz de abrir novos horizontes para a compreensão da alteridade, ao mesmo tempo em que se mostra crítica “à suposta universalida-de do conhecimento ocidental” (Walsh, 2019, pp. 16-17). Assim, Walsh (2019) faz importantes apontamentos sobre as possibilidades de diálogo crítico entre o pensamento/conhecimento indígena e as formas de conhecimento comumente associadas ao mundo ocidental. Como argumenta a autora, nessa forma de interculturalidade, “o conhecimento e o pensamento indígena não se encontram reificados, mas servem como base a partir da qual é possível ‘dialogar com’, revertendo a histórica subalternização e propondo uma incorporação diferente”. O que não implica “simplesmente se colocar o conhecimento em diálogo, mas em se adotar um posicionamento crítico sobre esses conhecimentos em face dos objetivos do projeto de transformação” (Walsh, 2019, pp. 29-30).
Essa seria uma maneira não apenas de reinventar a universida-de como instituição educativa, mas lidar com a necessidade de se construir “uma resposta social, política, ética e epistêmica para as realidades de dominação, exploração e marginalização que ocorreram e ocorrem” em nossa sociedade e que atingem de forma violenta as populações indígenas. Nesse sentido, faz toda diferença, segundo Walsh (2019, pp. 14-15), lutar para que esse processo seja feito “a partir de um lugar de enunciação indígena..., um ‘lugar político’ que compreende tanto o sujeito da enunciação quanto um programa político e cultural, e, sob minha perspectiva, também um programa com um caráter epistêmico”.
Assim, o que a autora propõe é que a subordinação dos povos indígenas, de suas linguagens e conhecimentos, seja abordada como um problema social, ético-político e epistêmico. O que não significa ignorar as formas de conhecimento que vem sendo tomadas como paradigmas e associadas às estruturas dominantes; ao contrário, é preciso conhecêlas e, por meio desse conhecimento, gestar um “‘outro’ conhecimento. Um pensamento ‘outro’, que orienta o programa do movimento nas esferas política, social e cultural, enquanto opera afetando (e descolonizando), tanto as estruturas e os paradigmas dominantes quanto à padronização cultural que constrói o conhecimento ‘universal’ do Ocidente” (Walsh, 2019, pp. 15-16).
Podemos afirmar que a universidade de que falam nossas entrevistadas oportuniza, pelo menos em alguns momentos e situações (atividades, aulas etc.), a construção desse diálogo intercultural, uma vez que foi descrita, nas narrativas colhidas, como um contexto no qual/a partir do qual pode se dar a descoberta de “novos mundos” e/ou de novas formas de compreender os mundos já conhecidos, ao mesmo tempo em que é possível partilhar o conhecimento propriamente indígena. É na intersecção entre esses diferentes mundos, nos “entre-lugares” (Bhabha, 2001), que parecem despontar novas possibilidades de subjetivação e aprendizados. Ao enfatizar o quão relevantes podem ser para os sujeitos que deles participam esses momentos ou processos nos quais se entrecruzam diferenças culturais, Bhabha ressalta o potencial que eles encerram de produzir novos modelos de sociedade:
Esses “entre-lugares” fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação - singular ou coletiva - que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade (Bhabha, 2001, p. 20).
Essa perspectiva vai ao encontro do que postula Tassinari (2001, p. 50) ao definir as escolas indígenas como “espaços de fronteira”, concebidos como “espaços de trânsito, articulação e troca de conhecimentos, assim como espaços de incompreensões e redefinições identitárias dos grupos envolvidos nesse processo, índios e não índios” ou ainda “como situação criativa na qual conhecimentos e tradições são repensados, às vezes reforçados, às vezes rechaçados, e na qual emergem e se constroem as diferenças étnicas” (Tassinari, 2001, p. 68). A questão a ser aqui debatida é: poderia a universidade, e mais especificamente, a universidade pública brasileira, ser concebida (ou constituir-se) como um “espaço de fronteira” desse tipo?
Pérez (2007, p. 236) produz reflexões que nos ajudam a discutir o tema sob outro prisma. Essa autora alerta que a definição da escola, e aqui estendemos para a universidade, como espaço de fronteira pavimenta o caminho para “a compreensão da identidade como um processo em movimento, em construção contínua, em contato e em interação com o outro”, o que é positivo. Não obstante, o conceito de fronteira assim empregado também pode abrigar:
um sentido equidistante entre índios e não índios, despolitizando, assim, a natureza dessa relação. Ainda que não se negue, de alguma maneira se ocultam as hierarquias e as configurações de poder ali presentes. Um poder que regula e controla a forma, os ritmos, os conteúdos e os resultados esperados no processo de aprendizagem. Assim, esse ‘trânsito de conhecimentos’ não se produz em equidade de condições, está mediado pelo ideal ou modelo educativo subjacente a esse conjunto de dispositivos colocados em jogo no espaço escolar. Esse modelo educativo, imbuído de noções e idealizações sobre o tipo de sujeito e de sociedade que se espera construir, não está livre de valorações sociais e culturais. Tal padrão responde ao ideário da sociedade ocidental, e nisso se situam sua potência e sua capacidade de inferência social, pois os grupos indígenas terminam sendo ‘escolarizados’ sob uma estrutura solidamente estabelecida, cujos princípios lhes são alheios” (Pérez, 2007, p. 236).
Que efeitos essa situação produz sobre os/as estudantes indígenas? É o que Pérez (2007, p. 236) nos convida a pensar quando destaca que são esses sujeitos os que têm de lidar diretamente com as exigências contraditórias de “um sistema que desvaloriza e/ou nega suas necessidades”. Isso explica por que tantos sucumbem ao fracasso escolar, o qual pode ser lido como uma resposta aos conflitos derivados da difícil tarefa de se apropriar de uma lógica de pensamento à qual não estão habituados. “Uma dificuldade que é incompreendida e que se reverte sobre eles mesmos pela criação e interiorização de autoimagens negativas” (Pérez, 2007, p. 236).
Assim, podemos indagar se o que ocorre nas instituições educativas escolares frequentadas por indígenas pode ser chamado de “troca de saberes” ou “confrontação silenciosa de lógicas de pensamento, cujo controle está nas mãos do saber e do poder institucionalizado” (Pérez, 2007, p. 236). Questão para a qual, a nosso ver, não há resposta simples e fechada. Em primeiro lugar, há que se considerar cada contexto educativo em suas especificidades. Especificidades que dizem respeito não apenas às práticas educativas efetivamente desenvolvidas em cada instituição, mas também à implementação de políticas e programas que, a partir da legislação vigente e colaborando para seu avanço, embasam essas iniciativas. Há universidades que têm conseguido colocar em prática propostas que as tem projetado como referências, no cenário nacional, para a construção de novas políticas de inclusão dos povos indígenas no ensino superior, como é o caso da Universidade Federal de Roraima (UFRR), da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), da Universidade Federal de Goiás (UFG), da Universidade Federal de Minas Gerais, para citar alguns exemplos notórios.
Outro ponto a ser destacado é a necessidade de se fazer a crítica ao modelo de escolarização vigente nas escolas de educação básica e nas universidades, o qual toma o conhecimento ocidental como universal e estrutura, no cotidiano escolar, práticas e valores consolidados como hegemônicos. É por meio dessas práticas e valores que têm sido criadas e reforçadas muitas das hierarquias que inferiorizam certas formas de ser, aprender e viver, especialmente aquelas tidas como diferentes, dissidentes ou desviantes do que se considera “normal”,14 ou seja, a racionalidade moderna/colonial. Reinventar a escola (da educação básica ao ensino superior) faz-se, portanto, necessário.
Tendo construído uma análise que se aproxima, em alguns pontos, dessa discussão, o intelectual indígena brasileiro Daniel Munduruku (2020, p. 1) descreve os processos de imposição cultural perpetrados por algumas “políticas inclusivistas”, implementadas no âmbito da escolarização, que acabam representando uma forma de:
agressão ao sistema mental indígena, fruto de uma história da qual não somos culpados, mas sobre qual temos responsabilidade, acaba se perpetuando nas novas políticas inclusivistas levados a efeito por governos nas três esferas. Conclusão: nossos jovens se vêm obrigados a aceitar como inevitável à necessidade de ler e escrever códigos das quais prefeririam não aprender e não lhes é dado o direito de recusar sob a acusação de preguiça ou descaso para com a ‘boa vontade’ dos governos e governantes.
Este autor conclui que é inegável a existência de uma preocupação, seja por parte de instâncias governamentais seja por parte de agências não-governamentais que se dedicam a construir e consolidar uma educação escolar indígena no Brasil, em “fortalecer a autoria como uma forma de fortalecer também a identidade étnica dos povos que atendem” (Munduruku, 2020, p.1). Iniciativa que pode ser considerada positiva se a autoria em questão for compreendida como a possibilidade de os povos indígenas terem voz ativa na construção futura (não muito distante) de sua “própria pedagogia, seu modo único de trafegar pelo universo das letras e do letramento”, ao mesmo tempo em disponham de oportunidades reais de se manifestar culturalmente, artisticamente e politicamente (Munduruku, 2020, p. 1).
Nas narrativas produzidas por estudantes indígenas como parte do documentário “Vozes do horizonte”, há uma aproximação em relação a esse debate quando alguns s afirmam que estar na universidade faz sentido para eles na medida em que esse espaço se apresenta como um contexto de relações, processos de sociabilidade e rotinas no qual se faz possível agenciar novas formas de participação e expressão política, cultural e artística. Uma fala muito expressiva nesse sentido, registrada no documentário, é a do depoente que afirma: “Esse espaço é nosso”, relacionando essa experiencia de pertencimento à possibilidade de os/as estudantes indígenas ocuparem e colorirem a universidade com seus corpos, suas formas de se expressarem e aprenderem, suas “místicas”, enfim, com as práticas que lhes apetecerem. A universidade em que estuda é também descrita, pelo mesmo sujeito citado acima, como um ponto de encontro entre grupos indígenas de diferentes aldeias que interagem e fazem intercâmbios contemplando práticas da cultura Kaingang.
Fiquei afastado dez anos da escola. Eu tinha expectativa que o curso me proporcionasse tornar profissional da área da educação. E tem a formação humana encontrando bastante colegas de outros colegas, vínculo com professores também. Como ser humano, a gente melhorou bastante e no futuro pode exercer lá na comunidade, mas em outros lugares também, o que aprendeu aqui na universidade, a prática e a teoria. E mesmo que não seja lá, no espaço público que a gente for, numa escola...
Eu tinha parado. Voltei a estudar com quarenta anos. Porta que se abriu. Eu tinha dificuldade de ingressar na universidade. Trouxe muitas oportunidades... Conhece pessoal do Campesino, quilombolas. Tem firmado parceria de lutas. A gente vem em busca de melhoras para todos nos. Nos identificamos com esse grupo ai. Convivência universidade e comunidade serve para mais tarde, serve para levar conhecimentos, para melhorar com mais informação. Nós precisamos de diálogo com pessoas que conhecem bastante da realidade do campo. Conversar com nossas escolas, nossos jovens, ver uma realidade diferente da nossa, sem deixar de valorizar a nossa cultura. Esse espaço é nosso, a gente faz as nossas místicas. Experiencia bastante forte para mim.
Como explicitado nesses excertos, a aproximação em relação a diferentes grupos políticos e participantes/militantes de movimentos sociais que lutam pelos direitos das minorias, como os Quilombolas, Campesinos, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Pastoral da Juventude, entre outros, também foi lembrada. Ela traz a possibilidade de “parcerias de lutas” serem firmadas, além de favorecer o contato dos/as estudantes indígenas com repertórios discursivos e saberes (teóricos e práticos) que remetem a pautas que lhes são caras, como a da defesa dos direitos humanos e a do respeito à diversidade racial/cultural. Assim, junto a estes outros indivíduos ou coletivos, eles/as podem experimentar novas formas de sociabilidade, de subjetivação e ação política.
Esses dados nos ajudam a problematizar o papel da universidade à luz de “uma concepção de educação entendida não apenas como forma de conhecer o Mundo, mas como espaço-tempo capaz de fornecer instrumentos de interpretação, inclusão e participação” (Gomes, 2010, p 10).
Convidamnos também a pensar, tendo como foco os sentidos atribuídos à experiencia universitária por estudantes indígenas, uma questão de grande relevância lembrada por Alves (2017, p. 4) quando discute a forma como as instituições educativas escolares têm se posicionado em relação à constituição de identidades. A autora assim coloca a questão: “as relações vividas cotidianamente no contexto da instituição escolar possibilitam identidades em processo de emancipação? Ou ainda identidades políticas?”. Dito de outro modo, a escola (e, por extensão, a universidade) está oferecendo condições propiciadoras para o desenvolvimento do pensamento reflexivo e autônomo e para a abertura a novas possibilidades apontadas pelo encontro entre diferentes pessoas, culturas, valores etc. que possam nela conviver? Com base em suas reflexões, a autora chega à conclusão de que as instituições educativas escolares precisam repensar seu papel e objetivos na contemporaneidade. Essa reinvenção necessária deve abarcar não apenas alterações curriculares, mas “mudanças ideológicas e estruturais que ampliem as reflexões sobre o seu significado na constituição da identidade humana” (Alves, 2017, p. 8), de modo que tais instituições possam atuar mais como mediadoras de políticas que fomentem a emancipação dos sujeitos que por ela passam. Isso porque não raramente ocorre, nesses contextos educativos, a perpetuação de uma perspectiva colonizadora, de manutenção da hegemonia instituída, sem que os atores sociais implicados em sua construção (professores, gestores, estudantes e seus familiares etc.) percebam “as contradições que as relações do mundo global possam estar tecendo” (Alves, 2017, p. 8).
Obviamente que os processos relacionais vividos no contexto universitário também podem ser marcados por dificuldades, especialmente quando a constatação e a convivência com a diferença fazem aflorar tensionamentos e conflitos. Assim, há narrativas que fazem menção à existência de algumas formas de segregação entre os estudantes, que acabam reforçando a constituição de grupos fechados. Iris foi a participante que mais discorreu sobre o tema. Ela informa que a atitude de muitos não indígenas desfavorece a formação de vínculos de amizade ou de colaboração nos estudos que ultrapasse as fronteiras étnicas e culturais. Ainda que existam aqueles/ as que manifestem interesse em cultivar esses vínculos, ou mesmo curiosidade em conhecer a cultura indígena, são muitos os/as que segregam e/ou discriminam explicitamente. O que a faz concluir que, por vezes, “É melhor ficar quieto e não falar que é indígena. Falou que é indígena a pessoa corre”.
Pesquisadora: Fechando essas perguntas sobre a faculdade: a rotina de vocês aqui, quando vocês chegam: vocês gostam de ir direto pra sala de aula ou fazem outras coisas também? E as interações, amizades, como que é? [Risos, todas falam juntas, animadas].
Iris: Os lanchinhos da cantina são ótimos! (risos)
Rosa: Não sei se a profê tem percebido isso, principalmente na Educação do Campo que nós a maioria somos indígenas. Não sei se a profê tem percebido que os alunos indígenas estão juntos, quase sempre juntos.
Dália: Daí se percebe que são unidos.
Pesquisadora: E a interação com os estudantes não indígenas?
Iris: É que nem eu disse, profê: alguns dão abertura, né? Alguns sim. Mas daí tem uns que quando tu fala que é indígena já pega e já se cala... Tipo assim, quando tu vai conversar com uma pessoa, aquela pessoa às vezes ela não percebe que tu é indígena, até tu não falar. Alguns, claro, alguns a gente já coloca o olho já vê, é indígena. Alguns já demora pra perceber. Daí eu tava por aqui, né? [na universidade] daí chegou uma pessoa que eu não conheço, que eu vi pela primeira vez, daí ela chegou e falou comigo. Tá, tudo bem, na boa. Quando ele perguntou de onde que eu era, eu falei. Nossa! ele levou um susto, tipo assim, ele não falou mais nada, pegou e vazou, sabe? Do nada assim, sabe. Eu disse “meu deus!!!” (risos). É melhor ficar quieto e não falar que é indígena. Falou que é indígena a pessoa corre. E tem alguns que... alguns não, alguns tem curiosidade em conhecer a nossa cultura, saber, coisas assim. Tem pessoas, como diz o meu pai, tem pessoas do bem e pessoas do mal, que faz a gente se sentir bem e outras que excluem.
(Entrevista grupal - 03/2020)
Dália relata que episódios de discriminação decorrentes de pre-conceitos contra indígenas são comumente vividos por ela e outros colegas também fora do espaço da universidade, quando, por exemplo, circulam pela cidade de Erechim/RS para ir ao comércio ou espaços de lazer; o que a leva a deduzir que não se trata de um fenômeno isolado, mas algo comum, presente no cotidiano de todos aqueles que são reconhecidos como indígenas. Ao recordar/narrar situações em que se viu diante de um outro que interpelou sua diferença, que demonstrou estranhamento ou curiosidade em relação ao seu modo de falar, sua aparência, ela extrai uma conclusão sobre sua reação costumeira nestes casos, quando pondera que é frequente, em ocasiões como estas, pensar consigo mesma: “Será que falo que sou indígena? Se falar que é indígena é tchau! e perdeu o amiguinho”.
Dália: Porque onde a gente for nós vãos ser reconhecidos como indígenas. Não importa onde a gente for, onde a gente tiver, a gente vai ser reconhecido como indígena. Como índio, né? Indígena.
Pesquisadora: E como vocês se sentem em relação a isso?
Dália: Eu falo tudo isso porque eu moro na cidade. Tô vivenciando isso.
Pesquisadora: Como é que é, ser indígena e estar morando na cidade?
Dália: Pelo meu sotaque... pelo meu sotaque eles já ... uns tem curiosidade, né? Tem uma mistura. Tô me acostumando. Claro que tem os pontos positivos e os negativos, mas pelo que eu tenho percebido tem mais pontos positivos.
Pesquisadora: E quais seriam os negativos?
Dália: Eu sou reconhecida pelo sotaque, na língua, como eu falo ... Ai eu sempre fico pensando: “Será que falo que sou indígena?” (risos). Se falar que é indígena é “tchau!” e perdeu o amiguinho (risos).
(Entrevista grupal - 03/2020)
Foi também revelada a ocorrência de manifestações de preconceito e discriminação contra estudantes indígenas praticadas em sala de aula e em setores universidade que realizam assistência estudantil ou gestão de outros processos acadêmicos. Ao comentarem essas manifestações, algumas das entrevistadas expressarem o sentimento de que “um tratamento diferente” lhes foi dirigido por alguns professores e servidores técnicos da instituição. Em sua entrevista individual, Violeta também aborda o assunto ao citar outro exemplo, ocorrido em sala de aula, na interação com um professor.
Violeta: já teve preconceito aqui. Não vou citar nome nem nada, até com professores... que falou no primeiro dia dela que nós tivemos, a primeira semana dela, falou da nossa dificuldade. Mas não foi tipo “ah, eles são burros” essas coisas. Só que ficou meio assim, sabe? o jeito que falou, sabe? E a maioria dos alunos não gostaram, apesar de que foi com a nossa turma, né? mas as outras turmas do curso também não gostaram. ...Isso foi ruim. Mas assim, já foi justo no primeiro dia também. Ai a gente já sabe, a gente já fica pensando: “Meu deus! será que vão ser todos assim, os professores? Será que todos vão achar essa mesma coisa?”
(Entrevista individual - 03/2020)
Em trabalho que versa sobre o acesso de estudantes das camadas populares ao ensino superior, realizado em instituição privada, Nunes e Neira (2014) encontraram resultados que apontam para a vivência de situações semelhantes por parte dos estudantes daquela instituição. O que os leva a concluir, em diálogo com os estudos de McLaren (1997), que, por vezes, “os professores, sem perceber, acabam por exercer formas de violência simbólica, impondo uma condição de classe e desvalorizando experiências e vidas de estudantes oriundos de grupos minoritários” (Nunes e Neira, 2014, p. 1217).
E, por meio de atitudes que vão da grosseria à manifestação de desrespeito ou menosprezo, fomentam-se preconceitos, reforçando estereótipos que, por vezes, culminam em discriminações. Situação que, de modo geral, pode contribuir para “fixar” esse outro (o/a estudante indígena sob a ótica desses professores/funcionários) “em sua diferença” (Nunes e Neira, 2014, p. 1218). Ainda conforme os autores supracitados,
Os discursos proferidos por parcela dos docentes denotam que condições de classe e hierarquia não são resultados de competições e relações neutras entre os seres, mas decorrentes de arranjos sociais assimétricos e das relações de poder. É nessa microestrutura de poder e privilégio que se ressalta o paradoxo da democracia contemporânea, pois ao ignorar as características particulares dos sujeitos, reforça-se um certo universalismo (Nunes e Neira, 2014, p. 1221).
Processos semelhantes aos narrados pelos/as participantes de nossa pesquisa foram também identificados por Tassinari (2016) ao estudar situações vividas por estudantes indígenas ingressos na Universidade Federal de Santa Catarina pelo Programa de Ações Afirmativas (via vagas suplementares), indicando que além de “serem constantemente cobrados a provar sua condição de indígenas, os estudantes relatam que muitas vezes se sentem excluídos dos círculos de amizade e às vezes vivenciam situações de hostilidade explícita” (Tassinari, 2016, pp. 48-50). Ao constatar o estranhamento que a presença indígena no ambiente universitário causa entre os próprios colegas e professores com quem convivem neste contexto, a autora infere:
É evidente que esses alunos sofrem, no cotidiano da sala de aula, as consequências da ignorância sobre a realidade das populações indígenas no Brasil, tanto da parte dos colegas quanto dos professores. Não é razoável que estudantes ingressem na universidade achando que ‘usar roupas’ ou ‘falar em celulares’ seja um sinal de que alguém não é indígena. Somados à ignorância, há casos de preconceito explícito e hostilidades que reverberam nas salas de aula os conflitos fundiários envolvendo indígenas em Santa Catarina (Tassinari, 2016, p. 50).
Considerações finais
Se, por um lado, a possibilidade de criar vínculos de pertencimento ou, inversamente, se diferenciar em relação a certos grupos que compõem a nossa sociedade é o que faculta o próprio processo de construção identitária; por outro, a constatação das diferenças/estranhamento e semelhanças/identificação podem instaurar tanto movimentos de inclusão quanto de exclusão e “essas inclusões e exclusões muitas vezes não indicam apenas diferenças e singularidades, mas relações hierárquicas e poderes de raiz histórica” (Bandeira e Batista, 2002, p. 131). No caso dos povos indígenas, em função da complexa combinação entre a exclusão histórica a que foram submetidos e as discriminações étnico-raciais que ainda os atingem, alimentadas em grande medida por representações estereotipadas e preconceitos, essas in/exclusões podem assumir múltiplas feições, afetando diretamente suas possibilidades de reconhecimento e participação efetiva na vida universitária.
Posto isso, cabe refletirmos sobre o quão urgente se faz - para além da efetivação de mudanças normativo-legais e sociais capazes de incidir sobre os padrões de comportamento que perpetuam atitudes preconceituosas e discriminatórias contra esse público - investirmos na construção de políticas públicas e iniciativas de diferentes tipos que, contando com a participação dos/as diretamente afetados pelo problema, incentivem a valoração positiva da interculturalidade e da alteridade que a possibilita, notadamente do “outro diferente” que sendo alvo de preconceitos e discriminações sustenta “uma identidade ferida”, ou seja, identifica-se com a representação negativa que lhe é conferida por entender que não há outro lugar a ocupar, na sociedade da qual faz parte, que não aquele que lhe foi atribuído por quem o estigmatiza ou discrimina. São as pessoas nessa situação que “precisam metamorfosear-se em leão para ter a liberdade de negar o deverser, os valores que lhe foram atribuídos historicamente, abrindo assim espaço à construção de novos valores” (Bandeira e Batista, 2002, pp. 138-139).
Os resultados da presente pesquisa permitem entrever que a interculturalidade pode constituir uma ferramenta valiosa no enfrentamento de desafios como os descritos anteriormente. Não obstante, a percepção sobre suas potencialidades precisa conquistar mais espaço em nossa sociedade, tendo os sujeitos e contextos educativos um papel importante nesse sentido, na medida em que as pesquisas e práticas pioneiras por eles produzidas podem revelar a correlação positiva entre o encontro/diálogo intercultural e o incremento da igualdade e justiça social.