Introdução
Embora não possuísse linha clara para sua política externa durante o século XIX, prevalecia no Brasil uma lógica de distanciamento em relação a seus vizinhos —em particular devido à diferença de regimes (monarquia no Brasil e repúblicas nos demais países)— que se manifestava em questões relativas ao comércio, navegação e tráfico de escravos (Santos 2004). A aceitação brasileira de sua identidade americana se desenvolveu apenas a partir da Proclamação da República (1889), de forma mais associada aos Estados Unidos em uma ideia pan-americanista (Couto 2007).
Já na pós-II Guerra Mundial, duas vias sobre o papel internacional a ser exercido pelo Brasil concorreram, ambas visando o reconhecimento dos pares e das potências: a via cosmopolita, centrada na aproximação com países do mundo desenvolvido e em especial com os Estados Unidos, e a via terceiro-mundista, que destacou a identidade brasileira de país em desenvolvimento e defendeu o aprofundamento de relações com o então Terceiro Mundo. A síntese que emergiu postulava o Brasil como uma ponte entre Norte e Sul (Lima 2010).
Um programa mais regionalista, voltado para a América do Sul, é relativamente recente, se consolidando a partir da década de 1970 (Pecequilo 2008). Embora não de forma linear, o entorno geográfico se converteu em área estratégica e se manteve em destaque na agenda de política externa brasileira (Santos 2005).
A chegada de Lula à presidência foi acompanhada por variadas expectativas, em geral relacionadas às diferenças a serem implementadas pelo novo governo. Como afirmou Lula no discurso de posse: “Mudança: esta é a palavra-chave, esta foi a grande mensagem da sociedade brasileira nas eleições de outubro. [...] Foi para isso que o povo brasileiro me elegeu Presidente da República: para mudar” (Silva 2003: 27-28). O que se viu foi uma proximidade com a formulação da política externa como um instrumento para o desenvolvimento econômico e para a ampliação da autonomia do país (Vigevani e Cepaluni 2007), condizente com o histórico da política externa brasileira marcado pela continuidade (Saraiva 2010).
No entanto, “não se pode afirmar que a política externa brasileira do governo Lula seja uma continuidade da gestão anterior” (Lima e Duarte 2013: 22). A nova política externa adotou ênfases próprias e priorizou canais e regiões menos tradicionais. Uma delas foi a América Central e o Caribe, que passou a constar na agenda diplomática brasileira.
O objetivo do artigo é discutir a aproximação do Brasil com a América Central e o Caribe durante o governo Lula. Mais especificamente, busca-se compreender a inserção da região na política externa brasileira, os objetivos buscados e os mecanismos utilizados. Para tanto, propomos que a relação se estruturou em três frentes de atuação: social-humanitária, econômica e político-estratégica. A proposta de três frentes decorre da interpretação das políticas adotadas que nos levou a observar que os três eixos se apresentam de maneira mais ou menos definida, embora não haja indicativo de que isso tenha se dado de modo deliberado.
O texto busca retomar algumas das principais leituras da política externa de Lula. Priorizou-se autores/as brasileiros/as com distintas visões sobre ou que discutem o tema com maior profundidade. Na condução das leituras foi realizada uma pesquisa bibliográfica, tal procedimento cumpriu a função de fundamentar o objeto de estudo e posicionar a pesquisa em relação às visões correntes. O esquema de leituras sucessivas partindo das leituras de reconhecimento até as leituras interpretativas atende à necessidade de discutir e de interpretar o tema a partir de nosso propósito.
Em relação às fontes primárias, apoiamo-nos nas Resenhas de Política Exterior do Brasil. As Resenhas são compilados semestrais compostos por pronunciamentos do alto escalão diplomático e incluem discursos, entrevistas, comunicados, entre outros. Foram analisados 27 documentos, cobrindo todo o período dos governos Lula e os governos Rousseff até o primeiro semestre de 2016.1 A partir do sumário de cada Resenha, foi realizada uma triagem dos conteúdos relacionados à região da América Central e do Caribe.2 O conteúdo destes foi considerado e, conforme a pertinência ou o simbolismo, incorporado ao texto.
O fato de serem compilações é uma faca de dois gumes: por um lado, há garantia que os enunciados são representativos da imagem que o governo deseja passar. Por outro lado, o conteúdo é filtrado e limitado ao que Itamaraty julgou relevante. Para o presente artigo essa seleção se mostra útil, pois a intencionalidade do governo é parte importante na análise das três frentes propostas.
O texto está dividido em três partes, além da introdução e das considerações finais. Na primeira, efetuamos uma breve revisão da discussão sobre a política externa do período, retomando visões destacadas e efetuando apontamentos mais gerais. Na segunda, discutimos o conceito de região à luz do papel das Américas: Latina, do Sul e Central na política externa. E, na terceira, apresentamos as características e principais exemplos das três frentes de atuação.
Política externa do governo lula: algumas visões e breves considerações
Historicamente, o Itamaraty concentra a política externa desde a formulação até sua execução, o que contribui para maior estabilidade do comportamento diplomático brasileiro, porém dificulta processos de renovação e adaptação (Saraiva 2007). O insulamento do Itamaraty e certo distanciamento entre a diplomacia e o debate público conferem à política externa brasileira um traço de continuidade que se cristaliza como tradição, sendo incomum guinadas mesmo em períodos de grande mudança política doméstica.3
Com Lula, houve continuidade na tendência de descentralização da política externa iniciada nas décadas de 1980 e 1990 (Milani e Pinheiro 2017). A política externa passou a ser discutida além do Itamaraty, em instâncias dentro e fora do Governo (Hirst, Lima e Pinheiro 2010). A pluralização de atores e a politização da política externa são dois dos elementos que ajudam a explicar o crescimento da discussão sobre a política externa do período, inclusive ainda durante o governo.4
Tendo em vista essa ampliação do debate, Paulo Roberto de Almeida (2010) sistematizou as ideias e pensamentos políticos acerca da política externa de Lula em três grupos: 1) “posições e preferências políticas do Partido dos Trabalhadores”; 2) “preferências políticas pessoais dos dirigentes da chancelaria” e; 3) “posturas e tradições diplomáticas estrito senso, ou seja, da chancelaria brasileira”. Houve ainda uma ressignificação da política externa. A defesa do multilateralismo e a busca por autonomia ganharam profundidade em um projeto de agenda internacional própria, independente das preferências das potências (Lima 2010).
Por uma perspectiva histórica, Cristina Pecequilo (2008) identifica uma retomada da tradição global-multilateral no final do governo Cardoso (FHC) e agudizada em Lula. A combinação entre os eixos vertical (Norte-Sul) e horizontal (Sul-Sul) representou um salto qualitativo em relação ao que a autora chama de “década bilateral” (1990-2000), período em que a diplomacia se pautou em um eixo bilateral-hemisférico de associação com os Estados Unidos.
Miriam Saraiva (2010) adota recorte temporal similar ao distinguir duas correntes que se sucederam na formulação da política externa: os institucionalistas pragmáticos e os autonomistas. Os institucionalistas pragmáticos estiveram à frente durante os governos Collor e FHC com a priorização da inserção internacional pelas vias existentes, destaque aos aspectos econômicos e manutenção dos ideais de autonomia e universalismo como pano de fundo. Já a corrente autonomista se consolidou com a nomeação de Celso Amorim e de Samuel Pinheiro Guimarães para cargos de destaque, de onde puderam ampliar o foco anterior das vantagens econômicas para um leque maior, incluindo questões político-estratégicas e, assim, estabelecer a projeção autônoma do Brasil, o universalismo e o reformismo das estruturas internacionais existentes como pautas prioritárias.
Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni (2007) concordam não ter havido uma ruptura com paradigmas históricos, uma vez que diversas diretrizes, desdobramentos e reforços de ações se iniciaram no governo FHC. No entanto, os autores avaliam os governos FHC e Lula como representantes de distintas tradições diplomáticas com diferentes resultados buscados, ainda que o objetivo geral de desenvolver economicamente o país mantendo a autonomia tenha permanecido constante. Analisados em conjunto, os ajustes, mudanças e correções implementados no governo Lula constituem a estratégia da “autonomia pela diversificação”, em oposição e, ao mesmo tempo, aprofundamento à “autonomia pela participação” das administrações FHC (Vigevani e Cepaluni 2007).
De maneira geral, a literatura comparativa da política externa de FHC e Lula tende a se manter próxima do entendimento de que não houve reinvenção da roda, mas um processo combinado de continuidades, inovações e mudanças dentro do marco tradicional diplomático (Lima 2010).5 A própria escolha de um diplomata de carreira e chanceler em governo anterior foi um sinal de que a política externa não sofreria uma mudança abrupta ou uma postura “militante e ideológica”, como alguns analistas especulavam (Visentini e Silva 2010: 56).
Por outro lado, Luiz Augusto Faria (2009) identifica nas mesmas características elementos suficientes para caracterizar a política externa de Lula como “transformação”. O argumento de mudança também se encontra presente no paradigma do “Estado logístico” (Cervo 2008). A partir da identificação dos “equívocos estratégicos” que resultaram em uma “década de ilusões” (Cervo 2003: 7), o Estado logístico, de caráter propositivo, pressupõe uma redefinição do papel estatal. Em termos teóricos, se diferencia tanto do período desenvolvimentista, quando a participação do Estado se dava pela atuação direta, quanto do Estado normal (de matriz neoliberal), em que o Estado se absteve de atuar nos processos de desenvolvimento. O novo enfoque prevê o Estado como provedor da estabilidade econômica e garantidor dos interesses da sociedade, seguindo abertamente o modelo adotado pelas grandes potências e com respeito à ordem internacional vigente. Em relação à atuação internacional, consiste no “repasse de responsabilidades do Estado empresário à sociedade”, embora não se rejeite a possibilidade de atuação estatal direta. Em outras palavras, dar apoio logístico aos empreendimentos preferencialmente privados, visando fortalecê-los frente aos mercados internacionais.
Ainda que longe de serem exaustivas, as leituras apresentadas ilustram a multiplicidade de visões que concorreram na discussão da política externa de Lula. Desde visões mais favoráveis (Visentini 2013) até mais críticas (Almeida 2007) e argumentos de continuidade (Visentini e Silva 2010), ajuste e mudança (Pecequilo 2008) até ruptura (Cervo 2003). Há também diferentes níveis de abstração: desde análises sobre a forma de conceber a política externa (Saraiva 2010) a discussões sobre as práticas efetivamente executadas e sua caracterização (Vigevani e Cepaluni 2007). Não obstante tal pluralidade, a centralidade da América do Sul na nova política externa é ponto unificador da literatura. Pela importância econômica e estratégica, pautas em comum, proximidade geográfica ou pelo significado —real e projetado—, o debate acadêmico refletiu a relevância do subcontinente na política externa brasileira. Essa centralidade (Saraiva 2010; Vigevani e Cepaluni 2007; Visentini 2013) não deve ser confundida com monopólio. Outras regiões também conquistaram espaço na ampliada agenda diplomática do governo Lula, como a África e o Oriente Médio, assim como outros eixos baseados em disposições não-geográficas, como os BRICS e o G20. De forma mais geral, pode-se dizer que a política externa de Lula ampliou os eixos e instâncias de atuação, variando as ênfases e os objetivos, com destaque para a América do Sul.
Quais américas cabem na política externa?
Antes de tratar da política externa para a América Central e o Caribe, façamos uma breve discussão sobre o significado do continente ao sul dos Estados Unidos na política externa de Lula.
A centralidade da América do Sul não foi decisão imediata ou espontânea. O eixo regional como cerne da política externa é elemento histórico das propostas de política internacional do Partido dos Trabalhadores (Almeida 2003). Após refinamentos ao longo de três campanhas derrotadas, a linha mestra do que viria a ser a política externa foi posta da seguinte forma no Plano de Governo de 2002:
o Brasil deverá propor um pacto regional de integração, especialmente na América do Sul […] A política de regionalização, que terá na reconstrução do Mercosul elemento decisivo, é plenamente compatível com nosso projeto de desenvolvimento nacional [e] deverá mostrar que os interesses nacionais do Brasil, assim como de seus vizinhos, podem convergir no âmbito regional (Partido dos Trabalhadores 2002: 6).
Mais claramente no discurso de posse: “A grande prioridade da política externa durante o meu governo será a construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida com base em ideais democráticos e de justiça social” (Silva 2003: 40).
Por outro lado, nos mesmos documentos, a América Latina aparece de forma secundarizada, em expressões mais genéricas como “também estaremos abertos a um relacionamento especial com todos os países da América Latina” (Partido dos Trabalhadores 2002: 6) ou “o mesmo empenho de cooperação concreta e de diálogos substantivos teremos com todos os países da América Latina” (Silva 2003: 41). A síntese discursiva da dicotomia América Latina/América do Sul pode ser encontrada nas palavras do chanceler Celso Amorim (2003: 12): “do reconhecimento de que a realidade político-econômica, hoje em dia, não é tanto a América Latina, mas sim a América do Sul”.
A América do Sul se converteu em área privilegiada além do discurso no sentido de estabelecer uma forte articulação dos países da região a partir da centralidade brasileira (Saraiva 2013). O curso da política externa do governo Lula representou uma postura mais assertiva na busca de alianças privilegiadas, ilustrada pela multiplicação de iniciativas bi e multilaterais na região durante os anos Lula (Couto 2007). Após receber destaque menor na década de 1990, a América do Sul começou a retornar à centralidade da agenda externa brasileira ainda no governo FHC. Um dos marcos dessa virada ocorreu em setembro de 2000, quando FHC promoveu a I Cúpula Sul-Americana, que reuniu os doze líderes da região em Brasília, dando origem a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul americana (IIRSA) (Oliveira e Silveira 2015).
Para compreender a racionalidade da priorização da América do Sul, é insuficiente discutir apenas elementos materiais como capacidade estatal e limitações sistêmicas que estimulam a aproximação do Brasil com a região. Faz-se necessário considerar também a influência de fatores domésticos, como lideranças, partidos políticos, sociedade civil e opinião pública (Putnam 1988). No nível doméstico, grupos perseguem seus interesses pressionando o governo a adotar políticas e práticas que lhe são favoráveis enquanto o governo busca se consolidar através de coalizões entre tais grupos. Tal dinâmica se reproduz no nível internacional, onde os governos buscam satisfazer pressões domésticas e, ao mesmo tempo, minimizar consequências adversas de sua atuação internacional. Nenhum dos dois níveis pode ser ignorado, uma vez que os países são soberanos e interdependentes (Putnam 1988). Assim, os discursos, valores, visões, perspectivas e objetivos são fundamentais para a compreensão da política externa (Rocha, Albuquerque e Medeiros 2018).
Uma região é uma construção social, portanto, não é fixa no tempo e no espaço, mas parte de um processo dinâmico produzido por discursos e práticas socioeconômicas e políticas (Couto 2007). No caso brasileiro verifica-se o crescimento do conceito América do Sul sobre o conceito América Latina até uma posição de predomínio (Rocha, Albuquerque e Medeiros 2018). A nova relação regional em que “o Brasil associa seu destino econômico, político e social ao do continente, ao Mercosul e à Comunidade Sul-Americana de Nações” (Ministério das Relações Exteriores 2007a: 35) é materialização dos elementos intangíveis que compõem a conversão do “eu diplomático” brasileiro de latino-americano para sul-americano. Assim, “a América do Sul, que sempre constou das considerações geopolíticas brasileiras, passou a representar a plataforma regional que referencia a estratégia de inserção internacional do Brasil” (Couto 2007: 162).
Ao mesmo tempo, a política internacional pautada pela “afirmação soberana” com “ênfase na integração no contexto sul-americano” (Almeida 2007: 3) constituiu mais do que um projeto voluntarista, representou uma diplomacia com sentido tático-estratégico, visão de longo alcance e que buscou se inserir em espaços menos saturados (Visentini 2013: 112-113). A América do Sul se destaca por ser mercado consumidor para a indústria nacional, influenciar o posicionamento estratégico e representar plataforma para as aspirações internacionais brasileiras. Na medida em que “a ação diplomática do Governo Lula é concebida como instrumento de apoio ao projeto de desenvolvimento social e econômico do País” (Amorim 2004: 41), a América do Sul cumpre múltiplos papeis.
Se a identificação diplomática do Brasil se virou para a América do Sul e se afastou da América Latina, qual o espaço e o papel que cabem à América Central e ao Caribe? O argumento principal a ser desenvolvido é que a região obteve um papel destacado nos seguintes termos: a expansão da política externa de Lula significou a incorporação de áreas historicamente negligenciadas —como a América Central e o Caribe— à agenda externa. Desse modo, a ampliação da região na agenda brasileira se inseriu no contexto de ampliação geral da política externa, o que representou crescimento da importância da região em termos absolutos, mas não em termos relativos; no entanto, a região não foi posicionada como eixo central ou prioritário da política externa no governo Lula, ocupando espaço secundário ou subordinado.
Três frentes de atuação da política externa: social-humanitária, econômica e político-estratégica
Elencar todas as medidas com que a aproximação do Brasil com a América Central e o Caribe se deu vai além das possibilidades do artigo. De forma mais sintética, a inserção do subcontinente na agenda exterior brasileira será discutida pela aglutinação das práticas em três diferentes frentes: social-humanitária, econômica e político-estratégica. As frentes não são elementos estanques. Determinada ação -como uma visita presidencial- pode se relacionar com mais de um eixo, o que constitui mais regra do que exceção. De toda forma, é possível uma categorização conforme seu conteúdo ou traço mais significativo.
A frente social-humanitária
A frente social-humanitária contempla os elementos de ajuda e cooperação ligados diretamente a questões sociais, atendimento de necessidades imediatas e de melhoria de qualidade de vida. Ela é desdobramento da renovada ênfase da política externa em questões humanitárias, de inclusão social, justiça e contra a pobreza (Gómez e Perez 2016).
Uma de suas faces foi a assistência em momentos de desastres naturais e crises humanitárias. Em outubro de 2005, em razão do furacão Stan e da erupção do vulcão Ilamatepec em El Salvador, o Brasil doou doze toneladas de medicamentos, além de quatorze toneladas de mercadorias (cobertores, cadeiras de rodas, alimentos) recolhidas junto à população. Em agosto de 2007, o governo brasileiro enviou a Jamaica dez toneladas de alimentos, medicamentos e hipoclorito de sódio em auxílio às vítimas do furacão Dean. Ao longo de 2008, o Brasil enviou alimentos e medicamentos a Cuba e Belize; em 2009, prestou assistência humanitária em termos de segurança alimentar a Cuba, Haiti e Honduras e; em 2010, contribuiu com o Fundo de Reconstrução do Haiti, com a ilha de Santa Lúcia e com a recuperação da Guatemala após tempestade tropical (Nunes 2012: 90). Além de medidas de caráter assistencialista, o Brasil desenvolveu projetos de cooperação nas áreas de educação, agricultura e, destacadamente, saúde, onde a agenda de cooperação se encontra estruturada e funcionando de maneira autônoma (Hirst 2012). Um esboço do que viria a se constituir a frente social-humanitária foi o acordo para implementação do projeto Bolsa Escola em El Salvador e na Guatemala ainda no governo FHC. Com Lula, os projetos de cunho social se multiplicaram, seja de forma direta como o programa Alfabetização Solidária ou de forma indireta no auxílio a programas de inspiração brasileira como o Hambre Cero e o Mi Familia Progresa, todos na Guatemala (Nunes 2012). Outros parceiros de destaque foram El Salvador, nas áreas de transferência de renda, segurança alimentar, assistência social e avaliação e monitoramento de políticas sociais, e Nicarágua, nas áreas de financiamento de moradias de baixa renda e segurança alimentar (Gonçalves 2011).
Cabe pontuar o necessário discernimento em evitar leituras românticas ou que pressuponham interesses exclusivamente altruístas por parte do Brasil. Sem colocar em xeque a solidariedade como um dos princípios orientadores da política externa (Visentini 2013), o que se afirma é o cuidado ao reconhecer que a “não-indiferença”, os “sonhos de justiça social” e o “fortalecimento da democracia” (Ministério das Relações Exteriores 2008) não constituem filantropia desinteressada, mas coexistem -nem sempre de maneira harmônica- com interesses de naturezas menos elevadas. Em outras palavras,
nem sempre parece fácil traçar uma linha divisória entre os âmbitos público e privado articulados à cooperação, especialmente nos campos mais claramente relacionados com lógicas de mercado, como comércio e investimentos produtivos, como se pode observar em áreas de infraestrutura (Hirst 2012: 16).
A frente econômica
A frente econômica se realiza a partir do objetivo de criar e explorar oportunidades que resultem em vantagens para o capital nacional, sob a lógica de que a projeção internacional do capital brasileiro se converteria em vantagens no plano doméstico. A política de fomento a “campeões nacionais” via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) talvez seja a face mais imediata que permeia a atuação brasileira nos marcos do Estado logístico (Braga e Barbosa dos Santos 2020). Com Lula, as funções econômicas da política externa foram ampliadas, como suporte à manutenção da estabilidade econômica, à retomada do papel do Estado na coordenação econômica e à formação de um mercado de massas (Hirst, Lima e Pinheiro 2010: 23).
A visita de trabalho a Cuba em setembro de 2003 é um arquétipo da dinâmica de aproximação brasileira na região. Além de acordos e instrumentos de cooperação em diversas áreas como saúde, pesca, aquicultura, turismo, esporte e educação, foi assinado um Acordo-Marco para liquidação dos débitos cubanos via determinado percentual de suas exportações. Simultaneamente, empresários brasileiros se reuniram com homólogos cubanos em Havana, visando “a ampliação do volume de negócios entre os dois países e o incremento do comércio bilateral” (Ministério das Relações Exteriores 2003: 310). O caso é representativo do mecanismo de cooperação comercial adotado, com criação e busca por oportunidades que possam se reverter em benefícios tangíveis. De forma distinta da alegada orientação ideológica (Ricupero 2010), “a cooperação oferecida pelo Brasil comporta um indiscutível sentido instrumental para a política externa, o que permite identificá-lo com uma ferramenta de poder brando” (Hirst 2012: 17).
Fórmulas similares foram adotadas nos encontros bilaterais, por vezes constituindo a primeira visita oficial entre os países, como nas visitas dos chefes de governo de Belize e Jamaica. As relações comerciais com os países centro-americanos e caribenhos foram marcadas pela sinergia entre acordos de cooperação técnica, apoio à realização de encontros empresariais e um programa de incentivos a investimentos. Houve ainda incentivo à participação de empresas brasileiras em grandes obras de infraestrutura e na área de prospecção de biocombustíveis (Nunes 2012), e.g., a participação do presidente Lula na inauguração da segunda usina de desidratação de etanol com participação de capital brasileiro na Jamaica (Ministério das Relações Exteriores 2007b: 233). A participação estatal se deu pela via diplomática, assim como por outros meios institucionais, através de órgãos públicos (Agência Brasileira de Cooperação, Agência Brasileira de Promoções de Exportações e Importações), ou ainda através de entes subnacionais (Hirst 2012), em regra atuando como suporte a empreendimentos privados (Cervo e Bueno 2011).
Não apenas através de mecanismos bilaterais o Brasil ampliou sua atuação em território centro-americano e caribenho. Paralelamente às visitas recíprocas, aos acordos e aos estímulos, o governo brasileiro se engajou na participação e desenvolvimento de instâncias regionais e multilaterais.
A atuação brasileira se fez presente nas mais diversas esferas e com diferentes níveis de alcance. Mesmo em eventos de caráter declaratório ou pouco resolutivo, a presença diplomática brasileira corroborou o argumento de prospecção de oportunidades. Inserções que se iniciaram em ações de “baixo perfil”6 se desenvolveram em iniciativas relevantes. As participações, na condição de convidados, do chanceler Celso Amorim na Reunião de Ministros de Relações Exteriores do Sistema da Integração Centro-Americana (SICA) e do presidente Lula na Reunião de Chefes de Estado e/ou Governo Latino-Americanos e Caribenhos são, em um primeiro momento, ações periféricas no conjunto da diplomacia regional. No entanto, tais espaços foram expandidos e ganharam importância com o lançamento do Programa de Incentivos aos Investimentos Brasileiros na América Central e Caribe (PIBAC)7 durante o I Encontro Empresarial SICA-Brasil no ano seguinte.
Movimento de aproximação similar se deu com a Comunidade do Caribe (Caricom). Em 2004, o Brasil se tornou observador. Em 2005, o presidente Lula participou da Reunião de Cúpula do Caricom. E, em 2010, Brasília sediou a I Cúpula Brasil-Caricom, a fim de remediar o histórico de “negligência benigna” (Amorim 2010) e de onde resultaram 48 acordos entre Brasil e membros do Caricom (Silva e Andriotti 2012). Os acordos deram impulso à cooperação em diversas áreas e se refletiram em “aumento dos investimentos brasileiros nos países do Caribe e da América Central, na maior presença de empresas brasileiras e no incremento do fluxo comercial com esses países” (Silva e Andriotti 2012: 78-79).
Cabe a nota de que não se pretende estabelecer relações diretas de causa e consequência nos processos diplomáticos, mas assinalar que, em algum grau, os resultados despontam de um esforço de operacionalização da política externa voltado à obtenção de vantagens econômicas e comerciais.
Em termos comerciais, o levantamento feito por Tiago Nunes (2012: 100-104) revela resultados ambíguos. Conforme os dados das Tabelas 1 e 2, as exportações e importações tanto para os países da América Central quanto para os países do Caribe aumentaram continuamente, à exceção de queda generalizada em 2009 como efeito da crise iniciada no ano anterior. Em valores brutos ou absolutos, o comércio com a região passou por significativo crescimento. Já os percentuais de participação no total do comércio brasileiro cresceram a um ritmo menor, inclusive com redução da participação dos países do SICA nas exportações brasileiras.
Ano | Exportação | Importação | Resultado | ||||
US$ F.O.B. | Var. % | Part. % | US$ F.O.B. | Var. % | Part. % | Saldo | |
(A) | (*) | (**) | (B) | (*) | (**) | (A-B) | |
2003 | 747 783 086 | 36.47 | 1.02 | 56 723 523 | 21.1 | 0.12 | 691 059 563 |
2004 | 1 102 656 699 | 47.46 | 1.14 | 103 364 860 | 82.23 | 0.16 | 999 291 839 |
2005 | 1 458 878 163 | 32.31 | 1.23 | 111 269 551 | 7.65 | 0.15 | 1 347 608 612 |
2006 | 1 480 464 185 | 1.48 | 1.07 | 141 853 772 | 27.49 | 0.16 | 1 338 610 413 |
2007 | 1 487 470 332 | 0.47 | 0.93 | 193 192 307 | 36.19 | 0.16 | 1 294 278 025 |
2008 | 1 691 154 920 | 13.69 | 0.85 | 271 322 281 | 40.44 | 0.16 | 1 419 832 639 |
2009 | 998 798 627 | -40.94 | 0.65 | 340 710 906 | 25.57 | 0.27 | 658 087 721 |
2010 | 1 242 256 735 | 24.38 | 0.62 | 431 234 339 | 26.57 | 0.27 | 811 022 396 |
* Var. %: Variação sobre o ano anterior.
** Part. %: Participação percentual sobre o total geral do Brasil.
*** Dados referentes ao intercâmbio comercial com os Estados membros do SICA: Belize, Costa Rica, El Salvador. Honduras, Guatemala, Nicarágua e Panamá. Não estão incluídos os números referentes ao intercãmbio comercial com a República Dominicana (Estado Associado).
Fonte: NUNES 2012: 101-103.
Ano | Exportação | Importação | Resultado | |||||
US$ F.O.B. | Var. % | Part. % | US$ F.O.B. | Var. % | Part. % | Saldo | ||
(A) | (*) | (**) | (B) | (*) | (**) | (A-B) | ||
2003 | 1 048 212 036 | 19.16 | 1.43 | 73 073 442 | 34.60 | 0.15 | 975 138 594 | |
2004 | 1 595 736 297 | 52.23 | 1.65 | 147 210 780 | 101.46 | 0.23 | 1 448 525 517 | |
2005 | 2 990 437 803 | 87.40 | 2.52 | 159 053 569 | 8.04 | 0.22 | 2 831 384 234 | |
2006 | 3 008 592 108 | 0.61 | 2.18 | 161 517 219 | 1.55 | 0.18 | 2 847 074 889 | |
2007 | 3 170 770 876 | 5.39 | 1.97 | 254 580 062 | 57.62 | 0.21 | 2 916 190 814 | |
2008 | 5 650 838 309 | 78.22 | 2.85 | 415 570 008 | 63.24 | 0.24 | 5 235 268 301 | |
2009 | 3 676 562 811 | -34.94 | 2.40 | 251 700 813 | -39.43 | 0.20 | 3 424 861 998 | |
2010 | 4 428 709 619 | 20.46 | 2.19 | 616 960 345 | 145.12 | 0.34 | 3 811 749 274 |
* Var. %: Variação sobre o ano anterior.
** Part. %: Participação percentual sobre o total geral do Brasil.
*** Dados referentes ao intercâmbio comercial com: Antígua e Barbuda, Bahamas, Barbados, Cuba, Dominica, Granada, Haití, Jamaica, República Dominicana, Santa Lúcia, São Cristóvão e Névis, São Vicente e Granadinas e Trinidad e Tobago.
Fonte: NUNES 2012: 101-103.
A evolução comercial evidencia a ampliação do comércio com a América Central e o Caribe como parte da ampliação da inserção comercial internacional do Brasil, o que sugere um sucesso relativo dos esforços de aproximação. Sucesso pelo significativo aumento dos valores exportados, processo induzido e estimulado pelas práticas de política externa; relativo, pois o aumento das exportações para o Caribe contrasta com redução para a América Central, resultando em um impacto positivo pouco significativo nas exportações totais. Além disso, o aumento das exportações para a América Central e o Caribe parece se inserir mais precisamente no quadro geral de ampliação da participação brasileira no comércio mundial do que propriamente do destaque da região na agenda comercial brasileira.
A discussão das razões para o limitado avanço das relações comerciais vai além do escopo da presente pesquisa. Bastam algumas considerações que podem auxiliar à compreensão do papel comercial existente e potencial da América Central e do Caribe. Nesse sentido, destacamos o pequeno mercado consumidor que a região constitui, tanto pelo tamanho das populações quanto pelo poder econômico dos países; certa similaridade da pauta exportadora, em especial de produtos primários e; a competição com Estados Unidos e Europa nos mercados de produtos semi e manufaturados.
A frente político-estratégica
Com Lula, a política externa aprofundou funções anteriores -como a econômica- ao mesmo tempo em que se afirmou como um pilar estratégico do governo (Hirst 2012). Concordamos com a linha existente na bibliografia (Vigevani e Cepaluni 2007) que identifica os principais objetivos das iniciativas de caráter político e militar ao papel do Brasil no tabuleiro internacional a partir de sua relação com a projeção brasileira enquanto representante dos interesses regionais e sua pretensão de maior influência na política internacional.
As práticas diplomáticas brasileiras buscaram tratar a liderança regional com o cuidado necessário a fim de não projetar uma imagem agressiva, mas sem fugir do tema, projetando o papel de líder como uma consequência natural do aumento do papel brasileiro no tabuleiro internacional.
Às vezes nos perguntam se o Brasil quer ser líder. Nós não temos pretensão à liderança, se liderança significa hegemonia de qualquer espécie. Mas, se o nosso desenvolvimento interno, se as nossas atitudes [...] de respeito ao direito internacional, da busca de solução pacífica para controvérsias, de combate a todas as formas de discriminação, de defesa dos direitos humanos e do meio ambiente, se essas atitudes geram liderança, não há por que recusá-la. E seria, certamente, um erro, uma timidez injustificada (Amorim 2003: 77).
É nesse sentido que se fundamentam ações como a transferência de tecnologia brasileira para alguns países da América Central e do Caribe, formato diferente dos projetos de cooperação com China, Índia e África do Sul, ou ainda a aproximação “física” via abertura de embaixadas. Neste caso específico, com as oito novas embaixadas abertas no governo Lula,8 o Brasil passou a contar com representação diplomática em todos os países latino-americanos e caribenhos (Amorim 2010) .
De todas as instâncias em que o Brasil buscou aproximação, a mais importante, segundo o chanceler Celso Amorim (2010) , foi a organização da I Cúpula da América Latina e do Caribe (CALC). Realizada na Costa do Sauípe, Bahia, no fim de 2008, foi a primeira do tipo a reunir todos os líderes dos Estados latino-americanos e caribenhos sem patrocínio ou tutelagem de potências externas. O evento foi uma “multicúpula” congregando as cúpulas do Mercosul, da Unasul e do Grupo do Rio para discutir questões de cooperação, integração e desenvolvimento (Amorim 2010: 230). Em seguimento, na II CALC realizada em fevereiro de 2010 foi instituída a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), integrando o Grupo do Rio e a CALC9 em um espaço comum a todos os países da América Latina e do Caribe. Por seu caráter universalista, a Celac se apresentava como um potencial lócus de avanço nas relações do Brasil com a América Central e o Caribe, fundamentado no argumento de que “só superaremos os desafios à integração e ao desenvolvimento se assumirmos nossa vocação latino-americana e caribenha” (Ministério das Relações Exteriores 2008: 141).
No entanto, o fato de que a mais importante iniciativa do Brasil para a região não seja uma proposta específica para a zona, mas parte articulada de uma proposta para a América Latina, reforça o argumento de subordinação da América Central e Caribe a dinâmicas consideradas prioritárias como as regiões América do Sul e, em menor escala, América Latina.
Subjacente aos acordos, às visitas e aos projetos de cooperação, projeta-se a busca por influência e apoio à agenda internacional brasileira, da qual se destacou a pretensão do Brasil em se tornar membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) (Cervo e Bueno 2011). O Brasil se apoiou nas similaridades históricas, culturais e sociais com a América Central e o Caribe para amparar o seu esforço de projeção como liderança regional. Tais elementos combinados às posturas próximas nos fóruns multilaterais e à ausência de maiores pretensões dos países situam a região como espaço estratégico de potencial suporte às reivindicações brasileiras.
Daí decorrem duas formas práticas de atuação diplomática. A primeira, mais sutil, transparece nos acordos de menor impacto e nas frestas do dia a dia diplomático, por exemplo, como agradecimento à “manifestação de apoio [...] do Governo de El Salvador à postulação brasileira de ocupar assento de membro permanente em um Conselho de Segurança ampliado” (Ministério das Relações Exteriores 2007a: 218) ou ainda quando se discute “o apoio de Cuba à participação do Brasil como membro permanente de um Conselho de Segurança das Nações Unidas reformado” (Ministério das Relações Exteriores 2008: 146).
A segunda forma, mais direta, tem seu ápice com a coordenação da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH). Com respaldo de outros países do subcontinente, como Chile e Argentina, o Brasil assumiu a liderança da missão visando aumentar a presença nas Nações Unidas e fortalecer a posição de candidato a membro permanente do CSNU perante à comunidade internacional (Vigevani e Cepaluni 2007; Visentini e Silva 2010).
Além dos custos econômicos, o Brasil teve que arcar com os custos políticos de ser o rosto de uma ação internacional atravessada por polêmicas e pela crescente rejeição da população haitiana. A relevância da missão no cenário internacional contrastou com os sucessivos prolongamentos e a interdependência entre o governo nacional haitiano e a presença de tropas no país (Pimentel e Reis 2016). A incapacidade de gerar os resultados esperados se refletiu em parte dos atores nacionais envolvidos na atuação, como mostram alguns questionamentos de membros do alto escalão militar brasileiro acerca da capacidade de cumprimento do papel no Haiti (Bracey 2011).
A presença militar brasileira ocasionou uma maior aproximação do território centro-americano e caribenho na área militar. Almejando estabelecer uma agenda comum, o Brasil assinou com Guatemala, Honduras e El Salvador “Acordos de Cooperação no Domínio da Defesa” que previam proporcionar intercâmbio de experiência na área de defesa e fomentar a formação profissional (Ministério das Relações Exteriores 2006: 280, 2007b: 258).
Embora o engajamento brasileiro nas operações das Nações Unidas não tenha sido iniciado com a MINUSTAH (Rezende 2012) , esta participação difere-se quantitativamente pelo elevado contingente, assim como qualitativamente pelo papel de liderança, sobretudo em uma área historicamente subordinada à presença dos Estados Unidos. A inserção político-estratégica brasileira, particularmente em sua face militar, corresponde à relativa ocupação de um vácuo gerado pelo avanço do conservadorismo no governo Bush que impactou negativamente a tática estadunidense de estabelecimento de tratados bilaterais com nações menos desenvolvidas da América Central (Pecequilo 2008). O estímulo a práticas isolacionistas possibilitou que o Brasil avançasse na incorporação da região em sua zona de influência e, assim, aumentasse sua projeção a nível internacional.
O outro lado da moeda é o aumento do receio de alguns países latino-americanos frente a uma potencial “hegemonia suave” brasileira (Domínguez 2009: 84). Rejeita-se no México, por exemplo, a pretensão do Brasil em atuar como representante natural da região (Barreto 2010), enquanto na perspectiva argentina parte da diplomacia reprova sinais de proeminência do Brasil, pois o identifica como um país que “busca sempre mais poder na esfera internacional em detrimento dos outros parceiros de bloco” (Saraiva 2007: 52).
A aproximação realizada ao longo dos oitos anos do governo Lula buscou criar bases para viabilizar interesses pragmáticos dentro de uma ampla estratégia de projeção do Brasil como potência. Embora o Brasil tenha buscado atuar na América Central e no Caribe de forma assertiva, promovendo oportunidades e aproveitando espaços em múltiplos âmbitos, o que se verificou foram políticas “esporádicas e indiretas” vinculadas à conjuntura (Ruvalcaba 2018: 106) e dependentes da diplomacia presidencial de Lula (Lima e Duarte 2013).
Considerações finais
Durante a cerimônia de transmissão do cargo de Ministro de Estado das Relações Exteriores, o ministro Celso Amorim absteve-se de efetuar um balanço da política externa, legando a missão para pesquisadores no futuro. O artigo toma parte nessa tarefa, porém de forma bem mais modesta, em termos geográficos e analíticos. O trabalho limitou-se a proposição de uma dinâmica explicativa para o recente fenômeno da aproximação brasileira com os países centro-americanos e caribenhos.
A pesquisa concentrou-se no caráter ativo da política externa. Esse recorte suprimiu eventos e práticas que demandaram a atuação diplomática brasileira de forma reativa. Nesse caso, a maior ausência é a participação brasileira na crise política em Honduras, ainda que eventualmente o Brasil tenha adquirido certo protagonismo. Também evitamos avaliar os resultados ou o mérito das práticas por entender que essa análise requer argumentações que fogem ao escopo da proposta, constituindo parte importante de uma agenda de pesquisa ainda incompleta.
A política externa para a América Central e o Caribe foi marcada pela atuação ativa do Brasil em aprofundar o papel da região em sua agenda internacional. Como proposta de explicação para o período histórico de maior aproximação entre o Brasil e a América Central e o Caribe, foram estabelecidos três eixos de atuação e suas manifestações. Observou-se que a região ganhou visibilidade em todas as três frentes propostas.
Não obstante, a integração centro-americana e caribenha se inseriu sob a lógica da cooperação Sul-Sul e, dentro desta, a ênfase dada a América do Sul. O destaque se inseriu como parte de um processo mais amplo de expansão geral da política externa para espaços menos tradicionais na diplomacia brasileira e não como uma proposta para a área per se. O caráter conjuntural limitou o desenvolvimento de vínculos mais estreitos e significou estagnação ou ainda regressão das relações em um cenário político posterior.
A ausência de continuidade após 2010 —e de forma mais acentuada a partir de 2014— é um retrocesso não definitivo, que pode ser revertido por novas rodadas de aproximação. Se, em um primeiro momento, foi possível estabelecer laços de modo inconsistente, o próximo desafio é retomá-los e estabilizá-los de maneira duradoura a fim de explorar os potenciais benefícios mútuos e promover a integração e o desenvolvimento do subcontinente latino-americano. O presente trabalho, em sua condição de balanço e proposta de categorização para o período, pode contribuir com a compreensão da totalidade da política externa do período Lula ao lançar luz sobre um tema ainda pouco discutido. Pode ainda servir de base para futuras pesquisas que auxiliem na interpretação do período.