Introdução
As novas Margaridas, que nomeiam esse artigo, são jovens mulheres agricultoras, que desempenham práticas agroecológicas e lutam pela visibilização do trabalho e do papel da mulher no ambiente rural. A inspiração veio de Margarida Maria Alves, ativista, líder sindical e camponesa executada em 1983 por reivindicar o direito à terra, justiça e igualdade. Ela é considerada um mártir na luta das mulheres rurais, sendo homenageada pelo maior movimento feminino agroecológico do Brasil, a “Marcha das Margaridas”, que a cada 4 anos reúne camponesas de todo o país na luta por seus direitos (Moreira, 2019, p. 50).
Ser mulher é nascer marcada por uma norma social, mesmo antes de entender ou de desenvolver capacidade crítica, é ter sua existência ligada ao feminino, ao cuidado e ao lar. Ao olhar para a mulher do campo, o trabalho árduo ganha o nome de “ajuda”, e seu reconhecimento de “invisível” (Herrera, 2019, p. 39). As agricultoras executam o trabalho doméstico, o cuidado da família, por vezes o labor do campo, preparo, plantio e colheita. Contudo, administram somente 18,7% das propriedades rurais do País (IBGE, 2019).
Além das inúmeras funções desempenhadas pelas mulheres, elas são apontadas como pioneiras na transição agroecológica e na perpetuação dos saberes camponeses. Constroem hortas orgânicas ao redor da casa, e provém alimentos seguros, diversos e de qualidade ao núcleo familiar. O cultivo de subsistência confere autonomia e estabilidade, uma vez que a camponesa controla a qualidade e quantidade da produção, além de realizar o manejo sustentável, sem utilização de venenos. Sendo assim, em muitos casos, a mulher rural promove a saúde da família e do ambiente, garantindo acesso regular à alimentação e a promoção da segurança alimentar e nutricional (Siliprandi, 2015).
A Segurança Alimentar e Nutricional foi conceituada no âmbito brasileiro em 2006. Ela é definida como um direito de acesso a alimentos regularmente, em quantidade e qualidade suficientes. Ainda, prevê práticas alimentares que promovam a saúde, que respeitem a diversidade cultural, e que permeiem práticas economicamente, socialmente e ambientalmente sustentáveis (Ministério da Saúde - MS, 2004). Nesse sentido, a saúde e a alimentação estão interrelacionadas, uma vez que o papel dos alimentos vai além do biológico nutricional, contemplando relações mais profundas em quase todas as cearas da vida (Nitzke et al., 2016).
Frente à desigualdade de gênero no meio rural e a invisibilização do trabalho feminino, surge no Brasil e na América Latina o “Feminismo Camponês Popular”, pautado nas demandas específicas dessa população. O movimento imprime resistência, questionando as relações de gênero, a violência contra a mulher e tensionando a discussão sobre o protagonismo feminino camponês. Ademais, esse feminismo reconhece as práticas agroecológicas como bandeira política, por seu caráter popular e promotor de comunidades mais justas e igualitárias (Calaça, Conte e Cinelli, 2018).
A agroecologia é um conceito que leva em consideração questões políticas, além das ambientais e de produção. Tem como premissa o questionamento das relações econômicas, uma vez que luta pelo fortalecimento da autonomia da agricultura familiar. Nesse sentido, a agroecologia se conecta com a dimensão social, reafirmando seu caráter popular e cultural. Além da busca pela redução da desigualdade social, o movimento agroecológico incorpora os saberes agrícolas/ alimentares acumulados pelas comunidades tradicionais, visando a multiplicação e perpetuação de práticas socioculturais dos agricultores (Conway, 1987).
Munido desses preceitos, esse artigo traça a trajetória de cinco agricultoras que conheceram a agroecologia por meio da educação rural. Nesse cenário, destacase a Escola Família Agrícola de Santa Cruz do Sul, principal ponto de intersecção entre as entrevistadas. A Escola é referenciada na pedagogia de alternância, que dialoga com a concepção da educação popular de Paulo Freire (1987), em que o conhecimento é edificado no contexto de vida do aluno e vinculado à prática social. Essa pedagogia busca a reflexão dos sujeitos sobre seu lugar no mundo e sobre as opressões vividas, dessa forma, desenvolvendo o pensamento crítico e de sua autonomia.
A autonomia tem sua conceituação relativa e frequentemente discutida no meio acadêmico. Para esse estudo, utilizamos a concepção dos autores Gastão Campos e Márcia Amaral (2007, p. 852), que a entendem “não como a ausência de qualquer tipo de dependência, mas como uma ampliação da capacidade do usuário de lidar com sua própria rede ou sistema de dependências”. Nessa perspectiva, entende-se que a educação libertadora tem capacidade de auxiliar nos processos de empoderamento individual e coletivo. Uma vez que possibilita um espaço de criticidade, de auto(re) conhecimento e de autovalorização, disponibilizando ferramentas para o entendimento de sua posição na sociedade, na política, na cultura, e sobre si (Sardenberg, 2006, p. 2).
Frente ao exposto, a apresentação e discussão dos resultados se dará em três marcadores analíticos: A educação rural como ferramenta de transformação; Margaridas: agroecologia, gênero e perspectivas; e Agroecologia, Segurança Alimentar e Nutricional e promoção da saúde. Objetiva-se analisar, nas narrativas de jovens agricultoras agroecológicas, a influência da educação rural e da agroecologia nas transformações geracionais das relações de gênero, e suas percepções sobre a agroecologia.
Metodologia
Trata-se de um estudo exploratório de cunho qualitativo descritivo, cujos dados foram produzidos através de entrevista semiestruturada e submetidos à Análise Temática. A amostra foi determinada por conveniência, com a participação de cinco mulheres agricultoras agroecológicas, com intervalo de idade entre 19 e 25 anos, de 3 diferentes municípios do Vale do Rio Pardo, Rio Grande do Sul, Brasil. Todas as entrevistadas autorreferiram cor de pele branca.
A seleção das participantes foi realizada de acordo com a técnica “bola de neve”, em que se identificou a primeira participante por meio de redes sociais, e esta indicou outras possíveis participantes. Essa metodologia é utilizada em estudos qualitativos, para abordar grupos específicos e ou com difícil acesso (Vinuto, 2014, p. 203). Foram considerados como critérios de inclusão: ser mulher, ter idade entre 18 e 30 anos; ser moradora do Vale do Rio Pardo - Rio Grande do Sul; desempenhar alguma atividade de base agroecológica. Os depoimentos foram realizados de forma online, devido às restrições de contato ocasionadas pela pandemia de COVID-19.
Algumas informações gerais foram coletadas para traçar o perfil das entrevistadas. Em sua maioria apresentavam ensino superior incompleto (n=3), seguido de ensino médio completo (n=1) e de ensino superior completo (n=1). Todas participantes frequentaram, em algum nível educacional, instituições que tinham nos seus planos de curso a agroecologia, sendo que três entrevistadas eram graduandas em agroecologia pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Nomeamos as entrevistadas com termo “agricultoras agroecológicas”, singularizando cada uma por meio de cores diferentes de Margarida.
O perfil detalhado das entrevistadas: Margarida Amarela - 21 anos, solteira, residente de Venâncio Aires, secretária e agricultora. Cursa graduação em agroecologia pela UERGS. Margarida Branca - 25 anos, em união estável, residente de Santa Cruz do Sul, contadora e agricultora. Cursa graduação em agroecologia pela UERGS. Margarida Azul - 22 anos, em união estável, residente de Santa Cruz do Sul, garçonete e agricultora. Cursa graduação em agroecologia pela UERGS. Margarida Lilás - 19 anos, solteira, residente de Herveiras, estudante e agricultora. Cursa graduação em agronomia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Margarida Vermelha - 21 anos, em união estável, residente de Venâncio Aires, agricultora. Possui Ensino médio completo pela Escola Família Agrícola de Santa Cruz do Sul (EFASC).
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade de Santa Cruz do Sul sob o parecer nº 3.796.909. A realização das entrevistas foi fruto de um esforço conjunto entre a pesquisadora e as pesquisadas, tendo em vista que o meio rural sofre com o acesso precário às redes de telefone e de internet. Para viabilizar as entrevistas, algumas participantes necessitaram de deslocamento para localidades mais próximas da zona urbana. As gravações e transcrições foram posteriormente submetidas à Análise Temática.
Esse tipo de análise tem como principal objetivo a identificação de temas para discussão. O “tema” é caracterizado como uma unidade de significação que capta a relevância nos dados produzidos de acordo com o objetivo da pesquisa. Sendo assim, é um método interpretativo que observa, identifica e analisa padrões a partir das questões pesquisadas. Para a realização da análise foram seguidas seis etapas previstas no método: leitura e familiarização com as transcrições; determinação de marcadores de falas (códigos); procura por temas; revisão e criação de mapa de temas; nomeação dos temas; e por fim produção de relatório (Braun e Clarke, 2006, p. 14).
Discussão e resultados
Para apresentação e discussão dos resultados foram elencados três marcadores analíticos extraídos das transcrições: A educação rural como ferramenta de transformação; Margaridas: agroecologia, gênero e perspectivas; e Agroecologia, Segurança Alimentar e Nutricional e promoção da saúde.
Educação rural como ferramenta de transformação
Apesar dos diferentes perfis, idades, origens e estados civil, a educação rural foi ponto de convergência nas trajetórias das entrevistadas. Dentre elas, quatro haviam frequentado a EFASC, uma escola de ensino médio e técnico, voltada para os filhos e filhas de agricultores da região. Em adição, quatro das entrevistadas deram continuidade nos estudos, ingressando em universidades com graduações voltadas às ciências rurais, como o bacharelado em Agroecologia na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) e em Agronomia na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL).
A EFASC foi apontada como caminho para o descobrimento e a exploração da agroecologia, um espaço que fomenta o conhecimento e a valorização do campo, conforme refere Margarida Amarela, que atuou como multiplicadora, transmitindo os conhecimentos adquiridos na escola à sua família: “A escola agrícola ajudou muito a entender a importância do campo, do plantar. Aí fiquei interessada, e ao longo do tempo fui levando a agroecologia para casa”. Margarida Branca apresenta outra perspectiva, vê o campo inserido no âmbito global, conferindo um sentido de cuidado à natureza e otimização dos recursos: “Eu conheci a agroecologia estudando na escola família agrícola [...] Sempre foram voltados mais para um lado ecológico, de aproveitar mais os recursos que a gente tinha na propriedade”.
A escola iniciou suas atividades em 2009, fruto da luta da sociedade civil e de organizações locais, em colaboração com a União Nacional das Escolas Famílias Agrícolas do Brasil (Costa e Etges, 2016, p. 318). O plano de curso contempla temáticas como a agroecologia, desenvolvimento rural sustentável, o uso de agrotóxicos e o manejo ambiental (Vergütz, 2013, p. 162). Referenciada na pedagogia da alternância, suas atividades se dividem entre o campo teórico (aulas dentro da instituição) e o campo prático, em que os alunos retornam as suas propriedades rurais e desempenham os aprendizados junto a família e à comunidade (Costa e Etges, 2016, p. 311).
Essa estratégia pedagógica dialoga com a perspectiva da Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire (1987), que se baseia na construção do conhecimento por meio da reflexão sobre si e sobre o universo em que está inserido. Ou seja, apoiado nas experiências e nos modos de vida, para a elaboração de uma consciência de sua realidade. O autor defende que a educação libertadora tem papel primordial na modificação das relações sociais, uma vez que ao se encontrar no mundo, refletindo sobre as opressões vivenciadas, o sujeito constrói sua autonomia e liberdade. Nas falas das Margaridas, a EFASC aparece como uma ferramenta de transformação, relacionando a ela o processo de emancipação das alunas, o reconhecimento do trabalho rural, o ingresso em universidades, a promoção da saúde e o fortalecimento da autonomia.
A EFASC proporciona à juventude campesina uma educação que valoriza o campo. Reconhecendo a agricultura como trabalho essencial e central para condução da sociedade, fortalecendo suas lutas e reduzindo o êxodo rural. Margarida Branca, egressa da EFASC, relata sua predileção pelo campo e justifica: “Eu não me vejo morando na cidade [...] Então, morar no campo hoje é mais qualidade de vida”. Já Margarida Azul, que mora na cidade devido aos estudos, vai além, vê o campo como uma perspectiva de futuro: “Quero continuar fazer minha faculdade [...] a partir do momento que nossos planejamentos darem certo, o que a gente vai fazer é voltar para o interior”.
A articulação de movimentos agroecológicos locais se intensificou em 10 anos de EFASC. A partir das reivindicações dos docentes e discentes, houve a conquista do bacharelado em Agroecologia pela UERGS (Bernardo, Costa, Pozzebon e Schmitz, 2020, p. 2). Influenciadas pelos estudos na EFASC, três das entrevistadas ingressaram na primeira turma em 2019, conforme fala Margarida Branca: “Eu já sou formada em contabilidade, e no ano passado eu ingressei no bacharel em agroecologia. Isso, já foi em decorrência de ter estudado na escola agrícola”. Frente a esse dado, percebe-se que a educação rural, principalmente quando relacionada à agroecologia, tem lugar central no desenvolvimento de comunidades mais igualitárias e autônomas. Pode-se observar que a inserção das entrevistadas no movimento agroecológico abriu e ampliou espaços de questionamento, como a presença da mulher no meio rural, na universidade e no movimento agroecológico.
Margarida Branca foi aluna da primeira turma da EFASC, e relata a descoberta de se ver como minoria:
Não, não, não foi fácil. Até quando iniciou a primeira turma. Foi uma experiência diferente. Ter uma escola voltada mais para a área rural. Até uma turma de 40 e não tinha no máximo cinco meninas. Então ali que tu já começa a enxergar com a coisa é bem complicada. A integração das mulheres no movimento agroecológico na região ainda é minoritária.
Em 2017, apenas 20% dos alunos matriculados na EFASC eram mulheres (Souza, Vergütz e Costa, 2017, p. 105). Ainda, no Brasil, menos de um quarto das propriedades rurais são chefiadas pelas agricultoras. Numa retrospectiva histórica, esse número cresceu cerca de 6% em 11 anos (IBGE, 2019).
Margarida Branca completa sua narrativa revelando de forma positiva as transformações sociais e o engajamento feminino, percebido por ela dentro desse contexto: “Mas isso o passar do tempo foi mudando, hoje a gente vê já muitas jovens inseridas na escola, participando também de eventos, na própria comunidade, nas cooperativas que vão se formando. Então a mulher hoje já tá mais presente”. Outra entrevistada, Margarida Lilás, narra as estratégias das estudantes da EFASC na busca pela visibilidade: “Tanto na escola, quando a gente era menina, meninas lá em menor número, mas a gente tentava não ser sem voz, então a gente tava sempre presente, participando. E aí mais nesse sentido assim, a gente sempre presente”.
A escola articula maior inclusão feminina, evidenciada por Margarida Lilás: “Na própria EFASC, que sempre tenta buscar mais meninas para entrar na escola, para permanecer, pra estudar lá e a própria questão de monitoras, isso é uma coisa que a escola também sempre tenta mais monitoras, as próprias egressas”, em outra fala ela cita a afloração espontânea de um movimento feminino embrionário na instituição: “Acho que na escola a gente sempre teve esse movimento das mulheres, sabe? De reunir as gurias que tavam lá na escola, das monitoras, a gente faz parte da juventude de apoio às mulheres e à agroecologia”.
Margarida Amarela explicita a carência de organização, de representatividade das mulheres e de espaços de discussão sobre pautas femininas dentro do movimento agroecológico local: “Agora no movimento a gente percebeu a necessidade de grupo de mulheres para falar sobre seu espaço e trabalho”. A partir dessas demandas, as agricultoras agroecológicas da EFASC, em conjunto com o movimento da região, formaram o grupo denominado Articulação Mulheres e Agroecologia (AMA). Esse é composto por agricultoras e artesãs agroecológicas, professoras, alunas, pesquisadoras e outras. A AMA atua na promoção de conversas, eventos, socialização de pautas, assim como na determinação de ações voltadas às demandas das mulheres rurais (Bernardo, Costa, Pozzebon e Schmitz, 2020, p. 2).
Margaridas: agroecologia, gênero e perspectivas
O AMA pode ser considerado um exemplo de frente de luta do Feminismo Camponês Popular no Vale do Rio Pardo, uma vez que se entende que ele nasce da busca por espaços de discussão e reivindicação de pautas específicas. Margarida Vermelha relata as questões tratadas pelo grupo:
No AMA a gente se articula para falar do trabalho da mulher, que é o doméstico, de cuidado com a casa, com os filhos. Quando a gente participa de eventos, em congressos, tem pouca coisa sobre o trabalho da mulher, e principalmente na temática da maternidade, que é um tema central na vida da mulher do campo.
O Feminismo Camponês Popular foi construído a partir da realidade das mulheres campesinas do Brasil e da América Latina, levando em consideração intersecções como classe, gênero, etnia, entre outras. Sendo assim, se baseia na experiência concreta da vida prática das mulheres rurais, ribeirinhas, indígenas, quilombolas e das florestas. Sua agenda inclui a violência doméstica, a invisibilização do trabalho feminino, além da justiça social, do direito à terra e do respeito ao meio ambiente (Calaça, Conte e Cinelli, 2018, p. 1160). O Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), uma das principais plataformas do Feminismo Camponês Popular do Brasil, reconhece a agroecologia como bandeira política, por ter preceitos convergentes ao movimento (Chehab e Carvalho, 2020, p. 168).
Segundo a autora Sarah Moreira (2019, p. 71), dentro dos princípios da agroecologia estão igualdade e autonomia, os quais foram cooptados e traduzidos pelos movimentos femininos de luta camponesa no lema “Sem feminismo não há agroecologia”. Para Margarida Lilás, a agroecologia confere visibilização e contribui no processo de empoderamento feminino: “Porque a agroecologia também é uma forma de incentivar e de empoderar as mulheres. A gente vê que é importante nosso trabalho, tanto dentro de casa, quando ali na lavoura. Que é importante nosso trabalho, nosso estudo, nosso conhecimento”.
Quando questionadas sobre o papel da mulher na agroecologia, as entrevistadas identificam as camponesas na gênese do processo. Margarida Azul reconhece as mulheres como ponto inicial da produção agroecológica: “Acho que tudo tem a ver com agroecologia, porque a mulher assim... agroecologia começou nas hortas que as mulheres cultivavam”, Margarida Vermelha: “Elas que iniciam e cuidam das hortas, pensando na saúde da família, tem papel central”, e Margarida Amarela: “Quase sempre é a mulher que puxa essa frente e da horta. E aqui na minha casa foi assim, a mãe que puxou isso”. Os estudos de Emma Siliprandi (2015), Débora Santos e Silvia Zimmermann (2019), ratificam essa visão, apontando as agricultoras como pioneiras nas práticas agroecológicas.
Nesse ponto, Margarida Lilás relata seu reconhecimento e sua percepção sobre as mulheres da família, que ao longo das gerações perpetuavam a produção de subsistência orgânica, além de preservarem e transmitirem o conhecimento camponês de forma transgeracional, como sugere:
Como na verdade antes eu não tinha conhecimento desses outros sistemas de produção assim, é de forma indireta já se fazia. Tanto a minha vó, quanto a minha mãe nesses pequenos espaços aqui ao redor de casa elas já faziam. E aí quando eu entrei na escola eu pude perceber que já se fazia isso.
Ademais, a contribuição das mulheres rurais não se reduz ao cuidado ou transmissão da cultura camponesa, mas inclui a modificação e criação de novas tradições e saberes (Emma Siliprandi, 2015). As Margaridas se apresentam como agentes de transformação, inserindo nas propriedades familiares a produção agroecológica, conforme Margarida Vermelha: “A iniciativa da transição [agroecológica] foi minha, mas os pais apoiaram”. Margarida Branca narrou maior resistência nesse processo: “Sempre partiu mais de mim. Até não foi fácil inserir isso na propriedade. Naquela época eu briguei com meus pais [mudou a entonação], então foi bem difícil, sim”.
Mesmo com competência técnico-teórica para o manejo da propriedade familiar, Margarida Branca enfrentou adversidades para implementação de seu conhecimento. Suas falas refletem o enfrentamento da hierarquia familiar e de gênero, tensionando a autoridade paterna e o processo de ser mulher buscando mudanças na organização familiar, tradicionalmente regida pela figura masculina: “Ainda mais uma mulher vir e querer mudar. Porque nossos pais ainda vêm daquela de ‘ah sempre foi o homem que comandou a propriedade’”. Margarida Azul descreve sua percepção sobre o controle financeiro em propriedades familiares: “Apesar dela ter trabalhado igual por igual. A renda fica toda na mão dele. É ele que decide o que vai fazer com dinheiro, é ele que vai para cidade buscar o que precisa”.
As narrativas refletem os espaços de gênero na estrutura rural. Os afazeres do campo são divididos na unidade familiar, ao homem cabe a produção, a comercialização e a gestão administrativa, o chamado trabalho produtivo. Segundo Burg e Lovato (2007, p. 1524), a mulher é destinada ao dever do cuidado, do zelo pela casa e pela família, o trabalho reprodutivo. O mesmo compreende as atividades e relações sociais nas quais a existência acontece, ou seja, as funções fundamentais para a sustentação e perpetuação da vida.
O trabalho doméstico, que compõe parte das tarefas reprodutivas, garante o suporte para que cada membro da família possa desempenhar suas obrigações, servindo como base para o desenvolvimento do capital e do social (Federici, 2019, p. 68). Contudo, apesar de seu caráter essencial, não è reconhecido ou remunerado, sendo seu valor invisibilizado. Conforme Margarida Azul:
Muitas vezes a mulher, ela acompanha o marido no trabalho na roça de igual para igual, ela volta para casa ela ainda tem que fazer o almoço, ela ainda tem que cuidar dos filhos, e a renda familiar normalmente é somente o homem que cuida. Apesar dela ter trabalhado igual por igual.
As agricultoras exercem as funções da casa, além das atividades produtivas de subsistência como a manutenção de hortas e o trato de animais. Por muitas vezes, executam o labor do campo, participando das etapas de preparo do solo, plantio e colheita (Herrera, 2019; Federici, 2019, p. 277). A percepção da desigualdade de gênero foi relatada por Margarida Vermelha: “Sim, a mulher é sobrecarregada, além do trabalho doméstico ajuda na lida e na lavoura. Cuida dos filhos e da casa. A mulher sempre tem mais trabalho que o homem, mas não é reconhecido”. E por Margarida Lilás:
Porque a mulher ela tem que fazer tanto serviço de casa, cuidar dos filhos, ajudar o filho no tema de casa, tem que ir na lavoura, enquanto que os homens só se preocupam especificamente no trabalho agrícola, da lavoura. Então acho que é uma diferença que é muito visível, sabe? É muito visível.
Historicamente, o trabalho reprodutivo foi designado à figura feminina, construído socialmente como instintivo. Com pouca ou nenhuma remuneração, mesmo com uma intensa jornada, as atribuições da mulher rural são tomadas como uma responsabilidade intrínseca do nascer e ser “mulher” ou “mãe-esposa” (Butto, 2009). Pela atribuição social imposta a camponesa, seu trabalho por mais produtivo e ou equivalente ao do homem, segue ocupando um status de “obrigação” ou de “ajuda”, apesar de representarem 43% da mão-de-obra no campo (Herrera, 2019; Hirata e Kergoat, 2007).
A divisão das tarefas na família foi um ponto de intersecção nas entrevistas. Constatou-se uma reflexão acerca das relações de gênero e uma transformação geracional dessas estruturas. Sobre o tema, Margarida Lilás afirma:
Por exemplo, para os meus avós, basicamente é minha avó que faz serviço em casa tudo. Já agora para a geração da minha mãe, claro meu pai passa o dia inteiro fora basicamente. Só vem para o almoço e a janta, mas quando ela pede para ele fazer alguma coisa ele prontamente pega e faz, entendeu? Mas claro, a maioria [ênfase] dos serviços na casa quem faz é ela. E já da minha geração não. Vamos dividir o trabalho igualmente.
Em seu relato, Margarida Azul compara o ambiente em que cresceu, sem divisão igualitária das tarefas, com seu núcleo familiar atual. Destaca as diferenças e as mudanças percebidas:
Meu pai ele não, nas tarefas de casa ele não faz nada. Nada, nada, nada, nada. Todas as tarefas de casa são a minha mãe que faz. E hoje, eu posso dizer assim, na minha relação com meu marido, é meu marido faz mais de casa do que eu [sorri]. Ele cuida da nossa filha, é cuidado por igual.
Margarida Amarela problematiza as relações de gênero e como se movimentam transgeracionalmente. Na fala, fica explicita a mobilidade social da mulher, que foi se valorizando e transformando as estruturas familiares: “Meu bisavô não faz nada dentro de casa, meu avô já faz alguma coisa, já o meu pai tenta ajudar mais, no que ele pode, quando a minha mãe pede. Eu e meu namorado dividimos as tarefas igualmente, com o tempo as coisas estão mudando”.
Esses são alguns exemplos de como a juventude de mulheres, nos movimentos agroecológicos, percebem a sociedade, e como atuam em uma perspectiva de modificação das estruturas patriarcais. Elas tensionam o caráter coletivo do trabalho doméstico, distribuído e executado por todos os membros da família. Esses sentidos atribuídos nas narrativas promovem a projeção de um cenário mais justo e igualitário.
È importante ressaltar que as participantes inclusas nesse estudo são um recorte específico da população rural feminina brasileira. Ainda que componham um grupo minoritário, desfrutam de diversos privilégios. Todas as entrevistadas eram de cor de pele branca, suas famílias possuíam terras próprias, dispunham de uma rede de apoio bem estruturada, assim como de acesso à educação e a possibilidade de permanência na universidade. Essa conjuntura viabiliza o espaço de transformações, o que pode não se reproduzir em outros contextos. Como outras realidades, é o exemplo de agricultoras agroecológicas ribeirinhas, indígenas e quilombolas, que por muitas vezes estão isoladas territorialmente, ou aquelas em situações de vulnerabilidade socioeconômica, e em condições de vida precárias (Costa, Dimenstein e Leite, 2020).
Agroecologia, segurança alimentar e nutricional e promoção da saúde
As relações reprodutivas englobam o cuidado da saúde e da alimentação. As mulheres são as principais responsáveis pela produção e preparação das refeições, assim como a passagem do conhecimento camponês para suas descendentes. Protegem a família do consumo de veneno e possibilitam a diversificação alimentar (Siliprandi, 2015). A garantia do acesso a alimentos seguros, com produção local e sustentáveis, foi incluída como pauta do MMC. Além das questões de classe e gênero, o movimento protagoniza discussões sobre a defesa da saúde pública (Bertoncello, Badalotti e Kleba, 2018).
Nas entrevistas, a agroecologia foi indicada como uma prática de promoção da saúde dos indivíduos, da família e da comunidade. Margarida Lilás afirma: “A agroecologia é uma forma de pensar na saúde das pessoas, tanto daquelas que produzem (os agricultores, as agricultoras), quanto daquelas que consomem. Então acho que é pensando na saúde geral”. Margarida Vermelha conta sobre suas motivações para produção agroecológica: “A gente não gostaria de consumir um alimento com veneno e a gente não quer isso pros outros. Então a gente escolheu essa produção orgânica e agroecológica por isso. Respeita o meio ambiente, respeita as pessoas”.
O respeito ao coletivo e o cuidado em saúde surgiram como sinônimos de agroecologia. Margarida Amarela define: “Agroecologia é cuidar do campo, da natureza e da vida”, em outra fala: “Agroecologia é cuidar da saúde, da vida e também das pessoas”. Margarida Azul concorda: “Vida, porque eu acho que a agroecologia tem tudo a ver com o sentido de cuidar da vida, do respeito a vida. Da vida em si, do respeito à natureza, do respeito a vida das pessoas, respeito da vida dos animais”. E Margarida Vermelha: “Se a gente não usa veneno na nossa horta para consumo próprio, para nossas crianças, por que vamos usar veneno para as crianças dos outros?” Nas falas, observa-se a percepção de que a agroecologia se conecta com a dimensão social, fato que reafirma seu caráter popular e comunitário.
O movimento agroecológico incorpora os saberes agrícolas e alimentares acumulados pelas comunidades tradicionais, visando a multiplicação e perpetuação de práticas socioculturais dos agricultores familiares (Conway, 1987; Sicard, 2009). Nesse sentido, Margarida Lilás relata:
Quando fala agroecologia eu penso na verdade muitas coisas. A questão da alimentação saudável, a saúde, as relações sociais, o fortalecimento das relações sociais e a busca do conhecimento popular. Quando a gente pensa tanto no científico e a gente não vê as pessoas que tão ao nosso redor. Então acho que agroecologia é uma mistura dessa parte técnica com a social? Ela se incrementa, é a teoria com a prática?
A agricultura familiar de policultura e produtora de alimentos exerce um importante papel socioeconômico, ambiental e cultural. Por se tratar de núcleos familiares pequenos, detentores de recursos próprios e força de trabalho, tendem a perpetuar e preservar a cultura alimentar, contribuindo para uma alimentação balanceada e diversa (FAO et al., 2020; Van Der Ploeg, 2014). Durante a pandemia de COVID-19, as Margaridas mantiveram sua estabilidade econômica, sem impactos negativos sobre a propriedade. Segundo Miguel Altieri e Clara Nicholls (2020), a independência da indústria de insumos, o encurtamento das cadeias alimentícias e a produção sustentável são potencialidades dos sistemas agroecológicos, que dão suporte para o enfrentamento da crise alimentar que se agravou com a disseminação da doença.
A produção de subsistência de base agroecológica garante o acesso a alimentos em qualidade e quantidade necessária. Margarida Azul fala sobre a preocupação das mulheres agroecológicas com a qualidade do alimento que vai à mesa: “as mulheres cultivavam as hortas [...] Elas sabiam o que estavam cultivando, e a questão da confiança [...] elas pegaram esse alimento que elas cultivam, que elas sabiam que eram saudáveis e davam para os filhos”. Em outro momento expõe: “Então a agricultura agroecológica, além de respeitar sua vida, respeita a sua geração. Além da questão da segurança alimentar, e também a acessibilidade ao alimento para todas as pessoas”.
O espaço de cultivo ao redor da casa possibilita à mulher eleger seus métodos de produção e consumo. Margarida Branca cita: “A gente tem diversas produções, desde todas as culturas de subsistência, o feijão, a batata, o aipim, a batatinha, todos os produtos da horta. A gente praticamente não compra nada”. As práticas agroecológicas são reconhecidas como uma estratégia de promoção da saúde, conferindo autonomia e proteção social, fomentando o bem-estar das comunidades e a segurança alimentar e nutricional (FAO et al., 2020; Van Der Ploeg, 2014). A promoção da saúde consiste em uma ampliação do controle dos indivíduos e comunidades sobre a sua saúde. Nesse sentido, articula-se com o processo de empoderamento e a ideia de autonomia, que dissertam sobre a liberdade e a capacidade de exercício ativo de si (Fleury-Teixeira et al., 2008).
Esses conceitos sustentam reflexões a partir do depoimento de Margarida Lilás, sobre suas redes de troca de alimentos e experiências. Essa dinâmica proporciona um fortalecimento da autonomia, garante alimentos seguros e reforça os vínculos familiares:
Muito dos alimentos a gente produz aqui, a gente que cuida, a gente que produz, a gente colhe. E também porque tem a troca de alimentos, aqui a minha avó mora pertinho, eu tenho minha outra nona que é de Gramado Xavier também, então a gente tá sempre trocando alimentos, sabe? E trocando experiências e mudas.
O cultivo de plantas medicinais é uma prática de autocuidado, que amplia a autonomia do sujeito no processo saúde-doença (Barros, Siegel e Simoni, 2007). Todas as Margaridas dispunham de chás em suas hortas, provenientes da comunidade. A família de Margarida Amarela faz o consumo para prevenção: “Sim, várias. Inclusive minha mãe coloca na comida para melhorar a imunidade”; Margarida Vermelha para tratamento: “Tem bastante tipos de chás, bastante para gripe”; e Margarida Azul comenta o processo de construção da horta: “Ele é um relógio, que tem uma planta pra cada hora do dia, que voltado pra cada parte do corpo”.
A articulação entre o saber popular e o cuidado em saúde, nas narrativas, está fortemente relacionada à educação. Margarida Branca: “Sim, a gente tem diversas, diversos tipos [chás], é difícil um que não tenha, eu me lembro até que meu cunhado fez um projeto [EFASC] referente a isso, e ele inseriu diversas plantas e a gente mantém elas hoje”. Mais uma vez a escola aparece como ferramenta de transformação, Margarida Lilás: “E isso foi outra coisa que a escola também fez a gente perceber a importância dos chás. Aí no tempo da escola eu pedi umas mudinhas pra minha vó, algumas peguei lá na escola. E aí a gente plantou aqui na horta, então hoje a gente tem esses chás”.
A utilização de plantas medicinais como terapia foi reconhecida e inserida no sus com a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares visando a integralidade da atenção em saúde (MS, 2015). No âmbito rural, além da preservação do conhecimento popular e manutenção da biodiversidade, essas práticas de autoatenção podem se apresentar como alternativa às populações isoladas ou que possuam maior vulnerabilidade socioeconômica (Eduardo Menéndez, 2003). Por fim, a perpetuação de plantas medicinais pode ser considerada, além de alternativa terapêutica, uma intersecção entre os saberes e práticas populares que valoriza a cultura, a biodiversidade e a saúde da comunidade (Antonio, Tesser e Moretti-Pires, 2013).
Considerações finais
Entre as principais reflexões desse estudo está o autorreconhecimento das Margaridas como potentes agentes de mudanças perante às adversidades enfrentadas. Dentre elas, a invisibilização do trabalho da mulher rural, a participação feminina minoritária na escola agrícola, e a rigidez da estrutura familiar patriarcal. Em conjunto das mães e avós, as Margaridas ocupam o espaço de protagonismo no seu trabalho e nas suas relações familiares comunitárias. Suas vozes foram essenciais para o tensionamento e mobilidade do lugar da camponesa na sociedade.
Nessa seara, a educação rural, referenciada na perspectiva da libertação, em conjunto com os preceitos agroecológicos, se apresenta como promotora de uma concepção transformadora, formadora de comunidades mais igualitárias e autônomas. A constituição do AMA, por meio da escola, abriu espaço para luta, reflexão e construção coletiva, evidenciando diferentes perspectivas para a vida da mulher no campo. Assim, a educação rural contribui para a capacidade de reflexão das Margaridas, fortalecendo ou dando-lhes condição para criar novas alternativas de trabalho e de vida. Nessa dinâmica, as margaridas continuam valorizando os conhecimentos tradicionais e transformando estruturas culturalmente estabelecidas.
Nas narrativas, torna-se evidente o pioneirismo e a importância das mulheres na agroecologia, não somente na perpetuação transgeracional dos saberes camponeses, como também na constituição de novas práticas. As agricultoras agroecológicas são responsáveis pelas hortas de subsistência, que surgiram como uma ferramenta de emancipação, autonomia, saúde e controle sobre diversos aspectos da vida.
Importante salientar que esse lugar de protagonismo da mulher à frente da agroecologia e do cuidado em saúde, pode também constituir mais uma exigência a ser naturalizada como dever. No entanto, percebe-se que a agroecologia vivenciada pelas Margaridas produziu um processo de tomada de consciência de si e do lugar que ocupam e podem ocupar na sociedade.
As entrevistadas reconhecem o sentido amplo da agroecologia, que abrange o respeito a saúde e a vida das gerações, das comunidades e das famílias. Em especial, a compreensão de que a agroecologia não se restringe ao campo da ciência ou da ideologia, mas engloba uma perspectiva, um modo de vida, que defende o respeito e a saúde do planeta.
Diante das desigualdades visibilizadas, acentua-se a necessidade de investimento em políticas públicas de fomento à educação e à equidade de gênero no campo. Os incentivos e leis que apoiam às práticas agroecológicas atualmente, não são equivalentes as reais necessidades e não fazem frente ao grau da importância dessas práticas. Urge que reconheçamos a fundamental contribuição que implicam para a promoção da saúde, para a autonomia da agricultura familiar e para o fomento de uma sociedade mais justa e equitativa.