Introdução
De tudo que é nego torto / do mangue e do cais do porto
/Ela já foi namorada / O seu corpo é dos errantes / Dos
cegos, dos retirantes / É de quem não tem mais nada. Dá-se
assim desde menina / Na garagem, na cantina / Atrás do
tanque, no mato / É a rainha dos detentos / Das loucas, dos
lazarentos / Dos moleques do internato
E é dessa forma que se pretende abordar o tema deste artigo “Prostituição e (in) dignidade humana” para que a densidade do “submundo” se transforme em leveza.1 O amor pelo Direito, pela Literatura e pela Música dará a tônica do que ora se escreve com o intuito de investigar a efetividade e crise dos direitos fundamentais. Buscar a significação de “efetividade” é relativamente tranquilo, no sentido de se entender aqui como concreção, correspondência entre a realidade e a ordem jurídica.
Diante da ausência de regulação do trabalho das trabalhadoras sexuais,2 pergunta-se se a dignidade da pessoa humana é absoluta, quais são seus fundamentos (morais, religiosos e/ou jurídicos), bem como o motivo do Direito Brasileiro relativizar a dignidade da pessoa humana não conferindo igual consideração e respeito às profissionais do sexo, em razão da opressão sexual e da domesticação religiosa, sob o temor do estigma de “País da Libidinagem”, e qual seria a melhor maneira possível para o reconhecimento da atividade de prostituição como trabalho formal e regulação do seu exercício, sob a óptica constitucional. É o que se passa a analisar.
Dignidade da pessoa humana3
A dignidade da pessoa humana é alçada pelo direito contemporâneo com o centro de suas atenções, comportando várias definições possíveis, podendo ser percebida em diversos aspectos. “Dignidade” se origina na palavra latina dignitas, relacionada, por sua vez, ao grego αχιομα e indica, nas duas matrizes, algo autoevidente (que se ostenta) e que deve ser respeitada pela autoridade constituída. Formalmente, remete-se a um axioma, a algo ensinado a ser o primeiro ou o mais alto valor.4
A bidimensionabilidade do princípio se projeta a realizar a sua pluriteleologia ou multifuncionalidade, designada como tarefa: a) legitimadora - da ordem constitucional e das práticas sociais, políticas e jurídicas (Backer, 2009, p. 115); b) ordenadora - dos poderes públicos e privados, de modo a promover a dignidade individual e de todos (Murphy, 1980, p. 758); c) temporal - da ideia que assegura a estabilidade das instituições democráticas e da Constituição, embora possam variar seu alcance e expressão, sua fortaleza e fragilidade (McCrudden, 2008, p. 723); d) essencial - de barreira a um conteúdo mínimo de qualidade de vida, autonomia e igualdade; e) integradora - da multiplicidade dos processos identitários que conduzem as visões de mundo plurais à convivência constitucional; f) limitadora - da atuação arbitrária ou discriminatória do Estado; g) libertária ou emancipatória - a prover a ampliação e efetividade da autonomia e igualdade, concebendo-a como matriz dos direitos e de sua efetuação por meio da participação nos processos deliberativos, nos ônus e benefícios sociais (dignidade também como status activus processualis) (Landa, 2002). Não se pode reduzi-la, portanto, a uma função meramente liberal (dignidade como limite do poder ou ordenação do direito), política (dignidade como integração) ou social (dignidade como igualdade e emancipação), pois ela se expressa na pluralidade de vozes.
A concepção da dignidade da pessoa humana que mais tem assentimento parece mesmo ser a apresentada por Kant, definida no ser humano como um fim em si mesmo, e não como meio ou coisa. Essa concepção é desenvolvida em várias concepções não apenas de vida justa (dignidade como direitos individuais), mas também de vida boa (dignidade como política do bem comum). E ela que faz pouco caso das fronteiras, raças ou etnias, definindo-se ora como um meta-valor, ora como pressuposto de direitos, ora como direito ou princípio material de direitos. Talvez por decorrer da necessidade universal dos seres humanos de reconhecimento e interesse do ser em ser respeitado.
Embora já presente em filosofia e em abordagens teológicas há muito tempo, a discussão jurídica acerca da realização da dignidade da pessoa humana é recente, ocupando mais as preocupações jus filosóficas após a sua utilização na Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. Seu predominante perfil liberal, desde então, passou a ser desafiado pela existência de grupos sociais oprimidos e marginalizados. Existência que nem sempre se expressava ou se expressa como reivindicação ou resistência, tanto por uma construção social de enclave de guetos ou isolamento social, quanto pela autopercepção ou sentimento próprio de constituir-se em categoria humana ou social inferior, compositória de um “estorvo social” ou “limite do sistema”. Estão entre esses os miseráveis, as “minorias”, os imigrantes, os detentos e ex-detentos, os viciados em crack, as prostitutas.
A inclusão das pessoas que se prostituem como um desses grupos é inegável. Pratica-se contra essas pessoas um bloqueio social voluntário e involuntário que os mantém em sua invisibilidade, no lugar marginal que lhes foi imposto.
Considerando os processos de ‘feminização’ e ‘etnicização’ da pobreza, há a necessidade de adoção, ao lado das políticas universalistas, de políticas específicas, capazes de dar visibilidade aos sujeitos de direito com maior grau de vulnerabilidade, visando ao pleno exercício do direito à inclusão social. Se o padrão de violação de direitos tem um efeito desproporcionalmente lesivo às mulheres e às populações afrodescendentes, adotar políticas ‘neutras’ no tocante ao gênero, à raça/etnia, significa perpetuar esse padrão de desigualdade e exclusão. Daí a urgência de toda forma de racismo, homofobia, xenofobia e outras formas de intolerância correlatas, tanto mediante a vertente repressiva (que proíbe e pune a discriminação e a intolerância) como mediante a vertente promocional (que promove a igualdade) (Piovesan, 2008, p. 24).5
A dignidade aqui se apresenta, portanto, como um projeto de desvelação e de visualização política e jurídica dos invisíveis, seres humanos socialmente espectros de si mesmos, almas penadas em própria vida à procura de serem vistos e incluídos, não como homo sacer, para emprego da expressão de Agamben, mas como sujeitos plenos de direito.
Prostituição e dignidade da pessoa humana
A dignidade da pessoa humana das profissionais do sexo é mitigada, em razão da situação de marginalidade social na qual são colocadas historicamente, fundamentando-se esta discriminação na opressão moral e religiosa á prática de relações sexuais com o objetivo de se obter prazer ou dinheiro, em detrimento à finalidade procriatória, o que permanece mesmo após os avanços científicos que desenvolveram métodos contraceptivos. Não se está a reconhecer aqui que todas as pessoas que se prostituem o façam por prazer (embora existam aquelas que o façam), mas também pela necessidade do seu trabalho para a sua sobrevivência. Portanto, não se destinará grande atenção às razões pelas quais as trabalhadoras sexuais ingressaram neste ofício, quais foram os acontecimentos das suas vidas que as levaram à prestação de serviços sexuais, vender sexo, mas o que se pode fazer com a realidade que nos apresenta.
Traumas e desamparos, normalmente, motivam o exercício da atividade pelos prostituídos. Jessé Souza analisa os sentimentos das prostitutas e relata:
O que há em comum na história de vida das mulheres entrevistadas é um tipo de socialização familiar disruptivo, que irá impedir a transmissão afetiva de valores como disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo, num contexto familiar marcado pela ausência da figura paterna e pela presença de relações instrumentais de todo tipo, a começar pela frequência e naturalização de abusos sexuais sofridos na infância por essas mulheres. Além da carência, em qualquer medida significativa, de conhecimento resultante de um capital escolar incorporado, essas mulheres em sua infância nunca foram percebidas como ‘um fim em si mesmas’, como crianças com desejos, sentimentos, aspirações, medos e angústias que necessitavam de cuidado, proteção e afeto. Será a falta dessa ‘segurança afetiva’ que irá reproduzir um exército de ‘perdedoras’, sem qualquer chance na competição social por recursos escassos. Essa falta de uma ‘economia emocional’ marcada pelo autocontrole não produz apenas pessoas banidas da função de trabalhadoras úteis, que constitui a base do reconhecimento intersubjetivo da dignidade, mas também impossibilitadas de desenvolver uma dimensão expressiva de sua existência, para além dos clichês sociais, dos modelos sociais que chegam a elas como ‘modelos prontos’, prêt-à-porter (Souza, 2009, p. 175).
Maria Madalena, “de quem haviam saído sete demônios”, conforme metáfora presente em Lucas 8:2 é a prostituta mais conhecida do mundo, embora não haja na Bíblia qualquer confirmação de que ela era de fato prostituta, o que leva ao senso comum de ser a profissão “mais antiga” (Bassermann, 1994), originando-se na interpretação da passagem bíblica a exclusão social dessas pessoas. A mulher é apresentada como uma das pessoas mais importantes da vida de Jesus Cristo de forma magnífica pelo humor ácido de José Saramago em seu O Evangelho Segundo Jesus Cristo:6
De certeza que a mulher ajoelhada se chama Maria, pois de antemão sabíamos que todas quantas aqui vieram juntar-se usam esse nome, apenas uma delas, por ser ademais Madalena, se distingue onomasticamente das outras, ora, qualquer observador, se conhecedor bastante dos factos elementares da vida, jurará, à primeira vista, que a mencionada Madalena é esta precisamente, porquanto só uma pessoa como ela, de dissoluto passado, teria ousado apresentar-se, na hora trágica, com um decote tão aberto, e um corpete de tal maneira justo que lhe faz subir e altear a redondez dos seios, razão por que, inevitavelmente, está atraindo e retendo a mirada sôfrega dos homens que passam, com grave dano das almas, assim arrastadas à perdição pelo infame corpo. É, porém, de compungida tristeza a expressão do seu rosto, e o abandono do corpo não exprime senão a dor de uma alma, é certo que escondida por carnes tentadoras, mas que é nosso dever ter em conta, falamos da alma, claro está, esta mulher poderia até estar inteiramente nua, se em tal preparo tivessem escolhido representá-la, que ainda assim haveríamos de demonstrar-lhe respeito e homenagem (Saramago, 1991, p. 15).
O abandono do exercício do ofício como redenção é uma constante literária, mas não somente. Também é uma questão social, com a denominação contemporaneamente utilizada para designação das trabalhadoras sexuais como “pessoas em situação de prostituição”. Saramago a aborda quando Maria, mãe de Jesus Cristo, a abençoa com um abraço e um beijo, após ouvir a seguinte apresentação: “Sou Maria de Magdala e fui prostituta até conhecer o teu filho” (Saramago, 1991, p. 344). Na literatura brasileira do séc. XIX, a redenção só é possível após a morte da prostituta Lucíola, narrada por José de Alencar (1999) no romance que chocou a sociedade fluminense e brasileira da época.
A voz desfaleceu completamente, de extenuada que ela ficara por esse enérgico esforço. Eu chorava de bruços sobre o travesseiro, e as suas palavras suspiravam docemente em minha alma, como as dulias dos anjos devem ressoar aos espíritos celestes.
-Nunca te disse que te amava, Paulo!
-Mas eu sabia, e era feliz!
-Tu me purificaste ungindo-me com os teus lábios. Tu me santificaste com o teu primeiro olhar! Nesse momento Deus sorriu e o consórcio de nossas almas se fez no seio do Criador. Fui tua esposa no céu! E com tudo essa palavra divina do amor, minha boca não a devia profanar, enquanto viva. Ela será meu último suspiro (Alencar, 1999).
A ideia de que a prostituição é um meio, trabalho provisório até que se consiga “sair dessa vida”, reduz os profissionais a objetos, sendo-lhes negada a condição de “fim em si mesmo” preconizada pela dignidade da pessoa humana. É, portanto, necessária e plenamente possível uma adequação da legislação infraconstitucional ao direito à igualdade, à dignidade da pessoa humana, à livre iniciativa e ao direito ao exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, regulando a atividade das profissionais do sexo, uma vez que esta é uma demanda de diversos coletivos, associações e ativistas individuais.
É necessário alguma sensibilidade no tratamento do tema, sobretudo diante da ausência de consenso quanto à identidade e até auto-identidade entre trabalho e prostituição. Mesmo entre as prostitutas, o tema divide opiniões. Remete-se à autonegação da própria condição do trabalho que fazem à sua condição humana, espécie tributária da lógica hegeliana de senhor e escravo, e do preconceito com sua própria situação de ser profissional e de ser humano. É, portanto, problemática a tarefa de se pedir às prostitutas que não se consideram prostitutas para lutarem pelos direitos e pela própria causa (Méis, 2010, p. 248).
Até onde se parece mais clara a luta de reconhecimento e valorização de seu labor, ressurge disfarçado o espaço da autonegação da prostituta como ser digno de direitos. Um exemplo são as manifestações conhecidas como “Marcha das Vadias”. Qual deve ser a acepção do termo “vadia” no imaginário de suas integrantes e na sociedade contemporânea? É preciso, portanto, levar em conta a persistência da cultura de exclusão ou de coisificação da atividade que realizam no processo e na possibilidade de autoafirmação feminina por meio da liberdade sexual e comportamental.
Poderíamos discutir o tema no âmbito da filosofia política, especialmente de viés marxiana, em busca de uma explicação para o fenômeno e até como crítica à proposta de reconhecimento da profissão da prostituta como atividade regulada (ou forma de apropriação privada do próprio ser). Embora sejam argumentos importantes, assim como a instrumentalização do corpo como forma de domínio da biopolítica, estamos alguns passos atrás numa posição de direito a ter direitos. Sob as luzes do liberalismo e da economia capitalista, a centralidade do direito ao trabalho como dimensão de dignidade do ser humano ou como elemento desenvolvedor da sua personalidade requer, ao menos estrategicamente, que se lute pela afirmação da atividade da prostituta como trabalho.7
A moral contra a prostituição
Há uma justificativa moral e religiosa para a exclusão das trabalhadoras sexuais da proteção estatal, pois o sexo não é visto como força de trabalho como o trabalho físico ou intelectual. E não seria todo trabalho uma a venda de força, ou somente se trabalha por amor, pela necessidade de reprodução? Recorre-se à Lispector para que se faça entender:
Ainda continuo um pouco sem jeito na minha nova função daquilo que não se pode chamar propriamente de crônica. E, além de ser neófita no assunto, também o sou em matéria de escrever para ganhar dinheiro. Já trabalhei na imprensa como profissional, sem assinar. Assinando, porém, fico automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como se estivesse vendendo minha alma. É verdade. Mesmo quando não é por dinheiro, a gente se expõe muito. Embora uma amiga médica tenha discordado: argumentou que na sua profissão dá sua alma toda, e no entanto cobra dinheiro porque também precisa viver. Vendo, pois, para vocês com o maior prazer uma certa parte de minha alma - a parte de conversa de sábado (Lispector, 2010, p. 133).
O olhar negativo que se tem sobre a prostituição decorre da associação de dois pecados capitais, quais sejam, a luxúria e a preguiça. A ideia de que as prostitutas não gostam de trabalhar é transmitida na linguagem coloquial que as alcunha de “mulher de vida fácil”. Em razão desta associação, negam-se a elas e aos demais profissionais do sexo (homens e homossexuais) vários direitos fundamentais, dentre os quais os direitos trabalhistas, pois não são vistos como trabalhadores, mas como vagabundos/preguiçosos.
Esses obstáculos de viés moral e religioso são expandidos dos núcleos familiares para os macrosistemas sociais: a escola, o trabalho, a comunidade e a sociedade. Dessa forma, pretende -se verificar se ocorreu, verdadeiramente, em algum paradigma jurídico, a dissolução da tríade direito/ moral/religião aclamada pelos estudiosos da Modernidade ou se sempre se precarizou essa dissolução quando o assunto é sexualidade. Os direitos sexuais põem à prova a efetividade dessa dissociação, do desfazimento deste “amálgama normativo” (Carvalho, 1997) e escancara a sua persistência na denominada “pós-modernidade”, à qual os autores optam por denominarem contemporaneidade.8 A releitura dos direitos de igualdade e liberdade, bem como a concepção de essencialidade e correspondência entre eles, necessária à efetivação da dignidade da pessoa humana ao se reconhecer a existência de direitos sexuais, é urgente para o efetivo desfazimento deste imbróglio.
Na obra O Direito à Igualdade na Constituição Brasileira: Comentários ao Estatuto da Igualdade Racial e a constitucionalidade das ações afirmativas na educação, apresentou-se entendimento acerca do direito de igualdade, amparada pela concepção dworkinana. Assim:
A concepção atual do princípio da igualdade, pautada pelo paradigma do Estado Democrático de Direito, que reconhece a normatividade dos princípios, não se contenta com o seu mero reconhecimento formal, sendo necessário que o Estado e a sociedade, de forma conjunta, envidem todos os esforços para a materialização da igualdade, assegurando-se a todos os indivíduos o direito de participar da vida política da sociedade. Para tanto, deve-se levar em consideração que a igualdade democrática não tem caráter homogeneizante, mas é um direito fundamental que impõe o dever de respeito e consideração pelas diferenças dos indivíduos, em virtude do pluralismo e da complexidade da sociedade contemporânea (Lobo, 2013, p. 197).
Por quanto à liberdade, afirma Dworkin:
Segundo a igualdade de recursos, os direitos à liberdade que consideramos fundamentais são uma parte ou um aspecto da igualdade distributiva, e estão, portanto, automaticamente protegidos sempre que se alcança a igualdade. A prioridade da liberdade está assegurada, não à custa da igualdade, mas em seu nome (Dworkin, 2005, p. 177).
O direito é produção social, influenciado pelo tempo e espaço, bem como pela cultura, filosofia, política e economia, cujo embasamento atual reside na dignidade da pessoa humana, sendo necessária a revisão da laicidade estatal para sua efetividade.
Sampaio, ao apresentar a história do Constitucionalismo, apresenta a necessária distinção entre secularização e laicização:
Embora haja um uso indistinto entre secularização e laicização, os dois termos não se equivalem. Ambos se relacionam com a diferenciação moderna entre a esfera público-estatal e religiosa. A secularização se refere mais diretamente à perda de importância social e política do sistema de valores, das instituições e práticas religiosas. É mais um fenômeno social e cultural que político. Secular é o que não é religioso, é o dessacralizado e o profano, submetido às regras da razão. Significava originariamente o processo de expropriação dos bens eclesiásticos pelos príncipes protestantes, seguindo-se, historicamente, pela separação entre igreja e Estado, bem como pela perda do monopólio religioso da educação pública. Laicidade é a qualidade do Estado que afasta a religião de seus domínios e da esfera pública em geral. Trata-se de uma concepção mais política que social. Não importa, todavia, a negação do religioso na esfera privada, impondo, bem ao contrário, a neutralidade ou imparcialidade em relação às orientações religiosas (2013, p. 6).
O Estado laico é um desafio para que se implementem os direitos humanos, principalmente relacionados à sexualidade e à reprodução. A confusão entre os dois domínios, Estado e religião, importa a negativa à sociedade plural e aberta, convertendo-se o direito em instrumento de força da catequese do credo e moral oficiais. É a negativa da autonomia e afirmação dos seres humanos como agentes morais. Somente no Estado laico, a liberdade de consciência ganha possibilidade de expressar-se, inclusive como formas de religiosidade ou de seu contrário. Nele, todas as religiões recebem igual consideração e profundo respeito, todas as crenças como crenças têm lugar. Nele, enfim, nem o Estado avança sobre as religiões como superego de uma moral dogmática, nem as religiões avançam nos domínios do Estado como projeto de poder, por exemplo, mediante bancadas religiosas no Legislativo (Piovesan, 2008, p. 14).
Não se está aqui a dizer que o direito deva ser cego à moral e à ética, relação de pertinência que deve existir na tensão entre a moralidade plural e a tarefa de pretensa certeza do direito, solucionada de modo dinâmico pela aplicação dos princípios jurídicos no exercício do monopólio estatal da coerção. O que não se deve admitir é a negação ao acesso a direitos fundamentais, por uma argumentação religiosa.
Há trabalhadoras sexuais, como vimos, que enxergam o exercício de sua atividade como um rito de passagem para uma vida futura, entretanto, a temporariedade do exercício de um trabalho não lhe retira a qualidade de trabalho em si.
Direito e moral a favor da prostituição
A marginalização da prostituição decorre de um discurso moral e religioso de vedação à prática de sexo por prazer ou por necessidade, mas tão somente voltada aos fins da procriação.
Várias vezes ouvimos nos depoimentos que o dinheiro da prostituição não dura porque é amaldiçoado. Esta frase, muitas vezes repetida, tem um importante significado simbólico. A verdade é que não é o dinheiro que é amaldiçoado. A maldição está nas mentes e mãos das prostitutas. É uma maldição social e psicológica que acaba por tornar suas vidas caóticas, impedindo com isso, que guardem o dinheiro que conseguem. Para organizar a vida é essencial parar o trânsito contínuo, é necessário criar vínculos com pessoas e lugares. Mas, prisioneiras da liminaridade, elas correm sem rumo para chegar a lugar nenhum, ou melhor, para chegar à morte. É por isso que prostituta morre cedo, como nos disseram várias entrevistadas (Méis, 2010, p. 240).
Os pregadores da Reforma Católica demonizaram a utilização dos órgãos sexuais para outros fins que não a procriação, subsistindo na doutrina católica essa concepção expressa na condenação ao homossexualismo, aborto, métodos anticoncepcionais e prostituição. Esse pensamento é paralisador do direito à liberdade de disposição do próprio corpo e do próprio sentido de autonomia. De maneira geral, as religiões (e, consequentemente, os fiéis -eleitores e os fiéis-juízes) são grandes obstáculos a serem transpostos para que se avance na proteção à liberdade sexual e à igualdade advinda deste reconhecimento (D’Cunha, 1992).
Para se assegurar a efetividade da igualdade no Estado Democrático não se pode ter em mente a ideia de princípio majoritário. É essencial à realização da democracia constitucional a contra majoritariedade.
Se rejeitarmos a premissa majoritária, precisaremos de uma explicação diferente, e melhor, do valor e da finalidade da democracia. Vou defender agora uma explicação -que chamo de concepção constitucional de democracia- que efetivamente rejeita a premissa majoritária. Segundo essa explicação, o fato de as decisões coletivas serem sempre, ou normalmente, as decisões que a maioria dos cidadãos tomaria se fossem plenamente informados e racionais não é nem uma meta nem uma definição da democracia. O objetivo que define a democracia tem de ser diferente: que as decisões coletivas sejam tomadas por instituições políticas cuja estrutura, composição e modo de operação dediquem a todos os membros da comunidade, enquanto indivíduos, a mesma consideração e o mesmo respeito. É certo que essa explicação alternativa do objetivo da democracia exige uma estrutura de Estado muito semelhante à exigida pela premissa majoritária. Exige que as decisões políticas do dia-a-dia sejam tomadas por agentes políticos escolhidos nas eleições populares. Porém, a concepção constitucional requer esses procedimentos majoritários em virtude de uma preocupação com a igualdade dos cidadãos, e não por causa de um compromisso com as metas da soberania da maioria. Por isso, não opõe objeção alguma ao emprego deste ou daquele procedimento não-majoritário em ocasiões especiais nas quais tal procedimento poderia proteger ou promover a igualdade que, segundo essa concepção, é a própria essência da democracia; e não aceita que essas exceções sejam causa de arrependimento moral (Dworkin, 2006, p. 26).
Entretanto, mesmo após o desenvolvimento e o avanço da medicina contraceptiva, em um claro reflexo à liberdade sexual conquistada, sobretudo, na década de 1960, bem como a viabilização da discussão aberta sobre práticas sexuais e homossexuais, a exploração comercial da libido feminina por meio de produtos eróticos e literatura erótica,9 e a auto declaração comportamental como “vadia” em marchas, em resposta à violência sexual, persiste o tabu relativamente à prostituição. Esta repugnância justifica, ainda que veladamente, a violência praticada contra esses profissionais.
Não se lhes toma somente a dignidade relativa à possibilidade de se reconhecerem como trabalhadores,10 mas a própria dignidade de ser pessoa, de ser humano, cuja integridade corporal deva ser resguardada e protegida. Vê-se uma confusão social entre a liberdade de disposição do próprio corpo, mediante a livre iniciativa e venda da força de trabalho (como toda e qualquer profissão, seja o trabalho prevalentemente físico ou intelectual, a ser, portanto, tratado em seu processo de alienação de mão de obra), e o respeito à integridade corporal dessas pessoas: “Joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!” (Buarque, 1978).
Pode-se dizer que a regulação do trabalho sexual possui a possibilidade de se reconhecer socialmente (de maneira formal, sendo necessária a mudança cultural da mentalidade) a dignidade das trabalhadoras sexuais, mediante um tratamento igualitário ao dispensado aos demais trabalhadores, com a mesma consideração e respeito, atentando-se, contudo às peculiaridades do ofício, viabilizando o reconhecimento dessas pessoas também como fim em si mesmo, ainda que o exercício da atividade seja visto por elas próprias como algo passageiro (meio) em suas vidas.
São várias as consequências sociais da regulação do trabalho sexual para além de uma preocupação tão somente com o reconhecimento dos direitos trabalhistas, quais sejam: a possibilidade de redução da criminalidade que decorre do contexto marginal em que vivem os prostituídos, associados a crimes, como por exemplo, o tráfico de drogas e ao rufianismo; a discussão aberta sobre prostituição e saúde pública, por meio de atividades de prevenção de dst, bem como o debate e possibilidade de descriminalização do aborto; a tributação da prestação de serviços de prostituição; aspectos previdenciários do profissional do sexo.
A regulação do exercício da atividade implicará também restrições ao exercício da prostituição, por exemplo, com a determinação de serem observadas normas de vigilância sanitária, inclusive mediante a utilização obrigatória de preservativos, ou estar com alguma vacina em situação de regularidade.
Não se pode admitir a persistência desse tipo de discriminação, pois, se apresenta como vilipêndio à dignidade da pessoa humana.11 Em alguns países do mundo, por exemplo, a Holanda, a legislação vem avançando no reconhecimento de direitos aos profissionais do sexo. Entretanto, há retrocessos que também ganham destaque e força, por exemplo, a aprovação pela França de lei que visa à punição de clientes que se utilizarem dos serviços de prostituição.12
A prostituição no direito comparado
O direito comparado revela um quadro heterogêneo no reconhecimento do trabalho das profissionais do sexo, bem como descriminalização de sua prática, caracterizam a análise do direito comparado. Em geral, é tratada no âmbito da licitude com ou sem regulamentação. Ou no plano da ilicitude (Banach e Metzenrath, 2000; Barnett, Casavant y Nicol, 2011), na Nova Zelândia, por exemplo, é uma atividade lícita, um trabalho como outro, sem necessidade de regulamentação específica. A licitude regulada aparece, por exemplo, na Alemanha, na Austrália, na Áustria, em alguns condados rurais do Estado de Nevada nos Estados Unidos, na Grécia, na Holanda, na Hungria, na Suíça, na Tunísia e na Turquia, podendo ser muito invasiva ou disciplinada, como em Nevada, ou sem maiores rigores ou exigências, como na Holanda.
A ilicitude comporta graus, tendendo-se a uma zona gris entre a licitude, nos modelos abolicionistas e, em menor extensão, nos neoabolicionistas, até chegar ao proibicionismo (Chuang, 2010). No primeiro modelo, abolicionista, a atividade não é ilícita, mas é considerada um problema social que deve ser enfrentado por políticas públicas e criminais que impeçam ou punam sua facilitação ou encorajamento. Pune-se, assim, o rufianismo e a casa de prostituição. É adotado em países como Canadá, França, Polônia, Portugal e Reino Unido. Por vezes, tolera-se a prática da prostituição, mas sem reconhecê-la como trabalho ou profissão. Dá-se assim no Brasil, na Espanha e na Bélgica - este último analisa projeto de lei para regulação. Na América Latina, as casas de prostituição são descriminalizadas e reguladas no México, Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela (Viana, 2012).
Os neoabolicionistas enxergam na atividade uma forma de violência contra os direitos humanos da mulher. Não se pune a prostituta, mas os seus clientes. É como sucede na Islândia, Noruega e Suécia (Farley, 2004).
O proibicionismo criminaliza as trabalhadoras ou os clientes. São proibicionistas, alguns adotando punições capitais, a Arábia Saudita, Belize, Birmânia, China, Coreia do Sul, Egito, Emirados Árabes Unidos, Filipinas, Iêmen, Irã, Laos, Letônia, Marrocos, Mongólia, Nepal, Sri Lanka e Vietnã. É também a orientação seguida pelos Estados Unidos, excepcionados alguns condados de Nevada. Merece registro, todavia, a decisão da Suprema Corte do país que, em junho de 2011, afastou a cláusula antiprostituição estabelecida como requisito para que entidades fossem beneficiadas com programas de financiamento para prevenção e combate da AIDS pela PEPFAR (U. S. Global Aids Coordinator, 2011).
A prostituição no direito brasileiro
No Brasil, o reconhecimento da importância econômica do trabalho sexual se manifestou pela sua inclusão na Classificação Brasileira de Ocupações, elaborada pelo Ministério do Trabalho em 2002. Esse tipo de ação demonstra a união das profissionais visando ao reconhecimento de iguais direitos relativos à liberdade de iniciativa e à valorização do trabalho humano.
É um passo importante, mais ainda é muito pouco. Historicamente, o Legislativo se tem mostrado pouco sensível às causas sociais dos excluídos, sobretudo se a temática é moral e religiosamente condenável, diante da possibilidade de “abalo” da imagem dos políticos que levantam a bandeira ou se manifestam a ela favoráveis. A invisibilidade política é retratada por Dworkin:
Em primeiro lugar, o grupo pode ser tão marginalizado financeira, social e politicamente, que lhe faltem meios para chamar a atenção dos políticos e dos outros eleitores para seus interesses e, assim, não exercer o poder nas urnas, ou em alianças ou barganhas com outros grupos, que se esperaria que o número de componentes do grupo fosse capaz de produzir. Em segundo lugar, pode ser vítima de vieses, preconceitos, ódios ou estereótipos tão graves que a maioria queira reprimi-lo ou puni-lo por tal motivo, mesmo quando as punições não sirvam a nenhum outro interesse, mais respeitável ou legítimo, de outros grupos (2006, p. 656).
No Legislativo federal, o projeto de lei nº 98/2003, elaborado pelo deputado Fernando Gabeira, visando à regulação da prostituição, foi arquivado. A maior justificativa para rejeição do projeto de lei residiu na inobservância à moralidade, manifestada pelos deputados Paulo Maluf e ACM Neto.13
Em 12/07/2012, foi apresentado na Câmara dos Deputados o projeto de lei Lei Gabriela Leite (PL nº 4.211/2012) de autoria do deputado federal Jean Wyllys, que visa à regulação do trabalho sexual de forma autônoma ou coletiva por cooperativas, fundamentado na lei alemã que regulamenta as relações jurídicas das prostitutas (Gesetz zur Regelung der Rechtsverhältnisse der Prostituierten --Prostitutionsgesetz-ProstG). A Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, sob a relatoria do Deputado Pastor Eurico (PSB-PE), rejeitou o referido projeto de lei, fundamentando a rejeição em diversos argumentos, sendo necessário destacar aquele segundo o qual não há tolerância da prostituição em qualquer passagem do Novo Testamento. Relator da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, o deputado federal Eurico afirmou em seu voto:
Também tem sido lugar comum, mesmo entre ateus, citar passagem bíblica em que Jesus defende uma prostituta da morte por apedrejamento como justificativa para apoiar a prostituição. Trata-se de uma leitura totalmente descontextualizada da Bíblia. Jesus defende a pessoa que cometeu o pecado mas não a prostituição, dizendo: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra”. Depois disse para a adúltera: “vai-te e não peques mais”. Aliás, a suposta tolerância diante da prostituição não existe nessa ou em qualquer passagem do Novo Testamento (Supremo Tribunal Federal, 2013).
No Judiciário, é escasso o enfrentamento do tema, sendo de grande relevância a sentença proferida pelo juiz da 2ª Vara Criminal de São Gonçalo-RJ, André Luiz Nicolitt, nos autos do processo nº 0056213-63.2010.8.19.0004, no qual o magistrado, analisando denúncia do crime de formação de quadrilha (art. 288 do Código Penal) pela suposta exploração sexual de mulheres adultas, cujo objeto seria a venda do sexo, absolveu os réus, por entender que a casa de prostituição é uma conduta social aceita pela sociedade e, em não havendo tráfico de pessoas ou exploração sexual de menores, não configuraria a conduta tipificada como formação de quadrilha. Fundamentou o juiz a sua decisão utilizando-se do princípio da secularização, sob o argumento de que “o moderno direito penal não pode considerar crimes condutas que mais se aproximam de pecado” (Supremo Tribunal Federal, 2011).
No âmbito da especializada trabalhista, o Tribunal Superior do Trabalho, em 2013 (Tribunal Superior do Trabalho, 2013), entendeu pela existência de vínculo empregatício entre garçom e casa de prostituição. Contudo, não há decisão judicial que envolva o reconhecimento do exercício do trabalho de prostituição tout court.
Conclusão
Às trabalhadoras sexuais é negada a condição de sujeito de direito, pela negativa do seu direito fundamental ao trabalho. Sua dignidade é relativizada, senão negada. A possibilidade de regulação do trabalho sexual, sob a óptica do Direito Constitucional contemporâneo, funda-se no resgate dessa dignidade excluída e no pressuposto democrático constitucional, que impõem a todos igual respeito e consideração, inclusive e principalmente contra a vontade empírica da maioria.
A Constituição se apresenta como possibilidade, não como um dado, mas como um construído, por meio de ações jurídicas e políticas que concretizam os direitos fundamentais, ainda que contramajoritariamente, no presente caso, mediante o reconhecimento da igualdade e liberdade das trabalhadoras.
A Constituição como elemento que apazigua, mas também como fonte de tensão no âmbito de uma sociedade plural, deve ser instrumento emancipatório de grupos sociais marginalizados, não se fechando ao dissenso. Somente assim, possibilita a efervescência participativa militante social, política e acadêmica para efetividade dos direitos fundamentais. O convite à reflexão agora se faz:
Won’t you help to sing / these songs of freedom /
‘Cause all I ever had / Redemption songs /
Redemption songs (Marley, 1984).