Sumário: I. Introdução. II. O poder normativo das agências reguladoras brasileiras. III. Os limites ao poder normativo das agências. IV. Os limites ao poder normativo das agências reguladoras à luz da Resolução Normativa no. 433 da Agência Nacional de Saúde Suplementar. V. Considerações finais. VI. Referências.
I. Introdução
O presente artigo visa analisar os limites ao poder técnico-normativo das agências reguladoras com foco na Resolução Normativa no. 433 da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que, entre outras modificações, incluía o aumento do percentual de cobrança de coparticipação, assim como aumento da franquia em planos de saúde.
Diante da repercussão causada pela norma elaborada pela agência reguladora membros da OAB manejaram uma ação no Supremo Tribunal Federal discutindo sua competência para disciplinar a matéria. Assim, a Suprema Corte acatou o questionamento apontado pela Ordem dos Advogado e suspendeu liminarmente o ato normativo, porém em seguida diante da grande pressão social a resolução foi revogada por ato próprio da entidade.
Assim, mesmo após a revogação da resolução normativa, se identifica como problema a ser debatido: Há limite ao poder normativo das agências Reguladoras? A Agência Nacional de Saúde Suplementar extrapolou seu poder normativo quando editou a Resolução 433/2018?
O estudo do tema é de grande importância, uma vez que a problemática enfrentada causou grande repercussão no meio jurídico e vários setores da sociedade se manifestaram contra o ato normativo com argumentação que medida foi arbitrária e afetaria boa parte dos serviços de saúde.
Destarte, há tempos a doutrina discute sobre o limite da atuação normativa das agências, no entanto ainda não se ache um consenso sobre o tema. Atualmente, contudo, já se encontre parâmetros (standards) na lei para medir a atuação normativa dessas entidades. Ademais, os princípios da separação dos poderes e da legalidade também são matérias de aferição quando da elaboração de uma resolução normativa.
No primeiro capítulo deste artigo refere-se ao poder normativo das agências reguladoras e seus limites. De forma inicial, são apresentados os conceitos sobre a competência normativa das agências reguladoras. Em seguida, analisa-se o fenômeno da deslegalização que tem ganhando relevância nos últimos anos devido à forte influência no meio jurídico.
O segundo capítulo trata-se dos limites ao poder técnico-normativo das agências em sentido amplo. De forma inicial, é delineado o limite ao poder normativo dessas entidades, outro tema que tem ganhado destaque no cenário atual, uma vez que as edições desses atos normativos muitas vezes possuem caráter geral e abstrato atingindo todos os administrados que estão sob égide de sua atuação.
O terceiro e último capítulo analisa-se os limites ao poder normativo das agências reguladoras à luz da Resolução Normativa no. 433 da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Primeiro, é apresentado as competências normativas e órgãos legiferantes da ANS. Posteriormente, é avaliado os principais pontos da resolução normativa em comento, bem como as discussões, debates e o controle judicial exercício sobre a norma. Por fim, se analisa se houve ou não extrapolação do exercício ao poder normativo pela entidade reguladora, assim como os motivos ensejadores da revogação do ato normativo pela ANS.
Portanto, utilizando-se de pesquisa doutrinária, estudo de casos e jurisprudências são elucidados os limites ao poder normativo das entidades reguladoras, em especial, no que tange a resolução normativa no. 433 da ANS.
II. O poder normativo das agências reguladoras brasileiras
O poder normativo das agências reguladoras ou poder regulamentar são espécies normativas normalmente exaradas por meio de resoluções. Esses atos normativos em muitos momentos são questionados pela sociedade de modo geral, pois, há certa discricionariedade da administração em sua elaboração.
Diante disso, é importante mencionar a competência do presidente da República, em que a Constituição Federal por meio do seu artigo 84, expressa o seu poder normativo para propor decreto regulamentar para execução das leis.
Nesse sentido, ensina Zarandella Di Pietro (2018, 98):
O poder regulamentar, por excelência, incumba ao chefe do Poder Executivo das três esferas de governo. Este tipo de Regulamento se formaliza mediante decreto. Mas existem outros tipos de atos normativos com caráter regulamentar, expedidos por órgãos ou entidades da administração pública, como as resoluções, portarias, instruções, circulares, regimentos, ordens de serviço, avisos, além de atos normativos do Legislativo e do Judiciário, praticados no exercício de função administrativa.
Assim, é importante observar que o decreto do Executivo possui como principal fundamento delinear a lei de modo a fazer com que os direitos do cidadão sejam postos à disponibilidade da sociedade, visto que o direito previsto em lei, nem sempre é exequível, pois em alguns momentos sua eficácia plena está subordinada há algum regulamento do Executivo. Dessa forma, a nobre doutrinadora quis nos informar é que, embora esteja prevista na Constituição Federal a atribuição para regular determinadas matérias legais, tal atribuição não é exclusiva do chefe do Poder Executivo, podendo a administração delegar por decreto ou pela própria lei, notadamente, em relação as matérias de relevado conhecimento técnico.
Floriano de Azevedo Marques Neto (2005, 139) assevera que a atividade de regulação estatal envolve funções mais amplas que a função regulamentar. Esta função, para Maria D’Assunção Costa Menezello (2002, 38), é o poder exclusivo atribuído por dispositivo constitucional ao chefe do Executivo para disciplinar as leis, por meio de atos normativos, denominados decretos, orientando a fiel execução das leis.
Ademais, os atos normativos editados pelo Poder Executivo de modo geral são atos normativos secundários ou subordinados, uma vez que estão adstritos aos ditames da lei. Ou seja, o ato normativo secundário não pode contraria ou inovar no mundo jurídico apenas proporcionar fiel execução a lei.
A elaboração de normas secundárias para complementação da lei editada pelo poder legislativo em suas funções típicas, ou seja, normas primárias, é atividade inerente a função administrativa do Poder Executivo. A esse fato, quando há omissão da administração pública em editar o ato regulamentar, a carta magna previu para esses casos o mandado de injunção (MJ) e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO).
Sobre a problemática da delimitação normativa das agências reguladoras, Henrique Ribeiro Cardoso (2016, 155) explica que:
Das funções exercidas, a que mais causa perplexidade, na busca da natureza, fundamento e extensão, é a competência normativa, havendo a necessidade de se compatibilizar tal exercício com o rígido e analítico delineamento trazido na Constituição Federal. Na busca de parâmetros para a edição das normas das agências, identificando seu poder normativo e enquadrando-o nos limites da Constituição Federal, surgem três hipóteses: a primeira, identificando o poder normativo das agências como uma nova espécie legislativa primária; a segunda, vislumbrando nas normas das agências uma espécie de regulamento; a terceira atribuindo às normas das agências status jurídico inferior à lei e ao regulamento do chefe do Poder Executivo.
Assim, é fácil perceber que os atos normativos editados pelo Executivo são derivados e não ordinários, a exceção do decreto autónomo1 que é considerado um ato normativo primário. Assim, foi instituído pela Emenda Constitucional no. 32, de 11 de setembro de 2001, conferindo poderes ao Poder Executivo para sua edição em caráter primário.
Nessa esteira, leciona Carvalho Filho (2018, 197):
Por esse motivo é que, considerando nosso sistema de hierarquia normativa, podemos dizer que existem graus diversos de regulamentação conforme o patamar em que se aloje o ato regulamentador. Os decretos e regulamentos podem ser considerados como atos de regulamentação de primeiro grau; outros atos que a eles se subordinem e que, por sua vez, os regulamentem, evidentemente com maior detalhamento, podem ser qualificados como atos de regulamentação de segundo grau, e assim por diante.
Os decretos e regulamentos são considerados por grande parte da doutrina contemporânea como atos regulatórios de primeiro grau, no entanto, em contrapartida, subordinado a eles, encontra-se os atos regulatórios de segundo grau que são as instruções editadas por ministros de Estado.
Dessa forma, percebe-se que tanto os decretos emanados com exclusividade pelo poder executivo, quanto os outros atos normativos citados possui a mesma finalidade que é proporcionar a execução das leis, ou melhor, fazer com que as normas tenham sua aplicabilidade nos moldes em que o Poder Legislativo as editou.
Nessa linha, encontra-se o poder normativo das agências reguladoras que por seu elevado grau de especialização sobre determinada matéria acaba por regular o tema de tal maneira que acabam extrapolando seu poder regulamentar.
O poder normativo das agências reguladoras apresenta um forte relacionamento com a deslegalização, ou seja, está nomenclatura nada mais é que a transferência pelo legislador de certas matérias legais para o âmbito de atos normativos secundários, quais sejam, decretos e regulamentos.
Nesse sentido, segundo Ricardo Alexandre e João de Deus (2018, 137), a deslegalização é o fenômeno pelo qual a normatização sai do domínio da legal para órbita do regulamento. Afirma-se, ainda, que esse fenômeno ocorre pelo alto grau de especialidade das entidades que compõe a administra indireta.
Nesse mesmo sentido, leciona Alexandre De Aragão (2000, 23) que a delegificação consiste na retirada, pelo próprio legislador, de certas matérias, do domínio da lei, passando-as ao domínio do regulamento.
Diante da a atividade técnica desenvolvida pela administração indireta sobre matérias complexas se fez necessário a regulação de determinados temas por entidades especializadas. Dessa forma, tornou-se fundamental passar determinadas matérias para instituições especializadas de forma que sejam disciplinadas de forma eficiente e rápida, pois o processo legislativo nem sempre detém competência técnica suficiente para legislar sobre temas de alta complexidade de alguns setores econômicos.
Nesse diapasão, leciona Carvalho Filho (2018, 117), a incapacidade do Poder Legislativo de acompanhar as rápidas mudanças sociais e econômicas sobre determinados setores da economia, especialmente, temas de alta complexidade faz com que seja necessário a transferência da regulação desses temas para órgãos especializados com capacidade suficiente para proporcionar as respostas necessárias para justa organização da sociedade.
Esse fenômeno, modernamente, também conhecido como delegificação é realidade no sistema Brasileiro notadamente sobre as atribuições normativa das agências reguladoras.
Assim, a deslegalização visa essencialmente facilitar o processo normativo do Estado em sentido amplo na medida que estabelece com maior agilidade e eficiência regulação para setores que por sua própria natureza necessita de maior conhecimento técnico para acompanhar sua evolução. Contudo, não significa dizer que tal poder não encontre limites no ordenamento jurídico.
A atribuição normativa das agências é própria da atividade regulamentar que lhe foi concedida. Assim, de todas as características das agências reguladoras a mais polêmica é o exercício do poder normativo, especialmente com aumento significativo das resoluções normativas editada por essas entidades que por vezes são questionadas no âmbito judicial.
Há uma forte divergência doutrinária em relação à constitucionalidade da amplitude, pois não se tem ao certo um parâmetro claro sobre até onde se pode normatizar via regulamento sem estar invadindo a competência legiferante do Legislativo.
Assim, percebe-se que a validade da lei que confere poder para elaboração de regulamentos pelas agências deve apresentar balizadores (standards), claros e suficientemente preciso, de forma que não haja margem para interpretação duvidosa sobre sua atividade regulatória.
Destarte, a constitucionalidade da lei que atribui poderes às agências reguladoras depende dos parâmetros estabelecidos sejam suficientes e claros, pois se não seria apenas a outorga da função legiferante do legislador.
A modernidade trouxe vários desafios ao Poder Legislativo, um deles é necessidade de legislar sobre matérias de alto grau de especialidade. Desta feita, incapaz de regular essas matérias há solução encontrada segundo José dos Santos Carvalho Filho (2018, 118) foi “o próprio Legislativo delega ao órgão ou à pessoa administrativa a função específica de instituí-la, valendo-se dos especialistas e técnicos que melhor podem dispor sobre tais assuntos”.
Nesse contexto, é importante mencionar o importante julgado do Tribunal Regional Federal da 2o. Região de Relatoria de Alcides Martins Ribeiro Filho de 2017 Desembargador Federal, com a seguinte ementa:
ADMINISTRATIVO. AGÊNCIA REGULADORA. PODER NORMATIVO. ANS. RESOLUÇÃO NO. 20, DE 2008. LEGITIMIDADE... A Lei no. 9.961/00, ao criar a Agência Nacional de Saúde Suplementar ANS, conferiu como uma de suas atribuições a normatização e a fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde (artigo 1o.), competindo-lhe “fiscalizar as atividades das operadoras de planos privados de assistência à saúde e zelar pelo c umprimento das normas atinentes ao seu funcionamento” (artigo 4o., XXIII). Ao expedir Resoluções e Instruções normativas, a ANS age dentro de suas atribuições institucionais, nos limites do poder regulamentar (normativo) de que é titular, nos termos dos artigos 3o. e 174 da Constituição, positivados e explicitados nas Leis nos 9.656/1998 e 9 .961/2000. O denominado “poder normativo” conferido às agências reguladoras, de acordo com a doutrina majoritária, decorre do exercício de função administrativa, e não legislativa, a inda que sua carga de aplicabilidade possa ser considerada genérica. O que se verifica é a transferência, por parte das próprias leis de regulação, de alguns vetores, de ordem técnica, para a normatização por tais entidades o que alguns doutrinadores denominam como “deslegalização”, com fundamento no direito francês (“domaine de l’ordonnance”), o que não retrata qualquer usurpação da função legislativa p ela Administração. O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de afirmar a legitimidade constitucional da deslegalização, no julgamento do RE no. 140.669-1-PE, no qual o Ministro Relator Ilmar Galvão, adotando as lições de J.J. Canotilho, asseverou que “os princípios da legalidade, do congelamento do grau hierárquico e da precedência da lei não impedem, salvo em matérias reservadas à lei (tributos e crimes), que se adote uma maior flexibilidade através da deslegalização ou degradação do grau hierárquico. Neste 1 caso, uma lei, sem entrar na regulamentação da matéria, rebaixa formalmente o seu grau normativo, permitindo que essa matéria possa vir a ser modificada por regulamentos.” A carga de amplitude normativa dos atos expedidos pelas agências reguladoras, contudo, deve adequar-se aos parâmetros da lei permissiva, pois a delegação legislativa não é ilimitada, sendo sempre possível avaliar, em cada um dos atos normativos das agências, se foram observados ou não os parâmetros legais que lhe servem de fundamento de validade.
Por todo exposto, conclui-se que a atribuição das agências reguladoras é conferida por lei, normalmente, pela sua lei instituidora. Sabe-se ainda que haja divergências doutrinárias sobre a matéria é pacífico o poder regulamentar dessas entidades. No entanto, ainda permanece as discussões sobre a amplitude desse poder normativo.
III. Os limites ao poder normativo das agências
Os limites ao poder normativo das agências é matéria de intensa discussão doutrinária, uma vez que não há um consenso sobre esse limite. Embora, atualmente o sistema jurídico brasileiro admita a regulação técnica emanada por essas entidades.
Nesse sentido, segundo Lenza (2017, 570) um dos principais argumentos no que tange ao poder normativo das agências é que haveria indevida usurpação do poder legiferante do Legislativo pelas agências na edição de atos regulamentares, o que infringe por consequência os princípios da separação dos poderes e da legalidade. No entanto, Montesquieu, após aprimorar as bases teóricas da separação dos poderes de Aristóteles, dizia que não só foi identificada o exercício das três funções estatais (Legislativo, Executivo e Judiciário) como inovou dizendo que tais funções estão intimamente conectadas a três órgão diferentes.
Nessa linha, todos os poderes da república exercem funções típicas atinentes a suas atividades precípuas, assim como funções atípicas. Assim, o poder executivo por meio das agências reguladoras desempenha sua função atípica que é legislar em situações autorizadas por lei.
Dessa maneira, percebe-se que há uma margem pequena entre o que pode ser matéria de delegação legislativa e que por sua vez possa ser tema de regulação técnica por essas entidades. Nesse contexto, o que deve ser observado no âmbito de atuação normativa das agências é os balizadores legais para o desempenho da atividade normativa.
Nesse diapasão, leciona Carvalho Filho (2018, 119), a delegação legislativa não pode ser total, pois, ao contrário se sujeita a limitações. O legislador deve resguardar para si critérios políticos, delegando somente temas de ordem técnica com balizadores previstos na lei.
Nesse mesmo sentido, esclarece Ricardo Alexandre e João de Deus (2018, 138):
Segundo a jurisprudência, não é admitida a edição de regulamento autorizado para matéria reservada à lei, a exemplo da criação de tributos ou da criação de tipos penais, visto que afrontaria o princípio da separação dos poderes (por estar o Executivo substituindo a função do Poder Legislativo).
Desse modo, é importante frisar que o poder exercido pelas agências reguladoras não é o mesmo que o poder regulamentar atribuído ao Executivo com objetivo de completar o sentido de uma norma legal. Trata-se de um poder abstrato e genérico que impõe à sociedade as obrigações e direitos contidos nos seus respectivos regulamentos.
Nessa lógica, é possível observar que o poder normativo outorgado as agências reguladoras devem estar adstritos a sua lei instituidora, salvo a ANP e ANATEL que estão previstas na Constituição. Dessa forma, as resoluções criadas pelas agências reguladoras devem estar no âmbito dos padrões (standards) estabelecidos em lei.
Nessa linha, elucida Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2018, 655):
... a função reguladora está sendo outorgada de forma muito semelhante à delegada às agências reguladoras do direito norte-americano; por outras palavras, a elas está sendo dado o poder de ditar normas com a mesma força de lei e com base em parâmetros, conceitos indeterminados, standards nela contidos.
Ainda, seguindo o entendimento da autora por vezes as leis são editadas com conceitos jurídicos indeterminados, cujo sentido tem que ser definido por órgão técnicos especializados. Esse conceito indeterminado são palavras e expressões imprecisa na norma de modo que paira a dúvida sobre seu significado e que devem ser completas para dar efetividade à legislação criada.
Diante dos padrões estabelecidos pelo legislador, é facilmente percebido que as resoluções editadas pelas agências não podem contraria a lei, ou melhor, não é admitido regulamentos contra legem, sob pena de ser invalidado. Seu exercício somente pode se dar secundum legem, isto é, em consonancia com sua lei autorizadora.
Nessa esteira, expõe José dos Santos Carvalho Filho (2018, 117): “... não podem os atos formalizadores criar direitos e obrigações, porque tal é vedado num dos postulados fundamentais que norteiam nosso sistema jurídico: «ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei»” (artigo 5o., II, CF).
Além disso, o poder normativo das agências não pode evidentemente ir de encontro direitos fundamentais do indivíduo como a igualdade, a liberdade, a propriedade, além de ser proibido de forma clara criar obrigações não disposta em lei formal.
Diante dos argumentos narrados pelos doutrinadores, frisa-se um caso prático sobre o limite regulatório das agências reguladoras brasileiras julgado pelo Superior Tribunal de Justiça de relatoria do ministro Sérgio Kukina de 2018:
... os atos e normas das agências reguladoras, quando, ou ainda, exorbitantes de seus limites legais, ou ainda, quando não guardarem relação de razoabilidade e proporcionalidade com os fins colimados pela administração pública, são passíveis de controle judicial.
Em suma, a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) não pode inovar na ordem jurídica, transferindo, de forma descabida e desarrazoada, obrigações das concessionárias de energia elétrica para os municípios, criando unilateralmente, sem possuir poder político, elevadas despesas para os entes municipais. Além disso, essa resolução coloca em risco a continuidade do serviço público de iluminação pública, tendo em vista a notória limitação financeira dos municípios brasileiros.
Além de extrapolar os limites de seu poder normativo-regulador, a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) interferiu diretamente em cláusulas previamente ajustadas em contrato de concessão de energia elétrica.
Por fim, pode-se concluir que as agências quando do exercício do poder normativo estão adstritas a critérios previstos em lei, sob pena de invalidação da norma. Além disso, os atos normativos editados pelas agências estão sujeitos ao controle do Executivo, Legislativo e Judiciário.
IV. Os limites ao poder normativo das agências reguladoras à luz da Resolução Normativa no. 433 da Agência Nacional de Saúde Suplementar
A Resolução Normativa no. 433 da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) foi publicada em 28 de junho de 2018 e possuía como escopo principal atualizar as regras de coparticipação e franquia em planos de saúde.
Assim, com a publicação da norma passaram a existir três tipos planos no mercado, sendo eles: os tradicionais, os com coparticipação e os com franquia.
Os planos de saúdes tradicionais são aqueles que os usuários pagam o valor mensal e utilizam todos os serviços prestados sem despesas adicionais. Já os planos com coparticipação o segurado utiliza-se de uma mensalidade e também paga um percentual dos serviços utilizados que atualmente está no patamar de trinta por cento, embora não se tenha uma regulamentação sobre o tema. Por último, nos planos de saúde com franquias os segurados, além de pagar mensalidade, fica responsável pelos valores utilizados até atingir o valor da franquia estipulado em contrato e partir desse valor a operadora é responsável por todo e qualquer procedimento pactuado no plano.
Os planos com coparticipação e com franquia não são uma inovação da resolução em comento, pois já estavam previstos na Resolução do Conselho de Saúde Suplementar - Consu no. 8 de 3 de novembro de 1998.
Fato é que os planos de saúde com coparticipação já eram realidade no mercado com ampla utilização, porém os planos com franquia eram pouco utilizados. Além disso, embora essas modalidades de planos de saúde constem na Resolução do Conselho, elas não foram reguladas, isto é, estavam previstas de forma genéricas sem regulamentação específica.
Diante desse cenário, a ANS começou a realizar estudos internos, inclusive com a criação de grupos técnicos para debater junto a sociedade a regulação da matéria.
Nessa linha, a ANS editou a Resolução Normativa no. 433 com objetivo de atualizar a matéria, estabelecendo como principais mudanças a imposição do valor máximo pago pelo beneficiário, a isenção de cobrança em alguns procedimentos, a proibição de coparticipação e franquias diferencias por doenças ou patologia, o valor fixo e único para atendimento em pronto socorro e internações, e o percentual máximo da coparticipação no patamar de quarenta por cento.
No entanto, as alterações não foram bem recepcionadas pelo mercado e pela sociedade que questionaram a legitimidade da ANS para adoção da medida sem o aval do Congresso Nacional, pois haveria um possível desrespeito ao princípio da separação dos poderes.
Nessa seara, foi realçado pelos órgãos de proteção ao consumidor que mudança traria forte impacto financeiro ao usuário e não traria significativa redução dos valores contratados o que inviabilizaria o acesso a saúde para população de modo geral.
Diante disso, houve um amplo debate na sociedade, visto que uma parcela significativa dos planos de saúde utiliza os planos com coparticipação, o que torna mais atrativa para as operadoras, pois reduz o risco de prejuízo devido à divisão das despesas com o usurário. Por outro lado, a elevação da coparticipação de trinta por cento para quarenta por cento encarece a utilização dos planos de saúde pelos conveniados.
Diante desse cenário, as entidades defensoras do consumidor criticaram fortemente a resolução editada pela ANS, pois as alterações trazidas pelo ato normativo beneficiam as operadoras e encarece os serviços utilizados pelo conveniado.
Nesse sentido, de acordo com Marcia Câncio Santos Villasboas e Eduardo Augusto Viana Barreto (2018, 2), os serviços de se saúde prestado pelo Estado não é eficiente, assim sendo necessário o a completude por parte dos planos de saúde, e se as mudanças propostas forem alcançadas será ruim para a população de modo geral, essencialmente para classe intermediária, pois o aumento dos custos inviabilizaria a utilização desses serviços para os usuários.
Nesse contexto, a ANS informa em seu sítio oficial que atualmente cerca de cinquenta por centos dos contratos de plano de saúde no país possuem esse mecanismo, ou seja, com avanço da resolução esse número aumentaria ainda mais e reduziria os planos tradicionais o que poderia ser menos benéfico ao consumidor.
Diante dos questionamentos da sociedade e de outros setores do mercado, no dia 13 de julho de 2018, o Conselho Federal da OAB propôs a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental com Pedido de Cautelar (ADPF) em desfavor da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), autarquia responsável pela edição da Resolução Normativa no. 433, de junho de 2018.
Nesse sentido, a ação visa, conforme artigo 1o. da Lei 9.882/1.999, evitar ou reparar lesão a preceitos fundamentais da Constituição, resultantes de atos do poder público.
Assim, dispõe Cláudio Lamachia (2018, 5), presidente nacional da OAB, que a ANS ao editar a norma violou os princípios fundamentais da separação dos poderes, da legalidade e do devido processo legislativa, bem como corrompeu a norma de proteção ao consumidor.
Em sequência, a ação foi recepcionada pela Suprema Corte e foi deferida a medida cautelar para suspender a eficácia da norma.
Assim, percebe-se que o ato normativo editado pela agência não foi bem recepcionado e vários foram os argumentos que contestaram a legitimidade da agência para edição da medida, visto que o direito à saúde do cidadão é um direito sensível e que eventuais excessos trazidos podem gerar prejuízos significativos a sociedade, em especial, aos usuários dos planos de saúde.
Diante desse cenário, esse tema apresentou uma relevância ainda maior, visto que sua publicação da resolução atingiu de fronte um direito fundamental do indivíduo que é o acesso a saúde.
Dentro dessa análise, um fundamento jurídico relevante interpretado pelo Conselho Federal da OAB é que Lei no. 9.656, de junho de 1998, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, não conferiu poderes à ANS para disciplinar o tema, além de ferir os princípios da separação dos poderes, da legalidade e do devido processo legislativo.
Nessa linha, é constitucionalmente aceito o poder normativo técnico das agências desde que respeitados os parâmetros legais (standards) normalmente estabelecido poder lei. No entanto, no caso da norma em apreço, a ANS não detinha de poderes para regular a matéria de tamanha complexidade sendo, portanto, necessário uma lei em sentido estrito, visto que o ato normativo causa restrição a um direito fundamental que é o acesso a saúde.
Ademais, segundo Carvalho Filho (2018, 117), os doutrinadores asseveram que as leis que conferem poderes para as agências normatizarem matérias sobre suas atribuições sejam claras e precisas evitando, dessa forma, interpretações dúbias e sem fundamento legal. Outro ponto importante rechaçado pela doutrina é a vedação ao amplo poder normativo das agências, pois não pode o legislador fora dos casos previstos nessa constituição, delegar integralmente seu poder legiferante aos órgãos administrativos.
Nessa acepção, o Conselho Federal da OAB ainda observou que a referida resolução extrapola os limites normativos da ANS estabelecido por sua lei de criação, Lei no. 9.961 de 28 de janeiro de 2000, uma vez que a norma não lhe delegou competência normativa para regulamentar a matéria. Ao contrário, a ANS deve pautar suas atuações com vista a saúde e segurança do conveniado.
Nessa lógica, embora o Supremo Tribunal Federal à época tenha deferido a liminar suscitada na ADPF proposta pela OAB, o mérito da ação teria como relator o ministro Celso de Mello, contudo, em sequência a norma foi revogada pela própria a ANS.
Desse modo, percebe-se que a norma editada pela ANS extrapolou os limites do seu poder regulamentar, visto que não lhe foi outorgada competência para editar a matéria, pois o tema versa sobre assunto reservada a lei em sentido estrito. Além disso, a edição da norma feriu os preceitos fundamentais da separação poderes, da legalidade e do processo legislativo no momento em que se utilizou do poder legiferente atribuído ao Poder Legislativo para inovar no mundo jurídico criando direito e obrigações não previstos em lei.
Por fim, nota-se que houve uma forte carga política para edição da Resolução Normativa no. 433 de 2018 da ANS e que não foi entendida como benéfica de forma geral pela sociedade. Ao contrário, foi evidenciado que os conveniados poderiam arcar com custos mais elevados. Além do mais, não houve um debate social da magnitude que o tema merece.
V. Considerações finais
A Resolução no. 433 de 2018 editada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar trouxe diversos debates à tona sobre os limites ao poder normativo das agências reguladoras, ou seja, qual o limite da competência normativa dessas autarquias em regime especial?
Nesse sentido, percebe-se que há inúmeras jurisprudências que debatem o assunto, visto que não existe um consenso ideal para edições de atos normativos por essas entidades o que existe de fato é uma linha tênue que separa a extrapolação dos limites ao exercício regular do poder técnico-normativo.
Os doutrinadores asseveram que o poder normativo atribuído as agências reguladoras devem ser autorizados por lei, mormente, por pela lei de criação da entidade, todavia o que encontramos na prática são normas que não dimensionam de forma clara as suas atribuições normativas o que nos leva em vários momentos interpretações dúbias e evasivas. Por outro lado, eles são firmes em dizer que é vedado o poder normativo amplo atribuídos as agências, pois se tornaria uma transferência inadequada de competência constitucional atribuída ao Poder Legislativo às agências reguladoras.
Nessa linha, tais normas acabam sendo objeto de apreciação do Poder Judiciário, visto que não tem balizadores legais (standards) claros e precisos para atuação normativa dessas entidades. Ademais, o Poder Executivo bem como as agências reguladoras de modo geral, ressalvando as exceções previstas na Constituição, devem elaborar normas de conteúdo secundário, isto é, em conformidade com conteúdo da lei.
Assim, se não há uma lei clara sobre a competência normativa das agências reguladoras a edição de atos normativos acabam de uma forma ou de outra sendo questionados judicialmente, visto que o objetivo principal dessa competência é proporcionar a fiel execução as leis editadas pelo Legislativo que por vezes não detém competência técnica suficiente para editar regulamentos para que a norma tenha eficácia plena, que é o que chamamos de fenômeno da deslegalização, ou melhor, esse fenômeno, também conhecido como delegificação.
Nessa acepção, por vezes o objeto de debate é se o tema deveria ou não ser objeto de lei em sentido estrito, ou seja, matéria reservada ao Poder Legislativo, ao invés de uma norma elaborada pelas agências. Essas discussões acabam lesionando os preceitos fundamentais da separação dos poderes, da legalidade e do devido processo legislativos.
Dessa maneira, após a pesquisa sobre o tema, percebe-se claramente que ANS extrapolou os limites regulatórios, visto que a lei não lhe conferiu poderes para elaboração da medida e por consequência lesionou os preceitos fundamentais da separação dos poderes, da legalidade e do devido processo legislativos.
Ademais, na cronologia desde a publicação da norma elaborada pela entidade, a norma foi severamente criticada pela sociedade e, principalmente, por órgão de defesa do consumidor. Logo em seguida, o Conselho Federal da OAB por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamentais (ADPF - 532) com medida cautelar fez severas críticas a elaboração da norma que foi recepcionada e suspendida liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal que também ao decidir se mostrou perplexo inicialmente com edição do ato normativo, embora não tenha analisado o mérito definitivo da demanda. Por fim, a própria ANS revogou a resolução normativa editada.
Diante do exposto, conclui-se, portanto, pela extrapolação dos limites ao poder normativo da Agência Nacional de Saúde Suplementar ao editar a Resolução Norma no. 433 de 2018 e sabidamente apresentou pontos maléficos ao consumidor de forma geral. No entanto, o tema é relevante e merece ser debatido de forma profunda e trazer regulamentos equilibrados para proporcionar transparência e sustentabilidade para o sistema de saúde suplementar do país.